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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.10 no.2 São Leopoldo jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2017.102.12 

ARTIGOS

 

Prática do Psicólogo na Atenção Básica - SUS: conexões com a clínica no território

 

Practice of psychologist in Primary Health Care - SUS: connections with the clinical in territory

 

 

Marta de Lima Alexandre; Roberta Carvalho Romagnoli

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Itaú, 525, Edifício Redentoristas, 1º, subsolo, Dom Cabral, 30535-012, Belo Horizonte, MG, Brasil. martalimaalexandre@gmail.com, robertaroma@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este estudo investiga as possibilidades e os desafios da prática clínica do psicólogo no cotidiano das Equipes de Saúde da Família (EqSF), a partir do trabalho interdisciplinar e da promoção de saúde em duas comunidades da região metropolitana de Belo Horizonte. Para tal, no contexto da Estratégia de Saúde da Família (ESF), analisa a relação do psicólogo com essa estratégia, cartografando os efeitos de sua inserção na Atenção Básica (AB), enfatizando sua atuação no NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família) e identificando seus pontos de represamento e seus pontos de invenção. Esta pesquisa tem, ainda, como marco teórico, a Esquizoanálise, e, como metodologia, a cartografia, percebendo a realidade e a subjetividade como compostas por uma multiplicidade de linhas que se entrelaçam. Os procedimentos metodológicos são a imersão em campo e a entrevista semiestruturada. Na perspectiva cartográfica, foram entrevistados cinco membros da EqSF, três gestores e uma usuária. Nesse contexto, investigamos os elementos heterogêneos que se conectavam aos processos de subjetivação; tendo como foco a prática clínica na relação interdisciplinar na AB. Concluímos que a complexidade da rede SUS e sua expansão apontam para desafios na inserção da psicologia na AB articulada ao NASF e para a necessidade de contribuir para potencializar sua atuação no plano ético-político.

Palavras-chave: Atenção Básica, prática clínica, interdisciplinaridade.


ABSTRACT

This study investigates the possibilities and challenges of clinical practice of psychologists in the daily life of the Family Health Teams (EqSF), from the interdisciplinary work and health promotion in two communities in the metropolitan region of Belo Horizonte. To this end, in the context of the Family Health Strategy (FHS), it analyzes the psychologist's relationship with this strategy, charting the effects of their inclusion in Primary Health Care (AB), emphasizing its operations in NASF (Support Center for Health) and identifying their points of impoundment and their points of invention. This research also has the theoretical framework and the schizo as the mapping methodology, perceiving reality and subjectivity as composed of a multiplicity of lines that intertwine. The methodological procedures are soaking in the field and the semi-structured interview. In the cartographic perspective, we interviewed 5 members EqSF, 3 managers and 1 patient. In this context, we investigated the heterogeneous elements that were connected to the subjective processes; focusing on clinical practice in the inter-disciplinary relationship in the AB. We concluded that the complexity of the SUS and its expansion point to challenges in the psychology insertion in the AB articulated to NASF and the need of contribution to enhance its performance in the ethical-political plan.

Keywords: Primary Health Care, clinical practice, interdisciplinarity.


 

 

Sobre a inserção do psicólogo na Atenção Básica

A constituição de 1988, reflexo de ampla mobilização social, instituiu um sistema de seguridade social, amparado na previdência, na saúde e na assistência social, que reconhece oficialmente o direito às estruturas democráticas e à proteção social para toda a população, inclusive para os não-segurados. No campo da saúde, há uma mudança da concepção clássica de atenção à saúde, com seus fundamentos assistencialistas e curativos, para uma visão que se sustenta em um conceito ampliado de saúde, entendida como condições de vida. Essa mudança de paradigma se viabilizou através da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como um de seus objetivos principais a reorientação do modelo assistencial a partir da Atenção Básica, atuando no nível primário de atenção através da Estratégia de Saúde da Família (ESF).

Compreender o processo de constituição da ESF a partir da criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF é fundamental para entender como o profissional de psicologia vem se integrando ao SUS, especificamente à AB. No ano de 2008, com o intuito de fortalecer a ESF, foi criado o NASF com o objetivo de prestar apoio, ampliar a capacidade e competência das Equipes de Saúde da Família (EqSF), compartilhando práticas, atuando no território, contribuindo com um olhar diferenciado sobre a família, os indivíduos, a comunidade e ampliando as ações de saúde locais articuladas à qualidade da atenção.

A partir do ano de 2010, com a Portaria 4.279, de 30 de dezembro, se estabelecem as diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde (RAS) do SUS, instituindo uma rede de níveis de atenção em conexão, os quais se articulam horizontalmente (Brasil, 2010). Rede que "[...] orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade, da humanização, da equidade e da participação social" (Brasil, 2012, p. 19-20). Nessa perspectiva, o nível de atenção básica ou primária possui densidade de incorporação singular, adequado para atender aos problemas prevalentes da população e é considerado a porta principal de entrada na rede de saúde e o centro da comunicação.

De acordo com esses objetivos o NASF define- se como "[...] uma estratégia inovadora que tem por objetivo apoiar, ampliar, aperfeiçoar a atenção e a gestão da saúde na Atenção Básica/ Saúde da Família" (Brasil, 2009, p. 13). Baseia- -se na cogestão do desenvolvimento de ações interdisciplinares e intersetoriais com vistas à promoção, prevenção e reabilitação da saúde, com ações voltadas para a educação permanente e a promoção da integralidade e da organização territorial dos serviços de saúde (Brasil, 2009). Isso significa promover reuniões para gestão compartilhada e matricial do cuidado na AB, junto às EqSF, com o objetivo de realizar as seguintes ações de apoio: discutir casos clínicos; realizar atendimentos compartilhados; realizar educação permanente sobre temas relevantes para as equipes (demanda explícita ou percebida/pactuada); participar da construção de protocolos com as equipes; dar suporte na implantação/incorporação de novas práticas, como, por exemplo, grupos terapêuticos e educativos, entre outras técnicas; dar suporte na construção de projetos terapêuticos singulares; dar suporte no manejo de questões do território (Brasil, 2013).

O psicólogo não é membro efetivo das EqSF no país, com exceções, mas se articula com as mesmas equipes por meio do NASF, criado como forma de aumentar o acesso e a qualidade da AB. Esse processo de inserção da psicologia nas políticas públicas e, especialmente, no campo da saúde na ESF proporcionou ao psicólogo outras práticas clínicas para além do consultório e de uma prática que não privilegiasse apenas a lógica secundária e terciária da rede e/ou a clínica tradicional. No fazer do psicólogo no NASF, a necessidade de conhecer o território passou a ser uma prioridade, extrapolando o setting do consultório privado, que usualmente tem por clientela as camadas médias ou altas da população. Nesse contexto, esse profissional passou a experimentar uma prática institucional complexa, que ampliou o acesso da população. Presenciamos ainda um contingente grande de psicólogos no campo da saúde, uma vez que é uma das áreas nas quais mais nos inserimos como veremos em seguida.

Macedo e Dimenstein (2011) destacam que as maiores articulações dos profissionais da psicologia ocorreram no campo da saúde, iniciadas nos anos de 1980, através dos movimentos da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica. Em seguida, vieram o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, e a Lei Orgânica de Assistência Social, em 1993. Essas movimentações no campo das mobilizações social e política para afirmação de direitos propiciaram a ampliação do ingresso do psicólogo nas políticas públicas no Brasil, com maior inserção na saúde pública. Os autores apontam, também, a prioridade das políticas de saúde na criação das equipes multiprofissionais no processo de valorização dos profissionais da saúde e, ainda mais, do psicólogo.

Todavia, entendemos que a psicologia precisa repensar a constituição de um novo tipo de fazer clínico para sua atuação na AB/ESF, na qual emerge uma dimensão coletiva em outro plano da produção de subjetividade, diferenciado dos consultórios e clinicas particulares e/ou públicas. Autores da psicologia se referem ao perfil clínico dos profissionais na AB como uma transposição da clínica tradicional para as instituições públicas e problematizam a formação dos psicólogos, a influência dos modelos de atendimento próprios da clínica médica, os compromissos ético-políticos que têm sido tomados em suas ações e suas elaborações teóricas-conceituais (Romagnoli, 2006; Spink, 2006; Traverso-Yépes et al., 2009; Ferreira Neto, 2011).

Essa atuação requer abertura para outro tipo de exercício clínico, de um setting dentro-fora do espaço tradicionalmente concebido pelo psicólogo, atento às relações de força das micro e macropolíticas que se entrelaçam às políticas de saúde, que rompem sentidos e desarticulam o que está estabelecido. Nesse contexto, discutimos a seguir resultados parciais da pesquisa que efetuamos e como o fazer clínico do psicólogo se insere na ESF, que impasses e desafios este profissional enfrenta e que pontos de produção e de invenção são engendrados. Vale lembrar que com a implantação do SUS e da ESF pelo Ministério da Saúde, como política nacional para firmar a atenção básica, os distritos pesquisados passaram a dispor, nesses últimos 17 anos (1998-2015), da organização de vários equipamentos de saúde, entre eles, as UBS e as EqSF, todas integradas à ESF, e em seguida, os CAPS (nível secundário) e o NASF. A partir da implantação da AB nos mesmos, foi possível rastrear efeitos dessa política de saúde imbricada à prática do profissional de psicologia no NASF, que passa a participar de um trabalho em equipe interdisciplinar, de reuniões para problematizar situações das EqSF, visitas domiciliares, palestras, ações educativas e de promoção, além das assistenciais. Parte dessa cartografia é apresentada a seguir.

 

Sobre a produção dos dados

Estudar a atuação do Psicólogo no NASF é também pensar os processos de subjetivação que se fazem nos encontros com o território, com as equipes, os outros profissionais e os usuários, embora a subjetividade não seja domínio exclusivo dessa ciência nem remeta exclusivamente a uma interioridade. Para pensar essas relações escolhemos a esquizoanálise, proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que dispõe da ferramenta metodológica da cartografia para mapear as práticas e seus efeitos produzidos nos encontros no território da AB. Esses autores entendem a subjetividade composta por vários elementos sendo que esta se apresenta como complexa e processual, deslocando-se por conexões externas ao sujeito. Segundo Deleuze e Parnet (1998), linhas de natureza diversas, ora duras, ora flexíveis, ora de fuga, compõem e atravessam os indivíduos e os grupos, coexistindo em movimentos distintos. As linhas duras organizam a realidade, classificando e sobrecodificando os sujeitos; as linhas flexíveis possibilitam o afetamento da subjetividade e criam zonas de indeterminação, permitindo-lhe agenciar, enquanto as linhas de fuga trazem o novo, exatamente a partir desses agenciamentos que são feitos nas relações. Essas linhas estão entranhadas, imanentes, e seus agenciamentos possuem funcionamentos diferentes. São as tramas compostas por essas linhas que buscamos rastrear em nossa pesquisa.

Na realidade, há, de fato, uma multiplicidade de movimentos dessas linhas, movimentos transversais e nos interessam os processos nos quais estão engendrados. Durante o trabalho no campo de pesquisa, sentimos as dificuldades dos profissionais da psicologia em relacionar os efeitos do atendimento individual e da psicoterapia, presentes de maneira dominante em sua formação, com as ações no território, nos grupos, como veremos a seguir, práticas muitas vezes necessárias para se buscar a qualidade de vida, um dos sustentáculos da AB. Essas ações podem emergir da processualidade dos diversos elementos advindos do processo de subjetivação, de um sujeito que não é abstrato e isolado dos contextos, do encontro com grupos, do contato nas casas e junto aos profissionais das EqSF.

De acordo com Kastrup (2007), a cartografia acompanha processos e não entende que a realidade é dada, mas sim engendrada. Nesse sentido, é uma metodologia na qual os dados são produzidos e não colhidos. Nessa direção, as estratégias para o procedimento metodológico de produção dos dados foram captadas a partir da relação com o contexto, acompanhando os processos no campo da AB. Os instrumentos utilizados foram a imersão no campo de pesquisa e as entrevistas semiestruturadas, envolvendo as duas psicólogas do NASF, uma ACS, um médico do PSF, uma pessoa usuária da saúde mental do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e da AB, uma enfermeira da AB, dois gestores da AB e um gestor do planejamento. A imersão no campo se deu por visitas aos serviços, acompanhamento de reuniões e também pelo contato das pesquisadoras através de um projeto de Ensino e Extensão com adolescentes na área da saúde do Departamento de Medicina Preventiva e Social, da Faculdade de Medicina da UFMG. Esse projeto, executado durante os anos de 2014 e 2015. Este propiciou inicialmente, várias idas ao município e o contato com técnicos e gestores dos territórios estudados.

Romagnoli (2009) afirma ainda que a cartografia vai contra o reducionismo, constituindo-se como uma ferramenta de investigação importante para abarcar a complexidade, as indeterminações que a compõem, conhecendo o coletivo de forças presentes nas situações pesquisadas. De acordo com Romagnoli e Paulon (2010, p. 98), esta:

[...] pode lançar mão de diferentes procedimentos e técnicas de pesquisa, entre elas, inclusive, levantamentos epidemiológicos, sistematização de inventários ou técnicas de quantificação. Por que não? Associados ao curso da pesquisa, de acordo com as análises coletivas, em busca dos conflitos que emergem dialeticamente nos analisadores, mais um dos dispositivos que problematizam, transversalizam o campo da análise.

Assim, para tentar abarcar a complexidade do objeto de estudo, também realizamos investigações quantitativas, apresentadas na Tabela 1, acerca da inserção do psicólogo no SUS, elaborados com dados do CNES - Recursos humanos/Ocupações (Brasil, 2015a), a partir do tipo de estabelecimento, profissionais selecionados/psicólogo, região por região, que atendiam ao SUS em junho de 2015 e referentes ao tipo de vínculo com AB e demais níveis de atenção do SUS. Essa investigação se associa a produção de dados que se segue, visando sustentar as forças de nosso campo de estudo, no intuito de desvelar a processualidade do que nos propomos a conhecer. Essa pesquisa foi ainda aprovada pelo Comitê de Ética Em Pesquisa sob registro número CAAE 32320014.1.0000.5137.

 

Sobre os efeitos e desafios da prática do psicólogo na ESF

Acreditamos que a prática clinica da psicologia na política pública de saúde, mais especificamente na AB, se faz quando essas ações enfrentam uma série de desafios. Afinal, operar para a prevenção e a promoção de saúde nos convoca a inventar nossa dimensão da clinica, inicialmente pensada como curativa (Moreira et al., 2007). Na verdade, essa nova prática é construção na experiência concreta dos coletivos que integram as conexões das equipes com os usuários e entre os profissionais, agenciamento sempre em movimento. Nesse sentido, entendemos que essa inserção e essa invenção ocorrem na trama entre a macropolítica, com suas representações e modelos estabelecidos, e a micropolítica, com as forças e tensões sustentadas por essas conexões (Deleuze e Parnet, 1998). Macropolítica e micropolítica que são imanentes e presentes na realidade que estudamos, durante todo o processo.

Na tentativa de contextualizar essa inserção na dimensão macropolítica, examinamos o contingente dos profissionais na área da saúde e podemos notar que a inserção dos psicólogos nesse campo é significativa. Ao se observar a Tabela 1 (Alexandre, 2015), constatamos que o número total de psicólogos registrados no CNES, no ano de 2015, soma 61.523, no campo da saúde, e, desse total, 23.100 não atendem ao SUS e 38.423 estão inseridos em estabelecimentos que atendem ao SUS, representando um crescimento de, aproximadamente, 167% (Tabela 1) em relação ao ano de 2006. Por outro lado, os resultados encontrados em pesquisa de Spink (2006) demonstram que, no CNES, no ano 2006, 14.407 psicólogos atuavam nos serviços de saúde vinculados ao SUS, o que representou 10,08% do total de psicólogos registrados no Sistema Conselhos de Psicologia à época (Spink, 2006). O SUS continua sendo o maior empregador do profissional de psicologia no país, seguido do Sistema Único de Assistência Social, tomando o total de psicólogos registrados no Conselho Federal de Psicologia (257.380) no ano de 2015 (Conselho Federal de Psicologia, 2015), equivale aproximadamente a 15% dos profissionais inseridos nos estabelecimentos do SUS (Tabela 1).

A discussão que segue à tabela refere-se ao vínculo do psicólogo na atenção básica. Percebe-se que, ao se somar o número de psicólogos com vínculo nesse nível de atenção, atuantes nos centros de apoio à saúde da família, postos de saúde, centros de saúde e unidades básicas de saúde e unidades mistas de saúde, unidade de atenção à saúde indígena, unidade de atenção em regime residencial e serviço de atenção domiciliar isolado (Home Care), o total correspondente alcançou 11.504, ou seja, 30% do total cadastrado no SUS em junho de 2015. Nota-se que, embora se verifique o crescimento dos profissionais de psicologia nos estabelecimentos do SUS, prevalece no ano de 2015, a atuação clínica dos psicólogos nos níveis secundário e terciário do SUS, como por exemplo, policlínicas, clínicas especializadas, consultórios, diagnose e terapia, hospitais geral e dia, hospitais especializados e CAPS/CERSAM, pronto-socorro e unidades de emergência, somando um total de 26.919 profissionais em atuação nesses estabelecimentos, em um total de 70% dos psicólogos cadastrados pelo SUS (38.423), em dados relativos ao ano de 2015 (Alexandre, 2015).

A Política Nacional de Atenção Básica também criou as Equipes de Consultório na Rua (ECR), no ano de 2011 (Portaria nº 2.488) (Brasil, 2011a), que somam 149, no país (junho/2015), e se propõem a oferecer atenção integral e ampliar acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde (Brasil, 2015b). Atuam nas ECR profissionais de nível superior, dos campos da enfermagem, psicologia, serviço social, medicina, educação física, odontologia, e terapia ocupacional. Já o atendimento domiciliar, instituído pela Portaria nº 2.029, de 24 de agosto de 2011 (Brasil, 2011b), conta com 514 Equipes Multiprofissionais de Atenção Domiciliar (junho/2015) e 338 Equipes Multiprofissionais de Apoio, nas quais atuam psicólogos, entre os demais profissionais. Ainda encontramos a presença do psicólogo nas 307 Equipes de Atenção à Saúde do Sistema Penitenciário. A principal atuação do profissional de psicologia na ESF, no mês de junho/2015, se deu por meio das 4.401 equipes do NASF, nas modalidades 1, 2 e 3, distribuídas no Brasil (Brasil, 2015b). No ano de 2013, existiam 2.147 NASF, que contavam com a presença de 2.211 psicólogos em todo o país e, em Minas Gerais, com 320 profissionais, distribuídos entre os NASF tipo 1 e 2, com a atribuição de contribuir para melhorar a resolutividade das EqSF (Brasil, 2013). O número de EqSF (junho/2015) nas várias modalidades já ultrapassa, aproximadamente, 40.000, no país (Brasil, 2015b). No ano de 2014, o número de EqSF implantadas alcançou 34.000, no país, com cobertura de cerca de 97,7% da população (Brasil, 2013). A ESF vem se expandindo no país, como uma prioridade de sua política. Cresce também a inserção do profissional de psicologia no SUS, pela própria realidade do sistema de saúde, o que tende a ser ampliado ainda mais na AB/ ESF, trazendo novos desafios referentes à melhoria da formação e aos requisitos necessários para sua prática nesse nível de atenção, mas sua presença ainda é maior nos equipamentos dos níveis secundários e terciários do sistema e fora dele.

Com isso, a AB parece se apresentar como pouco reconhecida e legítima para uma atuação clínica dos psicólogos, que partem da academia, com formação voltada para interioridade do sujeito, de forma a não serem perceptíveis os elementos que se conectam a produção de subjetividade, ao local onde está o sujeito em vida, junto à família, à comunidade, às situações diversas que potencializariam a prática clínica se conhecidas e reconhecidas como parte do processo terapêutico.

Na AB, o NASF tem uma função de gestão aberta ou em conexão, com foco voltado para ajudar a potencializar a "capacidade/competência" das EqSF e estas atuarem frente aos problemas clínicos e sanitários. Com caráter interdisciplinar, a EqSF insiste em uma intervenção compartilhada e de troca de saberes. Os casos são discutidos nas reuniões, e o psicólogo do NASF atua na demanda das equipes através da "[...] dimensão clínica-assistencial ou técnica-pedagógica" (Brasil, 2013). Nesse contexto, no campo da AB, a psicologia, muitas vezes, é chamada a acompanhar os casos de drogadição, alcoolismo, depressão, relação familiar, saúde mental, abandono de idosos, problemas escolares, violência familiar no território das famílias, dos indivíduos, das comunidades. Esse é um território ainda desconhecido de muitos de nós, mas, amplo para uma atuação do psicólogo, sinalizando novos caminhos que tentamos trilhar nessa cartografia.

Nesse contexto, caberia a pergunta: como o próprio psicólogo, os demais profissionais da ESF, a gestão e os indivíduos usuários percebem a atuação do profissional de psicologia? Observamos que vários desses elementos se articulam com uma atuação clínica tradicional e com tendências assistenciais curativas dos profissionais da AB, inclusive do psicólogo. Nessa direção, Yamamoto e Oliveira (2010) discutem que mesmo com a ampliação dos campos de trabalho da psicologia, há uma tendência principal à utilização da ferramenta da psicoterapia para o trabalho nos espaços institucionais da saúde.

O processo de crescimento da ESF nos municípios brasileiros envolveu vários profissionais da saúde, entre eles o psicólogo. Ampliou-se a complexidade do caráter intensivo das relações da profissão da psicologia na AB, como também abriram-se novas dimensões para discussão da perspectiva das experiências inovadoras de sua prática psicossocial. A partir da atuação no NASF nos municípios, o profissional de psicologia começou a ser mais requisitado no cotidiano das EqSF. Nas entrevistas com os gestores observamos que a participação do psicólogo faz diferença na atuação do NASF, mas ainda é muito associada ao acompanhamento do tratamento medicamentoso, como também é vista a forma de atuação na AB. Nesse sentido, a prática tradicional de saúde, existente antes da proposta do SUS ainda se coloca como referência para muitos profissionais. Linhas duras, que ainda enlaçam o campo da saúde em uma concepção mais clássica, centrando o tratamento nos medicamentos. Mas junto com essa visão, a psicologia também é vista como um campo de possibilidades, na sua atuação com o coletivo e na sua escuta. Linhas flexíveis, que hoje, apontam para as relações e os agenciamentos inventivos que daí pode surgir e formar outras linhas, outras maneiras de lidar com o processo doença-saúde-cuidado. Encontros entre equipes, grupos e a expectativa expressa acima que aposta nas possibilidades de contar com o psicólogo numa prática individual e/ou grupal que ajude a fazer fluir novas forças, diferentes das linhas homogêneas da medicalização. Assim, observamos no NASF ações focadas no trabalho coletivo e atenção integral. Ressaltamos que esse trabalho inclui a dimensão clínica da prática psicológica, mas sem exclusivismos, já que essa é uma das intervenções possíveis. Nesse processo, o psicólogo depara-se com situações desafiadoras, que relacionam a sua formação profissional, o modelo hegemônico do fazer-psicologia baseado apenas nas atenções assitencial e individual e o fazer-psicologia-com, para além da clínica, articulados aos planos social, cultural, político,econômico, entre outros elementos que se conectam às subjetivações processadas nos territórios, sustentando a imanência das linhas que compõem essas práticas. Dimenstein e Macedo (2012) analisam a formação em psicologia e destacam requisitos para atuação apropriada na atenção básica. As ferramentas indicam a necessidade de se levar em consideração o contexto e de conhecer o território da área de abrangência da unidade de saúde. È preciso considerar também, a história do lugar, aspectos ambientais, vulnerabilidade, aspectos sociopolíticos; realizar discussão com os profissionais, a comunidade e as famílias; desenvolver ações conjuntas, projetos terapêuticos singulares, tendo por referência as necessidades sociais e em saúde; realizar acolhimentos individual e coletivo e a busca ativa em saúde mental, além de visita domiciliar, entre outras ações. Os autores apontam as dificuldades da psicologia para organização das ações profissionais com base na proposta da Reforma Sanitária e Psiquiátrica. Contudo, apostam nas possibilidades de uma formação profissional conectada com a realização de:

[...] leituras e análises conjunturais a respeito das necessidades sociais e de saúde da população, proceder à escuta e à intervenção sobre os processos psicológicos e psicossociais mobilizados pelas condições de vida e projetos futuros da população, além da capacidade de articulação com as redes de serviços para operar práticas de cuidado mais integradas em saúde (Dimenstein e Macedo, 2012, p. 7-8).

Deleuze e Guattari (1995) afirmam que na trama de linhas, fluxos de formas e de forças que compõem rizomaticamente a realidade, encontramos linhas que se segmentam, estratificam, territorializam, como, também, há linhas de fuga, que rompem segmentos, provocam mudanças, desterritorializam caminhando para outras reterritorializações. Assim, o território da AB participa das multiplicidades da vida, dos encontros com forças, relações atravessadas pela micropolítica molecular e pela macropolítica molar. Esse é um movimento que produz subjetivações e afeta a todos os atores envolvidos. Percebemos em nosso estudo, que a psicologia é convocada a inventar na AB, mas muitas vezes se encontra endurecida em segmentos que mantêm a cisão indivíduo-sociedade, como também pontuado por Romagnoli (2006), que alerta que "[...] na produção de conhecimento e na transformação da realidade a partir de nossa opção teórica, podemos estar exercendo funções normativas e reguladoras" (Romagnoli, 2006, p. 8). Além disso, o psicólogo pode também ter uma prática engajada em relação à subjetivação processada nos territórios da AB, através do NASF, ampliando as ações/intervenções das variadas construções coletivas e inventivas junto às EqSF. As práticas coletivas favorecem a produção de subjetividade e se produzem nos encontros interacionais de grupos, nas visitas domiciliares, nas psicoterapias, nas atividades terapêuticas de lazer, caminhadas da saúde, dança, cultura, festas, palestras, trabalhos manuais, nas reuniões as sociativas e reivindicatórias, nas práticas de arte e cultura. Muitas dessas atividades foram acompanhadas por nós e são desenvolvidas pelos profissionais entrevistados.

Outra iniciativa que favorece o trabalho na AB e em que os psicólogos devem se integrar para melhorar sua atuação frente à complexidade do trabalho no SUS é a Educação Permanente em Saúde (EPS) para todos os profissionais; prática inicial da equipe do NASF na região pesquisada. Ceccim (2005) mostra que a EPS se articula ao setor da educação para imprimir mudanças na graduação, pós-graduação e na educação técnica, focada nas necessidades da população, universalização e equidade dos serviços de saúde. Essas mudanças favorecem a formação, a gestão, o cuidado, a política e a participação social no trabalho da saúde. Ampliar os conhecimentos no campo da produção de saúde ajuda o profissional a desgarrar-se dos estratos da formação, envolvendo-se com saberes de outras áreas profissionais. Interessa-nos pensar, nesse contexto da produção de saúde, como a prática do psicólogo se lança em agenciamentos potentes que se tecem entre as equipes e a população adscrita nos territórios, como se articula aos afetos que produzem subjetividade junto aos indivíduos, famílias, grupos, profissionais envolvidos e como circulam os fluxos de invenção e mudanças na vida em sua dimensão ético-política. Contudo, dificuldades foram observadas referentes aos recursos, à qualificação dos profissionais para um trabalho multiprofissional/interdisciplinar de referência junto a outros níveis de atenção e a complexidade das relações no território se constituíram em desafios para qualidade da Atenção Básica. Medeiros et al. (2010) situam fatores externos e internos que contribuem para a qualidade da resolutividade dos serviços de saúde na AB. Dentre os fatores externos, citam fatores como a conjuntura econômica, as oportunidades de emprego, a oferta e procura de recursos humanos. Dentre os fatores internos, apontam elementos como a relação humana na organização, a política salarial, a cultura organizacional, as condições físicas ambientais, entre outros. Paim et al. (2011) avaliam que o número de trabalhadores temporários diminuiu, mas a "[...] força de trabalho na atenção básica ainda apresenta alta rotatividade" (Paim et al., 2011, p. 23).

A rotatividade interfere na prática do NASF e de seus profissionais. Percebemos isso nas comunidades pesquisadas, pois, dos sete profissionais entrevistados, a maioria já trocou de função ou foi demitida. Essa rotatividade dificulta o trabalho, a qualidade da assistência e a integralidade da atenção, como mencionado pela psicóloga que trabalhava como contratada, mas que já foi demitida do NASF. Ela ressaltou o entrosamento da equipe quando o profissional é concursado, com estabilidade, permanecendo por mais tempo no serviço público, o que propicia maior vínculo entre os profissionais, a população usuária e a continuidade da atenção. Por outro lado, mostra a dificuldade de se criar vínculo entre os profissionais quando estes são contratados, o que favorece a alternância na micropolítica do cotidiano de trabalho da equipe, linhas duras da política interiorana e muitas vezes da própria macropolítica do SUS operam nos laços que são feitos, limitando laços e relações necessárias para uma prática produtiva. A conjuntura política implicada na gestão, o concurso como ponto a favor da estabilidade também interferem na eficácia e no vínculo da equipe multidisciplinar. No entanto, a macropolítica instalada no SUS desafia as possibilidades de novas forças micropolíticas para que se alcance mais participação dos profissionais da ESF.

O NASF objetiva também, organizar a atenção à saúde mental na AB via apoio matricial e a relação intersetorial com o CAPS e demais serviços da rede. Esse dispositivo é outro polo de inserção do psicólogo. De acordo com Cunha e Campos (2011), a atenção matricial objetiva "[...] limitar a fragmentação da atenção, consolidar a responsabilização clínica, valorizar o cuidado interdisciplinar e contribuir para a regulação das redes assistenciais" (p. 8). Esses conceitos "apoio matricial" ou "matriciamento" e "equipe de referência" são dispositivos metodológicos para gestão do trabalho interdisciplinar na AB. O trabalho de apoio matricial se mostrou inicial nas comunidades pesquisadas, como avalia uma das psicólogas entrevistadas. Na colocação da psicóloga percebemos dificuldades nesse processo de trabalho da equipe do NASF para realizar as reuniões de matriciamento, como por exemplo, a demanda constante para atendimento de casos que surgem na prática da Unidade Básica de Saúde (UBS), interrompendo as reuniões. Essa realidade também foi encontrada na pesquisa realizada por Giovani e Vieira (2013), na qual "[...] apesar das propostas da ESF terem como prioridade o desenvolvimento de ações de promoção de saúde e prevenção de doenças, o atendimento centrado na doença ainda se faz muito presente no cotidiano de profissionais e usuários" (Giovani e Vieira, 2013, p. 9).

Observamos, no processo da pesquisa, dificuldades na relação intersetorial entre a AB e o CAPS. A relação dialógica na intersetorialidade entre o CAPS e AB são premissas fundamentais para atenção e cuidado em saúde mental. Segundo Traverso-Yépez (2007), "[...] uma maior ênfase na reflexidade, nas relações dialógicas e no senso crítico" (p. 8); entre os atores sociais é o básico para prática de promoção de saúde, visto que:

De nada adiantam políticas bem intencionadas se são inviabilizadas pela falta de vontade política e pela distribuição desigual de poder, ou pelas próprias práticas institucionalizadas, dentro das quais se tende a atuar com automatismos e de forma não reflexiva (Traverso-Yépez, 2007, p. 8).

Vimos que o apoio matricial do NASF como equipe interdisciplinar pressupõe também uma função de gestão, que se dá micropoliticamente, nos encontros capazes de "[...] ampliar a potência de pensar, de inventar, de (inter) agir, de cuidar" (Brasil, 2013, p. 11). Está explícito, ainda, que esse apoio se conecta com a dimensão clínico-assistencial e com a dimensão técnico-pedagógica. Nesse contexto, o NASF tem como prioridade contribuir para potencializar a capacidade e a competência das EqSF para enfrentar os problemas clínicos e sanitários relacionados à saúde mental, nutrição, educação física, reabilitação, entre outros, numa permanente troca de saber na discussão dos casos, ou seja, um cuidado compartilhado, "[...] diante das necessidades individuais ou coletivas" (Brasil, 2013, p. 12).

Nesse processo, as práticas intersetoriais estão articuladas à estratégia de produção de saúde, de modo a levar a se pensar na promoção de saúde como qualidade de vida da população, comprometendo todas as políticas públicas para responder às necessidades sociais conectadas à saúde, facilitando a integralidade da atenção. No entanto, os modos de vida são atravessados por linhas duras, que perpetuam a perspectiva cultural individualizante e fragmentária das ações e práticas em saúde, entre profissionais e pessoas usuárias. Essa perspectiva apareceu nas entrevistas realizadas.

Retornando à atuação do psicólogo, observamos que a prática da clínica individual, é apenas uma das dimensões da sua prática na AB, pois a proposta da equipe de apoio matricial passa, principalmente, pelas ações de intervenção interdisciplinar, com possíveis perspectivas na transdisciplinaridade, se tomada como referência à prática coletiva, que atravessa o limite das disciplinas para invenção de novos saberes. Como destacam Passos e Benevides de Barros (2000), essa noção de transdisciplinaridade não pretende desconsiderar a criação de cada disciplina, mas se baseia na intercessão, na invenção desses intercessores conectados aos movimentos, sem verdades fixadas e nem descobertas, mas criadas nessa conjunção, agenciamento, plano coletivo de produção de subjetividade. Acreditamos que essa pratica transdisciplinar é essencial sobretudo pela importância do contexto e do território como nos lembra Dimenstein e Macedo (2012) e pela necessidade da transversalidade entre os saberes que o trabalho em equipe e a complexidade dos casos convocam. Ressalve-se, entretanto, que o psicólogo do NASF também atende individualmente, tanto nas casas, quanto nas unidades, casos indicados pelas EqSF, discutidos, ou situações imprevistas e de risco, em geral os casos mais graves em saúde mental. A ideia, nesse sentido, é potencializar a EqSF para lidar também com esses casos de maior risco. A questão é que não há psicólogo nas UBS pesquisadas, e o psicólogo do NASF passa a ser requisitado para suprir a demanda na assistência, favorecendo me-nos a amplitude dos seus papéis de cogestão e educacional relacionados a potencializarem as equipes para o atendimento clínico e sanitário. A ESF prevê uma agenda pactuada para o apoio do NASF junto às EqSF para os profissionais. Pode-se deixar claro, por exemplo, em quais situações clínicas serão prioritariamente atendidos individualmente os usuários, quais os critérios para encaminhamento de pessoas aos grupos específicos do NASF, que temas podem ser discutidos com as equipes de AB (Brasil, 2013).

Todavia, não se pode deixar de lado a pressão sofrida pelos profissionais da saúde em relação a problemas estruturais e à falta de recursos humanos na rede de saúde. Ou seja, esses problemas estimulam os profissionais a abarcarem outras tarefas, para além das estipuladas pela política da ESF. No caso da psicologia, vimos que não há psicólogos nas UBS no município pesquisado, e os psicólogos do NASF têm agenda preenchida para atendimento clínico individual, em média, programados para dois meses. Essa mesma situação é mencionada por Cunha e Campos (2011, p. 6) em relação a outros profissionais da equipe do NASF:

O NASF é uma experiência de utilização do conceito de Equipe de Referência e Apoio Matricial. Evidentemente, alguns problemas estruturais, como a escassez de serviços especializados, induzem sua utilização equivocada de forma substitutiva (por exemplo, o apoio de um fisioterapeuta a uma equipe de saúde da família não substitui centro de reabilitação), empobrecendo o atendimento e dificultando a compreensão da sua função.

Os autores ainda problematizam que, quando os serviços especializados não praticam o apoio matricial, o NASF fica ainda mais sobrecarregado, em razão da demanda das trocas e aprendizados mútuos e também do isolamento da atenção básica, pois não interessa a fragmentação dos serviços, mas a corresponsabilização entre os diversos setores e níveis da atenção à saúde. No caso do psicólogo, a UBS não conta com esse profissional no seu quadro e desloca sua função, no NASF, para o atendimento individual, que é demandado com intensidade na porta de entrada das UBS. Como resolver o impasse da demanda reprimida dos indivíduos e familiares que necessitam e desejam um atendimento mais assíduo do profissional de psicologia nas UBS? Como observamos, o psicólogo do NASF recebe uma demanda expressiva para sua atuação. Ressaltamos que sua prioridade é o apoio matricial, a interdisciplinaridade, a cogestão das ações e planejamento na AB, as reuniões com as EqSF, as visitas às famílias/ indivíduo nas comunidades e as ações voltadas para qualidade de vida, atenção às demandas psicossociais/saúde mental.

Por outro lado, observamos uma dificuldade concreta do processo de trabalho, que contribui para priorizar o atendimento clínico na prática do psicólogo dentro da UBS, com maior ênfase na lógica assistencial (modelo curativo-individual) em detrimento da prática coletiva do matriciamento do NASF. Como mencionam Yamamoto e Oliveira (2010), há outro elemento que deve ser considerado na prática do psicólogo, pois, mesmo com a ampliação dos contextos e do campo de trabalho na saúde pública, em que se abre espaço para uma diversidade de ações e atividades, há uma tendência do profissional de psicologia em privilegiar e estruturar consultórios. Contudo, o autor diz, ainda, que a psicoterapia não foi extinta do espaço institucional da saúde, apenas se diluiu entre as demais ações e continua sendo o principal instrumento de trabalho do psicólogo. Mas, não é fácil se desvencilhar das linhas duras da psicologia e de sua atuação dominante. Uma das gestoras entrevistadas menciona e questiona a prática da promoção e prevenção da saúde a partir da dificuldade encontrada para incluí-la, uma vez que o indivíduo já chega para o profissional de psicologia medicado e em tratamento. Ao pensar no princípio da integralidade na AB, no âmbito individual e coletivo, pensamos que esta abrange ações que se conectam entre a promoção, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação, de acordo com as necessidades de manutenção e qualidade da saúde. Com isto, práticas na AB que apenas se firmam na medicalização devem ser rompidas. De acordo com Galindo et al. (2014, p. 1):

[...] a genealogia das resistências à medicalização das existências deve ser articulada à composição de arquivos não conformistas capazes de evidenciar que, apesar da força da farmacologização na configuração das nossas subjetivações, práticas de liberdade continuam a ser urdidas em seus interstícios.

A preocupação dos gestores da AB com a prática medicamentosa esteve evidente em várias situações em nossos encontros e em nossa imersão no campo. Percebemos indícios de algumas ações que visavam superar a centralização das práticas medicamentosas, tentativas de deslocamento e flexibilização dessas linhas presentes no cotidiano das EqSF, como discussão de casos em equipe, atividades e palestras demandadas pelas comunidades, programas planejados a partir da realidade dos territórios voltados para qualidade de vida, grupos. Ainda assim, observamos algumas dificuldades para organização de parcerias e a relação dialógica entre os profissionais, gestores e pessoas usuárias.

Observamos como a prática do psicólogo ainda se articula às lógicas secundária e terciária do SUS, como vimos na pesquisa exposta na Tabela 1. Vale ressaltar também, que a inserção da psicologia no campo da saúde, nas instituições de saúde pública, ocorre principalmente no campo da clínica. Assim, o psicólogo ocupou o campo da saúde mental no CAPS/ CERSAM, além de policlínicas, clínicas especializadas, consultórios, diagnose e terapia, hospital geral e dia, hospitais especializados, pronto-socorro e unidades de emergência, somando um total de 26.919 profissionais em atuação nesses estabelecimentos, que corresponde a um total de 70% dos psicólogos cadastrados pelo SUS (38.423), em dados relativos ao ano de 2015. Mas vem se integrando à outra ponta de entrada dos territórios da AB, com algumas restrições, embora venha crescendo, em termos numéricos, sua participação, inclusive em outras equipes da AB, como consultório na rua, nas penitenciárias, nos domicílios. A inserção do psicólogo no nível da AB é um fato, como estudado nessa pesquisa e para a produção da Tabela 1, alcançando 30% (11.504) do registro nos estabelecimentos de saúde do SUS na AB, além dos 4.401 NASF no Brasil. Contudo, parece tímida sua expressão na ESF, no que se refere à prática interdisciplinar no NASF. O psicólogo parece guardar expectativa em fazer psicoterapia nas UBS muito mais do que lidar com a complexidade dos territórios da AB, nos quais os processos de subjetivação se conectam, e a produção de subjetividade está transbordando, oferecendo uma multiplicidade de linhas conectáveis e também próximas de uma atenção psicológica de qualidade aos indivíduos e grupos, conectada aos elementos de subjetivação nos territórios.

 

Como pensar uma prática clínica transdisciplinar na Atenção Básica?

Percebemos que a pratica na AB muitas vezes é reducionista e disciplinar. Cunha e Campos (2011) salientam que existe uma exclusão da responsabilidade entre os profissionais que recortam os problemas de saúde de forma disciplinar, fazendo-se acreditar que esses problemas ou são "de um profissional ou são de outro", pois há "uma cultura dominante que toma o saber profissional nuclear como propriedade privada" (Cunha e Campos, 2011, p. 9); estabelecendo essa relação fragmentada. É uma postura que não contribui para a constituição das equipes de referência e apoio matricial e não ajuda na compreensão de sua proposta. Assim, os autores propõem reformas diante do esgotamento do "arranjo gerencial" da saúde na AB. A relação interdisciplinar, proposta no matriciamento, passa por dificuldades nessa realidade, e os autores exemplificam essa cultura predominante na rede de saúde:

Nesse contexto, o enrijecimento de fronteiras de conhecimento tem uma relação com reserva de mercado profissional. A Lei do Ato Médico e outros movimentos de afirmação de núcleo profissional em outras corporações refletem essa cultura. O modelo de gestão mais adaptado a ela é o burocrático-taylorista, com forte investimento na concentração dos processos de decisão, na padronização e na fragmentação das atividades e da responsabilidade profissional. Valoriza excessivamente o conhecimento universal em relação ao conhecimento singular (Cunha e Campos, 2011, 7).

Isto quer dizer que há uma necessidade, no contexto do apoio matricial, de se praticar a interdisciplinaridade que envolve várias profissões da área, inclusive a psicologia, no que se refere à compreensão e à intervenção de uma clínica diferenciada, uma clínica cartográfica. Esta, pensada como exercício de invenção, estaria disposta a questionar os princípios tradicionais da prática privada, voltada para um sujeito universal e a-histórico. No caso da psicologia, de acordo com Sousa e Romagnoli (2012), podemos pensar em ir um tanto mais além, no que tange a essa clínica liberal e tradicional que se pauta em "objetivos analíticos, psicoterapêuticos e/ou psicodiagnósticos" (Sousa e Romagnoli, 2012, p. 73). Uma clínica cartográfica se en-contra com a multiplicidade e a complexidade e se abre para os agenciamentos que, no meio das conexões, se transforma na produção coletiva de novos saberes e de novas ações inventivas que não isolam a psicologia, mas se encontram e se misturam à singularidade dos devires que desestabilizam os modos de saber-fazer-psicologia. O território oferece outras dimensões para a relação clínica que se dá nos movimentos, nos encontros que podem surgir enquanto setting em espaços diversos, nas casas, nas ruas, nas praças, nas salas improvisadas das UBS, mas, sobretudo, apostando na capacidade de afetar e ser afetado. Lancetti (2006) sustenta uma clínica em movimento com base em um fazer prático, que procura abarcar pessoas que fogem aos protocolos clínicos convencionais. Esse fazer clinico se faz "dentro-fora" dos consultórios, como uma prática territorial, que abre caminhos, provoca aberturas e deslocamentos, promovendo deslocamentos subjetivos. Defende assim, uma situação móvel das conversações e pensamentos que acontecem quando se vai aos encontros e, às vezes de surpresa, caminhando junto às famílias que apresentavam graves dificuldades, transitando pelas cidades com pacientes psicóticos.

Essas práticas transpõem espaços institucionais como os portões de clínicas e hospícios, indo além dos consultórios. O autor aponta, também, os "novos settings como férteis para a produção de subjetividade e cidadania" (Lancetti, 2006, p. 21). Além disso, relata diversas experiências conduzidas por ele numa clínica praticada em movimento, respeitando a complexidade da produção em saúde mental.

Lancetti (2006) sinaliza a paixão pela diferença e a disposição para trabalhar "em ambiente não protegido" e acentua que psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais ou enfermeiros podem vestir avental, estar diplomados ou pós-graduados, mas, se não estiverem abertos para o território sua prática será estéril. O autor traz uma concepção de clínica cartográfica, inspirado em pensamentos da esquizoanálise de Deleuze e Guattari, na perspectiva do mapa que não se fixa na origem, mas nos deslocamentos, no qual são apontados os processos de subjetivação e desubjetivação para lidar com grupos familiares nas intervenções das EqSF e saúde mental. Ou seja, traça-se um plano, um mapa, mas, no percurso, uma linha de fuga pode fazer a diferença na produção de subjetividade e, então, como menciona Lancetti (2006), não é possível almejar que um "[...] paciente deixe imediatamente de usar drogas nem pare de delirar", pois "[...] um mapa, uma sugestão proposta a uma pessoa ou a um grupo, refere a outro mapa" (Lancetti, 2006, p. 118-119).

Deleuze (1992), numa entrevista sobre o livro Mil Platôs, se refere a traçar mapas de circunstâncias, cujos efeitos são os modos de individuação que não são de uma coisa, pessoa ou sujeito, mas também de um clima, de uma região, de um acontecimento que transforma a vida. Isso pode acontecer no território da AB, entre a prática das EqSF e os profissionais, nas visitas domiciliares, no contato com realidades singulares, com o clima, o tom, o timbre da relação que se compõe ali, naquele momento.

As práticas multidisciplinar, interdisciplinar, transdisciplinar, observadas no campo da AB, tentando-se rastrear os planos de forças presentes nessas práticas. Constatamos o interesse por todas as formas previstas de modelos de práticas nas cidades pesquisadas. No entanto, como observamos, a rede de saúde se fixa, principalmente, na prática multidisciplinar que já vem acontecendo a partir da implantação do PSF com as equipes multiprofissionais. Há, também, experimentações na prática interdisciplinar, com a presença do NASF, e algumas experimentações da prática transdisciplinar como sinais de transformações mais intensas.

Tomamos, então, as noções de Deleuze e Guattari para entender em que direção caminham os fluxos de forças que se dão nos encontros entre as disciplinas e os saberes. Começamos pela multidisciplinaridade para entender, junto com Sousa e Romagnoli (2012), que, "no encontro entre as disciplinas e os saberes, os fluxos podem caminhar nestas duas direções: operar a favor de uma classificação, de uma reterritorialização, ou lançar-se nas forças intensivas." (Sousa e Romagnoli, 2012, p. 76). Assim, mostramos como as práticas multidisciplinares estão presentes na relação entre o médico e o psicólogo no PSF, pois apresentam suas respectivas disciplinas e saberes específicos e não há correlação e troca entre eles. Mantém-se o aparato do discurso, da teoria e da metodologia de cada um e não há evidência da relação na discussão dos casos atendidos por ambos. Como abordam Deleuze e Guattari (1995), esse pensamento precisa de uma unidade principal e não entende a multiplicidade. Vejamos como isso acontece.

Presenciamos um médico do PSF avaliando a pouca troca de saberes existente entre os membros do PSF, inclusive dos que atendem o mesmo paciente e não dialogam, evitando o encaminhamento por falta da troca de saber. Nesse sentido, observamos a dificuldade com agenciamentos que fazem a vida circular, que produzem novas forças na relação com o usuário. Esse profissional contesta o que poderíamos nomear como a necessidade de uma clínica cartográfica que garanta a troca de saberes e olhares para novas construções inventivas, a parceria na condução clínica, a continuidade do acompanhamento indivíduo/família nos níveis da atenção.

A entrevista com um técnico da AB, sobre os trabalhos multidisciplinar, interdisciplinar, transdisciplinar e intersetorial e as dificuldades encontradas nessas práticas, mostram que esse profissional almeja a "conversa entre os profissionais", mas não vincula a mesma à interdisciplinaridade, apenas cita a transdisciplinaridade e acentua a intersetorialidade no sentido de não fragmentar o serviço.

A AB se articula com várias iniciativas das estruturas da rede de atenção do SUS e das áreas da educação, cultura, assistência social, bem como das políticas públicas, objetivando uma gestão compartilhada da atenção integral. Nesse sentido, as ações intersetoriais na saúde devem ser ampliadas para combater a fragmentação da rede e a integralidade. A PNAB define que:

A articulação intersetorial das redes públicas de saúde, de educação e das demais redes sociais se dá por meio dos Grupos de Trabalho Intersetoriais (GTI) - federal, estadual e municipal -, que são responsáveis pela gestão do incentivo financeiro e material, pelo apoio institucional às equipes de saúde e educação na implementação das ações, pelo planejamento, monitoramento e avaliação do programa (Brasil, 2012, p. 76).

Lancetti (1996), em seu livro Assistência Social e Cidadania, revela experiências práticas criativas, dentre as quais a política de gestão apropriada tem uma ligação íntima com o objetivo de superar o assistencialismo e o clientelismo. Observou-se nesse estudo que há uma experimentação na prática intersetorial com a AB, o NASF e o CRAS, para a qual se revela uma prática interdisciplinar, na medida em que favorece um trabalho integrado entre os campos de saber; contudo, observa-se que ainda predominam as fôrmas, os modelos, que conservam as fronteiras disciplinares, a centralização do saber e poder implicados. Nesse sentido, vários profissionais colaboraram na iniciativa de grupos, promovendo mudanças em seu vínculo, na reciprocidade e participação.

Vemos, assim, a criação de zonas de indeterminação das disciplinas, nas quais acontece algo que não pertence a uma formação específica, mas a um espaço trans, "entre", que propicia agenciamentos que podem levar a uma outra prática com o usuário. A relação da prática transdisciplinar foi observada nessa entrevista entre a psicóloga e a terapeuta ocupacional. Essa prática emerge do plano de forças do coletivo e ocasiona a busca por uma troca de saberes com base na diferença, não em uma simples troca de conteúdos, mas na agitação em que se perde a rigidez da identidade, levando os saberes heterogêneos a se agenciarem em um novo saber. Benevides (2005) deixa claro que "[...] é no entre os saberes que a invenção acontece, é no limite de seus poderes que os saberes têm o que contribuir para um outro mundo possível, para uma outra saúde posssível". A autora toma a psicologia como exemplo e diz que esta, enquanto um dos campos de saber, "não explica nada", ressaltando, assim, que apenas na intercessão com outros saberes poderá ser explicada (Benevides, 2005, p. 23).

Como destacam Passos e Benevides de Barros (2000), essa noção de transdisciplinaridade não pretende desconsiderar a criação de cada disciplina, mas se baseia na intercessão, na invenção desses intercessores conectados aos movimentos, sem verdades fixadas e nem descobertas, mas criadas nessa conjunção, agenciamento, plano coletivo de produção de subjetividade. Esses autores tomam o eixo da relação de sustentação entre sujeito e objeto do conhecimento do campo epistemológico, em que se baseiam as disciplinas com suas fronteiras e especifismos, e mostram a inexistência de quaisquer garantias de suas verdades, pois o sujeito e o objeto são constituídos no plano heterogêneo, com uma multiplicidade de componentes "teóricos e tecnológicos", como também "estéticos, éticos, econômicos, políticos e afetivos que se atravessam". Nesse sentido, os autores atribuem uma "atitude crítica da transdisciplinaridade":

Podemos chamar esta atitude crítica de transdisciplinaridade, já que os limites entre as disciplinas são perturbados quando se coloca em questão as identidades do sujeito que conhece e do objeto conhecido. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos (Passos e Benevides de Barros, 2000, p. 5).

Dito isso, Sousa e Romagnoli (2012) problematizam que não se trata de uma tarefa simples e ressaltam que exige esforço para lidar com sua complexidade nos campos social e da saúde coletiva. Então, não basta realizar a abertura a outras disciplinas, sendo necessário trazer como prática "[...] uma invenção no limiar das fronteiras disciplinares, produzindo uma nova relação sujeito/objeto e uma zona de indagação coletiva em que a problematização é uma constante" (Sousa e Romagnoli, 2012, p. 78).

A participação da psicologia na política de saúde, como outro campo de saber, só se justifica numa relação de interconexão com outros saberes e é nessa conjunção/disjunção do agenciamento dos distintos conhecimentos que se pode experimentar a invenção da produção de saúde e a produção de subjetividade. Trata-se de transpor as territorialidades conservadoras impostas nas relações disciplinares de entrecruzamentos do saber e do poder e atravessá-las em todos os territórios possíveis: da formação, entre os profissionais (interdisciplinaridade), da participação das comunidades, da gestão dos cuidados. Como aponta Benevides (2005), "apostamos em políticas transversais e que não separassem atenção/gestão/formação e participação social". Nesse momento a autora defende que "Aqui certamente a Psicologia pode estar, aqui ela pode fazer intercessão". Insiste ainda na necessidade de criar dispositivos "[...] que dêem suporte à experimentação das políticas no jogo de conflitos de interesses, desejos e necessidades de todos estes atores" (Benevides, 2005, p. 24).

 

Considerações finais

A prática profissional do psicólogo na AB revela a complexidade do campo do SUS, em seus desdobramentos em políticas, princípios e diretrizes para ação/intervenção no processo saúde-doença. Neste sentido, fica evidente que a fonte principal das práticas e ações de saúde para melhoria da qualidade de vida/produção/promoção da saúde encontra-se no fluxo de forças e potencialidades dos territórios da AB, junto às comunidades, indivíduos, famílias, contextos. Este processo que se articula com a interdisciplinaridade, como expressão da mobilização e de possíveis micropolíticas que advenham da potencialidade do fluxo de forças de vários atores envolvidos na prática da AB. Essas práticas transpõem espaços institucionais trazendo desafios para todos os profissionais de saúde e também para o psicólogo, indo além dos consultórios, nas comunidades, nas casas, produzindo novas formas do fazer-clínico e também sociais. Como aponta Lancetti (2006) dos relatos das diversas experiências conduzidas por ele numa clínica praticada em movimento, respeitando a complexidade da produção em saúde são "[...] novos settings como férteis para a produção de subjetividade e cidadania" (Lancetti, 2006, p. 21).

Nesse sentido, implicar-se com os vários elementos que se revelam no contexto dos territórios da AB, como guia da prática coletiva na ESF junto as EqSF/UBS/NASF, se torna uma necessidade para uma atuação do psicólogo e outros profissionais, voltada à promoção de saúde. O território da AB é um campo propício para os fluxos de forças que se movimentam e que podem favorecer a que os processos de autonomia e resistência não se acomodem, levando-se a questionar as relações de saber-poder disciplinar nas quais se tende a envolver a prática da saúde, observadas em ações como a medicalização generalizada, também discutida nesse trabalho. Acentuamos que o território oferece dimensões para a relação clínica que se dá nos movimentos, nos encontros que podem surgir enquanto setting em espaços diversos, nas casas, nas ruas, nas praças, nas salas improvisadas das UBS, mas, sobretudo, apostando na capacidade de afetar e ser afetado, entendido como uma ferramenta clínica fértil para os encontros e produção de subjetividade.

Mesmo considerando os desafios do percurso da psicologia, a presença do psicólogo nas Redes de Atenção à Saúde, através do NASF, representa um avanço, inclusive, na relação da demanda em saúde mental com as UBS, CAPS e na rede em geral. Essa participação do profissional de psicologia no NASF abriu novas possibilidades e desafios para pensarmos como aprofundar a pesquisa e a discussão de sua prática na AB. Contudo, alguns desses elementos podem estar relacionados à construção da prática profissional: a formação profissional, a inserção política e mesmo decorrentes das conexões entre os modelos instituídos da concepção de saúde-doença-cuidados, que aliavam a prática da psicologia apenas ao espaço reservado à saúde mental - CAPS (nível secundário), vindo a perceber há pouco tempo que a relação da psicologia com a promoção/produção de saúde também inclui a saúde mental demandada pelos territórios da AB, a qual exige uma relação interdisciplinar e intersetorial com o CAPS, demais serviços e níveis de atenção.

Os requisitos para uma atuação do psicólogo no campo da AB apontam para necessidade de mais pesquisas e podem ser fortalecidos, ampliados, diferenciados, a partir da qualificação, que, hoje, já desperta o interesse de vários estudiosos da psicologia e das políticas de saúde, como se pode perceber a partir da constatação da necessidade de estimular a Educação Permanente dos profissionais da EqSF. A articulação dos conhecimentos para constituir uma teoria do processo saúde-doença-intervenção resulta de diferentes combinações e nega uma dominância social, clínica ou outra predeterminação. São planos diferentes, que se articulam entre si, não sendo possível prever outras conexões ao processo da produção de saúde.

 

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Submetido: 28/06/2016
Aceito: 29/09/2016.

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