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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.10 no.2 São Leopoldo July/Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2017.102.10 

ARTIGOS

 

A direção da cura na clínica lacaniana das psicoses

 

The direction of the cure in the Lacanian clinic of psychosis

 

 

Tiago Iwasawa Neves; Andreza Silva dos Santos

Universidade Federal de Campina Grande. Av. Juvêncio Arruda, 795, Bodocongó, 58429-600, Campina Grande, PB, Brasil. tiagoiwasawa@yahoo.com.br, andrezagiannini@hotmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é problematizar o conceito de cura a partir de referenciais psicanalíticos lacanianos, tomando a clínica das psicoses como campo de questionamento sobre a consistência e as possibilidades desse conceito. É um trabalho que se justifica pela importância da compreensão da cura na orientação de um tratamento, já que ela se apresenta como a responsável por fundamentar os diferentes meios de abordagem na clínica. Partimos da discussão proposta por Georges Canguilhem em "O normal e o patológico" e de uma definição breve dos conceitos de saúde e doença, procurando demonstrar como esse autor propõe uma perspectiva de cura aberta às possibilidades do sujeito, e não enquanto meta objetiva do saber médico e científico. Em seguida, apresentamos a teorização psicanalítica sobre a psicose a partir das obras de Freud e de Lacan, procurando articular uma direção clínica da cura compatível com a proposta de Canguilhem. Concluímos com uma defesa da ética da psicanálise como contraponto aos desenvolvimentos clínicos normatizantes da atualidade, buscando especificar a clínica psicanalítica como uma clínica que toma como único referencial o sujeito.

Palavras-chave: psicose, psicanálise, cura.


ABSTRACT

The objective of this article is to problematize the concept of "cure" from Lacanian psychoanalytical references, taking the clinic of psychoses as a questioning about the consistence and possibilities of this concept. It is a work that is justified by the importance of understanding the cure in the direction of a treatment because it presents itself as responsible for substantiating the different approach means in the clinical practice. We start with the discussion proposed by Georges Canguilhem in "Normal and pathological" and a brief definition of the concepts of health and disease, trying to demonstrate how the author proposes an open cure perspective to the possibilities of the subject and not as objective goal of medical knowledge and scientific. Then we present the psychoanalytic theorizing about psychosis from the works of Freud and Lacan, seeking to articulate a clinical direction of cure compatible to the proposed by Canguilhem. We conclude with a defense of the psychoanalysis ethics as opposed to the normative clinical developments of today, seeking to specify the psychoanalytic treatment as a clinic which takes as its sole criterion the subject.

Keywords: psychosis, psychoanalysis, cure.


 

 

A direção da cura na clínica das psicoses

É de conhecimento público que o termo psicose tornou-se o equivalente moderno da velha noção de loucura, sendo o seu significado etimológico "condição anormal da mente". Segundo Lopes (2001), a palavra psicose apareceu no campo da medicina pela primeira vez em 1845, pela letra do alemão Feuchtersleben, e no ano seguinte, no Zeitschrifte fur Psychiatrie und Gerichtliche Medizin (Jornal de Psiquiatria e Medicina Forense). O termo psicose não é uma invenção recente da psicanálise, porém o tratamento que ela fornece a esse conceito não se enquadra em seu significado etimológico. Afinal, quem se habilita a afirmar qual é a condição normal da mente? Qual a legitimidade dessa afirmação? Em que ela se sustenta e como ela pode ser refutada?

Este artigo é fruto de um processo de pesquisa realizado no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Epistemologia da Universidade Federal de Campina Grande. Seu intento é problematizar o conceito de cura a partir de referenciais psicanalíticos, tomando a clínica lacaniana das psicoses como campo de questionamento sobre a consistência e as possibilidades desse conceito. É um trabalho que se justifica pela importância da compreensão da cura na orientação de um tratamento, já que é ela que usualmente como fim costuma fundamentar diferentes meios de abordagem com o sujeito. Nosso principal objetivo, então, consiste em situar quais são os fins que acreditamos e quais são os meios que defendemos no manejo clínico de um quadro psicótico.

Para isso, iniciamos o percurso fundamentando os fatores epistemológicos que utilizamos para problematizar esse conceito, articulando as noções de saúde/doença e normatividade/vida e debatendo a importância política dessas distinções no cenário que apresentamos, aproveitando para situar já nossa crítica a um dos principais métodos compartilhados e legitimados atualmente no tratamento oferecido aos sujeitos psicóticos: o diagnóstico estatístico dos manuais psiquiátricos, que, devido aos seus excessos de determinação, reduzem o processo de nomeação e reconhecimento do sofrimento subjetivo ao ato terapêutico da medicalização. Seguindo a proposta de Christian Dunker (2015), pensamos a medicalização como um modelo de racionalidade diagnóstica: uma estratégia política de "expansão dos atos, raciocínios e estratégias de inserção política, clínica e social do diagnóstico, e sua consequente 'força de lei', capaz de gerar coações, interdições, tratamentos e que tais" (Dunker, 2015, p. 20).

Posteriormente, discutimos a teorização da psicanálise em torno do conceito de psicose, especificamente nos trabalhos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, a fim de estabelecer quais são os elementos que sustentam a sua compreensão de cura e modelam as características de seu posicionamento clínico. Concluímos, assentando as diretrizes da ética analítica como contraponto ao discurso medicalizante, buscando especificar a postura dessa ética diante da experiência clínica com o sujeito.

 

A cura e seu sentido epistemológico

Problematizar a cura exige inicialmente que exercitemos a nossa compreensão sobre a doença, sobre a condição patológica. Pensar a condição patológica somente por um viés negativo, como déficit das condições de um organismo, é negligenciar a potência criadora de um estado de crise, seja ela somática, ou psíquica. A doença consiste, antes de tudo, em uma forma diferente de vida, de modo que uma verdadeira atitude clínica deve tomar como referência o sujeito e a sua relação com o meio e não partir de uma média social para classificá-lo e categorizá-lo como tipo anormal. Na doença o homem perde a capacidade de ser normativo, isso significa que ele se torna menos flexível às variações do meio e mais fixado em uma determinada norma. Já o estado de saúde se caracteriza por manter essa capacidade normativa preservada. Nas palavras de Canguilhem (2009, p. 148):

Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.

A cura, partindo dessa perspectiva, deixa de ser um momento para ser um processo de estabelecimento de novas normas de vida. Curar passa a ser o trabalho de subsídio para o reaparecimento de uma nova ordem, uma nova ordem individual. Um tratamento efetivamente clínico, portanto, é aquele que respeita as novas constantes criadas pelo indivíduo para lidar com a situação de sua condição patológica (Canguilhem, 2009). No caso da psicose, esse trabalho pode ser realizado, por exemplo, com a produção delirante do sujeito. O papel do clínico nesse sentido é o de acompanhar o sujeito na construção de uma forma de existência que o sustente, já que, devido às peculiaridades da apresentação de sua demanda, quando ela existe, coloca-se sobre a forma de um pedido de afirmação de existência (Rinaldi Meyer, 2007).

Ora, se há uma distinção, para Canguilhem, entre o normal e o patológico esta não é uma diferença fixa e estática entre a norma e o seu desvio. Poderíamos dizer que o normal, assim como o patológico, não são experiências idênticas para sujeitos diferentes. Ser portador do vírus HIV pode, por exemplo, ser uma experiência de vida totalmente diferente quando tomamos dois sujeitos ao acaso. No entanto, para Canguilhem, não se trata de relativizar ou psicologizar as distinções entre saúde e doença, normal e patológico. Ao contrário, esta distinção só pode ser tributária de um valor individual e não de um dado ou prova empírica. Por isso, não se trata de simples relativização, mas de uma forma de restituir à clínica a condição que a suscitou: ser uma experiência da doença partilhada entre o doente e o médico e não uma técnica de identificação e classificação dos sintomas que foca sua ação na conversão da doença à saúde e do patológico ao normal.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Safatle (2015) assinala que a clínica de hoje procura através da sua especialização, nos ramos da anatomia patológica, da neurociência e da fisiologia experimental, por exemplo, determinar a realidade da doença. Porém, o que esse modelo de clínica esquece, e que não deveria de modo algum esquecer, que essa realidade da doença só é percebida "através da consciência - veiculada primeiro pelo sujeito que sofre - de decréscimo da potência e das possibilidades de relação com o meio. Enquanto modificação global da conduta, a doença é indissociável da restrição da capacidade de ação" (Safatle, 2015, p. 427). Como consequência, é possível depreender que essa compreensão da doença não é idealista ou essencialista, mas sim relacional, e por isso, a capacidade de ação do sujeito doente depende de seu poder de normatividade (produzir novas normas) em relação ao meio. Nada, absolutamente nada, nessa definição nos conduz a pensar a doença como um rompimento do funcionamento normal e esperado do organismo. Mesmo funcionando de modo diferente, é possível ao sujeito, a partir de uma outra posição relacional com meio, viver a doença como uma experiência de valor positivo e não como decréscimo de potência. Segundo Le Blanc (1998), estar doente não é uma experiência marcada pela desordem, pelo transtorno ou pelo desvio da norma. Estar doente é estar próximo de uma experimentação que aumenta e alarga as leis do normal.

Pensando assim, a desordem mental deixa de ser uma desordem para ser a substituição de uma ordem esperada ou apreciada por outra ordem (Canguilhem, 2009). A própria doença mental passa a ser vista como uma saída que compromete a capacidade normativa do sujeito, mas que lhe oferece novas possibilidades de arranjo com o meio (Miller, 1996). A fim de compreendermos o problema da cura dessa maneira, precisamos deixar de tomar a estatística como modelo de referência para a normalidade, precisamos deixar de tomar a saúde mental a partir de parâmetros epidemiológicos. Tomar o sujeito como referência significa abandonar por completo as categorizações sintomáticas de manuais como o 'Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais', que já está em sua 5ª edição, para associar as respostas sintomáticas do sujeito a sua própria história e a seu modo singular de fazer laço no presente. Procurar ser eficaz no tratamento da psicopatologia, através, por exemplo, de métodos abusivos de medicalização, é tentar adequar cegamente o indivíduo a uma norma médica e farmacológica estranha a ele, isto é, a uma linha fraca que se rompe no primeiro impacto de qualquer mudança contingencial da vida. A direção do tratamento deixa de ser guiada pelo sujeito para seguir as medidas ineptas e cruéis de um modelo, que medianiza o homem. Para Calazans e Lustoza (2008, p. 5),

O projeto medicalizante não é só ideológico, mas também político. Político por querer tratar o debate não como um confronto entre posições que disputam qual é a verdade sobre o homem, mas sim como um conflito de interesses democraticamente administrado em Assembleia Legislativas, no qual terá 'razão' quem detiver a maioria de votos.

O apelo cientificista dos tratamentos estritamente medicalizantes desloca a discussão da psicopatologia do seu verdadeiro eixo. A apreciação dos valores atribuídos pelo sujeito a sua condição de patologia é descartada diante de um saber que o objetiva e determina sua localização nos conjuntos pré-estipulados de lugares sociais. A questão, desse modo, tornase política, pois mobiliza as intervenções nos corpos e comportamentos desses sujeitos que passam a ser invadidos por um poder exterior que os relega ao lugar de objeto (Safatle, 2011).

A justificativa parte de um conceito de Saúde Pública e Mental, que insere o sujeito em um discurso de normalidade externo a ele. A saúde deixa, assim, de ser algo intrínseco à vida do indivíduo e à sua capacidade de criação de normas particulares, para se tornar fator de uma contabilidade social (Canguilhem, 2005).

Não é segredo pra ninguém que a metodologia de elaboração do DSM segue as vias 'democráticas' de maioria de votos dos psiquiatras da comissão para o estabelecimento de quais sintomas devem ser colocados em quais transtornos e quais transtornos devem estar inseridos em quais categorias sindrômicas. Não é segredo também que existe um torpe enviesamento dessas escolhas pela influência mercadológica da indústria farmacêutica, para o qual a existência de mais doentes é sinônimo de contabilização de mais lucro. De fato, não se trata mais de um segredo, porque é expresso e publicamente declarado o vínculo que existe entre a força tarefa do DSM e a indústria farmacêutica. Não fica difícil, então, perceber que o que menos há em tais medidas é uma preocupação clínica com o sujeito. Portanto, seguir as vias que a Psicanálise oferece a partir de sua ética para o tratamento da psicose coloca-se totalmente na contramão de movimentos dessa natureza, coloca-se na direção de um respeito pelo lugar do sujeito psicótico no mundo, no seu mundo, pois só existe mundo de cada um, não existe realidade que não seja relativa ao sujeito.

 

A clínica psicanalítica das psicoses: Freud e Lacan

A psicanálise em seu advento contou com a histeria como ponto de partida para uma compreensão daquilo que, de acordo com seu fundador, Sigmund Freud, no campo das patologias, estava situado além de uma causalidade orgânica. As pesquisas dentro do cenário neurótico foram realizadas com afinco tanto por Freud, quanto por seus seguidores; mas, nesse início, pouco se conjecturou dentro da teoria nascente sobre os quadros de psicose. Isso não significa que eles tenham sido negligenciados. A questão que se colocava como obstáculo para uma maior abordagem do assunto na teoria era a concepção de que não era possível estabelecer analiticamente um laço de transferência com os sujeitos psicóticos. E era exatamente essa transferência que se colocava como o motor responsável pela condução da relação entre o analista e o paciente.

A transferência, de acordo com as observações freudianas, consistia em um investimento libidinal pelos pacientes neuróticos na figura do médico, que era incluído em uma série psíquica construída por eles, através das impressões pulsionais estabelecidas durante os seus primeiros anos. Dentro do cenário analítico, essa transferência se apresentava como um mecanismo de resistência por parte do sujeito, visto que era desencadeada sempre que o tratamento de investigação analítica aproximava-se de complexos patogênicos inconscientes importantes para a sua atual condição, interrompendo o percurso do exame iniciado pelo analista. O paciente, nesse caso, elaborava uma rota alternativa (ao investimento no analista) para escapar do encontro com esse núcleo desconhecido, que se estava fora das vistas de sua consciência era porque, decerto, encerrava para ele uma verdade incômoda, que esbarrava em uma resistência ao tentar ser recordada (Freud, 1969a [1912]).

Freud situou a diferença entre a neurose e a psicose na topologia de seus conflitos, que, segundo ele, se davam entre instâncias distintas. Inicialmente, afirmou que a neurose era resultado de um conflito entre o eu e o isso e a psicose o saldo do conflito entre o eu e o mundo externo (Freud, 1969b [1923]). Posteriormente, autenticou o eu como instância psíquica no meio de um só conflito entre o isso e o mundo externo, que seria expressão tanto para a neurose, quanto para a psicose, sendo a posição do eu dentro desse embate a responsável por ditar as diferenças entre uma e outra. Na neurose, o eu ficaria ao lado do mundo externo, escondendo o isso, mas tendo que lidar com suas irrupções desavisadas, que seriam solucionadas através de formações de compromissos (os sintomas, principalmente, assim como os sonhos), que funcionariam como acordos entre os dois querelantes. Na psicose, o eu ficaria ao lado do isso, afastando-se do mundo externo, mas tendo que lidar com a existência de uma realidade fora de si, que demandaria explicação e provocaria o seu retorno a fim de organizá-la, reformulá-la (Freud, 1969c [1924]).

Em termos libidinais, a psicose (que apresenta como principais sintomas a mania de perseguição, a erotomania, os delírios de ciúme e a megalomania) seria explicada por uma fixação da libido na fase narcísica, que provocaria a sua retirada dos objetos externos e o seu consequente investimento no próprio eu do indivíduo (Freud, 1969d [1914]). O retorno dessa libido para os objetos externos, na tentativa de realcançá-los, se daria de forma um tanto ruidosa através do mecanismo da projeção - efetivamente o principal atuante no desencadeamento dos sintomas paranoicos (Freud, 1969e [1917]).

Segundo Freud, o que estava por trás de todo desencadeamento psicótico era um impulso homossexual inaceitável para o sujeito. Em sua principal obra sobre o tema, Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia, de 1911, ele discute as conjunturas do quadro clínico de Daniel Paul Schreber, através da leitura de sua autobiografia. Na medida em que avança em suas observações, Freud estabelece para ele o diagnóstico de demência paranoide e postula uma série de hipóteses sobre sua causa e desencadeamento.

Schreber era um doutor em Direito Penal e no âmbito de sua doença acreditava ser o Redentor da humanidade, por conta de sua posição privilegiada de mulher de Deus, que lhe incumbiria a responsabilidade de reproduzir uma nova raça de homens para Terra. Freud identificou a origem dessa construção delirante nas fantasias homossexuais de Schreber para com seus parentes, mais precisamente seu pai e irmão. Esses impulsos teriam sido projetados na figura de seu médico Flechsig, que se tornaria, posteriormente, em seu delírio, a figura de um perseguidor, interessado em abusar sexualmente de seu corpo. Para lidar com essa nova posição sexual, Schreber divinizou o seu delírio e substituiu Flechsig pela figura superior de Deus, que usaria seu corpo não com a simples e perversa pretensão de abusar sexualmente dele, mas com o objetivo maior de fecundá-lo e, assim, dar origem a uma nova raça de homens, que transformaria a vida na Terra.

A fixação no estado narcísico viria, então, explicar a localização do paranoico em termos das irrupções de suas fantasias homossexuais (por amar um indivíduo semelhante a si mesmo) e das suas consequentes elaborações delirantes de perseguição e megalomania. Freud não esgotou o tema, renunciou aplicar seu método de tratamento nos psicóticos, mas deixou em aberto a possibilidade e a necessidade da elaboração de novos planos de abordagem com esse público. O cenário mudou com a chegada de um novo personagem interessado em aprofundar sua compreensão sobre a psicose, através da identificação de uma ordem original da causalidade psíquica: era Jacques Lacan, psiquiatra de formação, que acabou por se aproximar do projeto freudiano ao se lançar no intento de reintroduzir o conceito de sujeito na ordem do conhecimento (Olgivie, 1991), considerando o fato de esse conceito ter se tornado o rebotalho do discurso científico.

Depois de Freud, alguns psicanalistas se debruçaram sobre o assunto, elegendo a projeção e a homossexualidade como os fins últimos de sua descoberta e acabaram não avançando na criação de um tratamento possível para as psicoses (Lacan, 1998 [1958]). Com isso, é importante ressaltar, não estamos afirmando que Lacan seja o único psicanalista que desenvolveu trabalhos teóricos e clínicos significativos sobre a psicose. Entretanto, sabemos que ele foi o grande responsável pela teorização e demonstração clínica de que o psicanalista não deveria recuar frente à psicose. E foi seguindo as pistas do legado clínico e dos conceitos metapsicológicos freudianos - o famoso "retorno à Freud" que inaugura seus Seminários - que Lacan pôde enunciar os fundamentos da direção da cura nos casos de psicose. Seu ensino, pautado por seus Seminários, foi marcado por um interesse cada vez mais sistematizado sobre a possibilidade de um tratamento psicanalítico das psicoses.

Em sua proposta de "retorno à Freud", Lacan partiu exatamente dos casos de psicose na construção de sua clínica, apontando a necessidade que havia em retificar algumas limitações impostas durante anos ao tratamento desses pacientes não só pela psicanálise, mas também e principalmente pela psiquiatria. Foi assertivo ao dizer que não se deveria recuar diante do tratamento da psicose e que seria preciso reelaborar o saber da psicanálise, em seus conceitos e práticas, a fim de expandir o alcance de sua clínica. O seu ponto de partida foi sedimentar, no encalço de Freud, a falta de continuidade entre a neurose e a psicose a partir da noção de estruturas clínicas. Essas seriam três: a neurose, a psicose e a perversão. Dentro delas se desencadeariam as relações do sujeito com o seu meio social, de modo a tornar possível a constituição de uma história singular; livre, mas forçada pelo modelo de relação estabelecido pelo sujeito com o Outro no momento da sua entrada no campo da linguagem. Foi partindo dessa concepção que Lacan (1998 [1958]) definiu uma questão preliminar ao tratamento desses casos.

Para ele, existia uma determinação significante nas psicoses e ela tinha relação com a foraclusão efetuada pelo psicótico - na sua passagem pelo Complexo de Édipo - do significante do Nome-do-pai, responsável pela amarração dos outros significantes em uma cadeia de sentido (Miller, 1996). "Foraclusão é um neologismo que se utiliza em português para designar que não há inclusão, que o significante da lei está fora do circuito, sem deixar, no entanto, de existir, pois o que está foracluído do simbólico retorna no real" (Quinet, 2009a, p. 15). Assim, foraclusão não é propriamente uma tradução do termo francês forclusion para equivaler ao termo freudiano Verwerfung. É antes, uma interpretação.

Em sua tese, defendida no ano de 1932, Lacan revela o diferencial de sua abordagem em relação ao espírito científico da época, ao retomar a questão esvaziada - porque rejeitada pelo núcleo comum da área psiquiátrica - dos sentidos elaborados pelo sujeito que sofre no desenrolar de sua condição. Indo de encontro a uma concepção geral do inatismo, que caracterizava as conclusões vigentes da psiquiatria, ele vai situar o indivíduo como uma atividade dentro de uma estrutura social, responsável por constituir o meio relacional de sua existência e por disponibilizar o terreno de significações que darão sentido a sua história (Olgivie, 1991).

Para isso, ele lançará mão de um conceito já explorado dentro da psiquiatria e bastante utilizado no senso comum: a personalidade. Seu intento era lapidar esse conceito para, através dele, ampliar o nível de compreensão da constituição do sujeito, ao localizá-lo em sua própria história - responsabilizando-o, assim, pela sua orientação, ao implicá-lo nas relações que ele estabelece com o meio e que determinam as características de sua presença no mundo. O seu objetivo principal era criar uma ciência da personalidade para congregar os fundamentos da posição desses estudos. De acordo com ele, essa ciência teria por objeto o estudo genético das funções intencionais, nas quais se integram as relações humanas e suas tensões de ordem social (Lacan, 2011 [1932]). Quando ele se refere à genética nesse contexto, é importante salientar que ele não se refere à ordem de uma hereditariedade, mas sim aos processos constitutivos da gênese, enquanto origem e formação, da questão.

Sendo assim definida a ciência da personalidade, pode-se ver claramente a natureza de nossa tese: ela se sustenta na afirmação doutrinal de que os fenômenos mórbidos, que a psicopatologia situa dentro do quadro da psicose, dependem dos métodos de estudo próprios aos fenômenos da personalidade (Lacan, 2011 [1932], p. 315).

Essa ideia posteriormente será abandonada, mas nesse instante de sua pesquisa será fundamental para sustentar a natureza de seu empreendimento; principalmente, pelo apelo que a concepção de ciência faz por um método e que ele vai atender ao propor e justificar a utilização do método compreensivo, já empregado por outros autores, como alicerce de sua análise sobre a psicose. A partir desse método, Lacan vai se debruçar em um processo investigativo para desvendar os vínculos etiológicos e significativos a partir dos quais a psicose se relaciona à história vivida do sujeito e ao seu caráter individual, em suma, a sua personalidade. Por esse motivo, em sua tese, realizará uma descrição concreta de um caso e não, como é comum no âmbito de sua profissão, que superestima o valor da generalização, uma síntese descritiva de vários casos desprovida de seus traços específicos (Lacan, 2011 [1932]).

Ainda em relação à psiquiatria, Lacan vai delimitar a dicotomia organogênese-psicogênese existente no campo das psicopatologias como insuficiente para explicar a problemática em questão. De acordo com a organogênese, a causa das psicoses é passível de ser localizada na dimensão orgânica do corpo, sendo impertinente qualquer associação com outros atributos da vida do sujeito. Para a psicogênese, o quadro psicótico seria resultado ou de um fator constitucional (segundo a escola francesa), ou de uma reação a uma situação vital (segundo a escola alemã), ambas sem nenhum ponto de relação com a dimensão orgânica (interna) do indivíduo (Lacan, 2011 [1932]). A discussão, portanto, pendia ora para o lado de uma hereditariedade, ora para o lado de uma influência do meio. Lacan, por sua vez, se afastava da briga. Para ele, nas palavras de Olgivie (1991, p. 77):

É o aspecto dinâmico da ideia da personalidade concebida como um ciclo comportamental comandado por um 'meio' [...] comportando, por conseguinte, uma lógica temporal, evolutiva, articulada em 'momentos' que permite, entre outras coisas, ultrapassar a relação estática entre um interno e um externo ao nível do indivíduo.

O seu objetivo era realizar uma interpretação dos fenômenos mentais do delírio a partir de um levantamento o mais pleno possível da história do indivíduo. Essa história, avaliada por intermédio de uma tendência concreta, revelaria a orientação psíquica do sujeito a partir dos seus comportamentos diante dos objetos do meio. Com o devido estabelecimento do ponto de ligação do delírio com o meio social, seria, então, possível definir a sua condição e estrutura. Lacan localizou toda essa dinâmica nos fenômenos da personalidade, abordando-os a partir de três polos: o estrutural, o individual e o social; sendo sua intenção atingir os polos individual e estrutural através da dimensão social embutida dentro da construção de uma psicose (Lacan, 2011 [1932]). O caso Aimée, apresentado em sua tese, ilustra de forma bastante clara o conjunto das proposições de seu trabalho (Olgivie, 1991).

Aimée era uma filha de camponeses, casada e mãe de um filho. Trabalhava na administração de uma companhia ferroviária e já havia sido internada em uma casa de saúde pelo período de seis meses, antes de ser acompanhada por Lacan, que esteve em contato com ela durante um ano e meio, no Asilo de Sainte-Anne. Ela havia sido encaminhada para esse hospital após passar dois meses em uma prisão por ter esfaqueado uma atriz, que, segundo seu discurso, há muitos anos zombava dela e a ameaçava, contando com a associação de um certo acadêmico em suas importunações. Seu delírio combinava temas de grandeza e perseguição. Lacan deteve-se sobre esses temas e suas ligações afetivas, assim como sobre os exames e antecedentes físicos da paciente, seu comportamento no asilo e suas produções literárias dentro dele. Descartou vários diagnósticos e chegou na paranoia, através da identificação de um delírio de interpretação.

Ele escolheu o termo paranoia de autopunição para se referir ao quadro clínico de gênese social que identificou através da história de Aimée: O diagnóstico se assentou na estrutura da personalidade anterior do sujeito e situou sua causalidade na acumulação de fatores orgânicos, afetivos e vitais (Lacan, 2011 [1932]). Havia a causa eficiente - necessária, mas não suficiente -, as causas ocasionais e a causa específica - imprescindível e associada à predisposição da personalidade do sujeito (Olgivie, 1991). Lacan, em sua tese, inaugurou como novidade para o campo de estudo das psicoses: as anomalias de comportamento sexual, o papel eletivo de certos conflitos e o elo desses conflitos com a história infantil.

Foi assim que ele se aproximou da Psicanálise. Dentro do que vinha sendo produzido pelos psicanalistas pós-freudianos, Lacan, com a passar do tempo, reconheceu vários equívocos, que o fizeram se posicionar criticamente diante de inúmeros trabalhos. Isolado, construiu uma nova forma de leitura das obras de Freud, com o auxílio da Linguística e da Antropologia para a formulação de suas proposições. Acusava os pós-freudianos de negligenciarem pontos importantes da obra do criador da psicanálise, submetendo-se a um ideal de bem-estar e integração egoica incompatíveis com a proposta freudiana. Um dos pontos que sinalizou como pouco compreendido por esses estudiosos foi o próprio Complexo de Édipo, apesar de sua expandida exploração e banalização. Foi nele onde Lacan situou a trama crucial para a definição da localização estrutural dos sujeitos. Por isso, estudou-o detidamente, pois avaliava que"abandonar o Complexo de Édipo seria fazer da Psicanálise um delírio" (Julien, 1999, p. 30).

Ele compreendeu, antes de tudo, que é a travessia pelo Complexo de Édipo que permite a entrada do sujeito na ordem simbólica, instituída como o lugar da linguagem e dos discursos que antecedem a existência do sujeito. Ele acontece em três tempos lógicos. No primeiro, a criança é objeto de desejo da mãe, um Outro absoluto, que absorve a sua demanda sem deixar espaço para o advento de um desejo, que lhe seja próprio. No segundo, inicia-se o processo de separação entre os dois, que permitirá à criança desalienar-se em relação ao discurso desse Outro. É o momento da entrada do Nome-do-Pai, significante responsável por operar o corte que promove o advento do sujeito no mundo da lei. No terceiro tempo, ocorre o declínio do Complexo e a instalação da significação pela lei fálica, que orientará daí por diante o desejo do sujeito (Quinet, 2009a), que guiará sua fala, carregando a marca desse desejo, que é inconsciente, ou seja, fundado a partir das articulações da cadeia significante: a responsável por sustentar, através de seus equívocos de significação, a incompletude do ser, nos seus dizeres e saberes. Isto é, um desejo que é fundado ali onde tudo é linguagem.

Existem diferentes modos de atravessar o Complexo de Édipo, cada qual com um tipo distinto de resposta negativa à castração. Há o recalque, o desmentido e a foraclusão. Pelo recalque, que nega a castração, mas a conserva no inconsciente, responde o neurótico; pelo desmentido, que a nega, mas a conserva no fetiche, responde o perverso (Quinet, 2009b); e pela foraclusão, que ignora a castração responde a psicose. Lacan situa nessa foraclusão simbólica, promovida pelo psicótico, quando de sua passagem pelo Complexo de Édipo, a questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (Lacan, 1998 [1958]). Se é por esse Complexo que o sujeito tem acesso à entrada no mundo das significações, a partir de seu encontro com a metáfora paterna (Nome-do-Pai), - que amarra os significantes uns nos outros a fim de induzir os efeitos de sentido - foracluindo-se essa metáfora, obtém-se uma linguagem por onde deslizam metonimicamente os significantes sem fixação de sentido e, por conseguinte, sem compartilhamento comum.

O delírio, então, surge como um processo metafórico substitutivo para a metáfora paterna. Segundo Caligaris (2013), é a construção deuma metáfora pseudopaterna. É por meio dele que o sujeito institui um vocabulário capaz de defendê-lo das investidas daquilo que não tem nome e que, por não ter nome, é impossível de suportar. O Real, essa dimensão amorfa e absoluta, passa a se apresentar como o lugar que recebe o retorno daquilo que escapa ao Simbólico e que se define como sintoma do sujeito, a alucinação é um exemplo. Freud (1969f [1911]) já havia apontado o caráter de cura imerso dentro da construção delirante. Essa cura consiste na tentativa que o psicótico realiza para barrar e apaziguar o gozo que o invade. É um modo de cifrá-lo a fim de diminuir a sua incidência sobre o seu corpo. O papel do analista, em um caso de psicose, é, portanto, de testemunha. Se a cifra que o sujeito atribui ao gozo lhe protege, o analista não pode contrariá-lo, decifrando-o (Quinet, 2009b).

Assim renunciaríamos ao empenho vão de convencer o doente do desvario de seu delírio, sua contradição com a realidade objetiva, e em troca encontraríamos no reconhecimento desse núcleo de verdade um solo comum sobre o qual pode se desenvolver o trabalho terapêutico (Freud, 1969g [1937], p. 156).

Apontando a relação da psicose com a linguagem, Lacan abriu as portas para um novo tipo de abordagem para esses casos. Seu esforço foi fazer da psicose uma questão de sujeito. E sua atitude acabou criando uma nova teoria dentro da Psicanálise: o papel do analista foi revisto e os caminhos do tratamento foram retraçados. O destaque inicial lacaniano foi sobre a escuta, que precisava ser desenvolvida junto a esses sujeitos. Antes de tudo, ele se dispôs a ouvir esses sujeitos, a acompanha-los em suas produções, o que o levou a nomear a função do analista como a de 'secretário do alienado' (Lacan, 2008 [1955-1956]). Este serviria de testemunha do advento do sujeito ali na sua própria produção delirante, dispensando os movimentos interpretativos e o seu posto de suposto saber. Para a psicose, não há nenhum enigma, nenhum x sobre esse lugar do gozo, do qual se supõe o saber. O psicótico, principalmente o paranoico, tem certeza que o Outro sabe sobre ele e é ao redor disso que gira todo seu processo de sofrimento.

O analista no lugar de saber, no posto de Outro gozador só ameaçaria ainda mais o psicótico, o invadiria ainda mais com um gozo devastador. Segundo Hanna (2006, p. 71), ao invés disso, "ele acompanha o sujeito em seu trabalho sempre atento ao momento em que se faz necessária a introdução de uma manobra transferencial que visa reduzir o saber-gozo, afastando o sujeito de sua própria abolição". Portanto, o movimento inicial do psicanalista seria se destituir do lugar que a Psicanálise o colocou a fim de se adaptar a uma clínica possível para a psicose. Seria menos interpretação e mais trivialização. Esta última consiste em uma manobra feita pelo analista com vistas a esvaziar o gozo de uma formação delirante que ameace o sujeito, que sinalize provocar atuações e até mesmo passagem ao ato. Ela exige do analista um desprendimento no tocante a querer dar sentido através da interpretação, seu lugar passa a ser o de destinatário do paciente, efetivamente seu secretário, que escuta tudo, ao pé da letra, mas dá mais atenção a uma coisa que a outra, atitude que só pode ser sustentada prudentemente no nível do vínculo transferencial (Monteiro e Queiroz, 2006). Porque é possível estabelecer vínculo com o psicótico, desde que não reforcemos o lugar de ameaça do Outro.

Na clínica da psicose, diferente da clínica com neuróticos - onde o psicanalista através da negação da demanda faz advir o desejo de um sujeito, que já se apresenta ali dividido pelo seu sintoma -, o movimento é de permissão e de estímulo à emersão desse sujeito. A aposta da psicanálise é que o psicótico pode sair do lugar de objeto que o Outro lhe coloca e isso só pode ser realizado com um efetivo movimento clínico de atenção e suporte a esse advento, de valorização da produção ativa de sentido diante do Outro, aliás, de um des-sentido particular ao próprio sujeito e sem exigência de significação, sem necessidade de tradução para a língua comum, visto que o que o psicótico faz é justamente evidenciar o que nós todos somos: vítimas da linguagem, do Outro. O psicótico sabe que ignora a língua que fala, enquanto nós supomos conhecê-la (Miller, 1996). Mas o fato é que também somos falados, que o Outro também nos subjuga, mas nós nos utilizamos de outras defesas contra isso e a principal delas é a ignorância dessa ignorância, é o nosso próprio inconsciente, que no psicótico se encontra a céu aberto (Soller, 2007).

Arriscamos dizer, segundo uma inversão da lógica, que a psicose trabalha no avesso do percurso neurótico na análise. Se com este a manobra consiste em fazer surgir um saber no lugar da verdade, na psicose o percurso consiste em fazer surgir uma verdade ali onde só há saber, uma verdade que possa ser articulada pelo sujeito. Em outros termos, podemos dizer que o neurótico parte de um trabalho simbólico em direção ao seu Real, e o psicótico parte do Real para se encontrar com as possibilidades de suplência que o Simbólico lhe oferece para fazer uma devida ancoragem do gozo. Enquanto a transferência, como "promessa de significação" (Miller, 2002), parte do analisando na clínica das neuroses; na psicose, a transferência parte, muitas vezes, do analista e sem promessa de significação. Isso por conta da demanda, que no neurótico é do sujeito e na psicose, na maior parte das vezes, é da família ou da sociedade. O trabalho com os psicóticos se dá geralmente nas instituições para onde estes são levados, desse modo, o estabelecimento de um vínculo com esses indivíduos é muito mais desafiador para o psicanalista e requer muito tato e sensibilidade clínica, além de respeito aos seus espaços e diferentes tempos de resposta.

Valorizar a condição de sujeito do psicótico significa considerar sua história e sua capacidade de escolha. Como afirmam Monteiro e Queiroz (2006, p. 3), "ali onde está o indivíduo com sua história, com seu delírio, o sujeito de direito deve advir, o que o torna responsável pela sua condição de existência". O caso clínico, portanto, torna-se um instrumento valioso no trabalho com esses indivíduos, principalmente considerando a sua vinculação com os serviços multiprofissionais de saúde, onde a variabilidade de saberes pode significar uma variabilidade de invasões, se não existir o devido aprofundamento nos "divinos detalhes" da história clínica de cada um. O tratamento dos psicóticos, como em qualquer outro tratamento, deve favorecer a implicação do sujeito em seu processo de cura, pois só assim ela se torna possível. De acordo com Soller (2007, p. 82),

[...] trata-se de fazer reconhecer na loucura, por mais incapacitante que ela seja no tocante aos vínculos sociais, não um simples déficit dos aparelhos do corpo, como quer que este seja concebido, mas um fenômeno do sujeito com tudo o que esse termo implica de responsabilidade ineliminável.

 

A direção da cura pela psicanálise lacaniana

A psicanálise, apesar de atuar no nível da estrutura, não trabalha com o determinismo mecanicista, por esse motivo, não responde à causalidade mecânica do psiquismo, antes exige do sujeito sua própria resposta e responsabiliza-o por esse ato. Ela abre o espaço para uma eleição, mesmo que esta seja, em certa medida, forçada pela própria história do sujeito (Miller, 1997 [1989]). Sua ética é uma ética do desejo, do bem-dizer e das verdades. Ética do desejo porque contrária à felicidade em sua face de política normatizada, ou seja, à política do bem-estar; e porque é infiel ao princípio do prazer, na tentativa de favorecer o acesso do sujeito àquiloque há de mais real em seu sintoma. Ética do bem-dizer porque está em relação direta com a palavra que é responsável por um efeito, palavra que é fundante e que sustenta a emergência da escolha, da realização de um ato implicadoem seu desejo (Miller, 1996). Ética das verdades porque em rompimento com a regularidade, porque entregue ao não sabido, à falta-de-lei, à existência ali onde não se sabe nada, onde o saber foi interrompido (Badiou, 1995).

A Psicanálise mobiliza o sujeito da ciência, que surgiu de um contexto epistemológico específico onde a verdade e o saber foram separados. Ela trabalha nessa fronteira com a verdade, que é sempre semi-dizer, da ordem da fala, não-toda, mas que se dirige, no curso da análise, em direção ao saber possível sobre o Real, de um modo que esse saber (sobre sua própria impossibilidade) passe a ocupar a posição da verdade (Julien, 1999). Nas palavras de Badiou (1995, p. 80), essa "verdade perfura os saberes, lhes é heterogênea, mas é também a única fonte conhecida de saberes". É um atributo de todos, mas não deixa de ser relativa à singularidade, pois só pode existir dentro de uma construção que seja subjetiva.

Lacan (1986 [1953-1954], p. 22) dando o destaque necessário a essa singularidade diz que:

O progresso de Freud, sua descoberta, está na maneira de tomar um caso na sua singularidade. Tomá-lo na sua singularidade, o que quer dizer isto? Quer dizer essencialmente que, para ele, o interesse, a essência, o fundamento a dimensão própria da análise, é a reintegração, pelo sujeito, da sua história até os últimos limites sensíveis, isto é, até uma dimensão que ultrapassa de muito os limites individuais.

O acesso a esse Real dentro da análise não se encontra numa dimensão comunicativa, ele só pode ser realizado no nível do encontro, por isso, mais do que trabalhar com palavras, mais do que falar, ou ouvir, na análise se atua, dentro da relação psicanalítica se atualiza o inconsciente e o sintoma, a partir dela o sujeito equivoca os seus sentidos, na busca mesmo de compreendê-los. A clínica psicanalítica não é a clínica do excesso dos sentidos e das significações, o analista não oferece sentido, mas se dispõe a fazer parte da cena psíquica do analisando, que, através do mecanismo transferencial, recria a sua fantasia do inconsciente em torno da figura do analista, que sustenta, somente a partir do furo do seu lugar, essa construção (Cottet, 1995). Porque antes de tudo, a ética, que Miller (1997 [1989]) afirma ser a "dimensão constituinte da experiência analítica" precisa ser relativa ao desejo do analista. E é esse desejo que sedimenta a transferência.

O desejo do analista é fazer advir o desejo do analisando, ele consiste em sustentar o desejo do Outro, em ocupar o seu lugar, com a ressalva de não se identificar a ele (Miller, 2002). Seu papel, portanto, é fazer semblante desse Outro, sendo sua intenção permanecer onde ele - como sujeito - já chegou através do caminho de sua própria análise, ou seja, ali mesmo no lugar de não-saber. Não respondendo à demanda de felicidade do sujeito, o analista permite o advento de seu desejo, isto é, a emergência de seu vazio, que ele, enquanto analista, não procura preencher. O seu saber é sempre suposto e o seu lugar é de objeto (no lugar do objeto a ele opera como causa do desejo e como resíduo da operação analítica. Ele deve ser abandonado no final do percurso e não introjetado). Sua condição de sujeito só deve existir na medida em que ela possa conservar o seu desejo de analista, desejo prevenido que lhe permite não servir de ideal para o analisando, mas de suporte para a busca de sua realização enquanto ser-no-mundo. É assim que ele sustenta o ato analítico, propiciando o encontro do sujeito com sua própria interrogação (Veigh, 2001), pois só é a partir da posição de ignorância, que o sujeito se engaja na pesquisa de sua verdade. Nas palavras de Dunker (2012, p. 109),

[...] só há progresso possível da palavra, e consequentemente da experiência analítica se for possível localizar um aspecto de irrealização no sujeito, que chama o ser à sua realização. Este buraco no real é introduzido pela palavra. Ele não está sempre ali, desde o início; às vezes, é a própria experiência da análise que introduz.

Tomada como uma experiência dialética, a análise abre espaço, através da transferência, para um trabalho intelectual e afetivo com o sujeito em direção à realização de seu ser (Dunker, 2012). Trabalho intelectual porque segue as vias da interpretação do desejo enquanto material de trabalho na análise e afetivo porque se mantém às voltas com o jogo de posições e projeções que são mobilizadas durante o processo. Segundo Cottet (1995, p. 123), "[...] a direção da cura não dá ao analista o papel de mentor, este só tem um desejo: o de ver o enfermo tomar as decisões por si próprio". Desse modo, a idealização do analista como fonte de saber e referência de verdade não deve nunca ser estimulada, pois vai totalmente contra a ética da Psicanálise. Sobre essa questão, Miller (2002, p. 89) é bastante enfático:

Isso é o que constitui o desejo do analista, desejo muito singular que Freud localizou em um momento da história, o desejo do analista de não se identificar com o Outro, de respeitar o que Freud, em sua linguagem, chama de individualidade do paciente, não ser um ideal, um modelo, um educador, e sim deixar espaço para a emergência do desejo do paciente.

Diante do sintoma, que se apresenta como a relação de compromisso que o sujeito estabelece com seu inconsciente para conseguir lidar com sua existência própria, o analista não pode simplesmente retirá-lo, apagá-lo, eliminá-lo, pois isso seria impedir o espaço mesmo de advento do sujeito. O que o analista tem para oferecer em substituição disso que já é uma formação substitutiva na economia psíquica do sujeito? Nada. O analista não tem a resposta, não tem o mapa. Sua ética, portanto, deve mantê-lo longe de um furor sanandi, de uma cura que simplesmente sare e sane, pois não há nada que diga mais sobre o sujeito que o seu próprio sintoma. Portanto, é através dele que o analista vai guiar o analisando em seu trabalho (árduo) sobre a letra que lhe representa.

 

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Submetido: 07/03/2016
Aceito: 14/06/2016

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