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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.11 no.1 São Leopoldo Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.111.06 

ARTIGOS

 

A função do objeto na clínica do autismo

 

The function of the object in an autism clinic

 

 

Maria Gláucia Pires Calzavara; Beatriz de Souza Silva

Universidade Federal de São João Del Rei. Praça Dom Helvécio, 74, Fábricas, 36301-160, São João del-Rei, MG, Brasil. glauciacalzavara@gmail.com, beatriz-cba@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo parte do pressuposto de que o objeto se apresenta como um importante instrumento no que concerne ao tratamento das crianças. Tal como a associação livre na clínica com adultos, os objetos na clínica com crianças se colocam como função técnica e de mediação entre analista e criança. No tratamento com sujeitos autistas, essa metodologia também apresenta sua importância, uma vez que sabemos que essas crianças mantêm uma relação muito particular com os objetos. A partir disso, o objetivo deste artigo é elucidar a função do objeto na clínica psicanalítica com sujeitos autistas. Para isso, é preciso demonstrar como o objeto, enquanto instrumento necessário na clínica com crianças, pode participar da subjetividade desta no momento de sua constituição psíquica. Esse objeto pode se apresentar tanto como um brinquedo quanto como um objeto qualquer, e a utilização deste pela criança será representativa da importância dele para o tratamento. Visando perpassar por tais questões, foi realizada uma revisão da literatura, percorrendo autores que trabalham na clínica com crianças, como Anna Freud e Melanie Klein, e também autores que se dedicam à clínica com sujeitos autistas, como, por exemplo, Tustin, Maleval, Rosine e Robert Lefort. Portanto, o que se esclarece na prática clínica com crianças, bem como na clínica do autismo, é que o objeto, por contribuir para a construção particular do sujeito, pode ser utilizado como possibilidade de trabalho em análise.

Palavras-chave: autismo, objeto, psicanálise.


ABSTRACT

This article is the assumption that the object is presented as an important tool in relation to the treatment of children. Such as the free association in the clinic with adults, the objects in the clinic with children have themselves a technical and a mediation function between the analyst and the child. In the treatment with autistic subjects, this technique is also important, since we know these children maintain a very particular relationship with objects. From this, the purpose of this article is to elucidate the function of the object in the psychoanalytic clinic with autistic subjects. Therefore, we need to demonstrate how the object, as a necessary tool in the clinic with children, can participate in the subjectivity of the child at the time of its psychic constitution. This object can be presented either as a toy or as any object and the use of it by the child will represents its importance for the treatment. Aiming to go through such questions, a literature review was performed covering authors working in the clinic with children, such as Anna Freud and Melanie Klein, as well as authors who dedicate themselves to the clinic with autistic subject, such as Tustin, Maleval, Rosine, and Robert Lefort. Thus, what is clear in the clinical practice with children, as well as in clinical autism, is that the object, which contributes to the particular construction of the subject, can be used as a possibility of work in analysis.

Keywords: autism, object, psychoanalysis.


 

 

Introdução

A prática psicanalítica utiliza a técnica da associação livre como meio para se chegar ao inconsciente. Por meio desta, o analisando é orientado a dizer o que lhe vier à cabeça. Desse modo, é pelo discurso do outro que a prática analítica é construída. Todavia, o método da associação livre encontra um obstáculo na análise com crianças devido ao fato de estas ainda apresentarem um vocabulário restrito e dificuldades em se expressarem. Por isso, tornou-se necessária uma especificidade da técnica que possibilitasse o trabalho analítico com crianças; isto é, que permitisse o acesso ao inconsciente. Assim, foi por meio do brincar e do uso do brinquedo na clínica que Melanie Klein e Anna Freud tornaram a análise das crianças possível. Para essas autoras, pelo brincar, as crianças conseguem expressar seus sentimentos, experiências e fantasias, tal como acontece com o adulto na associação livre. Sabendo da importância da função do objeto na clínica com crianças neuróticas, buscamos neste artigo compreender como o sujeito autista1 se utiliza dos objetos no particular da clínica.

É a partir de uma carta de Jung a Freud, datada de 13 de maio de 1907, que sabemos que foi Bleuler, psiquiatra suíço, quem cunhou o termo autismo em 1908. Esse termo surgiu a partir da exclusão do "eros" e da contração do "aut" e "ismo" da palavra autoerotismo, criando, assim, um neologismo – autismo –, que se referia a um desapego da realidade e à predominância da vida interior (Freud e Jung, 1976[1907], p. 85-86). Posição esta esclarecida por Laznik (2013) como o momento em que a criança não se faz objeto do desejo do Outro e desse modo não se torna "eros" para esse Outro. Na ausência desse "eros", desse erotismo ligado ao Outro, resta à criança um momento de fechamento em si mesma. Em 1911, Bleuler passou a classificar o autismo como um sintoma secundário da esquizofrenia (Kaufmann, 1996).

Após 30 anos dessa definição de autismo postulada por Bleuler, Leo Kanner, psiquiatra austríaco, retomou o estudo dessa síndrome. Em 1943, Kanner publicou o texto intitulado "Os distúrbios autísticos do contato afetivo", propondo a classificação de uma nova patologia. Diante do estudo realizado com 11 crianças que apresentavam alterações no comportamento, Kanner (1997[1943], p. 170) propôs a denominação dessa síndrome como "distúrbios autísticos inatos do contato afetivo", para designar os casos de crianças menores de um ano de idade que apresentavam retraimento no contato com outras pessoas. Em seu estudo, relatou que as crianças apresentavam sintomatologias semelhantes, tais como: início precoce da sintomatologia, comportamentos ritualísticos, extremo isolamento, mutismo frequente e inabilidade do uso da linguagem para a comunicação. Além disso, postulou, através de exemplos, que a criança autista possui uma boa relação com os objetos, que "interessa-se por eles e podem passar horas brincando com eles" (Kanner, 1997[1943], p. 163). No entanto, com as pessoas, o modo de relacionar é diferente.

A partir do referencial teórico da psicanálise de orientação lacaniana, o presente artigo compreende que o Outro2 é visto por essas criançascomo imprevisível, intrusivo e ameaçador. É importante salientar, que esse é o modo como o sujeito autista percebe o Outro e que, portanto, não necessariamente esse Outro se apresenta como intrusivo. Por esse motivo, com frequência, essas crianças apresentam dificuldades na socialização, buscando, por vezes, o isolamento. Essa postura adotada por essas crianças não significa que elas são indiferentes à presença do Outro. Pelo contrário, é por perceber esse Outro como intrusivo que essas crianças passam a utilizar o isolamento como uma estratégia de defesa. De acordo com Ribeiro (2005), essa posição adotada pelo sujeito autista se apresenta como radical e responde a uma espécie de estratégia frente à demanda do Outro. Portando, sabendo da posição que o sujeito autista se coloca frente ao Outro, na tentativa de barrar seu excesso de presença, e ainda da particular relação que essas crianças mantêm com seus objetos, nosso intuito neste artigo é compreender como o sujeito autista se utiliza dos objetos no particular da clínica psicanalítica.

O percurso realizado nesta revisão de literatura tem início com a investigação do uso do objeto enquanto técnica psicanalítica infantil pelas precursoras Anna Freud e Melanie Klein. Posteriormente, direcionamo-nos para o trabalho de Francis Tustin, como primeira psicanalista que investiga o uso do objeto na clínica com sujeitos autistas. Finalizamos tal revisão teórica com as contribuições de Lacan, Rosine e Robert Lefort, bem como a de Jean Claude Maleval.

 

Constituição do sujeito

Do ponto de vista da psicanálise, o sujeito não nasce pronto. Ele se constitui a partir da relação que estabelece com o Outro – lugar dos significantes, da linguagem e da fala. Jacques Lacan, ao longo de seu ensino, destacou dois modos de constituição do sujeito. Em um primeiro momento, a partir de 19363, caracterizado como primeira clínica, marcado pela especificidade do significante que traz sua marca na referência ao Nome do Pai, revelando a primazia deste na demarcação das estruturas psíquicas. Um pouco mais tarde, no ano de 1964, caracterizado como seu ensino, Lacan apresentou uma nova elaboração ao se pensar o sujeito, com a introdução de duas operações que se fazem fundamentais em sua constituição: alienação e separação (Lacan, 1988[1964]). Neste artigo, iremos nos ater a esse segundo momento do ensino lacaniano no que concerne à constituição do sujeito.

Partiremos, portanto, da elucidação no que diz respeito ao significado da relação do sujeito com o Outro. Sua importância fica evidente ao notarmos que é somente devido ao desejo dos pais que a criança nasce, uma vez que é preciso que estes formulem um motivo para que isso aconteça. Ter um filho implica, necessariamente, algo do desejo dos pais. E esse desejo já se apresenta antes mesmo do nascimento da criança. No discurso dos pais, estes revelam suas alegrias, angústias e desejos por ela. Nesse momento, estão, na verdade, preparando um lugar singular para essa criança no universo onde a linguagem já se encontra instalada. Esse momento pode ser caracterizado como a primeira alienação da criança ao Outro. É o Outro como linguagem (Fink, 1998). Por esse motivo, Laurent (1997, p. 34) salienta que "o sujeito só pode ser reconhecido no lugar ou lócus do Outro".

Para a elucidação dessas duas operações, Lacan nos apresenta um exemplo de um assalto para explicar a escolha forçada do sujeito na alienação. Diante de um assaltante que diz: "a bolsa ou a vida", diz-nos Lacan (1988[1964], p. 201), que não há outra escolha a não ser uma escolha forçada. Isso porque, no caso de escolher a vida, perde-se a bolsa; e se o sujeito escolhe a bolsa, perdem-se ambos – a vida e a bolsa –, significando que o sujeito sempre perde algo nessa relação com o Outro. No caso da alienação, para Lacan, há de se escolher entre o sujeito (ser) e o Outro (sentido). Só existe a possibilidade de existência de apenas uma das partes ou de nenhuma das partes. Isso quer dizer que, se a criança escolhe o ser, perde o sentido. Perde o sentido na medida em que a significação só é possível no campo do Outro com o advento do S2 – significante que vem significar o desejo do Outro. Com isso, o sujeito escolhe não se alienar ao Outro como desejo: "o sujeito tem uma só escolha entre petrificar-se num significante ou deslizar no sentido, porque quando se tem um elo entre os significantes (S1 e S2) tem-se sentido" (Soler, 1997, p. 61). Essa passagem caracteriza o que Laurent (1997, p. 37) destaca como uma primeira falta na alienação do sujeito no Outro, uma vez que "o sujeito não pode ser inteiramente representado".

Em contrapartida, no que concerne à segunda falta na alienação, Laurent (1997) elucida: se o sujeito escolhe o sentido, ele aceita se alienar ao Outro, como desejo, podendo, assim, se constituir como sujeito desejante. Desse modo, como consequência de escolher o sentido, o sujeito torna-se um falta-a-ser, uma vez que essa assujeição ao Outro implica ao sujeito a perda do ser. Bruce Fink (1998) nos adverte que, nesse momento, há uma justaposição da falta; isto é, o encontro da falta do Sujeito e do Outro. O que se destaca dessa justaposição é algo da ordem do objeto a4, que representa a falta tanto para o sujeito quanto para o Outro. Ao se deparar com a falta do Outro, o sujeito, a princípio, tenta ocupar o lugar de objeto do desejo desse Outro na tentativa de lhe fazer completo. Portanto, nesse momento, o sujeito se aliena ao Outro como desejo e tenta se colocar no lugar de objeto de seu desejo.

A segunda operação destacada por Lacan no Seminário XI (1988[1964]) é a separação. Nesse Seminário, é a separação que ele introduz, uma vez que a alienação já havia sido revelada anteriormente em sua teoria. A partir desse Seminário, o real é colocado como insígnia da constituição do sujeito.

Na separação, há um confronto envolvendo o sujeito alienado e o Outro como desejo. Ora, se inicialmente o sujeito se apresenta como objeto do desejo desse Outro, o que é notório na topologia da separação é uma tentativa do sujeito de se separar, isto é, de se descolar da posição de objeto do desejo do Outro para assumir a posição de sujeito desejante. Pode-se dizer que o encontro com a falta do Outro abre a possibilidade para a criança, a princípio, tentar ocupar o lugar do objeto do desejo da mãe na esperança de que esta se faça completa. Por isso, Fink (1998, p. 76) salienta que o "Outro materno deve demonstrar que é um sujeito desejante (e dessa forma também faltante e alienado), que também se sujeitou à ação da divisão pela linguagem, para quetestemunhemos o advento do sujeito". É nas vacilações do discurso que o sujeito irá perceber que o Outro deseja além dele, que há algo desse desejo que escapa e que, portanto, não há a possibilidade de sanar esse desejo. A separação do desejo da mãe possibilita uma ruptura nessa relação, o que leva ao advento ou queda do objeto a causa do desejo.

No entanto, como nos diz Soler (1997, p. 62):

A alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode evitar a alienação. É um destino ligado à fala. Mas a separação não é destino. A separação é algo que pode ou não estar presente. A separação requer que o sujeito 'queira' se separar da cadeia significante.

O sujeito nasce em um mundo onde a linguagem o precede. Nasce sendo falado por um Outro, que lhe endereça significantes. Não há possibilidade de o sujeito se furtar a esses significantes, pois estes representam um lugar no campo da linguagem que foi destinado a ele. Nesse sentido, fica claro o que Soler (1997, p. 62) pontua: "a alienação é o destino"; alienação a esse primeiro significante, S1, o significante-mestre. Há, nesse momento, a opção de petrificar-se nesse S1 ou possibilitar um deslizamento da cadeia de significantes com o advento do S2. Nesse segundo caso, em que há o advento do S2, o significante que vem significar o desejo do Outro, o sujeito percebe que falta tanto nele quanto no Outro. A princípio, o sujeito tenta ocupar o lugar de objeto do desejo do Outro, alienando-se, assim, ao desejo do Outro. No entanto, nas vacilações da fala do Outro, o sujeito poderá perceber que há algo nesse desejo que vai além dele e que, então, a completude não se faz possível. Por esse motivo, a colocação de Soler (1997, p. 62) é esclarecedora: "A separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito no Outro". Portanto, a alienação ao Outro como linguagem é um destino ligado à fala. Mas a separação supõeuma escolha. É com a separação que se tem a possibilidade da queda do objeto a causa do desejo. E com isso, não apenas o Outro, mas também o sujeito se torna sujeito desejante.

 

A relação do autista com o outro

Para todo sujeito, é destinado um lugar no campo da linguagem onde ele se aliena. As diferenciações de ordem estrutural nas patologias infantis se estabelecem na relação do sujeito com o Outro. Apesar das aproximações com o campo da psicose, o que fica demarcado como primordial na posição do autista é sua relação com o Outro.

Na linguagem, o encontro com o S1 – o significante unário – demarca um lugar onde o sujeito se coloca frente a duas posições: petrificar-se nesse significante unário ou enlaçar-se no S2, possibilitando o deslizamento da cadeira significante. Na posição do sujeito autista, a petrificação se faz como alternativa, uma vez que ele "não encontra um lugar para situar-se no desejo do Outro, isto é, não se aliena ao desejo do Outro" (Padilla e Lhullier, 2012, p. 120). Ainda esclarecendo essa posição do autista, esses autores, amparando-se em Laurent (2003), apontam que, para o autista, há o Outro da linguagem, que se apresenta como ameaçador; por outro lado, não há o Outro da fala, que teria a função de apaziguar esse sujeito. Assim sendo, como todo e qualquer sujeito, o sujeito autista é afetado pela linguagem. Não há possibilidade de se furtar a essa alienação da linguagem.

No entanto, no que concerne à posição do sujeito autista e sua relação com o Outro, notamos não haver um consenso no significado do que seria aceitar, recusar ou aceitar parcialmente a alienação. Um exemplo dessa dificuldade pode ser observado nas proposições de Soler. No ano de 1997, ela defendeu que a alienação é o destino e que todo o ser falante não escapa à alienação. Entretanto, dez anos depois, no livro "O inconsciente a céu aberto da psicose" (2007), essa autora defendeu o argumento de que o autista se situa aquém da alienação. Essa posição parece contradizer o argumento de 1997. No entanto, o que Soler revelou nessa data é que, apesar de o sujeito autista ser capturado na alienação significante do Outro, há uma recusa por parte desse sujeito de entrar na alienação, levando-o a permanecer na borda. Por isso, na ótica de Soler (2007), os sujeitos autistas e psicóticos são inseridos na linguagem – já que são capturados pelos significantes da linguagem –, mas estão fora do discurso, propiciando que estes sejam sujeitos, mas não enunciadores.

Maleval (2012, p. 50), no que diz respeito à alienação, propõe tratar-se, no caso do autismo, de uma alienação parcial. Essa conclusão pode ser feita ao notarmos que há no sujeito autista uma alienação ao primeiro significante, o S1, que se petrifica e impede que ocorra o deslizamento da cadeia de significante, imprescindível para a alienação completa do sujeito ao Outro como desejo. Portanto, a alienação do sujeito autista é parcial, na medida em que esse sujeito se aliena apenas ao Outro como linguagem e não como desejo, devido à sua petrificação no S1.

Por se encontrar fixado à alienação no nível da linguagem, isto é, petrificado ao significante unário, o Outro se apresenta como maciço por causa da falta de significação dada pelo S2. Isso porque, devido à petrificação no significante unário, não ocorre o deslizamento na cadeia significante e, por consequência, é impossível de a separação se realizar. Sem a separação, a perda do objeto a como extração de gozo não se faz, comprometendo o registro da falta fundamental. Devido à inoperância dessa falta, o Outro é visto pelo sujeito autista como intrusivo, e seu excesso de presença o coloca em posição de promover um intenso trabalho de separação deste (Maleval, 2012).

Assim sendo, vemo-nos diante dessa clínica em um impasse no que concerne ao trabalho clínico, na medida em que algumas das dificuldades apresentadas pelos sujeitos autistas referem-se a duas questões que são importantes para a realização desse trabalho, a saber: o modo de relação desta criança com o outro e o uso da linguagem. Sobre a primeira questão, Laznik (2013) é enfática ao dizer que não é que esse sujeito não possa estabelecer contato com outras pessoas, não se trata disso. A dificuldade está em manter uma relação de qualidade com esses sujeitos. Essa autora apresenta como exemplo, a questão do olhar para o sujeito autista. Laznik (2013) explica que comumente tem-se a ideia de que o sujeito autista evita o olhar do outro. No entanto, sabe-se que há casos em que a criança realmente evita o contato visual, outros casos em que a criança olha fixamente. Portanto, trata-se na realidade, da qualidade do olhar desta criança para a mãe. Dessa mesma forma, ao falarmos sobre as dificuldades em que o sujeito autista apresenta na relação com o outro, não quer dizer que esta criança não consiga se relacionar, trata-se antes, da qualidade dessa relação e de um modo próprio de se relacionar.

No que concerne a linguagem, tem-se também um impasse no autismo: há sujeitos que não falam, outros tem certas dificuldades com a linguagem, outros respondem com fala ecolálica e alguns que conseguem fazer uso da linguagem de maneira mais elaborada. Independente da forma de expressão apresentada por esta criança, há comunicação realizada por elas. Acreditamos que estas são formas de expressão destes sujeitos e resta a nós no campo da clínica saber ouvi-los. A clínica psicanalítica não desconsidera essa forma de comunicar, pelo contrário, busca escutar esses sujeitos em sua singularidade.

Assim sendo, o que parece notório no autismo é uma falta de padronização dos comportamentos. Por esse motivo, "o critério diagnóstico da psicanálise toma os comportamentos como itens consideráveis, mas a eles acrescenta a identificação da posição do sujeito frente ao Outro e ao objeto, para denominá-lo 'autista'" (Pimenta, 2012, p. 133-134).

Ribeiro (2005) nos indica que, frente ao Outro que lhes apresenta como intrusivo esses sujeitos adotam uma série de comportamentos, que possam parecer aparentemente sem sentido, mas que consistem, na verdade, em uma espécie de estratégia frente à demanda do Outro. Diante desse Outro que é percebido como intrusivo por essas crianças, elas realizam um trabalho, uma tentativa de inscrição significante, de constituir uma primeira simbolização.

Ribeiro (2005) contribui ao nos advertir que a primeira condição necessária ao tratamento é que o analista se deixe regular pelas construções que a criança já realiza. Laurent (2014, p. 35) nos indica, nesse mesmo sentido, que "as condições que possibilitam um laço com o autista são as que implicam uma aceitação". Tais indicações, aliadas à observação da relação singular que os sujeitos autistas mantêm com determinados objetos, nos levam a questionar a função do objeto na clínica com sujeitos autistas, questão que norteia o presente artigo. Antes de partirmos diretamente para tal indagação, perpassaremos por um apanhado geral no que concerne à função do objeto na clínica com crianças neuróticas.

 

A função do brinquedo na clínica da neurose

Foi com as consagradas psicanalistas de crianças, Anna Freud e Melanie Klein, que a prática clínica com crianças teve seu início no ano de 1920. No entanto, em 1909, tivemos o primeiro caso de atendimento infantil, o qual apresenta uma peculiaridade. Trata-se da primeira criança a ser atendida nos moldes psicanalíticos – Herbert Graf –, nomeado por Freud como pequeno Hans. Hans sempre será na clínica com crianças um ilustre precedente. A peculiaridade desse atendimento foi o fato de Hans ter sido atendido pelo próprio pai com a supervisão de Freud. Esse caso foi relevante para a posterior prática clínica com crianças, pois, a partir dele, Freud pôde demonstrar a existência da sexualidade na infância e considerar a importância do tratamento psicanalítico também com crianças. Entretanto, essa prática revelava uma especificidade, uma vez que as crianças não associavam livremente (Calzavara, 2012).

No livro publicado em de 1921, Hermine Von Hug-Hellmuth apresenta várias indicações de seu trabalho com crianças (Colombier, 1998). No ano de 1927, em um debate organizado pela Sociedade Britânica de Psicanálise, Melanie Klein mencionou, pela primeira vez, o nome de Hermine Von Hug-Hellmuth como a pioneira da psicanálise com crianças (Fendrik, 1991). Apesar de ter utilizado em seus atendimentos os desenhos, e ocasionalmente utilizado os brinquedos, ela não chegou a desenvolver uma técnica específica para a análise infantil. Desse modo, Melanie Klein e Anna Freud estão no centro do movimento psicanalítico como as precursoras dessa clínica por passarem a considerar o brincar como a forma pela qual as crianças entram no processo analítico. A partir de 1920, essas autoras, cada uma a seu modo, fizeram suas inserções na clínica com crianças considerando o brincar como forma de acesso ao inconsciente; isto é, como correspondente à associação livre dos adultos.

Por considerar a diferença existente entre a atividade mental da criança e a do adulto, além do fato de a criança ainda não ter domínio sobre a fala, Melanie Klein (1981[1926]) considerou ser necessário encontrar uma técnica para crianças, a qual possibilitasse o trabalho clínico. O brincar foi escolhido por Klein como sendo uma técnica para as crianças em substituição à associação livre do adulto. Para Melanie Klein (1997[1932], p. 27), "a criança expressa suas fantasias, seus desejos e suas experiências reais de um modo simbólico, através da brincadeira e jogos". É por essa via que as crianças entram no processo analítico.

Melanie Klein (1960[1882]), no livro "Melanie Klein: Psicologia", apresenta o caso clínico de Rita, criança de dois anos e nove meses, que foi atendida por ela em 1923. Com o relato desse caso, ela demonstra que, ao interpretar o brincar da criança, de forma semelhante àquela que Freud fez com os sonhos, era possível ter acesso ao inconsciente. Para essa psicanalista, foi a partir desse caso clínico que ela percebeu que existia uma condição prévia para que a análise de uma criança fosse possível: "compreender e interpretar suas fantasias, sentimentos, ansiedades e experiências manifestadas através do brincar" (Klein, 1960[1882], p. 120).

Além disso, Klein ressalta que a única coisa que diferencia a análise com crianças da com adultos é a técnica, sendo que os princípios permanecem os mesmos. Assim, ela pontua que "os métodos do jogo preservam todos os princípios da psicanálise, conduzindo aos mesmos resultados da técnica clássica" (Klein, 1981[1926], p. 191). Ademais, para Klein (1981[1926]), o brincar possibilita, na clínica com crianças, a instauração da transferência. Esse conceito é fundamental para a ocorrência do tratamento psicanalítico.

Do mesmo modo, Anna Freud fez sua inserção no mundo da criança a partir de sua experiência como pedagoga. Estudou o comportamento das crianças em escolas primárias e observou os variados tipos de brinquedos que elas costumavam utilizar em suas brincadeiras nas diferentes etapas do desenvolvimento infantil. Em suas observações, associava seus conhecimentos psicanalíticos à sua prática pedagógica e construiu, a partir disso, uma técnica específica no tratamento com crianças (Calzavara, 2012). No entanto, o que se destaca no tratamento tanto de Melanie Klein quanto de Anna Freud é a utilização do brincar como instrumento técnico na prática com crianças. Ainda na perspectiva do recurso técnico para esta análise, Anna Freud reitera que o analista pode dispor de outros instrumentos na tentativa de preencher essa lacuna provocada pela ausência da associação livre. Esses instrumentos, utilizados em sua clínica, se referem também ao desenho, à escrita e às fantasias.

Winnicott (1975) retoma o uso do objeto como instrumento de trabalho da criança, mas em uma perspectiva diferente, sem se restringir ao objeto brinquedo. Esse autor fez importantes contribuições para se pensar a função do objeto na clínica com crianças neuróticas ao postular, em 1958, o chamado objeto transicional. Na medida em que a mãe não pode se fazer presente ao lado da criança o tempo todo, o objeto transicional entra como substituto temporário, de onde a criança pode tirar certa satisfação no momento da ausência dessa mãe. Esse objeto surge no primeiro ano de vida e, geralmente, se apresenta na figura de objetos como ursos de pelúcia, fraldas, chupetas e cobertores. O objeto transicional, segundo o autor, pode representar o seio ou o objeto da primeira relação. Sobre isso, Winnicott (1975, p. 17) nos aponta que "o importante não é tanto seu valor simbólico, mas sua realidade. O fato de ele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a mãe)". Esses objetos representam a relação particular que as crianças mantêm com sua mãe.

Diferentemente dessas posições apresentadas até o momento, Lacan nos revela sua posição a respeito do uso do objeto pela criança em seu Seminário XI (1988[1964]) ao comentar sobre a repetição contida no uso do brinquedo – o carretel ou Ford-Da – pelo neto de Freud. É no texto "Além do Princípio do Prazer" (1996[1920]) que Freud relata o modo como seu neto, um menino de um ano e meio, fazia o uso do carretel: ele o arremessava sobre a cama e proferia algo semelhante a um Fort (foi embora) e, ao puxá-lo de volta, proferia o Da (cá, está) quando o brinquedo aparecia novamente. Para Freud (1996[1920]), o menino encenava o desaparecimento e volta da mãe mediante o uso do carretel. Para Lacan (1988[1964]), o jogo do carretel se constitui como uma resposta do sujeito frente ao fosso que a ausência da mãe criou. A criança não olha para a porta por onde a mãe saiu, mas para o vazio, o real. Esse lugar vazio vai provocar a invenção da criança. O jogo é a resposta da criança ao que a mãe vem criar na fronteira de seu domínio, na borda do berço, em torno do qual a criança não tem o que fazer senão o jogo do salto. Ao invés de se jogar nesse vazio, a criança prefere dar uma parte de si mesma – o objeto a. Nesse Seminário, Lacan (1988[1964], p. 63) nota a importância do uso que a criança faz do objeto e pontua que "o homem pensa com seu objeto", revelando-nos, em seguida, que o carretel inserido no jogo será o objeto que mais tarde representará o objeto pequeno a. No Seminário 11 (1988[1964]), esse autor reconhece a importância que o objeto ocupa na análise com crianças, colocando-o como representativo do objeto a. Desse modo, o objeto traz a marca do que há de mais singular do sujeito.

Orientados por Lacan, Rosine e Robert Lefort trazem contribuições importantes no que se refere ao uso do objeto na clínica. Na "Conferência II: A holófrase – A topologia do Significante" foi perguntado a Rosine em que medida o brinquedo poderia ser uma estrutura significante para dizer aquilo que não pode ser dito. A resposta de Rosine (Lefort e Lefort, 1986, p. 45-46) nos esclarece sobre o seu pensamento a respeito do uso do brinquedo na clínica:

Você fala de brinquedo. Eu nunca pensei que eu deveria colocar brinquedos numa sessão. Eu colocava objetos que representavam simbolicamente, que eram representantes, do objeto para fazer uma estrutura. [...] Quando eles não têm a linguagem, seja porque elas ainda não têm a idade, como Nádia, ou porque sua patologia não permitia: se vocês não colocarem objetos dos quais elas possam fazer algo, exprimir alguma coisa, nenhuma análise será possível.

Rosine continua sua resposta dizendo sobre o fato de colocar a mamadeira na sessão para Nádia. Ressalta que não foi uma ideia tirada de seu pensamento, mas que foi Nádia quem lhe pediu. Com esse pedido, Rosine diz ter aprendido que a criança mostra a necessidade de ter um objeto que lhe é importante na sessão. No caso de Nádia, o que fica claro é que a mamadeira tinha uma função de representar alguma coisa sobre sua história. Esses objetos, continua Rosine (Lefort e Lefort, 1986, p. 46), "tinham que ser não apenas da minha cabeça, mas tinham que ser representantes, objetos necessários para a formação da estrutura". Portanto, eram objetos do discurso de Nádia.

Segundo Robert e Rosine Lefort (1986), amparados no ensino de Lacan, esses objetos representantes da estrutura da criança provêm do objeto a – surgem daquilo que causam o desejo. Portanto, ao analisar uma criança com seu objeto durante a sessão, o analista não se ocupará do jogo ou brincadeira "senão, não levaria a nada. O analista não olha a criança, ele se ocupa do sujeito" (Lefort e Lefort, 1986, p. 47). Desse modo, no processo analítico, o objeto, sendo ele brinquedo ou não, se apresenta como um representante necessário para a formação da estrutura psíquica da criança.

Na clínica com sujeitos neuróticos, os objetos se fazem presentes o tempo todo. E na clínica com sujeitos autistas, esses objetos marcam uma presença ainda mais maciça, quando, na maioria das vezes, a criança interage mais com eles do que com o terapeuta. Sujeitos autistas que se propuseram a escrever, tais como Temple Grandin e Donna Williams (citados por Maleval, 2009), relataram a importância que esses objetos têm para eles, afirmando que aqueles os auxiliam na relação com o outro. Por isso, é a partir desse trabalho que o sujeito autista já realiza com seu objeto que se torna possível a entrada do terapeuta. Ou seja, é com o auxílio do objeto que o processo analítico se torna possível. É a partir dessas considerações sobre a importância do objeto para o trabalho com o sujeito autista que seguiremos na tentativa de elucidar a posição desta frente ao objeto na clínica.

 

Os objetos na clínica com sujeitos autistas

É comum ouvir, por meio dos relatos dos pais na clínica, sobre a particular relação que sujeitos autistas mantêm com objetos, podendo passar horas com um objeto específico. No texto "Os objetos autísticos complexos são nocivos?", Maleval (2009, p. 223) discute o significado desse objeto para o sujeito autista, questionando se "eles participam da construção subjetiva ou entravam o desenvolvimento da criança?" Vale, além disso, questionar: para que servem esses objetos? E porque essas crianças demonstram tanto apego a eles? Tais questionamentos serão discutidos a partir do posicionamento de teóricos como Francis Tustin e Maleval.

Francis Tustin foi a primeira psicanalista a estudar a função do objeto na clínica com sujeitos autistas. Dedicou, na sua obra "Autismo e Psicose da criança" (1975[1972]), alguns capítulos que tratavam sobre esse assunto. No capítulo desse livro dedicado aos objetos autísticos, Tustin (1975[1972]) formula que esses objetos podem ser experimentados como partes do corpo da própria criança ou em partes do mundo externo, que são sentidos como partes de si mesma. Esse objeto se apresentaria, dessa forma, como um recurso utilizado pelo sujeito autista na tentativa de evitar frustrações insuportáveis. Sobre esses objetos, Tustin (1984[1972]) aponta uma dualidade: ao mesmo tempo em que ela afirma que esses objetos são marcados por uma dimensão patológica, argumenta também que esses objetos são vitais para essas crianças na medida em que as mantêm protegidas.

Na formulação da sua teoria sobre os objetos autísticos, Tustin recorre, inicialmente, ao conceito do objeto transicional de Winnicott. Essa autora diferencia os objetos autísticos dos transicionais em, basicamente, uma questão: no caso dos objetos transicionais, as crianças conseguem distingui-los do próprio corpo, diferentemente dos objetos autísticos, cuja função primordial consiste em "neutralizar toda e qualquer percepção" (Tustin, 1975[1972], p. 76) que não seja do próprio corpo.

Dessa forma, para Tustin (1975[1972]), a função do objeto autístico consiste em barrar o desenvolvimento da consciência de separação corporal. Assim, essa autora formula que esses objetos se constituem como protetores da perda, pois eles não são considerados substitutos temporários da mãe - como acontece com o objeto transicional –, mas a substituem permanentemente (Tustin, 1975[1972]). No entanto, Tustin (1975[1972], p. 76) destaca que, apesar de esses objetos serem distintos, eles podem se "interpenetrar", sublinhando ainda que é "preferível dizer que alguns objetos transicionais são mais autísticos do que outros". Para a autora, uma criança neurótica pode fazer uso dos objetos de forma autística, mas, ao longo do seu desenvolvimento, esse objeto se funde ao objeto transicional. Isso porque o objeto autístico foi pensado por Tustin (1975[1972]) como um precursor do objeto transicional.

Maleval (2009, p. 231) discorda das elaborações de Tustin e postula que o objeto autístico não pode se fundir com o objeto transicional, uma vez que eles são "radicalmente distintos". Maleval (2009) postula, basicamente, duas diferenças entre esses dois objetos. A primeira diferença é que as crianças fazem uso dos objetos transicionais apenas nos primeiros anos de vida, diferentemente dos objetos autísticos que persistem tardiamente. A segunda diferença destacada pelo autor é que o objeto transicional serve para moderar a perda, a fim de acalmar o sujeito frente à ausência materna. O objeto autístico, por outro lado, além de ter a função apaziguadora, serve também para estimular o sujeito - o que não ocorre com a criança que faz uso do objeto transicional, pelo fato de esta já ser um sujeito desejante.

Apesar de diferenciar os objetos autísticos dos objetos transicionais, chegando a formular, como já dito, que eles são "radicalmente distintos", esse autor se apropria da indicação de Lacan de que o jogo do carretel se constitui como um objeto transicional, com intenção de comparar o Ford-Da com as condutas on-off (Maleval, 2009, p. 231). As condutas on-off são destacadas por Maleval (2009) como um comportamento recorrente em sujeitos autistas. Esse autor argumenta que, entre o Fort (foi embora) e o Da (cá, está), há uma encenação da perda. Desse modo, o Fort-Da, como objeto transicional, se apresenta como possibilidade para o sujeito suportar a perda do objeto. Para Maleval (2009, p. 233), o Fort-Da e as condutas on-off "parecem duas maneiras para tratar a negatividade da linguagem e a dor da perda de objeto". No entanto, a diferença entre esses dois é que o primeiro, o jogo do Fort-Da, entraria no campo do significante e o outro pela via do signo. Isso é esclarecido pelo autor (2009, p. 234) ao dizer que "só o significante realiza plenamente o assassinato da coisa; o signo continua portando a coisa, mesmo quando nega a sua presença". Assim sendo, apesar de compará-los, Maleval destaca que o funcionamento das condutas on-off são diferentes do Fort-Da transicional.

Maleval (1997, apud Pimenta, 2012) destaca em suas formulações sobre o autismo que a defesa autística se ancora sobre objetos e se desenvolve a partir da ligação de significantes a esses objetos. Dessa forma, Maleval (1997, apud Pimenta, 2012) formula quatro formas na construção do objeto autístico. A princípio teríamos o objeto autístico bruto, no qual este é utilizado pelo sujeito autista como modo de colocar certa ordem no mundo. Neste caso, poderia ser qualquer objeto que contribuísse para que esta criança mantivesse certa imutabilidade no mundo externo, protegendo-as assim, do desejo do Outro. Uma segunda forma se refere ao objeto autístico não regulado, em que este objeto carrega significantes próprios do sujeito e que, desse modo, não são compartilhados por outras pessoas, mas os auxiliam sobremaneira em um melhor ordenamento do mundo. Um exemplo dado pelo autor são as máquinas de Joey. Uma terceira forma diz respeito ao objeto autístico regulado, em que os significantes são tomados em massa. Como exemplo disso tem-se as placas de rua, catálogos de telefone e calendários, dentre outros. Na última forma de elaboração da defesa autística teríamos o objeto autístico como regulador, que possibilita que o sujeito consiga se "movimentar" em situações inesperadas, ancorando-se sobre um objeto que instaura uma borda como proteção entre o sujeito e o Outro.

Um pouco mais tarde, no ano de 2009, Maleval substitui os quatro tipos de objetos por apenas dois: os objetos simples e complexos. Essa diferenciação é feita a partir da observação de que alguns objetos podem ser marcados por um caráter dinâmico. São os objetos nomeados como complexos que apresentam essa característica, oferecendo, por esse motivo, a possibilidade de construção de laço social para esse sujeito autista. Os objetos autísticos simples, por outro lado, se apresentam como apoio, como recurso de defesa. Esse objeto é o que Tustin (1975[1972], p. 80) falava, destacando como característica primordial sua dureza. Para Maleval (2009), os objetos autísticos complexos são criações do próprio sujeito, havendo raras exceções de objetos não-criados.

Maleval (2009) enfatiza que é preciso pensar o objeto autístico para além dessa noção patológica colocada por Tustin. Na ótica de Maleval (2009), Tustin, apesar de ter reconhecido a função apaziguadora desse objeto para os sujeitos autistas, na medida em que as mantém protegidas da angústia, negligenciou o caráter dinâmico desse objeto. Assim, Maleval (2009, p. 253) pontua que o sujeito autista busca assimilar essa propriedade dinâmica, "mas isso só é possível operando um trabalho que se apoia no objeto e passa por uma elaboração imaginária da perda simbólica". Dessa forma, para Maleval, o objeto autístico não deveria ser retirado desse sujeito, tendo em vista a função que este pode exercer na relação entre o sujeito autista e o gozo invasivo do Outro. Diante dessas considerações e da indicação de Lacan (1988[1964], p. 63) de que "o homem pensa com seu objeto", é possível compreender a importância que esse objeto apresenta para o sujeito autista, sendo significativo e essencial, inclusive para facilitar o trabalho que o sujeito autista já realiza na tentativa de barrar o excesso de presença do Outro.

 

Considerações Finais

Na clínica do autismo, o que se apresenta a nós é um sujeito que, em sua relação com o Outro, adota uma posição radical de distanciamento. Isso porque esse Outro se impõe como intrusivo para esse sujeito provocando um excesso de presença que é sentida como ameaçadora. Desse modo, o sujeito autista recorre a um trabalho constante de barrar o excesso de gozo que vem do Outro. Esses sujeitos, apesar de estarem na linguagem, não se encontram divididos pelo enigma do sintoma. Por esse motivo, não formulam um discurso próprio, repetem o discurso do Outro e não se apropriam deste. Além disso, autores como Ribeiro (2005) destacam que as estereotipias, tão presentes no comportamento desses sujeitos, podem ser consideradas como um trabalho que essas crianças realizam na tentativa de barrar a intrusão do Outro.

Variados autores que trabalham com o autismo, no âmbito da psicanálise ressaltam a necessidade de mais pesquisas acerca do uso do objeto por esses sujeitos. Destaco aqui neste artigo, autores como Jean-Louis Bonnat (2008), Eric Laurent (2012) e Maleval (2009). Bonnat (2008) destaca que é com o uso do objeto que se dá a estruturação subjetiva do sujeito autista. Eric Laurent (2012) em suas pesquisas privilegia o objeto como instrumento importante para a construção do corpo no autismo. De outro modo, Maleval (2009) trabalha com a ideia de que esses objetos são utilizados como mecanismo de auxílio na defesa autística. O que fica evidente nas colocações destes pesquisadores, e de outros tantos que trabalham com o sujeito autista, é que por fazer parte da estrutura psíquica do sujeito e por responder a um modo singular de funcionamento na relação com o outro, este objeto é uma tentativa permanente desses sujeitos em estabelecer e manter uma relação possível com o Outro. Portanto, esses objetos não devem ser retirados destes sujeitos, pelo contrário, deve-se trabalhar com o sujeito autista, a partir das construções que este já realiza com o seu objeto.

Diante das considerações apresentadas, podemos dizer que o sujeito autista, frente à posição em que ele se coloca em relação ao Outro, poderá utilizar o objeto, sendo ele um brinquedo ou não, como alternativa de trabalho na clínica. Esse objeto não se apresenta como pura materialidade, mas faz parte de uma prática clínica como mediador do psiquismo infantil. Portanto, tomamos uma direção neste trabalho que acreditamos trazer contribuição na clínica do autismo no que se refere ao tratamento. Ao considerarmos a maneira singular de apresentação desses sujeitos frente ao Outro, sabemos que os objetos servem de possibilidade de laço desses sujeitos com o mundo. As contribuições deste estudo para a clínica do autismo se destacam na maneira como esses objetos são introduzidos pelo sujeito e são utilizados como possibilidade de trabalho. Ancorado na alienação, esse sujeito vai trabalhar a possibilidade de introdução de um objeto em que ele pode relacionar. Um objeto na alienação que representa a possibilidade de o sujeito fazer laço de relação possível com os outros. Nesse caso, sabendo que o objeto se coloca como um instrumento importante que contribui para uma construção particular do sujeito, ele se coloca como necessário na possibilidade do trabalho em análise.

 

Referências

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Submetido: 15/09/2016
Aceito: 14/12/2016

 

 

1 Ao longo deste artigo iremos nos referir à "criança autista" ou "sujeito autista" e não "criança com autismo", isto porque, para a psicanálise o autismo compreende um modo de resposta singular do sujeito ao Outro, longe de ser considerado uma categoria diagnóstica. Para a psicanálise o autismo é uma posição estrutural, um modo de resposta subjetiva. Desse modo, fazemos uma aposta no sujeito, seja este autista ou não.
2 Em seu segundo Seminário (Lacan, 1985[1955], p. 297), Lacan postula a diferenciação entre o outro (com a minúsculo) e o Outro (em maiúsculo). O outro se refere ao semelhante e o Outro é concebido, neste seminário, como lugar da fala. Todos os sujeitos se apresentam para a criança enquanto outro, dado que são semelhantes a ela. A mãe, por exemplo, pode também se apresentar enquanto o Outro na medida em que direciona significantes advindos de sua própria história para essa criança.
3 Data em que foi escrito o texto "O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica". No entanto, foi somente em 1949 que Lacan o apresentou no XVI Congresso Internacional em Zurique.
4 Objeto a é um conceito postulado por Lacan (2005, p. 243) para dizer do "que sobrevive da operação de divisão do campo do Outro pela presença do sujeito". No Seminário 11, ao sublinhar a repetição reiterada da criança na utilização do carretel no jogo do Fort-Da, revela que esse jogo acompanha uma das primeiras aparições do sujeito e que o carretel seria representante do que viria a designar o sujeito. A esse objeto (carretel) nos diz Lacan seria "ulteriormente seu nome de álgebra lacaniana – o a minúsculo".

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