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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.9 no.2 São Leopoldo July/Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2016.92.10 

ARTIGOS

 

A palavra como laço social na clínica psicodinâmica do trabalho

 

The word as a social bond in the clinic of psychodynamics of work

 

 

Victoria Ayelén GómezI; Ana Magnólia MendesII; Daniela Scheinkman ChatelardIII; Isalena Santos CarvalhoIV

IUniversidade de Brasília. Bolsista do CNPq. Campus Universitário- ICC, 70910-900, Brasília, DF, Brasil. victoria.ayelen.gomez@gmail.com
IIUniversidade de Brasília. Campus Universitário- ICC, 70910-900, Brasília, DF, Brasil. anamag.mendes@gmail.com
IIIUniversidade de Brasília. Campus Universitário- ICC, 70910-900, Brasília, DF, Brasil. dchatelard@gmail.com
IVUniversidade Federal do Maranhão. Campus do Bacanga. Av. dos Portugueses, s/n, Bacanga, 65085-580, São Luís, MA, Brasil. isalenasc@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A clínica do trabalho vem se fortalecendo pela diversidade de formas e abordagens. No Brasil, seu desenvolvimento acompanhou, principalmente, a divulgação do enfoque teórico e metodológico da Psicodinâmica do Trabalho. A condução clínica no trabalho tem como propósito a emancipação e a construção de laços afetivos, além do desejo de resgatar a capacidade de pensar sobre o sofrimento no trabalho e seu compartilhamento com o coletivo de trabalhadores. No entanto, o contexto de trabalho pautado nos modelos de gestão neotayloristas ensina que não se fale o que se sente ou se vivencia. Existem angústias difíceis de nomear no ambiente laboral, e isso se deve à impossibilidade de sua expressão. Este artigo tem como objetivo discutir o poder da fala na clínica do trabalho como instrumento político, bem como refletir sobre o papel e a posição do clínico do trabalho. A palavra tem um poder de inscrever no simbólico o que escapa ao controle e permite, assim, a elaboração-perlaboração dos eventos; dessa forma, fundamenta-se que a palavra provoca afeto e desbanaliza as injustiças, bem como possibilita a elaboração do que faz sofrer. Destaca-se, ainda, que tal processo é viabilizado pela posição do clínico, que deve estar preparado para receber o que lhe vai ser depositado pelo sujeito.

Palavras-chave: clínica psicodinâmica, trabalho, escuta qualificada.


ABSTRACT

The Work Clinic has been strengthened by the diversity of forms and approaches. In Brazil, its development followed mainly the dissemination of the theoretical and methodological approach to Psychodynamics of Work. The work clinic in the work environment aims for emancipation and building of emotional ties beyond the desire to rescue workers' ability to think about the suffering in the workplace and sharing it with the collective of workers. However, the work context guided by neoTaylorists management models teaches that one shall not verbalize what they feel or experience. There are kinds of anguish that are difficult to denominate in the work environment due to the impossibility of their verbalization. This article aims to discuss the power of speech in the Work Clinic as a political instrument and to reflect on the role and position of the work clinicians. The word has the power to inscribe what escapes control in the symbolic and thus allows the elaboration-perlaboration of events; hence, we believe that the word generates affection and debanalizes injustice as well as allows the elaboration of what causes suffering. It is also noteworthy that this process is enabled by the position of the clinician, who must be prepared to receive what will be deposited onto him by the subject.

Keywords: Work Psychodynamic, clinic, qualified listening.


 

 

Introdução

A Psicodinâmica do Trabalho, criada e difundida por Christophe Dejours, é uma disciplina clínica e teórico-metodológica que nasceu na França, influenciada pela ergonomia, sociologia, filosofia e psicanálise. Enfatiza a dimensão humana, subjetiva, relacional e semântica do trabalho, por acreditar que sempre há algo que o homem deve ajustar, imaginar, inventar para dar conta do real (Dejours, 2005). As situações de trabalho são suscetíveis a eventos inesperados, anomalias de funcionamento, incoerências organizacionais, imprevistos decorrentes dos materiais e das ferramentas utilizadas ou das relações com os colegas, chefes, subordinados, equipes, e até com os clientes. Isso implica admitir que não existe um trabalho só de execução, e que uma distância entre o prescrito e a realidade da situação (Dejours, 2008a) é o próprio trabalhar. A elaboração da organização do trabalho real implica uma distância das prescrições que dão início à atividade de interpretação (Dejours, 2011), e, nessa linha, o trabalho insiste na dimensão humana (Dejours, 2005).

Em seu livro A Loucura do Trabalho, de 1987, Dejours sugere pela primeira vez o método de pesquisa-ação para abordar o trabalho e as dinâmicas psíquicas envolvidas. O método proposto tem o objetivo de abrir um espaço de fala-escuta clínica que permita a compreensão da organização do trabalho e suas consequências, assim como obter conhecimento sobre o papel do trabalho e analisar a mobilização do coletivo dos trabalhadores participantes.

A Psicodinâmica do Trabalho tem uma posição ontológica e epistemológica que une a hermenêutica, a psicanálise e a teoria da ação numa luta contra o que é o sofrimento no trabalho. Segundo Bouyer (2015), o sofrimento no trabalho sempre é um sofrimento social, já que coletivos inteiros são submetidos a restrições de autonomia, imposição de pressões temporais, incluindo as exigências de ritmo intenso, escassez de pausas e cobranças excessivas de alcance de metas elevadas de produção. O sofrimento social, o sofrimento no trabalho e o sofrimento psíquico existem numa inter-relação: o sofrimento social abarca o coletivo e, nesse espaço, desencadeia o sofrimento no trabalho e o sofrimento psíquico (Bouyer, 2015). O au-tor indica haver uma passagem do sofrimento social para o sofrimento individual cujos impactos podem ser verificados na existência de um coletivo - dimensão social - em atividades de trabalho, atravessado de relações de poder. O sofrimento social se direciona para um contexto social específico, do qual se desdobram vivências subjetivas e processos psíquicos com uma dinâmica própria.

As relações sociais de produção contemporâneas surgiram, no Brasil, a partir da década de 1980, quando ocorreram os primeiros impulsos de reestruturação produtiva, o que levou à adoção de novos padrões organizacionais e tecnológicos, bem como a novas formas de organização social do trabalho (Antunes, 2011). Segundo Antunes (2011), os modelos de gestão neoTayloristas incluem novas políticas gerenciais, com programas de qualidade total e de remuneração variável. Para o autor, a nova qualificação exigida compele aos trabalhadores à adequação quase que absoluta num contexto de crescente desemprego e precarização do trabalho. Uma formação geral e polivalente, na tentativa de manter os vínculos de trabalho, acarreta consequências psíquicas e físicas merecedoras de atenção.

Consideramos, a partir do exposto, que o sofrimento no trabalho é sempre da ordem social. Mendes (2012) ressalta que, nos ambientes de trabalho, não existe espaço que admita o sofrimento como parte do humano e que, em tais ambientes, prevalece o rompimento de vínculos, fundamentais para a manutenção e o fortalecimento da subjetividade.

A partir do contexto descrito do mundo do trabalho e em função da carência de vínculos de cooperação, a condução clínica do trabalho tem como propósito a emancipação e a construção de laços afetivos, além de motivar no sujeito o desejo de resgatar a capacidade de pensar sobre o sofrimento no trabalho e o compartilhamento dele com o coletivo de trabalhadores.

A clínica do trabalho vem se fortalecendo pela diversidade de formas e abordagens. No Brasil, seu desenvolvimento acompanhou, principalmente, a divulgação do enfoque teórico e metodológico da Psicodinâmica do Trabalho, como comprovam os estudos de Duarte e Mendes (2015), Oliveira e Mendes (2014), Ghizoni e Mendes (2014), Mendes e Vieira (2014), Medeiros e Mendes (2013), Martins e Mendes (2012), Dias et al. (2012) e Dias et al. (2012). Esses estudos pretenderam entender fenômenos relacionados com a ação de trabalhar, como as doenças que acometem os trabalhadores, mas também realizar práticas e intervenções clínicas que fortaleçam o laço social e a saúde física e mental do trabalhador.

Diversas patologias encontram-se relacionadas com o ambiente de trabalho que não permite a fala sobre o que se sente. Existem angústias difíceis de nomear no ambiente laboral, pela impossibilidade de sua exposição, pois, nesses espaços, há impedimentos do encontro entre o sujeito que carrega uma história singular, personalizada, e a organização do trabalho despersonalizante (Mendes, 2012). Expressar-se de forma pública no coletivo de trabalhadores envolve mostrar uma vulnerabilidade que não é compatível com um contexto perverso (Saraiva e Mendes, 2014), permeado por uma lógica de competição, enfraquecimento dos laços sociais e que nega aos trabalhadores a consciência sobre a potência da reação. Trata-se de uma racionalização produtiva que desconsidera os laços.

Casos de depressão e DORTs (Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho) escalaram com o fortalecimento de um modelo de produção alicerçado na intensificação do trabalho e na pressão por alcançar padrões de qualidade que desconsideram a saúde do trabalhador (Rocha et al., 2012). Associada a isso, encontra-se a aceleração dos processos que impede o trabalhador de pensar, falar e nomear o que sente, pois fazê-lo significaria estar à mar-gem dos padrões de qualidade que o contexto exige: trabalhador adaptado que faça o que tem que ser feito sem questionar. Admitir que haja sujeitos que sofrem, desejam e sentem não é permitido; muito menos falar sobre isso.

Suicídios e ideações suicidas relacionadas ao trabalho também (Dejours, 2008b; Santos et al., 2011) afluem aos trabalhadores num estado de solidão psicológica e num ambiente que denota o enfraquecimento dos laços sociais no trabalho. A carência de solidariedade entre as pessoas no local de trabalho, o individualismo e a competição aumentam os riscos de sua ocorrência (Dejours, 2008b).

Situações de assédio moral no trabalho são caracterizadas pelo isolamento, incomunicabilidade e proibição de conversar com os colegas (Ferreira et al., 2006); o assédio moral é considerado produto de uma perversão social que captura os trabalhadores e é um tipo de patologia social. Constata-se, muitas vezes, que as pessoas que praticam o assédio não são necessariamente perversas em suas estruturas, mas, dado os modos de gestão e produção do trabalho, desenvolvem esse tipo de práticas (Ferreira et al., 2006).

É com essas queixas que os trabalhadores chegam à clínica do trabalho: aturdidos e desolados, submetidos a uma cultura que ensina a não falar nem expressar. É a cultura do silêncio, que é, acima de tudo, uma estratégia de sobrevivência. Nossa prática em clínica do trabalho escuta dos trabalhadores que sobreviver no ambiente de trabalho significa, às vezes, calar o que se sente, por medo de represálias.

O sofrimento precisa de um clínico que consiga decifrar a relação dele com as situações de trabalho e assim contribuir para desvelar a sua gênese. A interpretação do sofrimento ocorre num caminho que procura a nomeação das angústias, bem como a identificação dasrelações abusivas. É possível que as angústias e o sofrimento não sejam nomeados, por não serem percebidos pelos trabalhadores, devido à dificuldade de expressar os sentimentos nos locais de trabalho. A condução clínica da Psicodinâmica do Trabalho se desliza nesse movimento implicando um saber-fazer específico do clínico que exige o conhecimento não apenas do mundo do trabalho, mas também da concepção psicanalítica de sujeito. A posição do clínico nesse ponto é o que faz a diferença.

Desbanalizar as violências no trabalho, as quais passam por fatos ordinários - e denunciar o que não pode ser naturalizado (Pérrileux e Mendes, 2015) - implicam colocar uma potência política nas práticas em clínica Psicodinâmica do Trabalho. A politização do sofrimento pode ser considerada na perspectiva de sofrimento social e psíquico (Bouyer, 2015). Ou seja, sob a lógica de que o sofrimento no trabalho é principalmente um sofrimento que depende de decisões políticas, que emerge de decisões institucionais e organizacionais e não tem sua gênese apenas na história do sujeito.

Os trabalhadores buscam a clínica do trabalho quando conseguem identificar vivências que causam sofrimento, produzidas pela violência dos modelos de gestão adotados nas organizações do trabalho (Pérrileux e Mendes, 2015). Nossa prática em clínica do trabalho envolve considerar aspectos teóricos da Psicodinâmica do Trabalho, abrindo espaço para novas considerações teóricas advindas da dialética freudo-lacaniana. Dessa forma, consideramos três dispositivos baseados na clínica Lacaniana: a interpretação, o silêncio e a transferência (Mendes, 2015), que podem contribuir para uma escuta psicanalítica do sofrimento de forma a produzir efeitos no posicionamento subjetivo do sujeito. O motivo do diálogo embasado nesses dispositivos se fundamenta na necessidade de acessar a posição subjetiva do trabalhador, os sintomas e as defesas que estão instalados diante do que é o real do trabalho (Mendes, 2015) para descobrir esse sofrimento. O sujeito pode se ape-gar ao sofrimento e aos sintomas de forma a mantê-los encobertos e negados num sistema defensivo que resiste a um reposicionamento subjetivo (Mendes, 2015).

Nessa perspectiva, além de atendimentos em grupo, incluímos também atendimentos individuais, num projeto de pesquisa-intervenção. Nossa prática clínica é realizada no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos da Universidade de Brasília, que abriga o Projeto Práticas em Clínica do Trabalho. O Projeto é voltado para o atendimento de trabalhadores em sofrimento no trabalho relacionado a alguma das seguintes situações: riscos de adoecimento ocupacional; situações de estresse pós-traumático, assédio moral, tentativas de suicídio e acidente de trabalho; afastamento temporário do trabalho por doença ocupacional ou em processo de readaptação laboral.

Nosso fazer nasce do pressuposto de que abrir um espaço para falar e escutar o sofrimento originado no trabalho é uma postura crítica das formas de gestão atuais que não permitem a expressão dos sentimentos, gerando diversas patologias sociais. Ademais, avança-se com a ideia de que o poder da fala se inscreve em dois eixos: (i) a palavra politiza os trabalhadores que narram o que sentem, bem como permite denunciar e desbanalizar a violência nas relações sociais no trabalho; e (ii) a palavra faz laço social, promove a elaboração de eventos traumáticos acontecidos no âmbito do trabalho. Busca-se argumentar que a prática clínica vinculada à psicanálise opera a favor da construção do laço social. A partir do exposto, este artigo tem como objetivo discutir o poder da fala na clínica do trabalho como instrumento político, bem como refletir sobre o papel e a posição do clínico do trabalho.

 

O poder da fala na clínica do trabalho

A clínica do trabalho é o espaço da fala e da escuta do sofrimento originado pela organização do trabalho, permitindo aos trabalhadores criar estratégias eficazes para afrontar situações que provoquem sofrimento. Privilegia a fala não só por proporcionar um espaço de escuta, mas também porque promove o exercício de falar e de escutar, buscando pôr a palavra em ação (Mendes e Araújo, 2012).

A clínica promove a condição humana e, para isso, se serve da dimensão da linguagem. Uma questão essencial para a teoria Psicodinâmica do Trabalho é que as situações do trabalho e a análise destas são mediadas pela linguagem, a qual se encontra em todas as fases: como resultado das regras do trabalho, com o coletivo e a comunidade; na intervenção da clínica psicodinâmica do trabalho, como vetor de ação sobre a organização do trabalho e as relações sociais; e como prática linguística na formação do trabalho (Dejours, 2004).

A clínica psicodinâmica do trabalho é um modo de revelar as mediações que ocorrem entre o sujeito e o real do trabalho, sendo o real acessado mediante a escuta do clínico. É desse modo que as situações de trabalho são visíveis (Ghizoni et al., 2014). É um espaço em que o objeto de investigação é a relação do trabalhador com a atividade laboral em seus aspectos mais amplos, complexos e subjetivos. Nesse espaço, os sujeitos podem expressar suas impressões, sentimentos e percepções em relação a seus pares, superiores e subordinados, bem como suas tarefas realizadas, resultados e sentido do que fazem (Araújo, 2013). É o espaço da fala e da escuta do sofrimento que se origina na realidade concreta da organização do trabalho (Mendes, 2007). A clínica privilegia a fala: busca pôr a palavra em ação, abrindo a oportunidade de repensar o trabalho em suas dimensões visíveis e invisíveis, de questionar a organização do trabalho e os laços sociais que os sujeitos constroem com o real. Articula-se ação no ato de linguagem, uma vez que a fala implica uma eficiência quando passa pelo processo de elaboração-perlaboração coletiva, possibilitando a passagem do espaço de discussão para o espaço de deliberação (Mendes e Araújo, 2012). O dispositivo clínico atua pela palavra como um revelador do evento sintomático (Pérrileux e Mendes, 2015).

Tal passagem do espaço de discussão para o espaço de deliberação é um processo que pode ser entendido através dos conceitos elaborados no escrito de Freud (1996 [1914]) Recordar, Repetir e Elaborar (Mendes e Araújo, 2012). A perlaboração é um trabalho difícil e, segundo Mendes e Araújo (2012), o fato de se dar um nome à resistência por meio de uma interpretação não garante sua eliminação. Martins (2013) indica que o termo perlaboração foi utilizado por Freud para se referir ao processo de trabalho psíquico inconsciente que é integrado a uma interpretação e que superada a resistência que ela suscita, permite ao sujeito libertar-se da influência dos mecanismos repetitivos.

O que importa é que as intervenções permitam ao sujeito evoluir em seu trabalho de perlaboração. A escuta acontece no espaço de discussão do coletivo de trabalhadores com a reflexão dos modos de trabalhar, propiciando, através da perlaboração, a reapropriação de novas formas de relações no trabalho (Martins, 2013). A passagem do espaço de discussão para o espaço de deliberação é um processo que requer a perlaboração, e não a simples discussão/verbalização do que acontece, demandando, assim, uma elaboração (Martins, 2013) interpretativa que propicie um processo psíquico de travessia e religação relacionado com o trabalho analítico vivido pelo sujeito. Mendes (1995) indica que o espaço público de discussão é construído pelos trabalhadores e constitui um momento em que são partilhadas a cooperação, a confiança e as regras em comum, mas isso, por si, só não constitui um espaço de deliberação nos termos acima detalhados.

Isso posto, ressalta-se a importância da psicanálise para a compreensão da dinâmica trabalho, sujeito e ação, bem como para sustentação dos dispositivos da prática clínica em relação à escuta do sofrimento, à elaboração e à interpretação (Mendes e Araújo, 2012). O fazer envolve conflitos, e a forma como esse fazer afeta o sujeito é a principal ocupação da clínica.

No Brasil, a base metodológica da clínica do trabalho e da ação preconizada por Dejours (1992) tem sofrido adaptações, assumindo uma feição voltada para a prática da escuta clínica do sofrimento, além da pesquisa. Dessa forma, sem romper com a teoria da Psicodinâmica do Trabalho, as práticas clínicas brasileiras têm se aproximado com maior ênfase da psicanálise. Exemplo disso é a clínica Psicodinâmica do Trabalho, proposta por Mendes e Araújo (2012), que promove o uso da Psicodinâmica do Trabalho na prática clínica, envolvendo pesquisa e intervenção. A prática clínica mencionada também inclui pensar a posição subjetiva dos trabalhadores a partir de uma concepção psicanalítica crítica.

Ghizoni et al. (2014) explicam que a clínica Psicodinâmica do Trabalho caracteriza-se pela análise dos processos psíquicos mobilizados pelo encontro entre o sujeito e as imposições da organização do trabalho, e que as práticas clínicas no contexto brasileiro apresentam especificidades e singularidades. A Psicodinâmica do Trabalho tem sido usada como referencial teórico, e não só como método de pesquisa com os passos originalmente propostos. Segundo Merlo e Mendes (2009), a Psicodinâmica do Trabalho tem sido usada de duas formas: (i) como categoria teórico-metodológica, que implica o uso da teoria e do método originalmente proposto por Dejours (1992); e (ii) como categoria teórica, direcionada ao uso dos conceitos para delinear pesquisas empíricas e interpretar dados, o que modifica o uso originariamente proposto por seu criador.

Embora cada prática situada e contextualizada em diversos lugares apresente particularidades próprias - o uso da Psicodinâmica do Trabalho com o método original ou dialogando com outras abordagens-teorias-concepções; com o coletivo de trabalhadores da mesma ou de diferentes categorias, ou com atendimentos individuais -, pode-se alegar que todas interpelam pela mobilização subjetiva dos trabalhadores.

A mobilização subjetiva supõe: esforços de inteligência; esforços de elaboração na construção de opinião sobre a melhor maneira de superar as contradições do trabalho e de acertar nas dificuldades; e esforços para participar nas decisões e escolhas em relação à organização do trabalho (Dejours, 2011). Mobilização subjetiva e identidade são construídas no encontro com o real do trabalho. O reconhecimento é uma retribuição moral-simbólica outorgada ao ego por sua contribuição na eficácia da organização do trabalho e sua subjetividade (Dejours, 2005), sendo a fonte da mobilização subjetiva.

Acredita-se ser importante diferenciar o conceito de mobilização subjetiva do conceito de estratégias defensivas. As estratégias de defesa servem de mediação, negação e enfrentamento do sofrimento (Dejours et al., 1994) e são fundamentais para manter a saúde no trabalho (Dejours, 1992). Porém, a sua utilização pode desencadear uma adaptação exagerada e impedir, de forma parcial, a consciência de relações de exploração. Dejours (2006) postula a dupla cara das defesas no sentido de que elas podem fazer aceitável o que não deveria sê-lo. Dessa forma, funcionariam como armadilhas que dessensibilizam perante aquilo que produz o sofrimento. Mendes (2007) alerta, ainda, que elas podem perder seus efeitos e se transformarem em patologias sociais, como sobrecarga, servidão voluntária e violência.

Por outro lado, e de acordo com Mendes e Duarte (2013), a mobilização subjetiva envolve o engajamento da subjetividade, a mobilização da inteligência e da personalidade; baseia-se na relação contribuição/retribuição. O sujeito espera que a organização do trabalho lhe ofereça uma possibilidade de contribuir e uma possibilidade de gratificação simbólica por essa contribuição. Está sujeita à dinâmica do reconhecimento, que permite a transformação do sofrimento em prazer. Subjaz à mobilização subjetiva uma busca da identidade, pois o sujeito, além de executar a tarefa, quer dar vida ao trabalho e deixar sua marca. A mobilização subjetiva é o processo pelo qual o sujeito se cria e evidencia a relação entre trabalho e identidade - constituição e afirmação da identidade. Esse conceito fundamenta a concepção de trabalho para a Psicodinâmica do Trabalho e emerge diante das exigências e constrangimentos da organização do trabalho - o real do trabalho (Mendes e Duarte, 2013).

Pérrileux e Mendes (2015) afirmam que é por meio da palavra dos trabalhadores que se tem acessado as realidades organizacionais, as quais não seriam acessíveis de outra maneira. A circulação da palavra e as verbalizações têm permitido o avanço teórico sobre os conhecimentos em clínica Psicodinâmica do Trabalho.

A Psicodinâmica do Trabalho é, sobretudo, uma teoria clínica e tem como objeto central abranger a mobilização subjetiva no trabalho, que é o engajamento afetivo mediado pela palavra. Nesse processo, torna-se fundamental compreender o sofrimento como o afeto que mobiliza os investimentos do indivíduo para transformar a organização do trabalho (Mendes, 2012).

A clínica do trabalho relacionada à Psicodinâmica do Trabalho e com maior ênfase na psicanálise encontra-se orientada por princípios que marcam uma distinção: trabalha-se com o sujeito do inconsciente e com o método clínico numa epistemologia estrutural-dialética. Nesse nó, a gramática freudo-lacaniana pode oferecer suportes de inteligibilidade e operatórios (Gómez, 2014a).

Apontar a fala como potência exige desenvolver algumas ideias. Lacan (1999 [19571958]) indica que o significante mostra o funcionamento de uma cadeia articulada, que tende a formar grupos fechados e compostos de uma série de anéis que se prendem uns aos outros para construir cadeias. Assim, as cadeias se prendem a outras cadeias como anéis. Igualmente, o autor coloca a questão de que, em todo ato de linguagem, há também uma sincronia implicada, evocada pela possibilidade de substituição inerente a cada um dos termos do significante. E é ali, na relação de substituição, que reside a potência criadora, a força da metáfora. Anuncia-se que é por essa via que entra o sentido. Rosa (2004) expõe que a análise pode ser feita pela vertente dos discursos, que produzem laços sociais, os quais são laços discursivos e que definem as maneiras diferentes de distribuição de gozo.

Pérrileux e Mendes (2015) afirmam que a clínica do trabalho exige tratar o sintoma não como um problema a resolver, mas sim como um enigma que protesta por uma decisão; o sintoma faz parte de uma expressão das contradições sociais. O modo como se é afetado por um problema e o modo de falar dele é sempre singular, mas dizem também das contradições contemporâneas de trabalho. A clínica contribui para nomear os sintomas e inscrevê-los na ordem da palavra, o que possibilita elaborá-los; propõe um espaço que promova a mobilização subjetiva e o engajamento do trabalhador no encontro da identidade dele em seu fazer. Para isso, faz-se necessário narrar, falar e expressar os sentimentos e o sofrimento.

A condução clínica exige pressupor que a fala representa uma cadeia significante e que sua gênese, tal como Lacan (1999 [1957-1958]) expressou, implica que o discurso sempre diz mais do que aquilo que se diz. Lacan (1999 [1957-1958]) anuncia dois estados ou sequências significantes. A primeira representa o discurso racional, o qual está integrado em certo número de pontos de referência e coisas fixas: é o discurso concreto do sujeito individual que fala e se faz. A outra é tudo isso, mas com as possibilidades de decomposição, de ressonância e de efeitos metafóricos e metonímicos. O autor anuncia: uma sequência vai pelo sentido inverso da outra, pela simples razão de que elas deslizam uma sobre a outra e que uma corta a outra. As duas sequências merecem atenção, pois é com elas que o trabalho clínico vai se desenvolver.

Nossas experiências clínicas indicam que os casos clínicos que se apresentam não estão desligados do modelo do Capital, regido pela lógica do descartável. Apontar a potência da fala como instrumento humanizador busca clamar pela humanidade, busca trazer de volta a capacidade de estabelecer laço social de forma a trazer novamente o afeto, desbanalizar as injustiças, resgatar o sentido do trabalho num espaço de fala/escuta. O simples (mas poderoso) ato de estar numa posição que escute o sofrimento traz novamente uma esperança em um mundo que parece ser sempre movido pelo valor.

A dor precisa ser falada. Quando, por exemplo, um fato de assédio moral acontece, isso de algum modo marca o coletivo de trabalhadores, faz diferença e fica no nível do indizível. Fucks (2014) traz a ideia de que traumas subsistem em traços mnêmicos inconscientes e são regidos pelo tempo da transmissão simbólica que é a posteriori, fazendo valer essa subsistência até momentos nos quais os que estavam presentes já não estão mais. Isso deixa um legado: o da não fala. Para Fucks (2014), ao avançar na trama do trauma e nas formas de se espalhar, no âmbito do trabalho, duas figuras se destacam: o testemunho, entre o trauma individual e o coletivo; e o sobrevivente. Ambos estão ligados à figura do testemunho visceral que contamina quem não esteve presente. A autora assinala que, quando o esforço de metaforização é interrompido pelo impacto de um evento traumático, os sobreviventes se mantêm no limite do dizível.

Ainda segundo Fucks (2014), o impacto é de grandes proporções, pois a transmissão intergeracional de um trauma pode permanecer latente no decorrer de várias gerações.É assim que os trabalhadores se encontram, num impasse aprendido, seja pela vivência própria, seja pela figura de testemunho ou sobrevivente, mas num espaço de silêncio. A fala permite a elaboração de eventos traumáticos ocorridos no âmbito do trabalho, e não apenas porque permite a expressão do vivenciado, mas também porque, na mesma lógica, propaga a elaboração.

Para compreender como esse processo acontece no espaço da escuta clínica do sofrimento, será necessário desenvolver a ideia da posição do clínico, que permite ao sujeito ser e falar e que será abordada a seguir.

 

A posição do clínico do trabalho

Em nossas escutas clínicas, estamos atentos à forma como o inconsciente se estrutura como uma linguagem. É pelo discurso que o sujeito se organiza, motivo pelo qual esse espaço não deve ser minimizado. O clínico do trabalho deve reconhecer a condição de falta, pois é o que permite falar sobre o desejo, remetendo-o novamente ao mundo simbólico. Deve-se ajudar o trabalhador a enfrentar a sua falta.

Muitas vezes, as pesquisas em clínica do trabalho e, particularmente, em Psicodinâmica do Trabalho (Ghizoni et al., 2014; Ghizonie e Mendes, 2014; Duarte, 2014; Ferreira, 2013), têm sido caracterizadas pelo limite que a própria clínica tem na perlaboração dos conflitos. Embora as clínicas tenham acontecido coletivamente, percebeu-se que os trabalhadores eram resistentes à mudança de posição subjetiva. Uma das possíveis causas dessa resistência remetia à posição subjetiva do clínico, o que marca uma mudança na condução da clínica do trabalho, qual seja: a passagem de pesquisador-clínico a clínico-pesquisador (Mendes, 2014).

Mendes e Araújo (2012) indicam que existe uma diferença entre fazer pesquisas com o referencial da Psicodinâmica do Trabalho e/ou atuar como um clínico do trabalho com essa abordagem. Segundo as autoras, para fazer a clínica, o profissional precisa desenvolver saberes sobre o mundo do trabalho e o sofrimento. É essencial que o clínico, além de se apropriar da teoria, tenha uma prática, já que a prática da escuta e da interpretação articulada com a teoria fortalece seu papel na busca da mobilização subjetiva. As autoras apontam, ainda, que essa marca na identidade do clínico é imprescindível para estabelecer as diferenças entre abordagens metodológicas, incluindo o campo das clínicas sociais em geral.

O deslizamento de clínico-pesquisador implica que o clínico esteja em posição de escutar o material que o paciente traz. Segundo Mendes (2014), o processo clínico inicia-se na falta que se inscreve na fala, a qual, uma vez nomeada, pode exercer efeitos: um anseio que gera uma demanda que é a representação do acessível ao desejo. O lugar que se ocupa é de clínico, o que envolve afrontar as situações clínicas em Psicodinâmica do Trabalho desde esse lugar; trazendo implícita a ideia de que os clínicos devem lidar com suas próprias limitações.

Na clínica do trabalho, o processo de perlaboração sucede quando é propiciada a reintegração pelo trabalhador de sua história de vida em uma dimensão que ultrapasse os limites individuais (Mendes e Araújo, 2012). Mas devemos estar atentos, pois é um processo que, segundo Freud (1996 [1914]), não é de curso calmo, existe uma relação com a transferência e a repetição, sendo o fenômeno da transferência um fragmento da repetição do passado esquecido. Segundo o autor, na prática, é uma árdua tarefa para o sujeito e uma prova de paciência para o clínico.

A esse respeito, Lacan (1992 [1969-1970]) introduz a noção de que o gozo desborda e que a repetição se funda num retorno do gozo, mas que, nessa repetição, também há perda de gozo e o encontro com a origem da função do objeto perdido. Coelho (2006) esboça que é uma forma de abordar o estabelecimento do laço social, articulando o campo da linguagem e o campo do gozo. A autora sugere que Lacan nos propõe conceber a experiência analítica como experiência de discurso. O gozo como a satisfação que inclui em si própria o seu avesso (Fucks, 2014).

Para Rosa (2004), a escuta do sujeito do desejo supõe uma relação sustentada pela transferência, que, por sua vez, produz um saber que está no sujeito e que ele não sabe que tem. A autora explica que escutar o sofrimento não significa eliminá-lo, mas sim criar uma nova posição diante do seu sentido. A singularidade do sujeito convoca a singularidade do clínico, convocação essa permitida pela transferência que sucinta a construção de laços afetivos (Mendes e Oliveira, 2014). O clínico deve também saber trabalhar com a demanda que os trabalhadores trazem, pois é a partir dela que será propiciada a elaboração dos conflitos.

Acredita-se que a proposta de Gómez (2014b) de complementar a clínica do trabalho com os dispositivos atuais da clínica lacaniana pode contribuir para a escuta do sofrimento no trabalho, pois prega pelo resgate da subjetividade e é contrária à lógica funcionalista, com preocupações adaptacionistas e produtivistas. O autor adverte sobre a presença de tendências que supõem que o sujeito é pleno de consciência e vontade, assim como de tendências que negam o que é a fantasmática inconsciente e significante (presença do gozo): o sujeito deseja a cura, mas ama os seus sintomas, ou seja, gozo como o conceito paradoxal que permite a satisfação no desprazer. Gómez (2014b) fala que essa contribuição implica aceitar a ideia de incorporar e trabalhar com os significantes usados pelo sujeito/trabalhador, e não com os significantes usados pelos clínicos do trabalho, pois assim também se poderia estar atento ao repertório de significantes que ordenam cada sujeito. Os significantes que o sujeito usa são os que o organizam e o subordinam. Um recurso importante seria o silêncio, sem orientar, sem sugerir.

Deve-se estar igualmente atento ao que Lustoza (2009) aponta como as consequências do discurso capitalista no laço social. Esse discurso transforma a insatisfação constitutiva do desejo humano em uma insatisfação que é dirigida pelo mercado. A autora assinala que o capitalismo encontra-se voltado a fomentar nos sujeitos uma insatisfação constante que sempre está acompanhada pelo gozo de algum objeto descartável, de fruição curta. A condição de haver laço social é o reconhecimento de que não somos capazes de fazer/dizer tudo sozinhos, mas sim de que, em função de nossa incompletude, precisamos nos dirigir ao Outro.

Rosa (2004) aponta que, na análise do sintoma, deve-se escutar o que não é dito no discurso, mas também acrescentar a determinação dos não ditos dos enunciados sociais. A autora expõe, ainda, que o campo transferencial permite que o clínico ocupe um lugar de suposto-saber: o sujeito supõe que fala para quem sabe sobre ele, mas, nessa fala, ele se escuta e se apropria do próprio discurso. A noção de sujeito suposto-saber é necessária para que aquele que sofre possa se dirigir ao analista. Logo, o analista não ocupa o lugar do saber, mas reconhece a importância dessa noção para o paciente.

A partir de pesquisas empíricas (Mendes, 2015), foi constatado que, muitas vezes, o sujeito não quer abrir mão de seu sofrimento e sintomas e que a relação entre defesa, sofrimento e trabalho se instala numa lógica que a Psicodinâmica do Trabalho não dá conta. Dessa forma, quando o clínico se depara com esses fenômenos, ele deve se colocar numa posição que consiga acolher e entender que a passagem para a perlaboração pode estar comprometida. Se a Clínica Psicodinâmica do Trabalho busca um comprometimento político, deve-se estar atento à forma como é possível a mudança subjetiva, que se inicia na posição do clínico. Não é uma escuta clínica do sofrimento sozinha que vai dar contar da posição subjetiva do sujeito, do coletivo de trabalhadores e do efeito político.

A proposta não é só metodológica - mas também teórica - do conhecimento da necessidade de assumir a própria falta para fazer laço social. O clínico é parte indissociável da condução clínica e sua subjetividade é uma das dimensões do próprio método. Sua formação não é só técnica, ética, mas também afetiva. Nesse sentido, a clínica não busca respostas e soluções de modo racional e objetivo e conviver com essa frustração é fundamental para que ocorra, em primeiro lugar (Mendes e Araújo, 2012). A posição do clínico implica também tornar-se um elo na escuta que possibilite a reumanização do sofrimento e deixar surgir a oportunidade de uma palavra (Mendes e Araújo, 2012).

Pérrileux e Mendes (2015) apontam que é imprescindível que o clínico do trabalho ocupe um lugar vazio que permita ao sujeito acessar uma parte de sua verdade de modo a se inscrever de maneira diferente no laço social. A posição do clínico não consiste em optar pelo geral em detrimento do singular, nem pelo que pode ser chamado de realidade fantasmática em detrimento da realidade histórica. Consiste em manter os dois polos em tensão de forma que possa circular entre eles a depender do percurso empreendido pelo paciente/sujeito/trabalhador. É importante ressaltar que, em alguns casos, uma tomada de posição do clínico pode impedir o prosseguimento do que poderia ser um trabalho de elaboração psíquica (Pérrileux e Mendes, 2015). A supervisão clínica da condução é uma forma de dar curso ao trabalho de elaboração psíquica (Mendes, 2015) e considera-se que, a partir desse ponto, se constrói também a posição do clínico do trabalho.

Acredita-se que a escuta clínica do sofrimento no trabalho é um ato político que denuncia a normalidade dos sintomas (Mendes e Oliveira, 2014) e que é legítima uma concepção que leve em consideração os desafios nas relações de trabalho, assim como a história singular do sujeito (Nogueira e Bernardo, 2013). Proclama-se a busca pelo fortalecimento do laço social através da escuta - tentando desconstruir a racionalização instrumental - atrelada a vínculos que façam surgir o sujeito.

Destaca-se a importância da ética na clínica do trabalho (Mendes, 2012), que se situa no respeito às diferenças dos sujeitos envolvidos. Busca-se uma fala verdadeira e a realização, pelo sujeito, de sua história em relação a um futuro, diminuindo o abismo do reconhecimento entre seu afeto e a emissão de suas palavras.

A partir do princípio de que os sujeitos sofrem e manifestam seu sofrimento, a ética do clínico do trabalho é assegurar a discrição e o sigilo, permitindo ao trabalhador identificar, nomear e comunicar determinadas percepções avaliadas como ameaça. A verbalização do sofrimento deve ser ancorada por meio do laço que se forma com os envolvidos e propiciar ao sujeito potência para modificar o lugar que ocupa. O reconhecimento pelo outro da situação que gera mal-estar é essencial para a confrontação com o real experimentado e o que coloca o sujeito em movimento, desnudando os cenários prescritos e repetitivos para possibilitar o confronto com o real, manifestado no silêncio e que denega o sujeito da sua realidade.

 

Considerações finais

O presente artigo teve como objetivo discutir o poder da fala na clínica do trabalho como instrumento político, bem como refletir sobre o papel e a posição do clínico do trabalho. Essa clínica é o espaço da fala e da escuta do sofrimento originado pela organização do trabalho, que privilegia a fala, já que busca pôr a palavra em ação. Constitui uma oportunidade de repensar o trabalho em suas dimensões visíveis e invisíveis, de questionar a organização do trabalho e os laços sociais que os sujeitos constroem com o real. A escuta busca, através da reflexão dos modos de trabalhar e do processo da perlaboração, a reapropriação de novas formas de relações no/com o trabalho enquanto a condução clínica interpela pela mobilização subjetiva.

A clínica do trabalho relacionada à psicodinâmica do trabalho e com maior ênfase na psicanálise se serve da dimensão da linguagem para produzir efeitos políticos. Apontar a potência da fala é clamar pela humanidade, buscando trazer de volta a capacidade de fazer laço social de forma a resgatar o afeto. A fala como instrumento político permite a elaboração de eventos traumáticos acontecidos no âmbito do trabalho, e não apenas porque permite a expressão do vivenciado, mas também porque, na mesma lógica, propaga a elaboração. Promove-se a necessidade de a abordagem Psicodinâmica do Trabalho incluir conceitos vindos da psicanálise lacaniana para compreender os processos de apego ao sofrimento.

Falar da posição do clínico do trabalho implica vislumbrar que ela repercute no processo mesmo de perlaboração. O clínico deve estar numa posição de escutar o material que o paciente traz e de saber que o processo clínico inicia-se na falta que se inscreve na fala num anseio que gera uma demanda. Os clínicos devem lidar com suas limitações e faltas. A posição do clínico deve contemplar o curso não calmo do processo, tendo em vista que existe uma relação com a transferência e a repetição.

O clínico do trabalho deve considerar o significado da noção de gozo e que a repetição se funda num retorno do gozo. Acredita-se que se deve complementar a clínica do trabalho com os dispositivos atuais da clínica lacaniana, o que pode contribuir para a escuta do sofrimento no trabalho. Questionar a presença de tendências que supõem o sujeito pleno de consciência e vontade, bem como de tendências que negam o que é a fantasmática inconsciente e os significantes que ordenam cada sujeito é um primeiro passo.

A experiência analítica se funda no discurso, e o clínico é parte indissociável da condução em clínica, sendo sua subjetividade uma das dimensões do próprio método. O clínico do trabalho deve ocupar um lugar vazio que permita ao sujeito acessar uma parte de sua verdade de modo a se inscrever de maneira diferente no laço social.

Reafirmamos que a posição do clínico não consiste em optar pelo geral em detrimento do singular, nem do que pode ser chamado de realidade fantasmática em detrimento da realidade histórica, mas sim em manter os dois polos em tensão de forma que possa circular entre eles a depender do percurso empreendido pelo paciente/sujeito/trabalhador. Em alguns casos, uma tomada de posição do clínico pode impedir o prosseguimento do que poderia ser um trabalho de elaboração psíquica e, para isso, se torna fundamental a supervisão clínica da condução.

Tem-se a convicção de que é por via da palavra que podemos instaurar o mais humano que se tem, que é o laço social. A palavra provoca afeto e restitui a desbanalização das injustiças e permite a elaboração do que faz sofrer. A palavra tem um poder de inscrever no simbólico o que escapa ao controle, assim permitindo a elaboração-perlaboração dos eventos. Anuncia-se, ainda, que isso é permitido pela posição do clínico, que deve estar preparado para receber o que lhe vai ser depositado pelo sujeito.

A condução clínica no trabalho tem como propósito a emancipação e a construção de laços afetivos, além de mobilizar no sujeito o desejo de resgatar a capacidade de pensar sobre o sofrimento no trabalho e seu compartilhamento com o coletivo de trabalhadores. A clínica do trabalho relacionada à psicodinâmica do trabalho e com maior ênfase na psicanálise opera a favor da construção do laço social.

 

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Submetido: 19/02/2016
Aceito: 03/06/2016

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