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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.10 no.2 São Leopoldo July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2017.102.04 

ARTIGOS

 

O recasamento: o papel da madrasta e sua relação com os enteados

 

The remarriage: the role of the stepmother and her relationship with her stepchildren

 

 

Amanda Pansard AlvesI; Dorian Mônica ArpiniII

ICentro de Referência Especializado de Assistência Social. Rua Hermann Meyer, 43, Centro, 98280-000, Panambi, RS, Brasil. amanda.pansard@hotmail.com
IIUniversidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, prédio 74b, sala 3208, Campus Universitário, Camobi, 97105-900, Santa Maria, RS, Brasil. monica.arpini@gmail.com

 

 


RESUMO

Ao ingressar em um relacionamento em que o companheiro já possui filhos, é frequente que a madrasta tenha dificuldades para estabelecer a função que irá assumir nessa nova configuração familiar. Diante disso, este estudo qualitativo teve como objetivo investigar qual é o lugar ocupado pela madrasta na família recasada e como é sua relação com os enteados. Para tanto, integraram, neste estudo, seis mulheres que vivenciavam um relacionamento estável com um homem que possuía filhos de um relacionamento anterior, sendo que esses não residiam com o casal. Os dados foram coletados por meio de uma ficha de dados de identificação e de uma entrevista semidirigida com questões abertas, que foi avaliada por meio da análise de conteúdo temática. Os resultados apontaram para o envolvimento das participantes e para a atenção, especialmente em relação ao cuidado dos enteados, evitando interferir nos aspectos disciplinares. Além disso, alguns pais parecem ter assumido uma postura mais passiva na busca por uma aproximação com os filhos, tendo a madrasta exercido uma influência positiva para a manutenção da parentalidade. As considerações finais destacam a importância da flexibilização dos diferentes membros da família como estratégia para facilitar a acomodação dos papéis a serem desempenhados.

Palavras-chave: recasamento, madrasta, relações familiares, enteado.


ABSTRACT

When entering in a relationship in which the partner already has kids, it is common for the stepmother to express difficulties in establishing the role that she will play in this new family configuration. Thus, this qualitative research aimed to investigate about the role played by the stepmother in a remarried family and about her relation with her stepchildren. Therefore, six women that lived a stable relationship with a man that already had kids, who did not live with the couple, integrated this study. The data were collected through an identification data sheet and a semi-directed interview with open-ended questions, which were analyzed by a thematic content analysis. The results pointed out to the involvement and the attention of the participants, especially regarding to the care of the stepchildren, avoiding to interfere in disciplinary aspects. Besides, in the participants' point of estabeleciview, the fathers seemed to have taken on a passive attitude in the search for getting closer to their kids – stepmothers performed a positive influence to maintenance of parenthood. The final considerations mark the importance of flexibility in different family members as a strategy to facilitate the adaptation to the roles that will be developed.

Keywords: remarriage, stepmother, family relations, stepchildren.


 

 

Introdução

O desenlace conjugal e a nova união de um ou ambos os pais trazem às famílias novos atores. Dentre eles, os novos cônjuges e, em alguns casos, os filhos desses, os quais poderão ter dificuldades para estabelecer uma função própria dentro da família recasada (Silva et al., 2012). Esse desafio se faz presente uma vez que madrastas e padrastos frequentemente não possuem modelos em relação ao papel que deverão desempenhar nessa nova configuração familiar, o que pode gerar angústia em todos os membros da família, especialmente no início do relacionamento (Church, 2005; Falcke, 2002).

De acordo com Rivas (2012), a cultura ocidental reafirma, com o auxílio da legislação, quais são os papéis a serem exercidos pelos pais e pelas mães. No entanto, com o recasamento, as madrastas e os padrastos também terão que estabelecer distintas funções a partir das relações que serão construídas nessas famílias, as quais estavam tradicionalmente mais vinculadas à substituição da mãe e do pai. Diante disso, a nova mulher do pai pode se sentir em uma posição desconfortável, uma vez que é possível que não se identifique com a madrasta dos tradicionais contos infantis e tampouco com a mãe idealizada, papel que muitos entendem que ela deva assumir quando ingressa na família pós-divórcio (Falcke, 2002).

Essa dificuldade pode se fazer ainda mais presente ao se considerar que é a mãe quem comumente detém a guarda dos filhos, em razão disso o contato da madrasta com os enteados se reduz aos momentos de visita, o que poderia vir a dificultar uma proximidade entre eles (Valentim de Sousa e Dias, 2014). Além disso, diante da presença da mãe, é possível que a madrasta não se sinta segura para exercer certa autoridade dentro da família e demarcar seu lugar, dificultando que seus enteados a vejam como uma figura importante dentro da nova configuração familiar (Church, 2005).

Essa falta de ancoragem para o exercício desse novo papel, por sua vez, poderá dificultar a desvinculação ao modelo de família nuclear, já que a referência tradicional do papel de madrasta, como a apresentada nos contos infantis, parece não se mostrar positiva para exercer tal função, embora ainda se possa reconhecer sua influência. Todavia, mesmo que não se tenha uma lei que oriente o exercício destes novos papéis, de acordo com McGoldrick e Carter (1995), a disciplina e o cuidado devem ser exercidos pelos novos companheiros do pai/mãe, porém, sem excluir o ex-cônjuge que deve permanecer com as responsabilidades de cuidado e educação dos filhos após a separação (Osório e Valle, 2008).

No que se refere ao funcionamento de famílias recasadas, a pesquisa antropológica de Rivas (2012), realizada em Madri, identificou três modelos de funcionamento dessas famílias: o primeiro é o modelo de substituição, que se refere àquele em que o padrasto ou a madrasta que reside com o enteado acaba assumindo as funções do pai ou da mãe não residentes; a segunda modalidade identificada foi a de duplicação, ou seja, aquela dinâmica familiar em que pai e padrasto ou mãe e madrasta assumem responsabilidades parentais, mesmo que não residam com os filhos/enteados. Já o terceiro tipo de modelo identificado foi o de evitação, o qual remete o exercício dos deveres parentais ao pai e a mãe, excluindo dessa participação o padrasto ou madrasta.

Com relação a esse último modelo, pode-se pensar que uma das possibilidades para que ele se estabeleça, no caso da madrasta, é em razão da dificuldade que a mãe dos enteados pode ter em compartilhar sua responsabilidade parental com ela, quando os filhos estão na casa do pai (Silva et al., 2012). Essa limitação imposta pela mãe pode vir a ferir as expectativas iniciais de transformação da família que muitas madrastas nutrem no início do relacionamento, como por exemplo, unir a família (Church, 2005).

Nesse sentido, é possível conjecturar que se torna indispensável ao casal o estabelecimento de um diálogo inicial para estabelecer quais são as expectativas em relação ao que esse novo membro representa para a família e quais serão suas atribuições (Claro et al., 1993). De acordo com os autores, também será necessária a construção de um vínculo mais afetivo com os enteados para que, posteriormente, a nova companheira passe a exercer de forma mais ativa um papel de autoridade. Nessa perspectiva, a pesquisa brasileira realizada por Valentim de Sousa e Dias (2014), da qual participaram filhos que relataram suas experiências a respeito do recasamento dos pais, revelou que houve um maior acolhimento dos enteados quando os padrastos e madrastas não interferiram ou impuseram regras logo no início da convivência.

Conforme salienta Costa e Dias (2012), o papel da madrasta inicialmente pode ser apenas auxiliar ou secundário, ou seja, não atuam nas decisões ou na educação dos enteados pois essas questões demandariam maior período de convivência. No entanto, com o passar do tempo e de acordo com a idade dos enteados, sua função pode se tornar mais ativa. Diante disso, a nova companheira do pai deve estar ciente de que esta configuração, em que a mãe se faz presente na vida dos filhos, demanda a construção de uma nova relação, já que sua função não deve ser a de substituta daquela. Seu lugar deve estar baseado na necessidade familiar e ser amparado pelo pai, que deverá dar suporte para que este papel se estabeleça (Bernstein, 2002; Soares, 2012). Nesse ensejo, Bernstein (2002) pontua que se tornar madrasta "implica ter de reinventar um papel que se adapte às necessidades e aos momentos de vida das crianças e dos adultos na nova situação familiar" (p. 307).

Nesse mesmo sentido, Guimarães e Amaral (2008) assinalam a importância de as famílias não buscarem um modelo rígido a ser seguido, mas encontrarem uma forma de funcionar que será única a partir da necessidade de seus membros. No entanto, de acordo com Church (2005), não raro são os casos em que os pais, em razão da distância que estabeleceram com os filhos após a separação, esperam que as suas novas companheiras consigam integrar sua família.

Ao mesmo tempo em que pode estar presente essa necessidade por parte dos pais, Cartwright e Gibson (2013) afirmam que, após o recasamento é possível que a ex-companheira ou o ex-companheiro se torne mais inflexível e menos aberto ao diálogo. Em meio a esse conflito, pode-se pensar que a nova companheira também terá que saber lidar com essa situação se quiser se aproximar de seus enteados. De acordo com a escola estrutural de abordagem sistêmica, será essa flexibilidade que permitirá a manutenção do bem-estar e equilíbrio nas relações familiares (Nichols e Schwartz, 2007).

Ante ao exposto, não restam dúvidas que a dinâmica relacional dessa nova família está atravessada por diversas questões. Diante disso, o propósito deste estudo qualitativo foi identificar qual o papel que a madrasta ocupa na família recasada e como é sua relação com os enteados.

 

Método

Delineamento

Com o intuito de atingir os objetivos propostos, realizou-se uma pesquisa qualitativa (Minayo, 2012). De acordo com Gomes (2012), o objetivo da pesquisa qualitativa é a exploração de opiniões e representações sociais sobre a temática que se busca investigar. Nesse sentido, essa abordagem não busca quantificar o fato, mas analisá-lo a partir da perspectiva das pessoas que estão envolvidas no fenômeno (Minayo, 2012).

Participantes

Participaram deste estudo seis mulheres que vivenciavam um relacionamento estável com homens que possuíam filhos de um relacionamento anterior. Todas elas ou seus parceiros foram atendidos por um serviço de assistência judiciária gratuita de uma universidade, a qual atende uma população com renda de até três salários mínimos.

Com relação à idade das entrevistadas, quatro delas possuíam menos de 30 anos e duas mais de 50 anos, sendo que essas idades estiveram entre 21 a 53 anos. O tempo de união entre as participantes e seus companheiros variou entre 11 meses a 9 anos. O número de enteados que cada uma possuía também foi bastante diverso, variando entre 1 a 5. Foram incluídas mulheres que vivenciavam uma relação estável e com coabitação com um companheiro que possuía filho(s) advindo(s) de uma relação anterior e usou-se como critério de exclusão as madrastas que possuíam enteados órfãos de mãe.

No que tange à ocupação, apenas uma estava com vínculo empregatício no momento da realização da entrevista, enquanto as demais se dedicavam ao lar e uma delas era estudante universitária. Das seis participantes, duas não possuíam filhos de um relacionamento anterior, porém, somente uma delas ainda não era mãe, uma vez que a outra já possuía um filho fruto da união atual. O Quadro 1 contém o resumo da estrutura familiar de cada uma das participantes1.

Instrumentos e procedimentos

Para a realização da coleta dos dados, foram utilizados como instrumentos a ficha de identificação e a entrevista semidirigida de questões abertas (Turato, 2003). Em um primeiro momento, foi preenchida a ficha de coleta dos dados de identificação e na sequência, foi realizada a entrevista. Durante a entrevista, os seguintes tópicos nortearam o diálogo: (i) a história da família; (ii) a experiência familiar atual; (iii) a relação com os enteados; (iv) a relação com a ex-companheira do cônjuge.

Análise dos dados

Utilizou-se a análise de conteúdo temática, proposta por Gomes (2012), para analisar as entrevistas realizadas. As etapas propostas pelo autor compreendem os seguintes eixos: leitura; exploração do material e síntese interpretativa. Partindo dessa concepção, no primeiro momento, foi realizada uma leitura para a familiarização com o material e elaboração dos pressupostos iniciais. Essa leitura atenta e detalhada foi realizada por duas pesquisadoras de forma individual e a partir dessa leitura, num segundo momento, foram feitas uma discussão e análise conjunta de cada entrevista. Posteriormente, após a análise de todo material, realizou-se a classificação de trechos na busca pelos núcleos de sentido. Ao final, foi realizada uma articulação entre os temas classificados com os objetivos propostos na pesquisa. A partir dessa análise, surgiram quatro grandes eixos que auxiliaram na posterior categorização do material, a saber: (i) relação com os filhos do companheiro; (ii) o exercício das responsabilidades parentais; (iii) aspectos referentes à conjugalidade; (iv) outras relações no contexto da família recasada. Nesse artigo, contudo, serão apresentados apenas os resultados referente ao segundo eixo, do qual surgiram as seguintes categorias: o papel da madrasta na criação dos enteados e a participação das madrastas na manutenção da paternidade, as quais são discutidas a seguir.

Destaca-se que o estudo atendeu a todas as exigências da ética em pesquisa segundo a resolução n.466/2012, obtendo aprovação CAEE 19825913.1.0000.5346 pelo Comitê de ética em Pesquisa da Instituição em as pesquisadoras estão vinculadas. Além disso, todas as participantes ficaram cientes do objetivo do estudo e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

 

Resultados e discussão

O papel da madrasta na criação dos enteados

Nas famílias recasadas, conforme assinalam Guimarães e Amaral (2008), pode existir uma maior dificuldade na delimitação dos papéis que cada adulto irá desempenhar e nas decisões relativas à disciplina, regras, dinheiro, entre outras questões. Em contrapartida, autores (Bernstein, 2002; Lobo, 2009; McGoldrick e Carter, 1995) apontaram que é necessário que, além dos outros membros, as madrastas também encontrem uma nova maneira de exercerem seu papel, o que vai demandar certo distanciamento do ideal de família nuclear, para que, dessa maneira, consigam encontrar um espaço que não colida com o lugar já ocupado pela mãe. Com relação a esse aspecto, uma das participantes refere que, mesmo tendo exercido uma postura mais ativa, a qual poderia criar conflito com a função desempenhada pela mãe, parece ter conseguido estabelecer uma dinâmica quanto às decisões e às resoluções dos problemas com os enteados.

[...] quando tinha problema ela [ex-companheira] estava junto sempre, ela participava também né. Afetava sempre o meio [quando surgia algum problema com os enteados], o trio né. [...] simplesmente eu participava, mas eu não me metia assim [...]. Eu só opinava quando pediam ou quando eu achava necessário (Luana, 51).

É possível notar o espaço que é compartilhado pelo "trio", aspecto que se mostrou positivo para a resolução de problemas que envolviam seus enteados, uma vez que parece não ter havido anulação de nenhum dos pais em seu exercício parental. Nesse sentido, é possível evidenciar que a dinâmica vivenciada nessa família, quando a madrasta residia com seu enteado, era a de duplicação (Rivas, 2012), ou seja, os deveres parentais eram partilhados entre Luana e a mãe de seu enteado. Com relação a esse ponto, Magalhães, et al. (2013) assinalam a importância de que os pais mantenham o exercício da autoridade, porém reconheçam o papel dos novos cônjuges para que sua função não seja anulada diante dos enteados, os quais também conviverão com essas figuras, evitando assim, o tipo de estrutura familiar no modelo de evitação, assinalado por Rivas (2012).

Essa perspectiva vai ao encontro do que Minuchin aponta como necessário ao desenvolvimento saudável da família. De acordo com o autor, a estrutura familiar será funcional quando possuir capacidade de se adaptar às exigências dos estágios desenvolvimentais e às crises situacionais da família (Minuchin, 1982; Nichols e Schwartz, 2007).

Deve-se destacar que a conquista desse espaço por parte da madrasta se torna facilitada quando existe uma boa convivência entre ela e a mãe de seus enteados (Chuch, 2005), fato que pode ter ocorrido no caso de Luana, uma vez que ela refere possuir um bom relacionamento com a ex-companheira de seu marido. Essa questão também parece estar presente na vivência de Carmen, a qual diz possuir uma boa comunicação e proximidade com a mãe de duas de suas enteadas, como pode ser verificado no relato seguinte:

[...] a Andressa me falou que ela namorava escondido o guri né [...] e eu digo 'bom, eu vou ligar pra tua mãe e vou conversar com ela' [...], daí conversei né, daí ela disse assim 'mas Carmen, ela foi lá te dizer que ela estava namorando e eu aqui dentro de casa, que sou mãe dela, ela não me disse', daí ela ficou meio brava na hora [...] eu digo 'tu está braba porque eu estou te contando que ela foi lá em casa e me falou sobre o namorado, imagina se ela chegasse pra ti e te falasse' (Carmen, 29).

A fala de Carmen remete a dois aspectos importantes. O primeiro se refere ao benefício de existir uma boa relação entre essas duas mulheres que convivem com a adolescente, o que oportuniza o diálogo para discutir questões específicas, conforme observado no relato. Por outro lado, outra questão presente é a possibilidade de existir certa competição implícita entre Carmen e a mãe de Andressa, fato que pode ser verificado quando a participante declara a postura diferente que a mãe de Andressa poderia adotar na situação descrita; e também quando a mãe refere que Carmen soube antes do que ela sobre o namoro da filha. Essa dinâmica evidencia uma nova forma de vivenciar a experiência de ser madrasta, pois, em outros tempos, quando o divórcio não era regulamentado, as madrastas entravam na cena familiar mais frequentemente quando a mãe falecia, ou seja, elas não compartilhavam essa relação e não estavam presentes conjuntamente na vida dos filhos.

Com relação a esse aspecto, Church (2005), ao realizar uma pesquisa no Canadá com 104 madrastas de classe média, identificou que muitas participantes do estudo criticavam a forma com que a mãe educava seus filhos, assinalando como fariam diferente se estivessem ocupando esse papel. Nesse mesmo sentido, a fala de Carmen remete às posições diferentes adotadas por ela e a mãe de sua enteada, o que, segundo a entrevistada, teriam sido motivo para que Andressa revelasse primeiramente para ela que estava namorando.

Outro aspecto que merece destaque e que parece ter sido facilitado pela boa relação de Carmen e Luana com seus enteados diz respeito à participação em questões específicas da adolescência. Os relatos seguintes ilustram que as participantes não ficaram distantes do que acontecia com eles e exerceram grande influência em momentos importantes e delicados das vivências desses enteados.

[...] a gente teve problema com o guri, na fase dos 16, 15 [...] ele bebia assim, essas coisas, ele teve problema, bastante. [...] A gente passou muito sem dormir, era que nem filho, mesmo que não fosse meu filho. A gente sempre se deu assim, como mãe e filho. [...] Se precisasse dizer alguma coisa a gente dizia (Luana, 51).

E o pai dela fica furioso, que eu fico incentivando a guria a namorar. Não é incentivando a guria a namorar, eu digo 'eu estou incentivando a nunca mentir para vocês', eu digo 'tu nunca foi adolescente? Tu não sabe que tudo o que é proibido é mais gostoso. Quanto mais tu diz que não, mais a pessoa tem curiosidade de descobri o que que é'. Eu digo 'então, deixem ela namorar em casa, ela está ali, a mãe dela está enxergando, está vendo tudo o que ela está fazendo' (Carmen, 29).

As duas falas, apesar de tratarem de contextos diferentes, remetem à posição ativa assumida por ambas as entrevistadas em relação ao cuidado e educação de seus ente ados. Destaca-se o envolvimento que ambas tiveram em circunstâncias delicadas, as quais envolviam drogas e sexualidade, questões das quais, muitas vezes, os pais esperam que consigam dar conta sozinhos (Ripoll-Nuñez et al., 2013). Esses dados parecem contrapor os achados de Cartwright (2010) em sua pesquisa que teve como participantes 66 homens e mulheres de famílias recasadas neozelandesas, a qual identificou que os padrastos e madrastas assumiam funções que não demandavam um maior envolvimento com os enteados, como por exemplo, fazer o transporte para a escola e outras atividades que requeriam menos proximidade.

Acredita-se que esse posicionamento por parte dos novos membros da família é fundamental para que encontrem seu espaço e também sejam vistos como parte integrante da nova família. Entende-se que o enrijecimento das funções e o afastamento podem construir o que a Escola Estrutural nomeia de fronteiras rígidas (Nichols e Schwartz, 2007), as quais não permitem a aproximação e troca entre os subsistemas, podendo distanciar e dificultar a relação entre madrasta e enteados.

Outra forma de se relacionar e exercer o papel de madrasta foi trazida por Carla. Esta participante refere manter distância da mãe de seus enteados e declara que a relação entre elas é conflitiva.

[...] eles, qualquer coisinha é motivo pra fazer um grande escândalo, eu acho assim que eu tento minimizar sabe, ou achar uma solução menor pro problema que eles acham que é maior sabe. Algumas coisas eu falo né, que nem essa aí [referindo-se à ideia para que eles comprassem um chip de celular da mesma operadora para que pudessem conversar com mais facilidade], que mais [...], de quando tinha que ir na psicóloga, parece que chamavam ele na psicóloga e ele não queria ir, eu dizia pra ele ir, que é bom saber, te informar (Carla, 26).

Mesmo tendo relatada pouca participação nas questões que envolvem seus enteados, é possível identificar a tentativa de Carla em buscar o entendimento entre os membros da família, em especial com relação à paternidade, aspecto que se mostra ainda mais importante já que conta não ter conseguido se aproximar de seus enteados como gostaria. Observa-se que Carla, apesar das dificuldades evidenciadas, conseguiu superar parte dos conflitos que vivenciava para tentar minimizar os entraves relacionais que permeavam essa família. Com isso, identifica-se que é possível que a nova companheira, mesmo não mantendo um bom convívio com a mãe de seus enteados, assuma funções periféricas no cuidado e atenção aos filhos do marido. Nesse caso, pode-se pensar também na tentativa da participante de ampliar a participação do companheiro na vida dos filhos, o que se converte num papel estratégico importante evitando o distanciamento entre seu companheiro e os filhos dele.

É necessário destacar que a autonomia de padrastos e madrastas em exercer maior autoridade dentro da família se dá a partir do respaldo dos pais biológicos (Church, 2005; Ripoll-Núñez et al., 2013; Rivas, 2012). Diante disso, talvez por terem uma maior proximidade e terem conseguido manter uma boa relação com a mãe de seus enteados, algumas entrevistadas passaram a exercer maior influência nas práticas educativas dentro das famílias.

Outro aspecto que se mostrou presente diz respeito à passividade assumida pelas madrastas, quando elas não concordavam com algum comportamento dos enteados. Essa dificuldade em exercer a autoridade parece ter ficado evidente a partir da fala de Camila, que refere evitar dizer "não" à enteada, por mais que entendesse ser necessário.

[...] eu nem queria me meter, sabe. [...] Eu ficava com ela, mas eu não ralhava [xingava], não fazia nada assim, porque eu tinha medo da mãe dela me xingar, então eu deixava fazer o que queria. Ela -'ah eu quero toma banho de piscina', - 'ah Fernanda está frio' - 'não, mas eu quero' senão ela começava a chorar - 'tu pode toma banho de piscina' eu dizia pra ela (Camila, 21).

O relato de Camila evidencia sua posição de não disciplinar a enteada, aspecto que parece ter se mostrado mais presente no início de sua convivência com a enteada. Essa dificuldade experimentada pela participante pode estar refletindo o comportamento assumido por algumas madrastas, especialmente no início do recasamento, quando essas mantêm certa indiferença em relação aos comportamentos dos enteados ou submissão às suas demandas na tentativa de não serem identificadas com as figuras ameaçadoras dos tradicionais contos infantis (Church, 2005). Em concordância com esses aspectos, o estudo de Valentim de Sousa e Dias (2014) também sinalizou que haveria maior aceitação por parte dos enteados em relação às madrastas quando estas não impõem sua presença e regras no início da relação, conforme mencionado anteriormente.

De acordo com Church (2005), muitas madrastas entendem que a obrigação em se adaptar à situação imposta pelo recasamento cabe apenas a elas e que estariam sendo inflexíveis se fizessem exigências aos filhos do companheiro. Pode-se pensar que essa compreensão está relacionada a uma tentativa de proteger os enteados de novos problemas, uma vez que entendem que o momento vivido por eles é difícil em razão da separação e do recasamento dos pais. Além disso, essa situação parece demonstrar o afastamento do pai como mediador da relação entre a sua companheira e seus filhos, ficando apenas a cargo das madrastas e dos enteados a construção desse vínculo, o qual parece estar fortemente influenciado pela presença ativa da mãe dos enteados, que, mesmo não estando diretamente na cena, se faz presente de pela rivalidade, temor, disputa de espaço e poder.

A presença da mãe parece influenciar também outra postura relatada, a qual denota a intenção das participantes em não se envolverem com a repreensão dos enteados, deixando para os pais a tarefa de colocar limitese aplicar castigos. É possível observar como essa dinâmica ocorre, já que os recortes parecem ilustrar que elas preferiam comunicar aos seus companheiros as atitudes dos enteados, para que eles aplicassem aos seus filhos as medidas que julgassem necessárias, não se envolvendo diretamente.

[...] eu nunca encostei um dedo na Fernanda. O pai dela chegava e eu dizia 'Rodrigo hoje a Fernanda fez isso e isso' [...] aí o pai dela dava castigo, às vezes dava uma palmada (Camila, 21).

Nem sei o que te dizer porque até hoje nunca precisou [chamar a atenção das enteadas], mas eu acho que eu, eu, eu falar acho que não. De repente eu falaria pro pai delas, pra ele falar, porque ele que é o pai né, assim como eu não gostaria que falasse, que fizesse pros meus eu não ia fazer pros dos outros né (Carmen, 29).

É possível observar que ambas as participantes não buscaram e também não gostariam de exercer o papel de autoridade em relação aos seus enteados. Essa dinâmica vem indicar o lugar que as entrevistadas estão ocupando em relação aos seus enteados, aspecto que se mostra positivo de acordo com Bernstein (2002), uma vez que para a autora, a responsabilidade principal e a colocação de limites deve ser dos pais e aos novos cônjuges caberia apenas o papel de auxiliar para que essas determinações sejam cumpridas.

No entanto, é importante sinalizar, que as madrastas não deveriam permitir ser ignoradas ou desrespeitadas pelos filhos de seus companheiros (Falcke, 2002; Magalhães et al., 2013). Para tanto, seria necessário que o pai desse suporte a sua nova companheira para que ela pudesse encontrar seu espaço, o qual deverá ser estabelecido a partir da necessidade da família e tenderá a variar de acordo com a idade dos enteados (Bernstein, 2002; Soares, 2012), conforme já assinalado.

Parece ter ficado evidente, nos relatos das participantes, o envolvimento no que concerne ao cuidado, a atenção e o diálogo com os enteados. As falas a seguir vêm demonstrar essa perspectiva, em oposição às anteriores, podendo-se inferir a partir disso que elas conseguiram se aproximar mais afetivamente dos enteados, mas que são os pais que mantiveram a imposição dos limites e as cobranças mais rígidas.

Daí a gente acordava, eu dava o café para ela, olhava desenho com ela. Ela nunca teve creche e isso eu sempre achei errado. O meu filho está na escola até hoje, desde os dois anos até hoje ele está na escola e ela sempre ficou em volta dos adultos, ela nunca conviveu com criança né. Então ela levantava e tomava leite, olhava tevê e eu fazia almoço e o pai dela chegava, nós passávamos a maior parte deitada eu e ela sabe, porque assim, eu não trabalhava (Camila, 21).

[...] eu disse pra ela [uma de suas enteadas] 'tu não pode nunca deixar de estudar, se tu parar de estudar tu não vai ser ninguém na tua vida, tu vai passar o resto da vida limpando casa dos outros e cuidando filho dos outros' eu disse pra ela 'tu tem que estudar, em primeiro lugar os estudos' (Carmen, 29).

Nesse sentido, torna-se relevante que o novo casal estabeleça quais serão as funções de cada um dentro dessa nova família (Church, 2005; Claro et al., 1993; Osório e Valle, 2008). Apesar dessa necessidade, autores (Cartwright, 2010; Church, 2005) identificaram que, na maioria dos casos apresentados em suas pesquisas, os participantes declararam não falar previamente a respeito de como se daria o cuidado com os filhos.

Diante disso, destaca-se que os novos cônjuges os quais integram as famílias recasadas poderão exercer o papel que os outros membros lhe permitam assumir, assim só será com a cooperação de todos os envolvidos, desde o companheiro até a mãe dos enteados, que as madrastas poderão encontrar seu papel dentro da família (Lobo, 2009). Nessa perspectiva, a fala de Suzana parece revelar a dificuldade que lhe impede de encontrar o seu papel dentro da família:

[...] eu creio que ele não toma decisão nenhuma, porque quem opina pelas decisões é ela [ex-esposa], ele não toma nenhuma decisão. [...] Não estou ocupando nenhum papel, eu sinto que eu não estou ocupando nenhum papel, nenhum mesmo, nenhum papel (Suzana, 23).

Muitas vezes, a mãe mantém grande influência em relação aos filhos, o que pode fazer com que o pai fique distante das decisões e, consequentemente, a madrasta acabe ficando ainda mais afastada desse contexto familiar (Church, 2005; Silva et al., 2012). Essa maior dificuldade de inserção pode se dar em função da reorganização dos papéis exigida pelo recasamento, uma vez que pode ser difícil para a mãe guardiã compartilhar seu exercício parental nos momentos em que os filhos realizam as visitas ao pai (Silva et al., 2012).

Essa postura das mães em não dividir as responsabilidades parece estar relacionada a uma compreensão de que elas, enquanto mães, precisam dar conta sozinhas dos cuidados com os filhos, entendimento que já se faz presente muitas vezes antes da separação (Alves et al., 2014). Nesse cenário, a fronteira existente nesse subsistema, que incorpora a mãe e os filhos, pode acabar se tornando mais rígida, dificultando a aproximação e interação com os outros membros da família, em especial, nesse caso, com as madrastas que também podem ocupar um lugar de rivalidade, ciúmes e disputas com a mãe. Esse parece ser um aspecto relevante do cenário atual, o compartilhamento da mãe/ex-mulher e a atual companheira do pai/madrasta na relação com os filhos, uma relação certamente permeada por muitos atravessamentos.

A participação das madrastas na manutenção da paternidade

Para os pais, muitas vezes, o recasamento pode significar o afastamento em relação aos filhos do casamento anterior (Corso e Corso, 2011; Cúnico e Arpini, 2014). Um estudo realizado na Colômbia com famílias recasadas (Ripoll-Nuñez et al., 2013) verificou que 75% dos pais e mães entrevistados afirmaram que aquele que não detém a guarda dos filhos não participa ou se limita a poucas atividades referentes à criação dos filhos. Diante disso, pode-se inferir, a partir da concepção tradicional que se tem sobre a madrasta enquanto figura ameaçadora para os filhos do companheiro, que é ela quem incentivaria o afastamento do pai em relação aos filhos. No entanto, os relatos das entrevistadas vêm indicar o contrário, ou seja, a participação delas na busca por uma maior aproximação entre seus companheiros e os filhos deles.

[...] ele não era muito de procurar as gurias também, sabe, eu que incentivo ele, de ele ir buscar elas final de semana, de ele ir final de semana ver elas, porque senão ele não é muito [...] Agora não, agora ele procura, sabe, pega elas e leva elas lá pra casa, depois domingo ele coloca elas no carro e leva elas de volta, conversa com elas agora, porque antes nem isso, nem diálogo eles não tinham, sabe, só se viam ali quando ele ia dar o dinheiro da pensão, entregava o dinheiro, dava um beijo, virava as costas e tchau. Sabe, não tinha uma relação mesmo de pai com filha e de filha com pai. Agora sim, agora eles têm (Carmen, 29).

[...] quando tinha que pegar elas pra passar lá em casa ele também não sabia. Eu dizia 'Ivan, já tá fechando os 15 dias, tu não te esquece que tal feriado é teu', aí ele dizia assim pra mim 'Bah, mas eu tenho que ir lá buscar?', eu dizia 'claro, um feriado pra um, um feriado pro outro, um final de semana é teu, um final de semana é dela', então ele dizia assim 'ai, se não é tu me lembrar eu me esquecia que tinha que pegar as gurias' (Amélia, 53).

Os recortes parecem indicar o envolvimento que as participantes referem e o incentivo que oferecem a seus companheiros para que eles se engajem no cuidado de seus filhos. Os relatos das participantes permitem inferir que as visitas são entendidas por elas como um momento importante e que devem ser exercidas pelos pais. Além disso, a fala de Carmen revela a mudança de comportamento de seu marido, segundo ela após tê-lo incentivado a se aproximar de suas filhas, relatando que agora eles possuem um relacionamento de "pai com filha e de filha com pai".

Conforme aponta Church (2005), muitas vezes, os pais que se sentem distantes dos filhos após a separação se apoiam em suas novas companheiras para que elas exerçam a função de reaproximar a família. Estaria aqui sinalizado um importante papel para as (novas) madrastas, ou seja, a tarefa de manter e resgatar esses laços. Esse aspecto parece ser muito relevante no cenário das famílias, considerando que se tem buscado ampliar a participação dos pais separados na vida dos filhos, evitando o afastamento que tem permeado essas relações.

Outra participante refere ter uma participação ativa na manutenção do contato entre pai e filha, se deslocando para outra cidade para buscar sua enteada para as visitas. É possível perceber que Camila sente-se desgastada, especialmente por revelar durante a entrevista que gostaria que a mãe da enteada revezasse com ela essa função.

[...] ela me entrega... Eu desço na rótula da Cidade X, eu desço num posto que tem, eu desço ali com meu filho. Agora dezembro era aquele calorão e eu fiquei no asfalto duas horas, que ela combinou de me levar a Fernanda (Camila, 21).

Diante do relato de Camila, pode-se identificar que ela acabou assumindo uma grande responsabilidade, uma vez que passou a tomar para si a tarefa de possibilitar que a enteada pudesse estar presente nos dias estabelecidos para a visita. Essa questão também se apresentou na pesquisa de Church (2005) quando identificou que muitas madrastas assumiam atribuições que deveriam ser de seu companheiro. Além disso, a mesma autora percebeu que muitas não questionavam essa ausência do parceiro, possivelmente por encontrarem nesse espaço seu papel dentro da família, talvez também, por ser essa tarefa uma função historicamente desempenhada pelas mulheres, ou seja, o cuidado com os filhos.

Ainda com relação ao relato de Camila, a participante declara que acabou assumindo a função de intermediar a relação do pai com os filhos em razão da grande tensão que ainda persistia entre seu companheiro e sua ex-esposa. Essa atitude também se fez presente em um dos casos apresentados na pesquisa de Cartwright e Gibson (2013), a qual entrevistou 16 casais de famílias recasadas da Nova Zelândia. Nesse caso, uma madrasta declara ter buscado conversar com a ex-companheira de seu marido, em virtude de sua não cooperação para que os filhos viajassem para ver o pai. Diante disso, percebe-se, concordando com os achados de Ripoll-Nuñez et al. (2013), que, muitas vezes, após a separação se estabelece uma maior dificuldade de comunicação entre os ex-companheiros para tratar de assuntos referentes aos cuidados e educação dos filhos, problema que pode se intensificar com o recasamento, conforme identificado por Cartwright e Gibson (2013).

Apesar dessa maior dificuldade de diálogo entre os ex-cônjuges, que pode surgir após o recasamento, os achados deste estudo não indicaram que o novo relacionamento do pai veio a contribuir para o distanciamento entre pais e filhos. Nesse mesmo sentido, outra participante demonstra sua atitude diante do conflito existente entre os ex-companheiros. É possível verificar a cobrança feita por ela com o objetivo de se certificar que seu marido estava visitando uma de suas filhas, com a qual não convive de forma mais próxima em função de sua ex-esposa não permitir que ele a leve para sua casa aos finais de semana.

[...] eu achava que ele não via ela, porque ele saia do serviço e vinha direto pra casa, né. Aí final de semana quando ele não estava em casa comigo a gente saía junto, daí eu disse pra ele 'tá, mas a Beatriz [filha], tu tem visto a Beatriz?', - 'ah, eu vejo ela sempre' 'mas sempre quando?' (Carmen, 29).

Mesmo não sendo próxima de Beatriz, em função da impossibilidade de seu companheiro levar a enteada para passar o final de semana com o casal, é clara a preocupação de Carmen em relação a ausência paterna que pode estar sendo vivenciada pela criança. Diante disso, observa-se que a participante, mesmo mantendo uma relação de tensão com a mãe da enteada, entende que essa não deve ser privada da convivência com o pai. Essa questão parece ainda se tornar mais clara para Carmen, uma vez que suas outras enteadas convivem com o pai e com ela aos finais de semana e, com isso, também puderam estabelecer um vínculo com a filha do casal. Ante ao exposto, é possível notar que, apesar das falas de Carmen e Camila retratarem as suas posturas mais ativas na busca pela manutenção da convivência entre seus companheiros e suas respectivas filhas, Camila parece não questionar que esse movimento devesse ser feito pelo seu marido, diferentemente de Carmen que interroga Eduardo para saber se ele está de fato encontrando a filha. Em meio a isso, parece ficar evidente que as falas das entrevistadas retratam uma certa passividade de seus parceiros com relação a uma busca de aproximação e autonomia no cuidado dos filhos.

Nesse sentido, poderia é possível inferir que o modelo de substituição, aquele em que a madrasta ou padrasto acaba assumindo as responsabilidades parentais do pai/mãe (Rivas, 2012), aqui estaria sendo transferido de pai para madrasta, ou seja, a madrasta parece estar se ocupando de atribuições que deveriam ser do pai. Essa postura pode indicar que os pais (eles) estejam esperando que suas companheiras assumam o papel materno mais tradicional em relação aos seus filhos, mantendo-se assim afastados dessa responsabilidade da qual eles deveriam dar conta após a separação. Porém, de acordo com Bernstein (2002), esperar que os novos cônjuges assumam esses papéis tradicionais pode levar a um fracasso dessas relações, as quais precisam ser reinventadas para que as funções assumidas por cada um não se sobreponham. Nesse sentido, um dos desafios a esses casais parece residir na necessidade de os pais assumirem de forma mais efetiva suas responsabilidades parentais (Church, 2005).

Diferentemente dos relatos anteriores, Suzana declara como é sua participação contando um episódio que vivenciou. É possível notar que neste caso foi o pai que tomou a iniciativa de encontrar os filhos e buscou apoio em sua companheira para que ela o acompanhasse durante a visita.

Aí ele me convidou assim 'vamos lá ver eles' porque tem que passar uma hora lá pra ver a Lilian, uma hora na casa dela, aí eu digo 'tá, vou fazer um mate e vamos lá', aí nós fomos lá ver as crianças. Era de noite assim, a filha dele mandou nós entrarmos na casa dela né, aonde a guria mora né, mas assim... é um clima totalmente pesado, é horrível, porque tá o ex, tá o marido (Suzana, 23).

Apesar de ter descrito uma situação desconfortável resultante do momento de visita, percebe-se que Suzana aceitou o convite de seu companheiro para fazer parte desse momento, o qual pode se mostrar positivo em função do pai estar dando um lugar a nova mulher ao mesmo tempo em que ela o encoraja para manter os vínculos com os filhos. Diante dis-so, evidencia-se que diversas formas podem ser adotadas pela nova mulher no sentido de promover a manutenção desses laços.

Cabe, então, questionar: será a nova madrasta uma figura capaz de auxiliar na preservação desses esses laços tão importantes para o desenvolvimento dos enteados e das relações familiares? Seria esse um dos atributos contemporâneos da figura das (novas) madrastas? Nesse sentido, parece ser importante destacar também que as transformações legislativas do direito de família têm procurado trabalhar no sentido de manter esses laços com o estabelecimento da guarda compartilhada, a qual visa manter a coparentalidade após a dissolução conjugal. Assim, pode-se pensar que a madrasta terá também um papel a ser avaliado nesse contexto de responsabilização parental, pois a guarda compartilhada implica que o pai ampliará seu envolvimento na vida dos filhos. Consequentemente, isso irá envolver a relação com a nova companheira – ou seja, a madrasta que verá também ampliada a sua relação com os enteados.

 

Considerações finais

O recasamento parece trazer à cena familiar o que estamos chamando de (novas) madrastas, um membro já conhecido das relações familiares, mas que adquire novos papéis na construção da família recasada contemporânea, compartilhando relações e lugares com seus enteados e a mãe deles em uma complexa trama de relações. Essa denominação "(novas) madrastas" se deve ao fato de que cada vez mais essa dinâmica familiar se estabelece com a presença da mãe, diferentemente do período anterior à possibilidade do divórcio, ou seja, antes de 1977 no Brasil, quando essa realidade era bem menos frequente, entrando a madrasta no contexto familiar quando a mãe falecia.

Mesmo tendo sido observadas diferenças nas atitudes das madrastas em relação aos seus enteados, parece ter ficado evidente o envolvimento especialmente no que diz respeito ao cuidado e à atenção que as participantes proporcionavam aos enteados. Nesse sentido, destaca-se o distanciamento entre o papel tradicional atribuído às madrastas e os dados observados pelo estudo.

Também foi possível identificar, pelos relatos das participantes, que os pais poderiam estar assumindo uma postura passiva na relação com seus filhos, na busca por um melhor convívio familiar. Esse aspecto parece resultar em um movimento de maior comprometimento das madrastas em fazer com que as relações paterno-filiais se mantenham. Nesse sentido, parece ficar evidente que ainda existe dificuldade para o exercício de uma paternidade mais ativa e um deslocamento de suas funções que são absorvidas pela atual companheira.

Destaca-se ainda, a influência positiva que a madrasta pode vir a exercer nesses casos, conforme pôde ser observado nos resultados desse estudo. Assim sendo, fica clara a importância do diálogo e a busca de entendimento entre os membros para que todos os envolvidos sintam-se integrados. Para que isso se torne realidade, será necessário de cada membro da família uma parcela de flexibilidade e respeito ao espaço do outro para que esses lugares sejam acomodados.

Nesse sentido, vislumbra-se como papel do psicólogo inserido no judiciário identificar como é a dinâmica relacional de cada família, proporcionando a reflexão dos membros sobre o papel de cada um no cuidado dos filhos e nas relações familiares. Essa perspectiva demanda do profissional a superação de uma concepção tradicional sobre a família, abarcando as diversas configurações familiares, incluindo os novos membros que chegam a partir do recasamento, os quais podem contribuir para o melhor exercício da paternidade pós-divórcio.

Além do profissional inserido no judiciário, a ampliação do entendimento do que é ser família e quais membros a integram é uma questão que deve ser problematizada em todas as instituições. Ademais, os resultados indicam a necessidade de se pensar a clínica voltada à família, a qual deve incorporar esses novos membros que integram a família contemporânea.

Por fim, aponta-se como limitador desse estudo o fato de ter sido realizado apenas com um dos membros da família - as madrastas - fazendo com que os resultados expostos aqui digam respeito apenas a esse olhar. Em razão disso, como sugestão para estudos futuros vê-se a importância de pesquisas que envolvam outros integrantes da família recasada para que haja uma compreensão ainda maior acerca dessa nova configuração familiar.

 

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Submetido: 08/07/2016
Aceito: 26/09/2016

 

 

1 Todos os nomes utilizados são fictícios.

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