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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.10 no.2 São Leopoldo July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2017.102.06 

ARTIGOS

 

O delírio e sua função em um caso de psicose

 

The delirium and its function in a case of psychosis

 

 

Isalena Santos CarvalhoI; Daniela Scheinkman ChatelardII

IUniversidade Federal do Maranhão. Centro de Ciências Humanas. Departamento de Psicologia. Avenida dos Portugueses, s/n, Campus do Bacanga, Bacanga, 65085-580, São Luís, MA, Brasil. isalenasc@yahoo.com.br
IIUniversidade de Brasília. Departamento de Psicologia Clínica. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Asa Norte, Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC - Ala Sul, Bloco A, Térreo, 70910-900, Brasília, DF, Brasil. dchatelard@gmail.com

 

 


RESUMO

Na psicose, há um sujeito da linguagem, que, através do delírio, tenta reconstruir para si algum lugar possível de existência no mundo. Assim, é a função do delírio na psicose que o presente trabalho discute por meio do caso de uma paciente atendida em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Ilha do Maranhão (MA). A discussão se pauta nas teorizações de Freud e, especificamente, de Lacan, sobre a clínica das psicoses. São contextualizadas as histórias de vida e de inserção no CAPS da paciente, de modo a abordar o desenvolvimento do delírio nesse percurso. Discute-se como da relação com um pai-de-santo à expectativa de envolvimento com um pastor, há uma tentativa de suplência do significante Nome-do-Pai. A construção delirante fornece um nexo às questões da paciente. A ausência de uma necessária escuta do delírio interfere na avaliação pela equipe de seu trabalho diante do endereçamento que o paciente faz à instituição de saúde mental.

Palavras-chave: psicose, delírio, significante Nome-do-Pai.


ABSTRACT

In psychosis, there is a subject of language, which through the delirium, tries to rebuild a place for its own existence somewhere in the world. The role the delirium plays in psychosis is discussed in this paper, focusing on the case study of a patient treated at a CAPS of Ilha do Maranhão (MA). The discussion is guided by Freud's, and specifically Lacan's theories, on the clinic of psychosis. The life stories and the admittance of the patient into CAPS are contextualized, in order to address the development of the delirium. It discusses how the patient's relationship with a "pai-de-santo", and the hope of one with a preacher, were attempts to substitute the signifier Name-of-the-Father. The patient's delusional construction provides a link to the patient's questions. Not listening to the delirium, which is necessary, interferes with the evaluation of the patient's addressing to the mental health service.

Keywords: psychosis, delirium, signifier Name-of-the-Father.


 

 

O presente trabalho parte da aposta deque há um sujeito na psicose. É a aposta que diferencia a Psicanálise do modelo asilar psiquiátrico tradicional de tratamento que desconsidera tanto as questões clínico-estruturais envolvidas quanto, em paralelo, as questões de cada caso. Com isso, tende a haver um esforço de debelar o delírio a qualquer custo, sem uma necessária escuta ao que ele implica para um determinado sujeito.

Na psicose, há um sujeito da linguagem, que, através do delírio, tenta reconstruir para si algum lugar possível de existência em seu âmbito de vida. Da sensação de crepúsculo do mundo à significação pessoal, a lente do psicótico em relação ao contexto que o circunda - família, comunidade, serviço de saúde mental - passa pelo delírio, o qual lhe permite construir uma significação. Ainda que seja a significação como tal, que basicamente só remete a ela própria, permite que restitua alguma ordem ao mundo (Lacan, 2002 [1955-1956], 1998 [1958]).

Nessa perspectiva, a proposta deste trabalho é discutir a função do delírio como o que fornece condições de circunscrição e organização das questões pelas quais o sujeito se sente invadido. A discussão é desenvolvida por meio do caso de uma paciente atendida em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Ilha do Maranhão, que participou de pesquisa de campo conduzida pela primeira autora deste trabalho. Não foi foco deste artigo a análise da qualidade do atendimento realizado pela equipe do local do estudo. Entretanto, esse ponto não deixa de ser levado em consideração a partir da própria via adotada pelo presente escrito de tecer reflexões decorrentes da leitura do livro de memórias de Schreber (2010 [1903]), das indicações sobre a clínica das psicoses presentes na teorização de seu caso por Sigmund Freud (1976 [1911]), bem como, posteriormente, por Jacques Lacan através do Seminário "As psicoses", livro 3 (2002 [1955-1956]) e de "Uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses" (1998 [1958]). Embora sejam obras que sinalizem ou apresentem diversas noções teóricas - especialmente, as de Lacan -, foram priorizadas algumas no processo de construção do artigo, como as de delírio e de significante Nome-do-Pai. A abordagem das demais extrapolaria o escopo deste trabalho. Em paralelo, apesar de igualmente não ter sido o foco, não poderia deixar de abordar questões envolvidas na realização de pesquisa com o paciente psicótico, como o cuidado ético e clínico na condução de uma investigação acadêmica com esse sujeito.

A discussão apresentada a seguir se faz relevante pela ponderação de que a mudança de instalação do local de atendimento ao sujeito psicótico - em razão da política brasileira atual de saúde mental - não necessariamente se reflete em mudança paradigmática no que tange ao respeito ao seu modo de funcionamento. Não podem mais ser aceitas as condições insalubres e os maus-tratos aos pacientes durante tanto tempo comuns nos hospitais psiquiátricos nem a ideia de que uma única instituição é suficiente para a complexidade de atendimento envolvida. Nesse sentido, a relativamente recente portaria ministerial 3.088 de dezembro de 2011, que institui a rede de atenção psicossocial para a oferta de serviços articulados e com específicas propostas de atendimento aos usuários do campo da saúde mental, é um importante momento da luta do Movimento da Reforma Psiquiátrica. Contudo, para que se consolide enquanto um efetivo avanço do Movimento, é preciso cuidado para que os serviços não reproduzam em seus cotidianos a lógica tradicional do sistema asilar de carência ou mesmo ausência de escuta ao delírio em sua função de produção de um lugar possível de sujeito no mundo para o paciente psicótico.

 

A foraclusão do significante Nome-do-Pai e o delírio

Retornando a Freud (1976 [1911], p. 95), na psicose, "aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora"; ao que Lacan (2002 [1955-1956], p. 104) indicou como: o "não-simbolizado reaparece no real". Uma das máximas lacanianas "um significante representa um sujeito para outro significante" não pode se aplicar à estrutura psicótica. Não pode, porque a máxima envolve uma noção de sujeito relacionada à neurose, o que implica um retorno da mensagem dirigida ao Outro de forma invertida. Implica uma noção e um funcionamento do sujeito do inconsciente articulados ao intervalo entre os significantes.

Para Lacan (1998 [1958]), o estado do sujeito, na neurose ou na psicose, depende do que se desenrola no Outro. Segundo o autor, "a presença do significante no Outro é uma presença vedada ao sujeito na maioria das vezes, já que, comumente, é em estado de recalcado (verdrängt) que ela persiste ali, que dali insiste em se representar no significado" (p. 564).

Na psicose, algo vem faltar na relação do sujeito com a realidade, realidade que é estruturada pela presença de certo significante que é transmitido. Por não ter atravessado a prova de Édipo, isso deixa o sujeito em um estado de impotência em realizar as justas medidas que se chamam a realidade humana, que implica a integração do sujeito em certo jogo de significantes. É uma questão que se situa em nível do Outro, na medida em que a integração à sexualidade está ligada à confirmação simbólica, que instaura a lei na sexualidade, com o reconhecimento da posição sexual (Lacan, 2002 [1955-1956]).

Na psicose, a mensagem aparece sob forma de alusão ao sujeito. Isso ocorre pela verwerfung do significante Nome-do-Pai. Verwerfung foi o termo alemão teorizado por Lacan (2002 [1955-1956]) em francês através de forclusion - o qual, por sua vez, no Brasil, é comumente traduzido por foraclusão -, para apontar e discutir que Freud precisou se referir a uma negação mais radical, definitiva da castração no caso do "Homem dos Lobos" (Hanns, 1996).

Quando digo que ele a havia rejeitado (verwarf), o primeiro significado da frase é o de que ele não teria nada a ver com a castração, no sentido de havê-la recalcado. Isso não implicava, na verdade, em julgamento sobre a questão de sua existência, pois era como se não existisse (Freud, 1976 [1918], p. 107).

Na análise, pelo recalque, o paciente mostra que sabe ainda algo sobre aquilo que nada quer saber, a castração (Lacan, 2002 [19551956]). "Se há coisas de que o paciente não quer nada saber, mesmo no sentido do recalque, isso supõe um outro mecanismo" (p. 173), a foraclusão. Para Lacan, o complexo de castração está integrado à situação triangular do Édipo e ainda que essa situação não tenha sido completamente elucidada por Freud, só pelo fato de ter sido por ele sempre mantida, permite reconhecer que o terceiro é o pai. Desse modo, aquele indicou que a travessia edipiana pode ocorrer mesmo quando o pai de carne e osso não está presente. A travessia traz para a criança a "tarefa de chegar a um acordo com a castração em relação a si própria" (Freud, 2006 [1923], p. 159), mostrando a impossibilidade interna do Édipo.

Lacan (1998 [1958]) articulou a travessia edipiana à noção de operação da Metáfora Paterna. A operação implica a existência da lei, da ordem simbólica, que organiza a cadeia significante: "A ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no conjunto está fundada na existência desse nome do pai" (Lacan, 2002 [1955-1956], p. 114). O Nome-do-Pai é o "significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como lugar da lei" (Lacan, 1998 [1958], p. 590). O significante Nome-do-Pai substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante do Desejo Materno. Temos aí o mecanismo do recalque, que institui o sujeito barrado por sua submissão à lei simbólica.

Na psicose, no ponto em que é chamado o Nome-do-Pai, responde no Outro um puro e simples furo. Como falta ao sujeito o suporte da cadeia significante, trava-se em torno do furo toda a luta em que ele busca se reconstruir através do delírio. Com o curto-circuito da relação triangular edipiana, ela se reduz ao aprisionamento da relação dual. É na medida em que o sujeito não conseguiu ou perdeu esse Outro, que ele encontra o outro puramente imaginário, com o qual não pode ter outras relações que não as de frustração - o outro o nega, quer matá-lo. Esse outro é o que há de mais radical na alienação imaginária. O Outro, excluído que é na psicose, enquanto detentor do significante, enquanto dimensão terceira, é potentemente afirmado, entre ele e o sujeito, no nível do outro com minúscula, do imaginário. Há somente duas maneiras de falar do sujeito que radicalmente somos: ou dirigindo-se verdadeiramente ao Outro e dele recebendo a mensagem sob sua forma invertida ou a recebendo do outro sob a forma de alusão. Em Schreber, a mensagem por alusão se manifesta em haver para ele um outro singularmente acentuado, um Outro absoluto. Há um Outro que relaciona tudo a ele (Lacan, 2002 [19551956], 1998 [1958]).

Na psicose, como mensagem por alusão, o sujeito é sempre referência, uma referência penosa. As coisas têm a ver com ele, ainda que, pelo menos, no início - momento indicado por Lacan como de sensação de crepúsculo do mundo -, não sinta ele ter nada a ver com elas. Em Schreber (2010 [1903], p. 54), esse momento, o de desencadeamento de sua psicose, desenvolveu-se a partir da ideia de que: "deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito". Conforme suas anotações, foi uma ideia tão perturbadora e tão alheia ao seu modo de sentir, que só pôde justificá-la posteriormente quando entendeu que lhe foi inspirada por influências exteriores.

Na psicose, pela foraclusão do significante Nome-do-Pai, o qual nos permite duvidar de nossas certezas, há outra relação com a linguagem. O delírio de Schreber é a sua maneira um modo de relação do sujeito com o conjunto da linguagem. Para Lacan (2002 [1955-1956]), em seu Seminário 3, o sujeito, por não poder restabelecer de maneira alguma o pacto com o outro, por não poder fazer uma mediação simbólica qualquer entre o que é o novo e ele próprio, entra em novo modo de mediação. Tal impossibilidade o leva a substituir a mediação simbólica por uma proliferação imaginária, de modo a obter uma mediação possível. Quando Lacan questiona no mesmo Seminário: "O que é o fenômeno psicótico?" (p. 102), indicou ser a emergência na realidade de uma significação que não pode ser ligada a nada, já que ela jamais entrou no sistema da simbolização.

O mundo que ele (Schreber) nos descreve está articulado em conformidade com a concepção que ele alcançou depois do momento do sintoma inexplicado da profunda perturbação, cruel e dolorosa, de sua existência. Segundo essa concepção, que lhe dá, aliás, um certo domínio de sua psicose, ele é o correspondente feminino de Deus. Em consequência, tudo é compreensível, tudo é arranjado, e eu diria mais, tudo se arranjará para todo o mundo (Lacan, 2002 [1955-1956], p. 93).

É o que Freud (1976 [1911]) indicou ao afirmar que a formação delirante não é o produto patológico da paranoia de Schreber, mas um processo de reconstrução do mundo. Ainda que nunca seja uma reconstrução inteiramente bem-sucedida, sem o recurso ao significante Nome-do-Pai, foi por meio do delírio que Schreber pôde alcançar alguma estabilização e advogar posteriormente por sua saída da instituição psiquiátrica em que estava há anos internado.

O delírio é uma significação que se impõe ao sujeito psicótico e que é para ele completamente inteligível. É o que propicia condições para que haja um restabelecimento da realidade para o sujeito, que a torna habitável para ele, ainda que a distorça por excêntricos remanejamentos do imaginário e do simbólico (Lacan, 1998 [1958]). Ou, na expressão de Schreber (2010 [1903]), é através do delírio que há uma nova "Ordem do Mundo", o que lhe permite suprir a ausência do significante Nome-do-Pai. Logo, apesar de o delírio trazer um lugar possível de existência ao sujeito psicótico, isso não envolve ausência de variações ou de abalos cotidianos ao delírio ou a inexistência de sofrimento, em razão de que a linguagem continua a produzir seus efeitos.

 

Método

A pesquisa empírica foi realizada em um CAPS II da Ilha do Maranhão (MA), a qual é composta pelos municípios de São Luís (a capital do estado), Raposa, Paço do Lumiar e São José de Ribamar. Para a entrada no campo de estudo, foi apresentado o projeto de pesquisa à direção da instituição. Com a anuência, foi submetido ao Comitê de Ética do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão. Com a aprovação (Parecer nº 181/05), houve a apresentação do projeto à equipe do CAPS durante sua reunião mensal.

De acordo com a proposta do estudo que deu origem ao presente artigo, foi realizado levantamento nos prontuários de casos já diagnosticados em alguma das categorias da seção "Esquizofrenia, transtornos esquizotípico e delirantes" (F20 - F29) da CID-10 (OMS, 1993). No levantamento, houve a opção somente pelos pacientes: com até um mês de ingresso no serviço; no máximo, três internações em hospital psiquiátrico; em tratamento no regime intensivo; na faixa etária entre 18 e 30 anos; residentes com a família; e, que tivessem concluído, pelo menos, até a quarta série do Ensino Fundamental. Os critérios de exclusão foram: casos em que houvesse suspeita de comprometimento orgânico, de sintomas decorrentes do uso de substância e dificuldades de fala ou de audição que não possibilitassem a realização da pesquisa.

No levantamento, foram localizados 103 prontuários. Contudo, apenas quatro apresentavam perfil conforme todos os critérios estabelecidos, sendo que dois usuários saíram do CAPS pouco tempo depois da admissão no serviço. Foi feito, portanto, contato com as duas pacientes restantes. Como houve dúvida posterior quanto ao diagnóstico de uma delas, a investigação ficou circunscrita ao caso da paciente denominada aqui de Elisa, que se tornou o caso-condutor do estudo.

Com a seleção do caso, foi realizado contato com Elisa e com seus pais, a fim de solicitar sua participação no estudo. Após a anuência, houve encontro individual com a paciente, no qual foram expostos os objetivos, estratégias de investigação (roteiro semiestruturado e observação participante) e procedimentos da pesquisa, bem como feita a leitura em conjunto do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi informada ainda que os encontros seriam gravados e, posteriormente, transcritos. Tendo em vista a especificidade do trabalho realizado no local do estudo, foi igualmente informado que os dados obtidos seriam discutidos com a equipe responsável, conforme a necessidade observada. Também foram entrevistados os pais e dois irmãos de Elisa, assim como os profissionais que acompanhavam mais diretamente seu caso. Entretanto, pela proposta norteadora deste artigo, são apresentadas e discutidas aqui somente falas decorrentes da entrevista realizada com Elisa e de situações também a ela relacionadas que foram registradas no diário de campo.

Na época da pesquisa, Elisa, solteira, tinha 29 anos e um filho de nove anos. Completou o Ensino Médio. Iniciou cursos de Magistério e de auxiliar de Enfermagem, mas não os concluiu. Era da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Quando ingressou no local do estudo, estava desempregada. Para a realização da entrevista, foi necessária a realização de diversos encontros com a paciente ao longo da pesquisa de campo, aproximadamente vinte. Na época, houve a ponderação de que - diante da importância de desenvolvimento de uma relação de confiança com Elisa, de como se encontrava quando de seu ingresso no CAPS e da própria extensão do roteiro - as questões deveriam ser feitas de modo gradativo, com a processual avaliação dos efeitos que viessem a lhe trazer o falar de sua trajetória de vida e do fator propiciador de sua inserção no serviço. Com isso, a duração dos encontros variou entre cinco minutos a uma hora e meia. Após episódio que propiciou a saída de Elisa por um breve período do CAPS - o qual também será discutido na seção seguinte -, houve ainda cerca de três encontros.

Após intensa e exaustiva leitura das transcrições das entrevistas e dos registros do diário de campo, as informações foram organizadas e analisadas conforme constante diálogo entre temas recorrentes na fala de Elisa referentes ao objetivo deste trabalho, a literatura indicada na Introdução e outras leituras complementares. Como fruto da construção do diálogo, considerou-se importante que a apresentação dos resultados obtidos contextualizasse a história de vida de Elisa, de inserção no CAPS e o desenrolar de seu delírio em ambos os percursos. Ao longo da apresentação, buscamos discutir a construção de seu delírio e a função desse de permitir ao paciente psicótico um lugar possível de sujeito no mundo. A discussão não foi desenvolvida no intuito de encaixar a teoria com os dados empíricos. O intuito foi trazer novas ramificações, a partir dos caminhos teóricos já abertos. A proposta de se identificar temas recorrentes na fala de Elisa não se pautou na ideia de verificação da repetição nos tradicionais moldes científicos positivistas. Pautou-se, segundo a Psicanálise, na consideração de que, naquilo que se repete, alguma outra coisa pode ser lida.

 

Resultados e discussão

Minha mãe era médium e ela engravidou de mim. Com três dias de nascida, eu tive desmaios, me levaram pros médicos. Os médicos não sabiam o que era que eu tinha, até que meu pai me levou pr'um centro espírita com a minha mãe. Frequentei casa de Umbanda, fiz trabalho, trabalhos no meu corpo. Meu pai gastou assim mais de mil, mil cruzeiro na época. E esse ano ele gastou mais de mil reais pra mim ficar boa. Então, antes d'eu ser adventista, eu... Eu, eu recebia reencarnação de espíritos.

Também segundo Elisa, sua mãe igualmente teria participado da Umbanda, mas se afastou. Informou que, como sua mãe não mais "manifestava os espíritos", esses passaram para ela. Elisa associou o desmaio citado ao fato de aos doze anos apresentar medo de "ficar trancada sozinha" e vir alguém para a "matar", bem como "alucinação". Na época, como "manifestava os espíritos", mas "tomava remédio de médico e não ficava curada", seus pais a levaram para a casa de Umbanda citada, na qual permaneceu aproximadamente até os vinte anos. Ficou sob os cuidados do pai-de-santo proprietário da casa. Ele teria lhe dito que: "[...] não tinha jeito pra mim, que ele não podia fazer nada. Então, eu tive que ir pra casa desse senhor, [...] que ele já faleceu, que é o pai do meu filho. Então, ele me tratava muito bem, me tratava como esposa dele, me dava carinho, me dava as coisas. Não me dava muito, mas me dava".

O "não ter jeito" citado se refere ao fato daquele ter-lhe dito que era médium. Só o tratamento espiritual não seria suficiente. Seria necessário que fizesse a "preparação" para ser "mãe-de-santo", o que lhe permitiria receber as divindades em momentos específicos dentro do rito, de forma a ter sobre elas algum controle. "Materializado" o espírito no corpo, a experiência não é entendida como algo estranho. É retratada como algo inteligível, por não ser sentida como uma invasão. É aceita e justificada pelo grupo em que o sujeito está inserido. Ainda que haja a percepção de perda de espaço no próprio corpo, trata-se de uma experiência que é consentida.

Com quinze anos, ingressou na Igreja Adventista do Sétimo Dia, mas continuou a frequentar a casa de Umbanda em momentos alternados. Elisa esteve, portanto, em dois espaços de cunho religioso marcados por uma significativa oposição: rejeição ou aceitação de sua relação com os "espíritos". Relatou ter permanecido na Umbanda até o momento em que sua cabeça "fechou", ou seja, em que não poderia mais recebê-los.

Com a cabeça fechada para os trabalhos da casa de Umbanda, percebeu novamente a necessidade de recorrer aos médicos; uma percepção gradativa tanto sua quanto de suas famílias consanguínea e de santo. No ano em que Elisa ingressou no CAPS, teve uma "crise de depressão", em razão de um pastor de sua igreja, Jeremias, pelo qual era apaixonada, ter se mudado para São Paulo. Além da viagem do pastor, a "falta de cuidado" por parte de seus pais, "porque eu já vinha apresentando problemas e eles não davam atenção", e um "trabalho" feito contra ela por uma vizinha igualmente teriam contribuído para a crise que propiciou sua inserção no CAPS. Descreveu que, cansada de esperar pelo retorno do pastor, tomou uma cartela de Diazepam e "meio litro de detergente" na frente de seus pais.

Contextualizada a história de Elisa, pode-se questionar se são histórias como essa que promovem o início e o curso de uma psicose. Para a Psicanálise, não há como sabermos sobre nossa origem. Como não pode saber, cada sujeito cria sua teoria a respeito de modo a dar conta daquilo para o qual não existe a resposta. Cada resposta será a resposta singular de acordo com o modo de funcionamento da linguagem em cada estrutura. Na psicose: "É possível que de saída não haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique firme assim mesmo até certo momento, quando o sujeito, numa certa encruzilhada de sua história biográfica, é confrontado com esse defeito que existe desde sempre" (Lacan, 2002 [1955-1956], p. 231).

Quanto ao filho, Elisa o teria rejeitado durante a gestação em razão de um "encantado" que recebia na época, o qual que também lhe foi transmitido por sua mãe.

Ela (sua mãe) recebia uma Pomba Gira [...]. Ela era só pra matar. Entendeu? Só que a minha mãe nunca aceitou ela. Aí, ela começou a judiar comigo, esse espírito. Na minha gravidez do meu filho, ela fez eu pegar os cartões de baby-chá e jogar tudinho fora, porque ela queria, esse espírito, queria que eu jogasse meu filho fora.

Encantado é uma noção empregada no Maranhão tanto no Tambor de Mina quanto na Umbanda. Refere-se a espírito de pessoa cuja vida ou morte foi cercada de lendas (Ferretti, 1996). Parece ter sido através do "encantado" que Elisa conseguiu lidar com a rejeição de um corpo em seu corpo ao não considerar a rejeição ao filho como sua, mas vinda de algo que lhe era externo. Na gestação, ela parece ter se deparado com a questão de como aceitar o filho e conferir a ele o nome do pai se para ela não houve a operação da Metáfora Paterna. É a função do significante que condiciona a paternidade, que atribui a procriação ao pai; "um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai" (Lacan, 1998 [1958], p. 562).

Foi um reconhecimento que Elisa não pôde realizar durante a gestação do filho, por seu próprio processo de foraclusão do significante Nome-do-Pai. Por mais que ser mulher do "pai-de-santo" lhe seja uma tentativa de suplência, ter um filho do pai não foi sem efeitos para ela.

Segundo Lacan (2002 [1955-1956]), acontece na psicose que, quando em condições especiais, as quais não há como precisar, alguma coisa aparece no mundo exterior que não foi primitivamente simbolizada, o sujeito se vê absolutamente desarmado. Por não poder restabelecer de maneira alguma o pacto com o outro, por não poder fazer uma mediação simbólica entre o que é novo e ele próprio, o sujeito entra em outro modo de mediação. Desenvolve, então, outro tipo de mediação possível para si com o mundo. Desde a infância de Elisa, houve questões para as quais sua família buscou alguma solução através dos recursos de seu contexto histórico-cultural até o momento da constatação de ela apresentar um discurso que não poderia ser partilhado no laço social. De qualquer modo, suas encruzilhadas parecem ter sido os momentos que, diante de convocações, oposições simbólicas de sua trajetória - como a gestação ou a "ida do pastor para São Paulo" -, tornaram subitamente insuficientes as muletas imaginárias que lhe permitiam compensar a ausência do significante da simbolização. Foram os momentos em que não pôde assumir uma posição pautada na continuidade e descontinuidade da cadeia significante. A viagem do pastor, inclusive, destacou-se em sua fala como motivo para ingresso no CAPS local do estudo.

A viagem parece lhe ter sido o momento em que "o Outro mascarado que está sempre em nós aparece a um só tempo elucidado, revelando-se em sua função própria" (Lacan, 2002 [1955-1956], p. 233). É a única função que, segundo Lacan, retém o sujeito ao nível do discurso, que ameaça desaparecer quando da entrada na psicose propriamente dita. Toda a construção delirante de Elisa pautava-se na expectativa do retorno de Jeremias, o pastor de sua igreja. Com o retorno, teria com ele a relação que nunca teve - tocar, namorar, casar. Na expectativa de seu retorno, ficava em dúvida sobre seu estado civil: "Então, meu estado civil hoje, ou eu tô noiva, ou eu tô casada com ele".

Sabe-se que, como um mentor espiritual, cabe ao pastor guiar e doutrinar os membros da igreja; função que se assemelha ao do pai-de-santo na Umbanda. São figuras religiosas que trazem a reflexão de como foi e é para Elisa a possibilidade de ser a mulher de um pai cuja autoridade passa pela sanção simbólica. Na linhagem indicada por Schreber (2010 [1903]), há uma convergência dos nomes para o nome de Deus, que mostra uma cadeia simbólica importante ao manifestar a função do pai no delírio (Lacan, 1998 [1958]). É a função que, para Elisa, comparece, da relação com um pai-de-santo à expectativa de envolvimento com um pastor, como sua tentativa de suprir o que lhe falta.

Lacan (2002 [1955-1956], p. 42) apontou a necessidade de escuta às palavras-chaves do dizer do sujeito psicótico, seus "pontos de referência essenciais" em torno dos quais se articulam sua existência. Em relação ao caso Schreber, indicou que as palavras-chaves do delírio (o assassinato d'almas, a assunção de nervos, a volúpia, a beatitude) giram em torno de um significante fundamental, que, embora não seja jamais dito, é determinante - o pai. Em Elisa, sua história demonstra uma tentativa de suplência ao significante Nome-do-Pai. Como esposa do pai-de-santo parece ter obtido algum ponto de sustentação até o momento em que engravida. Ao ter um filho de um pai-de-santo, um filho-de-santo, sua "cabeça" fecha e sai da casa de Umbanda. Quando se afasta, recusa o que é a esse local associado, como a possibilidade de que o filho siga o mesmo destino do pai, pelo fato de também ser "médium".

Diante de uma situação que ateste para o sujeito a impossibilidade de assumir a realização do significante pai ao nível simbólico, o que lhe resta? Resta-lhe a imagem a que se reduz a função paterna. É uma imagem que não se inscreve em nenhuma dialética triangular, mas cuja função de modelo, de alienação especular, fornece um ponto de enganchamento, que permite ao sujeito se apreender no plano imaginário (Lacan, 2002 [1955-1956]). Como indicou Lacan (1998 [1958], p. 543), na psicose, como em parte alguma, o sintoma está mais claramente articulado na própria estrutura, em um processo manifestado "pelos mais radicais determinantes da relação do homem com o significante". É um radical efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza adquire um peso proporcional ao vazio enigmático inicial.

Já na igreja Adventista e na expectativa de dar outro destino para seu filho, identifica outra figura cuja autoridade lhe é significativa, um pastor. Nas entrevistas, fazia constantemente "apelo" para que pudesse se comunicar com ele. Quer uma comunicação "concreta", pois a que tem com ele pela "tubulação" de sua igreja não lhe satisfaz. Ao dizer que em sua casa tudo é do Jeremias, foi questionado: "Se tudo é dele, o que é seu na sua casa?". Chega a responder "minha cama", mas depois se corrige: "a minha cama é minha e dele". Ainda que não seja uma invasão tal como a relatada por Schreber (2010 [1903]), é assim que encontra um fundamento, mesmo que inteiramente preso no outro. É uma relação de ou/ ou, de exclusão, em que o destino se torna a vida ou a morte: "Porque se eu não encontrar ele, vou ter que casar com outra pessoa. Eu tenho duas opções. Ou tomo o remédio, tomo a medicação na veia pra falecer de verdade ou, então, arrumo uma pessoa pra mim casar e ter minha família" (Elisa).

A expectativa que estabelece em relação ao pastor não impede a busca de uma relação "concreta". Contou ter recebido proposta de namoro de três pacientes do CAPS. A equipe informou que começou a namorar um deles. Para "ficar boa", precisa "beijar na boca" e "praticar sexo", conforme teria lhe orientado o psiquiatra que a atende. Precisa realizar tais ações para "melhorar", ainda que considere que isso só vai acontecer de fato com o retorno do pastor. Elisa diz que de todas as crises que já teve antes, a atual é a mais difícil, pois "ninguém compreende o que fala".

Também em seu Seminário sobre as psicoses, Lacan (2002 [1955-1956]) alertou os psicanalistas quanto à intenção de compreender. Para ele, era preciso partir "da ideia do mal-entendido fundamental" (p. 30). A compreensão traz o equívoco de considerarmos saber o que o sujeito quis dizer. A compreensão silencia a fala. Fecha a questão do sujeito. Por essa via, o sofrimento de Elisa não parecia ser o de não se fazer compreender, mas o de não poder falar. Envolvia não ter um trabalho de escuta que lhe permitisse, por sua vez, não precisar mais trabalhar tão sozinha o processo de circunscrição de suas questões.

Há ainda outra imprescindível questão apontada por Lacan no Seminário 3. Como um mártir do inconsciente, o psicótico tem dele um testemunho aberto. Ainda que o neurótico seja também uma "testemunha da existência do inconsciente, ele dá um testemunho encoberto que é preciso decifrar" (p. 155); testemunho que é encoberto pela ação do recalque. Como testemunha aberta, o sujeito psicótico fica paralisado em uma posição que não lhe permite partilhar o sentido do que testemunha com aqueles de seu convívio.

Assim, é preciso identificar as dificuldades do entorno familiar de Elisa e mesmo da equipe de saúde - conforme será discutido adiante - em conseguir, de algum modo, suportar e não negligenciar, ou mesmo, descartar o que ela diz. Mas, não é porque se ignora o delírio que ele deixa de existir e de ter uma função para o paciente psicótico. Em seu delírio, parecia identificar um suporte: "Eu preciso [...] dele ficar perto de mim toda hora. Não me vigiar, mas ficar perto de mim conversando comigo".

Próximo à conclusão da pesquisa empírica, informou ter Jeremias retornado. Pouco tempo depois, teria partido dele a "decisão" de se casarem. Nos encontros seguintes, Elisa muito repetiu que ia se casar em breve com Jeremias. Começou a planejar a cerimônia e a escolher quais funcionários e pacientes do CAPS convidaria. Ele lhe teria dito que queria ser seu "responsável" junto à instituição e já pretendia solicitar sua alta, já que ela estava "ótima". Na época, Elisa informou ter já solicitado sua alta à equipe técnica, que não concordou por considerar precoce sua saída.

Na expectativa de um enlace, Elisa não via mais motivos para permanecer na instituição. Três meses depois, ela solicitou novamente sua alta. Justificou que, como sua mãe não tinha ninguém durante o dia para cuidar do seu filho, precisava ficar em casa. Sendo o pedido novamente recusado pela equipe, relatou ter falado de forma agressiva com alguns funcionários. Disse-lhes, ainda, não querer mais o tratamento, o que acarretou sua "alta por abandono".

"Abandono" na citada situação chama a atenção. No caso de Elisa, não querer mais o tratamento não implica seu abandono. É preciso analisar as repercussões desse significante para ela, sua família e os profissionais, de modo a que não seja a instituição quem estará, de fato, abandonando. É necessário entender a que sua fala "não quero mais" está relacionada, ou seja, como tenta tornar sua família e os profissionais cientes de seu sofrimento ao sinalizar que algo precisa ser escutado.

Elisa ficou cerca de vinte dias ausente do CAPS. Na tentativa de promover seu retorno, foi realizada visita domiciliar por uma assistente social e uma psicóloga da instituição, na qual a pesquisadora indicada na Introdução do presente trabalho esteve presente. Nesse período, tendo concluído a parte empírica do estudo, já estava afastada da instituição. Ao ser informada da saída de Elisa do serviço, a pesquisadora entrou em contato com a equipe, a fim de obter mais informações e contribuir no que fosse possível. No encontro ocorrido, ficou acertada a visita domiciliar - com a solicitação pelas profissionais de que dela participasse.

Apesar de a visita ter sido previamente agendada, Elisa não estava em casa. Ao tomar conhecimento, ficou contente, pois suas "orações" foram atendidas. Durante sua ausência, refletiu que: "o meu melhor lugar é aqui (no CAPS), porque são pessoas (os profissionais) que se dedicam a trabalhar pra dar a saúde da gente. [...] que se botam de verdade pra fazer a obra de Deus". Após seu retorno, preferiu "terminar" o namoro com Jeremias. Justificou que como ele também tem "problema psicológico", a relação entre os dois "não daria certo". Considerou melhor tê-lo como "amigo". Chegou à conclusão de que não são todos os tipos de relação que adoecem. Amizades não adoecem, mas a relação "homem-mulher", sim. Na mesma época, houve o término do namoro com o paciente da instituição.

Essa questão remete ao que colocou Lacan (2002 [1955-1956]) sobre o amor na psicose, em que, para o psicótico, a relação amorosa é possível abolindo-o como sujeito. Por ser uma relação em que há uma heterogeneidade radical do Outro, é um amor morto. Elisa mostra, com a passagem em seu discurso da relação "homem-mulher" para a de "amigos", como lhe foi possível ter ainda algum ponto de sustentação, um apaziguamento diante dos acontecimentos de seu cotidiano. Esforço que novamente nos remete às teorizações de Lacan em seu Seminário sobre as psicoses, quando aponta que o sistema delirante varia, quer tenha sido abalado ou não. A variação resulta das intervenções do exterior, da conservação ou da perturbação de certa ordem no mundo em torno do paciente psicótico. Ele está longe de não levar tudo isso em conta. Procura, no curso da evolução de seu delírio, fazer com que entrem em composição com esse.

As crises no cotidiano do sujeito psicótico continuarão a existir, mas, como é por meio do delírio que pode falar sobre elas, é por meio dele que poderá também as conduzir. Nas palavras de Freud (1976 [1911]), a reconstrução do mundo pelo delírio é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente. O psicótico toma em consideração quaisquer alterações que ocorram no mundo exterior. Os efeitos que lhe causam o estimulam a criar teorias explanatórias via delírio, o que se reflete em suas relações com as pessoas de seu contexto.

No discurso de Elisa, eram comuns histórias de pessoas que realizam conspirações, como membros de sua família, para prejudicá-la e/ou a seu filho. Mesmo sua mãe que não realiza nenhuma ação nesse sentido, também está contra ela, já que não acredita em sua palavra. Eram igualmente comuns descrições em que aparece como a melhor ou a mais negligenciada dentre todos: a filha mais querida de seu pai; a mais mimada por ele e mais rejeitada por sua mãe; a mais inteligente dos filhos (os "irmãos são burros"); a garota mais bonita de seu bairro, quando adolescente. Descrições que indicam que o outro só pode invejá-la. São descrições que remetem ao que colocou Lacan (2002 [1955-1956]) sobre Schreber, de que o sujeito se sente violado, manipulado, transformado, falado de todas as maneiras, tagarelado. Ele se torna a sede de todo um viveiro de fenômenos. No caso de Elisa, tudo faz a ela alusão.

"O que você acha que eu tenho?", perguntou Elisa. Visava conhecer qual classificação médica possui para "saber a possibilidade que eu tenho de sair daqui e poder trabalhar... E fazer com que minha mãe acredite em mim, meu pai acredite em mim, acredite no que eu falo". Ao lhe ser devolvida a questão sobre o diagnóstico, Elisa falou do que os médicos com os quais já se consultou lhe disseram. Parecia reunir fragmentos de diversos diagnósticos, para, a partir do modo como pôde escutar o que lhe foi dito, compor sua explicação sobre o que sente e sua história. No primeiro momento, quando ingressa no CAPS, informa que o psiquiatra que a atendeu lhe deu um diagnóstico de "hiperpilexia". Observou que não era para confundir com epilepsia. O médico teria lhe dito que era uma "doença pegativa". Com o tratamento, deixou de ser uma doença referente a algo que não pode ser partilhado, cuja transmissão deve ser evitada, e se transformou em algo que restituiu sua possibilidade de contato com o outro, quando, depois, o médico coloca que tem "um problema de afeto". É um diagnóstico com o qual se identifica e assume, tendo em vista o sofrimento que sentia em razão da viagem do pastor. Desse modo, Elisa trouxe o que pôde produzir a partir dos significantes médicos que lhe foram dirigidos, indicando não ser o diagnóstico o que iria calar sua questão. Em vez de calar, eles se tornam parte de sua questão; questão cujo grau de certeza ela mostra através do peso atribuído à palavra.

Se com o desencadeamento de uma psicose, não há conexão entre as ideias, através do delírio há uma reconciliação entre elas (Freud, 1976 [1911]; Schreber, 2010 [1903]). Todas têm um nexo e, como indica Elisa, relacionado ao sujeito psicótico. "A minha (doença) agora é paixão". Seu diagnóstico muda de algo que exclui para algo que inclui o outro. O médico-psiquiatra teria lhe dito que: "O nome da minha doença é afeto e alguma coisa lá". Não guarda em que consiste "alguma coisa lá". Ela se fixa no significante afeto. Pareceu contentar-se com essa explicação. Sua doença tem "algo ligado ao afeto". O "algo" se relaciona à:

Falta de carinho da minha mãe, né? Um principal afeto, falta de carinho dela. E [...] todo mundo aqui fica triste, quando eu fico triste. [...] Quando eu fico alegre, todo mundo fica alegre, os colegas... Isso aí já é a parte do afeto, porque se eu chego triste aqui, eu vou ficar... Eu vou ficar afetando eles também, não é?

Elisa fala de várias questões relacionadas ao afeto que a adoecem, como ser obrigada a fazer algo que não quer fazer, a exemplo de sua mãe que a obriga a ir ao CAPS, ou de alguém que diz que com ela vai namorar, mas não o faz, como Jeremias. Não considera o "afeto", de fato, uma doença, embora o nomeie assim. Ao dizer que sua doença é "afeto e alguma coisa mais" cria para si um diagnóstico que tenha algo de si, pois uma classificação alfanumérica lhe diz pouco ou nada sobre o que identifica como a origem de seu sofrimento.

Além de o afeto estar ligado à falta de investimento do outro em si, também o associa à sua capacidade de afetar os demais. Como está rodeada do "sentimento" de afeto no CAPS, começa a perceber melhoras em si, como inclusive realizar uma autocrítica acerca de ideação suicida dita no início de sua participação na instituição e na entrevista. Sente que sua melhora agora está acelerada em comparação a outros momentos de sua vida, o que relaciona ao Centro de Atenção e ao retorno do uso do medicamento.

Acrescenta que se deixar de tomar os remédios indicados, a doença só evoluirá, mostrando-se diferente em cada época de sua vida. "Cada fase da minha vida é uma coisa diferente". Os nomes da doença mudam, mas algo permanece. Por que permanece? Provavelmente, por falar de uma questão, que, por ser muito cara a Elisa, ela repete, mas não pela via do recalque. Sua repetição se relaciona à foraclusão do significante Nome-do-Pai e à sua tentativa de obtenção de uma suplência a tal ausência.

Um neurologista que a atendeu em sua adolescência teria dito ainda que, para uma doença como a dela, a solução é: nada de emoções fortes e a não interrupção do uso do medicamento. A primeira orientação implica evitar namorar, amar. Elisa sabe que o tipo de tratamento que realiza não possui previsão de término. Trata-se, portanto, de uma orientação impossível. Como sua doença está ligada ao "afeto", percebe que algo sempre retorna mesmo que não interrompa o uso da medicação. Há algo que o remédio não elimina, que produz um sofrimento em Elisa. Como há na psicose um funcionamento da linguagem diferente do que ocorre na neurose, seu esforço para o alcance de certa estabilização de seu mundo imaginário diante de tal retorno passa por uma relação com a palavra, em que uma única palavra congrega para ela toda a significação.

Como já discutido, diante da experiência de desmoronamento psicótico é através do delírio que Elisa desenvolve uma tentativa de ligação com sua família, profissionais e pacientes do Centro de Atenção. Quando informa que ela e Jeremias se tornaram amigos, parece ter encontrado na reorganização de seu delírio e mesmo nos apoios familiar e institucional - ainda que com as dificuldades e os recuos dos familiares e da equipe - um ponto de ancoragem. Nesse processo, identifica o CAPS como um lugar para si, apesar de, por vezes, oscilar sua vontade de estar ali.

Para as profissionais que realizaram a visita domiciliar o período de saída de Elisa do CAPS decorreu de "mentiras" por ela apresentadas para mudar de regime de atendimento ou para receber alta. Para ambas, Elisa "manipula" as pessoas. Ressaltaram não ter mais condições de atendê-la. Elisa as teria acusado de pretenderem se intrometer em sua vida, pois queriam saber "quem é o macho" com o qual dorme toda noite. Teria chamado as duas de "insuportáveis".

As falas citadas sinalizam a necessidade de a equipe rever o que e como escuta o que o paciente diz. O recuo diante da psicose, porque o profissional se sente desgastado, agredido ou mais sem vontade de atender, indica a importância de avaliação do modo como ele e a equipe como um todo se posicionam nessa clínica. Sem a avaliação, torna-se muito mais árduo trabalhar o endereçamento que o paciente faz. Em vez de considerar que a fala apresentada deva ser investigada, o técnico pode permanecer na ação de qualificação do discurso, o que não possibilita que vá além de o classificar como "mentira", "manipulação" ou alterado - como comumente ocorre em relação ao delírio. A fala do paciente tende a ser qualificada em sentido estritamente descritivo, o que se reflete na busca do nível de veracidade do discurso do paciente. A preocupação da equipe em confirmar a veracidade sinaliza mais que um juízo de valor em relação ao que é proferido pelo sujeito psicótico. Sinaliza haver para a equipe somente uma verdade, a sua.

Ao contrário do que indicou Lacan de que, na intervenção, o profissional não está ali enquanto sujeito, sem um trabalho de reflexão sobre a atuação realizada, ele se detém ao que sente como uma afronta ou risco ao eu, ficando em uma posição que não contribui para um tratamento que não se pretenda assistencialista ou autoritário. O posicionamento indicado por Lacan fortalece a capacidade pela equipe de lidar com a questão feita pelo paciente: qual o lugar que vai me caber? (Ferreira, 2005). O sujeito tem uma forma de relação com o Outro, relação imaginária apresentada, por exemplo, através de "estão me perseguindo", em que os perseguidores podem ser para ele os próprios membros da equipe do CAPS. Segundo Elisa, por exemplo, uma enfermeira tentou matá-la por ter ficado "a fim" do Jeremias, quando não lhe deu a medicação "correta". É preciso "entender que a instituição tem que intervir na posição desse sujeito em relação ao Outro" (p. 36). Segundo Ferreira, fazer isso é intervir no sintoma do sujeito; recuar é correr o risco de ser colocado como mais um na série. Nesse processo, a interrogação sobre o lugar que a instituição ocupa para o sujeito é fundamental. Saber qual é o seu papel e seu lugar na condução do caso é o que possibilita à equipe, na qualidade de operadora institucional, colocar-se como exceção nas relações do sujeito, fazendo um menos-um em sua série.

Elisa parece ter considerado que os profissionais do CAPS não lhe proporcionaram a ancoragem necessária à experiência de desmoronamento psicótico que sentia. Quando soube do engajamento deles (e da pesquisadora também?), é como se tivesse voltado a identificar a instituição como um possível ponto de endereçamento.

Diante da possível dificuldade do profissional em suportar questões como a de Elisa, cabe considerar que ele também demanda uma escuta sobre o que toma para si daquilo que não é seu. Para que a equipe assuma uma efetiva responsabilidade de tratar, faz-se importante a discussão entre os membros do que nela mobiliza conteúdos aversivos em relação a esse sujeito. Os profissionais que acompanharam o momento de afastamento de Elisa do CAPS parecem não ter reconhecido a questão por ela apresentada, o que pode estar relacionado ao fato de ela não ter manifestado os sintomas que, para a equipe, a evidenciam - como violência física e agitação psicomotora. No caso da construção delirante apresentada por Elisa, é possível que essa não tenha sido (suficientemente) escutada como um indicativo da necessidade de alguma intervenção.

 

Considerações finais

Todo esforço para a minimização do sofrimento psíquico do paciente psicótico é importante, desde que não veja com desagrado o delírio (Lacan 2002 [1955-1956]), com a desconsideração ao discurso do paciente e ao funcionamento da linguagem nele. É preciso sustentar um trabalho de escuta "aquele que fala, quando se trata de uma mensagem que não provém de um sujeito para-além da linguagem, mas de uma fala para-além do sujeito" (p. 581).

Como havia no local do estudo somente modalidades grupais de atendimento, Elisa pediu à pesquisadora que, concluída a pesquisa de campo, deixasse de ser "psicóloga-entrevistadora" e passasse a ser apenas sua psicóloga. Uma transferência? É possível que Elisa tenha reconhecido os encontros destinados à realização da entrevista como um espaço em que pôde endereçar suas questões sobre o "pastor". Sua fala sinalizou um pedido de escuta, de um trabalho que a secretariasse em seu processo de reorganização. É um trabalho que implica escutar o que o paciente diz e como diz, a fim de que o delírio não se restrinja a um indicativo de melhora ("diminuição do discurso delirante") ou piora ("aumento do discurso delirante") para a família e a equipe do CAPS.

A solicitação não foi aceita pela razão de que se estava ali para desenvolver uma atividade de propósito e tempo delimitados. Também não foi aceita, pois a anuência não contribuiria para que a instituição efetivamente se implicasse em seu atendimento; daí o movimento de interrogar a equipe e participar da visita domiciliar citada. Apesar disso, ficou a questão: até que ponto o fato de poder, de algum modo, ter alguém que a escutasse se configurou dentro de todo o processo descrito, tanto o período de realização da entrevista quanto o momento de sua conclusão?

É função do pesquisador a realização de ações como procurar a equipe e participar da visita domiciliar quando de situações como a saída de Elisa do serviço? Bem, além da consideração de que a responsabilidade da pesquisa com o público em questão não se encerra com a conclusão da parte empírica da investigação acadêmica, não podemos recuar diante de uma psicose, como indicou Lacan. Não há uma única resposta para a indagação acima. A única possível aqui é que a pesquisa em Psicanálise envolve uma ética pautada na relação do sujeito com a fala. Logo, é preciso avaliar os efeitos da pesquisa para uma fala para-além do sujeito.

Para outras pesquisas, sugere-se tanto a continuidade do tema deste trabalho quanto dos que não puderam ser aprofundados aqui, como a relação entre delírio e religião e as repercussões do discurso delirante na equipe de saúde mental. O primeiro se faz importante por ser frequente a procura por instituições de cunho religioso pelo paciente psicótico e sua família. O segundo se pauta na consideração de que a proposta de incluir o psicótico na sociedade ou mesmo no próprio serviço de atendimento não pode ser efetivada quando se exclui o delírio como um esforço de reorganização do mundo.

 

Referências

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SCHREBER, D. 2010 [1903]. Memórias de um doente dos nervos. São Paulo, Paz e Terra, 371 p.         [ Links ]

 

 

Submetido: 21/05/2016
Aceito: 15/09/2016

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