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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.10 no.2 São Leopoldo July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2017.102.05 

ARTIGOS

 

Patologias alimentares: um desafio interdisciplinar

 

Eating disorders: an interdisciplinary challenge

 

 

Camila Peixoto FariasI; Alberto Manuel QuintanaII; Luísa da Rosa OlesiakII

IUniversidade Federal de Pelotas. Av. Duque de Caxias, 250, Fragata, 96030-000, Pelotas, RS, Brasil. pfcamila@hotmail.com
IIUniversidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, 1000, Cidade Universitária, Camobi, 97105-970, Santa Maria, RS, Brasil. albertom.quintana@gmail.com, luisa_drolesiak@hotmail.com

 

 


RESUMO

Na clínica psicanalítica atual, bem como nos diversos serviços de atenção à saúde, temos nos deparado com significativa incidência de patologias alimentares. Nesse contexto, ganham destaque os efeitos violentos do sofrimento psíquico sobre o corpo e sobre o comportamento, o que evidencia a importância do trabalho interdisciplinar nesses casos. Neste estudo, objetivou-se conhecer como médicos e nutricionistas pensam o trabalho interdisciplinar que o tratamento das patologias alimentares exige. A coleta de dados foi realizada em um hospital universitário do interior do Rio Grande do Sul. Realizou-se um total de 18 entrevistas individuais semiestruturadas com médicos e nutricionistas. Todas as entrevistas foram exploradas a partir da análise de conteúdo, o que possibilitou o levantamento de questões fundamentais, discutidas sob a perspectiva da Psicanálise. As determinações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde que normatiza as condições das pesquisas que envolvem seres humanos foram respeitadas. A análise das entrevistas conduziu à interdisciplinaridade como eixo principal em torno do qual os dados foram discutidos. Os aspectos que se destacaram são a valorização do trabalho interdisciplinar, o desafio de dialogar com profissionais que trabalham com diferentes concepções de corpo, a formação precária e a preponderância do cuidado fragmentado.

Palavras-chave: anorexia, bulimia, psicanálise.


ABSTRACT

In contemporaneity psychoanalytic practice, as well as in multiple health services, we have been facing a significant incidence of eating disorders. In that context, the violent effects of the physical suffering upon body and behavior take relevance, which points out to the importance of the interdisciplinary work on these cases. This article aimed to comprehend how physicians and nutritionists perceive the interdisciplinary work that is demanded by eating disorders. Data collection was conducted in an university hospital in Rio Grande do Sul. There were administered 18 interviews with physicians and nutritionists. All interviews were explored by content analysis, which enabled the gathering of fundamental issues, discussed by the Psychoanalysis' perspective. Norms according to Resolução 466/2012 and to the Conselho Nacional de Saúde (Brazilian National Health Council), that norm the conditions of research with human beings, were respected. Interdisciplinarity was the main axis on which the data were discussed. The aspects that were emphasized are the value of the interdisciplinary work, the challenge of establishing dialogue with professionals that work with different conceptions of body, the precarious training and the prevalence of care fragmentation.

Keywords: anorexia, bulimia, psychoanalysis.


 

 

Introdução

Na clínica psicanalítica atual, bem como nos diversos serviços de atenção à saúde, temos nos deparado com significativa incidência de patologias psíquicas cujos sintomas são predominantemente ligados ao registro do corpo e do comportamento. Dentre essas patologias destacam-se as alimentares, em especial a anorexia e a bulimia (Cobelo et al., 2010; Farias e Cardoso, 2010; Fernandes, 2006).

Em linhas gerais, segundo Fernandes (2006), a anorexia caracteriza-se por uma recusa a alimentar-se e a manter o peso corporal em uma faixa normal mínima, o que geralmente vem acompanhado de amenorreia nas meninas. Já a bulimia é caracterizada por episódios repetidos de compulsões alimentares, acompanhados por comportamentos compensatórios inadequados, tais como vômitos auto-induzidos, mau uso de laxantes e diuréticos, jejuns ou exercícios físicos excessivos, sem que se evidencie uma perda de peso tão significativa como ocorre na anorexia. Em geral, é comum a ambas um temor intenso de ganhar peso, assim como uma perturbação na percepção da forma e do peso corporal (Fernandes, 2006).

Quando acomete crianças ou adolescentes, as patologias alimentares resultam em graves consequências emocionais, psicossociais e físicas, com uma taxa de mortalidade de 10% a 15% (Gonzaga e Weinberg, 2012). Dessa forma, a identificação precoce e o tratamento adequado são de grande importância para que o paciente tenha melhor prognóstico, além de minimizar os efeitos físicos, psíquicos e sociais nocivos.

As pesquisas sobre patologias alimentares, especialmente nas últimas décadas (Cordás, 2004; Fernandes, 2006; Scazufca e Berlink, 2004; Brusset, 2003; Jeammet, 1999; Cobelo et al., 2010; Farias e Cardoso, 2010; Carvalho et al., 2016), destacam a importância de se considerar os fatores psíquicos que atuam na base desses quadros. Além disso, apontam que o aumento significativo dos casos dessas patologias tem colocado questões de grande envergadura para a Psicanálise, principalmente no que se refere ao seu tratamento e o trabalho interdisciplinar que ele exige.

Tendo isso em vista, primeiramente, faz-se importante, retratar a perspectiva e dinâmica relacional segundo a qual se concebe os sujeitos com patologias alimentares, para a partir de tal alicerce procurar abrir caminhos para se pensar as possibilidades de diálogo com as demais áreas implicadas no tratamento dessas patologias.

A problemática da alimentação, especialmente nas últimas décadas, tem sido objeto de várias investigações científicas (Oliveira e Oliveira, 2008; Prado et al., 2011a, 2011b; Bechara e Kohatsu, 2014; Vasconcelos, 2015). Nota-se um privilégio no estudo dos comportamentos alimentares em suas manifestações objetivas e quantificáveis, especialmente voltadas para prevenção de doenças e redução de peso, em detrimento do interesse nas suas significações e nas funções que tais comportamentos desempenham na dinâmica do funcionamento psíquico dos sujeitos. Dessa forma, a partir da perspectiva psicanalítica, compreender a montagem psíquica que está subjacente à resposta através das patologias alimentares é imprescindível como alicerce para o processo terapêutico (Farias e Cardoso, 2010).

Constata-se, nas patologias alimentares, a presença de um modo peculiar de defesa que envolve, dentre outros aspectos, um curto-circuito do trabalho de elaboração psíquica e a consequente convocação dos registros corporal e comportamental (Pirlot e Cupa, 2012). Isso indica a presença de um modo singular de funcionamento psíquico que se fundamenta em um traumático não estruturante, o qual aponta para uma violência psíquica radical que ultrapassa os limites de uma violência que seria constitutiva e subjetivante (Borges, 2012). Freud (2006 [1920]) sustenta que o trauma seria a consequência do excesso de excitação, do rompimento da proteção que defenderia o órgão anímico contra as excitações. Diante do traumático, o processo de elaboração psíquica falha, e, com ele, falha o domínio do princípio do prazer, pois o aumento do fluxo de excitação estaria além do tolerável, impedindo o trabalho de processamento psíquico e submetendo, assim, o psiquismo a uma única tarefa, a de tentar dominar tal excitação (Cardoso, 2010).

Assim, nas patologias alimentares vemo-nos diante de uma lógica traumática em que o que está em jogo, como resposta, é a tentativa de dominação, por meio da descarga, de elementos excessivos e irrepresentáveis presentes no psiquismo (Farias e Cardoso, 2010). A ideia de descarga pressupõe um retorno direto da excitação pulsional (que parte inicialmente do corpo e chega ao psiquismo para ser processada) do psiquismo para o corpo, sem passar, no entanto, por um trabalho de simbolização, de elaboração. Dessa forma, a excitação pulsional não consegue ingressar em um circuito pulsional, em um trabalho de mediação, de simbolização, tendo que ser descarregada imediatamente no domínio corporal, de forma repentina e disruptiva (Borges, 2012). Assim, há uma convocação do corpo, fonte de alívio momentâneo da excitação, que toma o lugar do trabalho de elaboração psíquica (Marinov, 2001).

Segundo Cardoso (2010), esse aspecto indicaria a singularidade da temporalidade dos processos psíquicos implicados no traumático, o tempo do imediato, do não-mediado. Estaríamos, então, diante de um modo de funcionamento psíquico específico em que a possibilidade de representar encontrar-se-ia dificultada, o que se constituiria em uma condição fundamental dessa modalidade de resposta e a base de sua repetição compulsiva (Chervet, 2011).

Encontramos, portanto, nas patologias alimentares, a presença de um excesso pulsional que se constitui como uma ameaça de morte narcísica, em outras palavras, como uma ameaça de desestruturação egoica. Diante de tal ameaça, a descarga do excesso pulsional via corpo torna-se urgente, como única forma de sobrevivência psíquica possível (Farias e Cardoso, 2009). Tendo em vista a ameaça de desestruturação que tais patologias comportam, constituem-se em casos em que está em jogo a auto-conservação narcísica.

Como destacado, a forma de resposta, de defesa do ego diante do excesso pulsional que o ameaça de desestruturação, é a descarga, é a convocação do corpo. A convocação do corpo nas patologias alimentares implica em jejuns prolongados, vômitos auto-induzidos, uso indevido de laxantes, prática excessiva de exercícios físicos, entre outros (Fernandes, 2006; Farias e Cardoso, 2009, 2010). Estamos diante de sujeitos extremamente frágeis psiquicamente, que utilizam seus corpos e sua relação com o objeto comida como recurso de sobrevivência psíquica, mesmo que isso, muitas vezes, ameace a vida (Chervet, 2011).

Seguindo a perspectiva psicanalítica, o foco do tratamento não deve estar nos sintomas corporais, mas na montagem psíquica que está subjacente; uma vez que as manifestações corporais nas patologias alimentares são uma resposta, uma forma de defesa à excitação excessiva que ameaça o funcionamento psíquico (Farias e Cardoso, 2009; Brusset, 2003; Jeammet, 1999). Nessa perspectiva, o tratamento das patologias alimentares vai na direção da elaboração psíquica, do processamento do excesso de excitação que ameaça as fronteiras egoicas e corporais (Cardoso e Monteiro, 2012).

A eliminação dessas manifestações corporais sem que haja uma elaboração psíquica, sem que um caminho de processamento psíquico seja construído, poderá resultar em seu deslocamento para outras manifestações corporais ou comportamentais (Cardoso e Monteiro, 2012). Segundo Fuks (2003, p. 152),

[...] se nos limitamos a identificar e agir sobre os comportamentos alimentares e seus efeitos somáticos e psíquicos sem levar em conta os processos estruturais e históricos que os 'solicitam', o resultado é nulo, pobre e proclive à repetição ou a uma substituição, não benéfica, da sintomatologia.

É fundamental considerar a montagem psíquica subjacente às patologias alimentares, construindo uma compreensão psicodinâmica, sob pena, se nos restringirmos à busca pela eliminação de tais sintomas, de limitar a compreensão desses casos e, assim, reduzir o alcance terapêutico e o sucesso do tratamento (Fernandes, 2006; Cobelo et al., 2010; Farias e Cardoso, 2009). Além disso, sua complexidade clínica é tida como um aspecto fundamental a ser considerado, pois são patologias que reverberam de forma violenta sobre o corpo.

Embora o foco do tratamento das patologias alimentares, na perspectiva psicanalítica, não seja os sintomas corporais, suas reverberações sobre o corpo não podem ser negligenciadas. Pesquisadores dedicados ao estudo e ao tratamento da anorexia e da bulimia, como Scazufca e Berlink (2004), Fernandes (2006), Brusset (2003), Jeammet (1999), Farias e Cardoso (2010) e Weinberg e Berlink (2010), ressaltam a importância de uma abordagem que considere a complexidade diagnóstica e clínica no tratamento dessas patologias. Tal complexidade se deve, especialmente, aos efeitos violentos do sofrimento psíquico sobre o corpo e sobre o comportamento de tais pacientes; efeitos estes que podem, em casos mais graves, conduzi-los à morte.

Esses pacientes estão expostos a riscos que exigem atenção constante e que indicam a importância fundamental do trabalho interdisciplinar nesses casos. Encaminhar e manter contato com profissionais de outras áreas que acompanham o paciente tendo por objetivos tanto o estabelecimento de diálogo sobre o caso como a atenção para comportamentos ou manifestações corporais que possam estar indicando riscos para saúde ou para a vida, torna-se de grande importância. Dessa forma, o trabalho interdisciplinar é fundamental para que se possa construir intervenções adequadas à singularidade do funcionamento psíquico e das manifestações sintomáticas dos sujeitos com anorexia e bulimia.

Segundo Minayo (2011), a interdisciplinaridade constitui uma articulação de várias disciplinas em que o foco é o objeto para o qual não basta a resposta de uma área só. A autora destaca que é o objeto que vai convocar as disciplinas que devem compor a abordagem interdisciplinar. A complexidade das patologias alimentares, da montagem psíquica subjacente e de suas reverberações sobre o corpo e o comportamento convocam além da psicanálise, especialmente a medicina e a nutrição para a construção de um trabalho interdisciplinar. Entretanto, cabe ressaltar que outras disciplinas podem ser convocadas dependendo da singularidade de cada caso.

Trabalhar com pacientes com patologias alimentares é desafiador para psicanalistas, especialmente em função das intensas manifestações corporais que colocam, na maioria das vezes, em risco a saúde e a vida (Cobelo et al., 2010; Farias e Cardoso, 2010; Fernandes, 2006). Médicos e nutricionistas também são desafiados por essas patologias, principalmente pelos aspectos psíquicos que estão subjacentes às manifestações corporais e comportamentais (Alvarenga e Scagliusi, 2010; Bechara e Kohatsu, 2014; Palma et al., 2013; Bordignon et al., 2014).

Diante desses desafios é de extrema relevância o diálogo entre as diferentes áreas como alicerce para a construção de um trabalho interdisciplinar, uma vez que ele se constitui em uma forma de compreender temas complexos, a partir da construção de um processo que permite a articulação entre diferentes áreas. Assim, a interdisciplinaridade não se refere a uma teoria ou método específico, mas a uma estratégia que articule fragmentos disciplinares e o diálogo dos saberes (Minayo, 2010).

É importante destacar que o trabalho interdisciplinar, conforme sua especificidade coloca algumas nuances. Entre elas constata-se que no trabalho interdisciplinar uma disciplina poderá possuir certo destaque diante de outras em função de ter mais acúmulo de conhecimento e mais tradição acerca da temática. Isto, contudo, não pode resultar em uma desconsideração das contribuições das demais disciplinas (Minayo, 2010).

Neste artigo, parte-se da perspectiva psicanalítica, compreendendo que as patologias alimentares possuem uma base psíquica, em busca de subsídios que favoreçam a construção de possibilidades de diálogo com médicos e nutricionistas - principais profissionais implicados juntamente com a psicologia no tratamento de tais patologias. Para isso considera-se de grande relevância conhecer como tais profissionais pensam o trabalho interdisciplinar que o tratamento das patologias alimentares exige.

 

Método

Delineamento

O estudo proposto caracteriza-se como uma investigação teórico-clínica de caráter qualitativo e exploratório, alicerçada no referencial teórico da Psicanálise. Entende-se que tal delineamento permite o aprofundamento dos significados que os sujeitos dão a suas ações e relações (Turato, 2013).

Participantes

A coleta de dados foi realizada em um hospital universitário do interior do Rio Grande do Sul. Tal hospital oferece atendimento clínico com médicos endocrinologistas e nutricionistas para a população em geral, constituindo-se como serviço de referência em sua região de abrangência. Os setores selecionados para pesquisa foram o Serviço de Nutrição e Dietética e os Ambulatórios de Endocrinologia (infantil e adulto). No momento da realização da pesquisa não havia atuação de profissionais da psicologia nesses setores. No ambulatório de endocrinologia infantil havia a expectativa que uma profissional da psicologia começasse a atuar em breve. Tendo isso em vista e também considerando os principais sintomas que caracterizam as patologias alimentares: o comprometimento da relação com a comida, seus efeitos em termos nutricionais e também para o funcionamento do organismo como um todo, a medicina e a nutrição foram as áreas delimitadas para participar da pesquisa.

Os participantes foram contatados pessoalmente em seu setor de atuação. Como critério de inclusão dos médicos e nutricionistas, os profissionais deveriam trabalhar no Serviço de Nutrição e Dietética ou nos Ambulatórios de Endocrinologia (infantil e adulto). Os profissionais que não se encontravam realizando atividades nos setores selecionados no momento da pesquisa (férias, licenças, etc.) foram excluídos.

No período da coleta de dados, foram entrevistados os profissionais que trabalhavam no referido hospital e que se adequavam aos critérios de inclusão da pesquisa. O número de entrevistados seguiu o critério de saturação teórica dos dados no caso dos nutricionistas, ou seja, a coleta de dados foi realizada até que os dados obtidos se tornassem redundantes ou repetitivos, não sendo relevante sua continuidade (Fontanela et al., 2008). No caso dos médicos, todos que atuavam nos ambulatórios de endocrinologia do hospital foram entrevistados. A amostra esgotou-se antes da saturação dos dados. Participaram deste estudo 12 nutricionistas (11 mulheres e 1 homem) e 6 médicos endocrinologistas (4 mulheres e 2 homens).

Técnicas e procedimentos de coleta de dados

Os dados foram coletados após a anuência do Hospital Universitário e da aprovação da pesquisa no Comitê de Ética da instituição. A coleta de dados consistiu na realização de entrevistas individuais semiestruturadas, a partir de contato pessoal com os nutricionistas do Serviço de Nutrição e Dietética e com os médicos endocrinologistas que atuavam em ambulatórios de endocrinologia do hospital. O convite para as entrevistas foi realizado pessoalmente no local de trabalho dos profissionais. Tais entrevistas aconteceram em horários escolhidos pelos participantes, em local adequado no próprio ambiente hospitalar e tiveram a duração média de 40 minutos. As entrevistas não foram baseadas em perguntas, mas conduzidas a partir de eixos norteadores (primeiro contato com as patologias alimentares, diagnóstico, condução do tratamento, encaminhamentos para outros profissionais, trabalho interdisciplinar, maiores dificuldades e desafios, casos marcantes), a respeito dos quais os participantes eram convidados a falar. O entrevistador intervinha visando apontar questões para aprofundar o conteúdo das narrativas sobre os eixos em questão, de forma a responder os objetivos do estudo. Todas as entrevistas foram gravadas, com o consentimento dos participantes, e, posteriormente, transcritas na íntegra, para fins de análise.

Procedimentos de análise dos dados

Todas as entrevistas foram exploradas a partir da análise de conteúdo proposta por Bardin (2011) e Turato (2013), segundo a qual os elementos são categorizados a partir de critérios de relevância e repetição. Utilizou-se uma perspectiva de refinamento da análise de conteúdo, desenvolvida por Turato (2013), que propõe uma escuta do implícito, da análise das entrelinhas, alicerçada por conceitos da Psicanálise. Em outras palavras, a análise dos dados foi orientada pela escuta e transferência instrumentalizada do pesquisador em relação ao texto. Nesse sentido, os dados obtidos nas entrevistas foram organizados sob a forma de temas-eixo, que possibilitaram a análise e o levantamento de questões fundamentais, discutidas sob a perspectiva da Psicanálise.

Considerações e aspectos éticos

Neste estudo seguimos as determinações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012), que normatizam as condições das pesquisas que envolvem seres humanos. Os participantes foram informados sobre o tema da investigação e suas implicações, sendo esclarecidos seus direitos enquanto participantes de pesquisa, recebendo, antes da execução das entrevistas, um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em cópia dupla, para autorização de sua participação no estudo a ser realizado. As entrevistas foram realizadas em sala reservada, com total privacidade e sem interrupções. Além disso, clarificou-se para os profissionais as questões éticas e de sigilo relacionadas à identidade dos participantes da pesquisa. Isso possibilitou que eles se sentissem mais à vontade durante a entrevista, especialmente para falar sobre aspectos ligados a instituição e ao trabalho com outros profissionais.

As atividades de campo do estudo ocorreram apenas após a aprovação do comitê de ética da instituição em que foi realizada, sendo o projeto aprovado sob número CAAE 57059116.3.0000.5346. Com o objetivo de preservar o anonimato dos participantes, as falas serão apresentadas com a seguinte legenda: letra N ou M (Nutricionistas ou Médicos) seguida de um número que identifica o sujeito no grupo profissional a que pertence.

 

Resultados e discussão

A análise dos dados, orientada pela escuta e transferência instrumentalizada dos pesquisadores em relação ao texto das entrevistas, indicou questões fundamentais que se referem a valorização, os desafios e os obstáculos do trabalho interdisciplinar no tratamento das patologias alimentares. Dessa forma, a interdisciplinaridade surgiu como eixo principal em torno do qual os dados foram discutidos.

 

Interdisciplinaridade

As questões relativas ao tema da interdisciplinaridade foram divididas em três categorias principais: Reconhecimento da importância do outro: valorização do trabalho interdisciplinar; Grandes desafios: o mesmo paciente, diferentes corpos; e Cada um no seu quadrado: formação precária e cuidado fragmentado.

 

Reconhecimento da importância do outro: valorização do trabalho interdisciplinar

Segundo Fazenda (2008) a interdisciplinaridade pressupõe a abertura de canais de colaboração e comunicação com o saber de outros profissionais. Nessa linha, os médicos e nutricionistas entrevistados destacaram que o tratamento das patologias alimentares se constitui em um grande desafio que exige o apoio de outros profissionais para ser enfrentado.

Eu acho bem importante essa questão interdisciplinar no caso das patologias alimentares, acho que a gente consegue resultados muito melhores quando tu trabalha em equipe, dialogando, do que eu tentar abraçar o caso sozinha, que eu sei que eu não vou ter sucesso (M6).

Ninguém consegue com as patologias alimentares tratar sozinho. Eu acho que tem que ser interdisciplinar sempre, e a equipe, o ideal, sonho... Seria a equipe, se reunir uma vez por semana para discutir, trocar, pensar junto as intervenções, mas acho que é um desafio (M5).

Com relação ao tratamento das patologias alimentares eu acho que é impossível fazer um tratamento sozinha, eu acho que tem que ser feito um tratamento com profissionais de várias áreas: nutrição, psicologia, medicina. Eu acho que sozinha na tua área é muito mais difícil de conseguir um bom resultado (N3).

Os participantes destacam que o sucesso terapêutico do tratamento das patologias alimentares, e de seu próprio trabalho nesses casos, está ligado a possibilidade de um trabalho conjunto com outros profissionais. Isso indica que entre médicos e nutricionistas há o reconhecimento da importância do trabalho interdisciplinar para o tratamento da anorexia e da bulimia, bem como a valorização dos outros campos de saberes nas suas especificidades. Além disso, destacam a importância do diálogo como principal alicerce para a construção de um trabalho interdisciplinar. Os profissionais indicam que o diálogo permite através do olhar direcionado ao outro o reconhecimento de seu papel e a abertura para um processo de consideração e respeito acerca da sua profissão e atuação, de modo a contemplar um bom alcance terapêutico.

Nesse sentido, Romano (1999) pontua que pertencer a uma equipe com profissionais de diferentes áreas não significa exercer um trabalho interdisciplinar de fato. Para que a interdisciplinaridade possa ocorrer Cachapuz (2006) destaca que é fundamental a construção de relações menos verticais entre as diferentes disciplinas e isso não ocorre pela simples justaposição ou complementação entre elas, e sim a partir do estabelecimento de trocas entre os campos, tendo em vista o paciente em torno do qual se constitui a equipe.

Na mesma direção, Fazenda (2008) enfatiza que o exercício da interdisciplinaridade implica na escuta do diferente, assim como na disponibilidade de perceber os limites da própria área. Segundo o autor, o que define a presença da interdisciplinaridade é a construção de um espaço de diálogo, marcado pela disponibilidade para aprender, pelo respeito pela especificidade do campo de saber do outro e pela percepção da insuficiência do próprio saber para o avanço do processo terapêutico. Morin (2015) reforça essa ideia destacando que a interdisciplinaridade além de significar troca e cooperação exige que as diferentes disciplinas possam não apenas se reunir, mas também dialogar, construir caminhos de forma conjunta. O autor ainda destaca que a integração de diferentes formas de pensar, revela a interligação destas. Nesse sentido, a interdisciplinaridade permite a construção de um pensamento alicerçado na complexidade que possibilita ligar as áreas e saberes que são tratados e estudados, na maioria das vezes, de forma fragmentada e independente.

No que se refere ao reconhecimento da importância do trabalho interdisciplinar, os participantes deram destaque também ao enriquecimento profissional que a constituição de uma equipe interdisciplinar para o tratamento das patologias alimentares propicia: "A gente vai aprendendo um pouquinho também de cada área, a gente já começa a ter uma visão mais ampla, então eu acho que é muito interessante, muito enriquecedor" (N1).

Com o trabalho em equipe tu acaba tendo um retorno bem maior não só pro paciente, mas até pra ti enquanto profissional, o teu trabalho vai sendo enriquecido, tem esse retorno profissional, esse crescimento e esse reconhecimento (N6).

Essa relação faz a diferença pro paciente em diversas áreas, mas no transtorno alimentar é fundamental. E a conduta terapêutica também é mais correta, mais acertada, são vários profissionais que participam da mesma conduta. Então a chance de cada um construir um olhar mais complexo é maior (M1).

Em consonância com os entrevistados, Costa (2007) destaca que a interdisciplinaridade é conceituada pelo grau de integração entre as disciplinas e a intensidade de trocas entre os profissionais, sendo que cada profissional deveria sair enriquecido desse processo. A autora destaca ainda que o trabalho interdisciplinar deveria ampliar os horizontes dos profissionais, conduzindo-os a perceber outras dimensões e nuances das situações trabalhadas.

Como pode ser percebido através das falas dos profissionais entrevistados, o trabalho interdisciplinar é considerado como de grande importância para o tratamento das patologias alimentares, sendo propulsor de um cuidado integral e de um olhar complexo ao paciente, de maneira a permitir um crescimento profissional. Contudo, percebe-se que a abordagem interdisciplinar nos cuidados em saúde se apresenta de forma desafiadora e complexa. Um dos principais desafios para o trabalho interdisciplinar com essas patologias é a perspectiva a partir da qual cada profissional olha para o corpo do paciente, nesses casos, palco privilegiado de expressão das manifestações patológicas.

 

Grandes desafios: o mesmo paciente, diferentes corpos

A forma de a psicanálise pensar o corpo diferencia-se da nutrição e da medicina. O corpo psicanalítico apresenta-se diferente de um corpo biológico, anatomopatológico, objeto de estudos médicos e nutricionais. Para a psicanálise, esse corpo é reconhecido como subjetivo, é um corpo que vai além das queixas de ordem somática e já não se reduz ao conceito de organismo, é um todo em funcionamento atravessado pela história de cada sujeito (Fernandes, 2002; Lazzarini e Viana, 2006).

Freud foi construindo o estatuto do corpo em psicanálise, observando a influência do psiquismo sobre o corpo e a importância dos conteúdos inconscientes na formação dos sintomas, o que o levou a romper definitivamente com o organicismo. Através da escuta das pacientes histéricas, a pulsão foi delineando-se e demarcando sua importância, especialmente enquanto matéria-prima para constituição do corpo psicanalítico. A ordem orgânica foi assim subvertida, dando lugar a um corpo pulsional, erógeno (Viana, 2004).

O sujeito de que se ocupa a psicanálise não é um ser exclusivamente psíquico nem, obviamente, exclusivamente corporal, mas é o sujeito que se constitui nesse encontro entre o psíquico e o corporal, nessa intersecção entre o corpo e o psiquismo que é realizada pela pulsão (Viana, 2004). A resultante desse encontro entre o psíquico e o somático (considerando nesse encontro a presença do outro) pode ter como palco de expressão o psiquismo e/ou o corpo. Nas patologias alimentares, como indicado, a excitação não alcança um processamento psíquico e descarrega-se no corpo, sendo o corpo, portanto, nesse caso, o palco privilegiado de expressão do pulsional (Fernandes, 2002).

Trabalhar com pacientes com patologias alimentares é especialmente desafiador para psicanalistas pelas intensas manifestações corporais que colocam, na maioria das vezes, em risco a saúde e a vida. Já para médicos e nutricionistas o desafio está relacionado com a relevância de aspectos psíquicos para compreensão das manifestações corporais, como indicam as falas a seguir:

É muito difícil o tratamento da anorexia e da bulimia, sozinho eu acho que é impraticável, impraticável. Porque não é só orgânica a questão, tem aspectos psicológicos... Eu não conheço muito bem essa parte, mas sei que tem (M5).

Assim ó, eu vejo a nutricionista que for acompanhar essas patologias interligada com outros profissionais, por que se não, não vejo de outra forma conseguir orientar qualquer coisa, ou muito menos reverter a situação, porque pelo que sei mais ou menos é mais uma questão psicológica, do que de alimentação (N6).

Dessa forma, percebe-se que o saber referente ao outro campo metodológico se apresenta, muitas vezes, como estranho aos demais profissionais, desconhecido à sua prática e formação teórica. Tendo isso em vista, trabalhar no sentido de construir a interdisciplinaridade pressupõe uma ação de coragem, pois exige romper com regras institucionais que transcendem um discurso hierarquizado de um saber sobre o outro. As teorias demonstram crenças construídas no transcorrer de um processo ideológico e histórico que resultaram em um pensamento fragmentado e descontextualizado acerca do objeto de estudo (Peña, 2001). Para que a interdisciplinaridade possa ocorrer de fato no tratamento das patologias alimentares é fundamental que a equipe possa construir uma linguagem comum rompendo com essa lógica fragmentada e descontextualizada. Tal linguagem comum é fundamental especialmente para integrar os diferentes olhares dirigidos ao corpo do paciente e para alicerçar o diálogo entre os profissionais, o diálogo da equipe com o paciente e o diálogo de cada pro-fissional com o paciente (Cobelo et al., 2010).

A construção dessa linguagem comum segundo Bucaretchi (2003), deve também preservar um lugar específico e respeitado para cada profissional ao longo do processo de tratamento. Peduzzi et al. (2013) enfatizam a importância da manutenção das especificidades de cada área em uma equipe interdisciplinar. O diálogo entre a diversidade de concepções teóricas e metodológicas presentes em uma equipe interdisciplinar torna-se de grande relevância para a construção de um espaço de mobilidade, de circulação, de respeito e acolhimento, qualidades fundamentais para o manejo de pacientes tão frágeis psiquicamente (Cobelo et al., 2010).

Acredita-se que não só a singularidade de cada área profissional deva ser respeitada e considerada em um trabalho interdisciplinar, mas também a singularidade de cada paciente, de sua história de vida. Trata-se de compreender a relação singular que esse sujeito estabelece com o objeto comida, em outras palavras, trata-se de construir uma análise não causal de seus investimentos e de sua patologia, e sim uma análise complexa da dinâmica psíquica e das manifestações corporais (Fernandes, 2006; Farias e Cardoso, 2009, 2010). Assim, nas patologias alimentares é fundamental que os aspectos médicos, nutricionais e psíquicos possam ser pensados de forma articulada. Essa articulação é imprescindível enquanto alicerce para a construção de um olhar complexo para os pacientes com anorexia e bulimia.

O trabalho interdisciplinar deve possibilitar, assim, a construção de intervenções alicerçadas em um diálogo que se dá entre a singularidade do paciente e a singularidade dos saberes que constituem a equipe. Mas, para que isso seja possível, os participantes indicaram alguns obstáculos que precisam ser vencidos. Destacaram-se como principais obstáculos a serem transpostos: a formação precária - o pouco conhecimento acerca dessas patologias - e a dificuldade de construírem um espaço de diálogo com profissionais de áreas diferentes.

 

Cada um no seu quadrado: formação precária e cuidado fragmentado

Feuerwerker (2003) retrata que a abordagem interdisciplinar presume interações e rupturas de fronteiras, bem como, mudanças na lógica de poder, na maioria das vezes, centralizado em áreas e disciplinas específicas. Os participantes indicam uma formação acadêmica e profissional precária no que se refere as patologias alimentares, a qual se deve principalmente a abordagem superficial dessa temática em seus cursos de formação profissional, o que mantém um isolamento e uma fragmentação na construção dos saberes: "Para falar a verdade eu na faculdade não vi nada sobre patologias alimentares, vi alguma coisa na residência e em alguns congressos" (M2).

A gente teve uma disciplina sobre patologias alimentares e a gente estudou um pouco de anorexia, um pouco de bulimia, e também na parte de psicologia, que a gente tem uma matéria só de psicologia e aí a gente estuda um pouco as causas e como tratar, mas de forma bem superficial (N3).

A gente estuda, mas assim na época da minha faculdade, a gente estudou bem pouco, a gente até comentava assim, que era uma coisa tão importante, que tava crescendo e continua crescendo o número de casos até hoje. Mas estudei muito pouco, não tenho muito conhecimento (N7).

Gonzaga e Weinberg (2012) indicam que os pacientes com patologias alimentares, na maioria das vezes, iniciam o tratamento tardiamente; um dos motivos apontados para isso ocorrer é a dificuldade dos profissionais em detectar os sintomas e reconhecer esses quadros clínicos. Esses dados estão alinhados ao relato dos participantes que sinalizam o desconhecimento ou o conhecimento precário acerca dessas patologias, o que acaba comprometendo a possibilidade de diagnóstico precoce e mesmo de diagnóstico da anorexia e da bulimia.

Considera-se esse cenário bastante preocupante, pois se trata de pacientes que apresentam riscos de desestruturação psíquica e também de reverberações corporais provocadas pela problemática psíquica que podem colocar em risco a saúde e a vida. Além do diagnóstico dessas patologias, acredita-se que a formação precária termina por comprometer também o processo terapêutico, pois, segundo Peduzzi et al. (2013), ela se constitui em um fator que dificulta, que inibe o diálogo com profissionais de outras áreas, comprometendo a construção de um trabalho interdisciplinar. Segundo os autores, isso pode também acentuar o temor que frequentemente é encontrado entre os profissionais de que no contato com outros saberes, seu próprio saber seja questionado ou algum não saber seja evidenciado. Esse contexto acaba, portanto, favorecendo o isolamento dos profissionais e a fragmentação do cuidado.

A escuta do outro e o diálogo são aspectos fundamentais do trabalho interdisciplinar e também, segundo os entrevistados, seus maiores desafios: "as pessoas gostam de trabalhar no seu quadrado, na faculdade é isso que é ensinado. É muito difícil, porque a gente não tem essa cultura da interdisciplinaridade, todos nós, todas as áreas da saúde" (M4).

Uma coisa é tu dizer que o trabalho é interdisciplinar, outra coisa é ele realmente ser interdisciplinar. Não é cada um fazer sua parte, vários profissionais ir ali atender o paciente e nem conversar, o ideal é que se discuta o caso, tenha diálogo, troquem opiniões. E juntos vão decidindo por onde ir (N2).

Mas o que eu percebo assim num todo, num conjunto, é difícil, é um desafio, é muito difícil trabalhar em equipe e a gente percebe que todos são focados cada um no seu cantinho, então construir um diálogo exige investimento e disposição para trocar com o colega, não é simples (N8).

Percebe-se através das falas dos profissionais que o trabalho interdisciplinar no tratamento das patologias alimentares está mais no plano do ideal - do que acham que deveria ser feito - e menos no campo da prática, no qual ainda se constitui em um grande desafio.

Como pontua Figueiredo (2004), o trabalho interdisciplinar não se dá de modo automático, é um processo que precisa ser construído. Segundo a autora, a escuta do sujeito - como ética que norteia a prática psicanalítica - deve nortear também a construção do trabalho em equipe interdisciplinar. Deslocar o foco da patologia, dos sintomas, para o sujeito, para sua singularidade, para seu sofrimento, é fundamental para que se possa construir espaços de diálogo, de troca entre profissionais de diferentes áreas. É fundamental, pois desloca também o foco do saber de cada um - sem desconsiderá-lo - e incentiva uma construção conjunta, complexa.

Segundo Costa (2007), o trabalho interdisciplinar deve ser visto como um processo que demanda o repensar dos papéis, das relações de poder e dos conteúdos já instituídos e pré-estabelecidos. Figueiredo (2004) nos indica que seria fundamental para efetivação de um trabalho em equipe, especialmente em se tratando de uma equipe interdisciplinar, que ao invés de nos perguntarmos "[...] o que podemos fazer pelo paciente, perguntarmos o que ele pode fazer para sair de tal ou tal situação com nosso suporte" (p. 81).

As intervenções, como aponta Figueiredo (2004), devem ser constantemente discutidas e avaliadas levando em conta suas reverberações tanto para o paciente quanto para a equipe. Tendo isso em vista, a autora propõe que as intervenções da equipe sejam da ordem da invenção, movidas pelo questionamento e não delimitadas a priori, o que torna imprescindível a constituição de um espaço de diálogo.

Em uma equipe interdisciplinar é fundamental que os profissionais tenham uma disposição para aprender: aprender com os outros profissionais e aprender com o paciente, para que juntos possam construir caminhos que conduzam o tratamento a um maior alcance terapêutico (Figueiredo, 2004). Como indicam os entrevistados, esse é um dos grandes desafios no tratamento das patologias alimentares: construir espaços de escuta e troca entre os profissionais de diferentes áreas.

Quando não há essa disponibilidade para o diálogo e para a aprendizagem, encontrar-se-á uma reunião de profissionais, em que cada um faz sua parte de forma isolada, indo na contramão da construção de um trabalho interdisciplinar (Costa, 2007; Fazenda, 2008; Figueiredo, 2004; Peduzzi et al., 2013). Isso indica um cuidado fragmentado, em que o foco principal é a doença - e, muitas vezes, somente o sintoma que diz respeito à área do profissional - e não o sujeito e sua complexidade.

Dessa forma, um dos grandes desafios do tratamento das patologias alimentares é construir intervenções que rompam com uma lógica de cuidado fragmentada e dessubjetivante, ou seja, construir intervenções alicerçadas no diálogo entre a singularidade do paciente e a singularidade das áreas dos profissionais envolvidos no tratamento, como forma fundamental de operacionalização de possibilidades terapêuticas mais eficazes.

 

Considerações finais

Esta pesquisa demonstrou que embora os profissionais médicos e nutricionistas entrevistados valorizem e considerem fundamental o trabalho interdisciplinar para o tratamento da anorexia e da bulimia, na prática eles encontram vários obstáculos para sua efetivação. Os principais obstáculos apontados foram a formação precária para trabalhar com tais patologias e a dificuldade de construir espaços de diálogos com profissionais de outras áreas.

Isso coloca em evidência a importância da anorexia e da bulimia serem abordadas de forma mais aprofundada nos cursos de formação em nutrição e medicina. Isso possibilitará aos profissionais de tais áreas conhecimento que lhes dê ferramentas para a realização do diagnóstico precoce de tais patologias e para o diálogo com outros profissionais envolvidos no tratamento, visando a construção conjunta de intervenções que conduzam a um maior alcance terapêutico.

Nesse contexto, considera-se também imprescindível a abertura de espaços desde a formação acadêmica que vão ao encontro de discussões entre diferentes saberes, visando permitir desde a formação o diálogo com diferentes disciplinas e abordagens, de modo a ampliar as possibilidades de construção de caminhos interdisciplinares. Assim, a constituição de perspectivas interdisciplinares deveria se iniciar na formação para se concretizar de modo singular em cada equipe de acordo com os vínculos nela estabelecidos, bem como ten-do em vista a singularidade do paciente para o qual se dirige o cuidado.

Nos setores do hospital onde foram realizadas as entrevistas não havia profissionais da psicologia atuando, o que comprometia as possibilidades dos médicos e nutricionistas construírem um trabalho interdisciplinar e assim o alcance das possibilidades de tratamento para bulimia e anorexia oferecidas pela instituição. Nesse sentido, destacamos como uma das principais limitações do estudo não contar com participantes da área da psicologia. Tendo isso em vista, um dos possíveis desdobramentos deste estudo é uma pesquisa junto a psicólogos(as) sobre o tratamento da anorexia e da bulimia, o que se considera de grande importância para seguir avançando na discussão da temática.

Por fim, considera-se que a clínica da anorexia e da bulimia é rica e fecunda pelos desafios cotidianos que coloca, não apenas ao saber, mas, sobretudo, ao fazer psicanalítico, especialmente no que se refere ao seu diálogo com outros saberes. Não podemos negligenciar as especificidades metodológicas inerentes a cada área do saber, bem como a percepção acerca da patologia e do paciente que elas engendram, pois é somente a partir do conhecimento dessas especificidades que o diálogo com profissionais de outras áreas poderá ser possível e poderá consolidar um maior alcance terapêutico nos casos de anorexia e bulimia.

 

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Submetido: 16/08/2016
Aceito: 01/09/2017

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