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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.11 no.1 São Leopoldo Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.111.09 

ARTIGOS

 

Impasses e alcances da psicanálise: o empreendedorismo do analista contemporâneo

 

Impasses and scope of psychoanalysis: the entrepreneurship of contemporary analysts

 

 

Silvio Augusto Lopes IensenI; Mônica Medeiros Kother MacedoII

IUniversidade Franciscana. Rua dos Andradas, 1614, Centro, 97010-032, Santa Maria, RS, Brasil. silvioiensen@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos, 2600, Santa Cecília, 90035-003, Porto Alegre, RS, Brasil. monicamkm@icloud.com

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma pesquisa de cunho qualitativo realizada com psicanalistas, com significativa experiência clínica e produção escrita sobre Psicanálise. Por meio de entrevistas semidirigidas, buscou-se explorar os efeitos das demandas clínicas contemporâneas na forma dos participantes exercerem a clínica e, também, suas concepções a respeito da atual situação da Psicanálise. Os dados obtidos foram trabalhados com o método de Análise de Conteúdo e resultaram na estruturação de quatro Categorias Finais: Incompletude e abertura da Psicanálise: o valor do legado de Freud; A clínica psicanalítica atual: exigência de trabalho ao psicanalista; O ouro da Psicanálise; e, por último, O enfrentamento do mal-estar próprio da Psicanálise: riscos e potenciais. Os achados deste estudo permitiram definir como empreendedorismo o trabalho criativo do psicanalista diante de impasses clínicos e nomear como analista contemporâneo o profissional que, compromissado com a essência do legado freudiano, inquieta-se e cria frente aos interrogantes clínicos, produzindo, assim, conhecimento em Psicanálise.

Palavras-chave: clínica psicanalítica, analista contemporâneo; Psicanálise, empreendedorismo.


ABSTRACT

This is a qualitative study of psychoanalysts with extensive clinical experience and scientific research articles in the field of Psychoanalysis. It has been intended to explore the effects of contemporary clinic demands in participant's clinical practice, using semi-structured interviews, and also their conceptions of Psychoanalysis actual situation. The obtained data was studied using the Content Analysis method and resulted in the structure of four Final Categories: Incompleteness and openness of Psychoanalysis: the value of Freud's legacy; Modern clinical Psychoanalysis: work demands to psychoanalysts; Psychoanalysis' gold and; the last one, Confronting the discontents of Psychoanalysis: risks and potentials. The findings of this study enabled us to define the creative work of psychoanalysts facing clinical impasses as entrepreneurship and allow to designate as contemporary those professionals who, committed to the essence of Freudian legacy, concern and create before clinical questions, producing, therefore, knowledge about Psychoanalysis.

Keywords: psychoanalytical clinic, contemporary analyst, Psychoanalysis, entrepreneurship.


 

 

Introdução

As influências da cultura na produção de elementos intrapsíquicos e a relevância do experimentado no campo intersubjetivo foram assinaladas por Sigmund Freud ao longo do desenvolvimento teórico e técnico da Psicanálise. Birman (2006) considera que a moral presente na Modernidade incidia sobre a economia erótica das individualidades a ponto de ser capaz de perturbar o funcionamento psíquico. Entende-se, assim, ser possível considerar que a cultura e as vivências do sujeito estão intrinsecamente entrelaçadas, sendo impossível considerar uma sem a referência a outra. A modernidade não admitia mudanças em seu projeto (Maia, 2005). Todo o desenho de funcionamento cultural e social da modernidade baseava-se nessa ordenação severa e rígida. Nessa higienização social, o que não correspondia a essas ordenações ficava à margem, pois, segundo Maia (2005), à época, "o moderno toma a ordem como tarefa: é preciso ordenar, classificar, purificar" (p. 31). Tanto os conflitos psíquicos dos sujeitos quanto as questões sociais – divisão privado/público – da era moderna produziram sujeitos com certas especificidades em seus padecimentos psíquicos, sendo exemplo clássico disso a histeria feminina.

Na contemporaneidade surgem demandas sociais e identitárias distintas da Modernidade. O sujeito da atualidade é mais afetado, conforme Birman (2009), no sentido de demandas decorrentes da centralização do Eu na constituição da subjetividade. Logo, os efeitos no sujeito são necessariamente de outra ordem. A contemporaneidade se alicerça em relações humanas nas quais imperam, segundo Ferreira e Miras (2008), a rapidez, a volatilidade, o espetáculo daquilo que se pode ver e a descartabilidade de bens e do outro. A partir dessas características dos tempos atuais, entende-se que o sujeito é atravessado por questões próprias de um meio social mais individualista, em que, segundo Costa e Moreira (2010), há a "crença ilusória na possibilidade do alcance de plena satisfação a partir dos infindáveis objetos postos à disposição do sujeito" (p. 232), inclusive na relação com o outro, na busca incessante de plena satisfação libidinal.

O mundo atual, fundado na instabilidade do passado, do presente e do futuro, manifesta no sujeito os efeitos de uma lógica não duradoura (Bauman, 2008), fazendo com que a rapidez, a flexibilidade e a insegurança nas relações sociais sejam características marcantes das relações intersubjetivas. As relações se estabelecem no modelo de consumo (Costa e Moreira, 2010), sendo o fator determinante a rapidez inquestionável da inserção do sujeito nessa ordem social. Bauman (2008) considera que os vínculos humanos da contemporaneidade se alicerçam no modelo de consumo, em que as relações continuam enquanto produzirem satisfação, semelhante ao que ocorre com outros objetos de consumo, os quais são rejeitados – substituídos – se não produzirem a satisfação desejada, evitando-se, com todo esforço, qualquer tipo de protelação.

Pode-se pensar que, atualmente, os limites da experiência da castração, as questões edípicas e a repressão da sexualidade, não cumprem um papel central nas configurações das ditas psicopatologias contemporâneas. Não se afirma que esses temas não façam parte das configurações da dor psíquica da atualidade, apenas constata-se não serem eles centrais como os são nas patologias próprias à ordem neurótica. Outros elementos, desta forma, precisam ser abarcados frente à proposição de exercer uma reflexão sobre o sujeito na contemporaneidade. As mudanças na sociedade atual fazem com que a Psicanálise se reinvente constantemente, pois sua invenção, segundo Roudinesco (1988), também ocorreu em meio a adversidades e diante da tentativa freudiana de compreender os males que afligiam suas pacientes.

As intrincadas e inegáveis relações entre o sujeito e a cultura contemporânea levam à imperiosa reflexão sobre a incidência de seus efeitos no trabalho analítico. Sob essa ótica, em relação ao avanço da Psicanálise, Hornstein (2008) entende que o que foi herdado deve não somente ser administrado, mas também trabalhado pelos herdeiros desse patrimônio, a quem cabe fazê-lo avançar, porque a Psicanálise "é contemporânea, então avança. Avança porque, desafiando os limites do analisável, faz operar novos territórios" (p. 139). A complexidade e a diversidade contemporânea de processos de subjetivação e de produção de sofrimento psíquico acarretam inegáveis demandas e exigências de revisitar e fazer trabalhar conceitos psicanalíticos a fim de aprimorar o alcance da escuta analítica.

A especificidade da Psicanálise sustenta diferenciada condição de atenção à singularidade da relação entre o sujeito e a cultura (Maia, 2005; Birman, 2006; Hornstein, 2013). Nessa direção, este artigo retrata uma pesquisa que buscou explorar relação entre a experiência de ser psicanalista na clínica atual, a produção e o avanço do conhecimento em Psicanálise. Nesse sentido, exploram-se falas de psicanalistas com significativa experiência clínica e com produção escrita sobre Psicanálise a respeito dos impasses e, também, das possibilidades com que se deparam na clínica psicanalítica contemporânea.

 

Método

Delineamento

No intuito de pesquisar o exercício de escuta dos psicanalistas foi essencial a realização de um estudo qualitativo, no qual "há necessidade do estudo do particular, e em profundidade" (Cassorla, 2003, p. 24). Para Turato (2003), a pesquisa qualitativa caracteriza-se por investigar questões em profundidade e por buscar compreender a singularidade da experiência para cada sujeito.

Participantes

Participaram do estudo seis psicanalistas com experiência clínica de, no mínimo, 23 anos, e que possuíam produção escrita sobre temáticas referentes à clínica psicanalítica. Na tentativa de explorar elementos relativos às condições e aos impasses contemporâneos no exercício da Psicanálise, buscou-se o relato de analistas que tivessem em seu percorrido profissional significativa produção de artigos, capítulos de livros, livros e/ou tese de doutorado como decorrentes da disponibilidade e da motivação com a produção de conhecimento em Psicanálise.

Instrumentos para coleta dos dados e cuidados éticos

Para a coleta dos dados, foi realizada uma entrevista semiestruturada, gravada em áudio e, posteriormente, transcrita. Esta modalidade de entrevista demonstra sua grande utilidade quando assegura ao pesquisador a obtenção de todas as informações requeridas, ao mesmo tempo em que permite ao entrevistado a liberdade para atribuir significados ao que lhe é importante (Turato, 2003). Na entrevista foram contemplados os seguintes eixos temáticos: (i) relação entre teoria, método e técnica; (ii) o sujeito contemporâneo e sua relação com a cultura; (iii) concepção de psiquismo e subjetividade; (iv) diagnóstico e psicopatologia; (v) transformações teóricas e técnicas na clínica psicanalítica; (vi) a produção de conhecimento em Psicanálise. Os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido e autorizaram a publicação dos dados obtidos no estudo. Foi observado o cuidado com o anonimato dos participantes. Solicitou-se, também, que cada profissional preenchesse uma Ficha de Dados Sociodemográficos (dados profissionais e produção científica em Psicanálise).

Procedimentos para Coleta dos Dados

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade à qual esta investigação encontra-se vinculada, os participantes foram localizados a partir da técnica da "Bola de Neve" (Turato, 2003). As datas e horários das entrevistas foram agendados com razoável antecedência, visto que os participantes residiam em três capitais diferentes e em dois países.

Procedimentos para Análise dos Dados

Após a leitura do material proveniente das transcrições das entrevistas definiu-se as unidades de significado, as quais foram organizadas em Categorias Iniciais, Categorias Intermediárias e Categorias Finais, conforme proposto no Método de Análise de Conteúdo (Bardin, 1991). O trabalho metodológico foi realizado a partir de cinco etapas previstas: preparação, unitarização, categorização, descrição e interpretação dos achados (Bardin, 1991; Moraes 1999). Em relação à análise de conteúdo com categorias criadas a posteriori, Moraes (1999) divide o processo de análise em cinco etapas: a preparação das informações; a unitarização ou transformação do conteúdo em unidades; a categorização ou classificação do conteúdo em unidades; a descrição e a interpretação. Na preparação das informações se identificam as diferentes informações a serem analisadas, a partir da leitura de todo material coletado. Nesse momento, inicia-se o processo de codificação dos materiais, estabelecendo um código que permita identificar elementos representativos e pertinentes ao objetivo da análise. Assim, os materiais são transformados para se constituírem em informações possíveis a serem submetidas à análise de conteúdo. A fase de unitarização é caracterizada pela releitura cuidadosa dos materiais, identificando-se as unidades de análise (definidas a partir da natureza do problema, dos objetivos da pesquisa e do tipo de materiais a ser analisados).

A etapa de categorização pressupõe o trabalho de identificação e codificação de todas as unidades de análise. Os dados considerados comuns são agrupados por semelhança ou analogia, a partir de critérios válidos e adequados, dando origem à sequência de categorias iniciais, categorias intermediárias (novo agrupamento) e, por fim as categorias finais. Para cada categoria é realizado um texto síntese, explicitando o conjunto de significados presentes nas unidades de análise incluídas em cada uma delas.

A última etapa é a interpretação, quando se atinge uma compreensão mais profunda do conteúdo das mensagens através de recursos como a inferência e a própria interpretação dos dados obtidos. Moraes (1999) salienta que a interpretação deve ser realizada tanto sobre os conteúdos manifestos como também sobre os latentes. Nesta pesquisa a interpretação dos dados deu-se com os aportes psicanalíticos.

 

Resultados e Discussão

Os dados sociodemográficos que caracterizam os participantes desta pesquisa podem ser observados na Tabela 1. Dentre os seis participantes, três são psicanalistas argentinos, residentes em Buenos Aires, e os outros três residentes em duas capitais brasileiras.

Apresenta-se separadamente cada uma das quatro Categorias Finais que derivaram de suas respectivas categorias iniciais e intermediárias. A primeira Categoria Final, intitulada "Incompletude e abertura da Psicanálise: o valor do legado de Freud", consta no Quadro 1.

Considerando-se herdeiros do pensamento complexo freudiano, os psicanalistas entrevistados reconhecem o rigor da Psicanálise na especificidade de sua teoria, seu método e sua técnica. O distanciamento de dogmas, a incessante construção do saber psicanalítico e o diálogo permanente com outras disciplinas, surgem nas falas dos entrevistados como elementos decisivos para um exercício criativo em Psicanálise. Referem, assim, a relação da Psicanálise com o modelo de pensamento complexo:

As teorias da complexidade têm se estendido à compreensão das ciências humanas. Se criou em Psicanálise a necessidade de atualizar-se em relação às teorias da complexidade. Estamos olhando o aparelho psíquico como um aparelho completo, aberto, heterogêneo, auto-organizador e fundamentalmente criativo. Muitos psicanalistas contemporâneos que fazem uma releitura de Freud, com o que eu me identifico, pensam justamente em Freud como o precursor do pensamento complexo (P2).

Freud foi um teórico da complexidade sem haver teorizado sobre ela. [...] Creio que a Psicanálise, novamente em diálogo constante com outras disciplinas e aberta às configurações epistemológicas atuais, nos dará possibilidades de repensar novas problemáticas que se configuram (P1).

Morin (2013), expoente maior da teoria da complexidade, afirma que "o pensamento complexo comporta em seu interior um princípio de incompletude e de incerteza" (p. 177).

O autor considera que, por sermos seres biológicos, sociais, culturais e psíquicos, a complexidade exige que a ciência tente conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos os aspectos; por sua vez, o pensamento simplificante separa esses diferentes aspectos ou, então, acaba por unificá-los em uma redução mutilante. Segundo Morin (2012), é fundamental substituir "um pensamento que isola e separa, por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto" (p. 89). O exercício de tessituras das diferenças leva à complexidade e fomenta um fecundo diálogo entre saberes.

Os entrevistados identificam-se com a proposta freudiana de seguir pensando a Psicanálise no permanente diálogo com as demais disciplinas. Ressaltam a constante reflexão a respeito da ruptura epistemológica que a criação freudiana provocou e, a manutenção à condição de abertura às transformações a fim de que a Psicanálise siga avançando criativamente.

Tanto a Física como as Ciências Sociais têm me permitido um olhar diferente para a Psicanálise. [...] Se não há uma leitura de alguns textos freudianos à luz dos novos paradigmas, não vamos dar conta de avançar (P1).

Os artigos metapsicológicos freudianos são exemplos de uma forma de produção desse pensamento complexo que não busca a simplificação. O texto freudiano destaca a heterogeneidade que compõe o psiquismo, a relevância atribuída à singularidade e complexidade de uma história e seus desdobramentos relativos à cultura. Considerar as contribuições advindas de diferentes áreas do saber não significa, portanto, abrir mão do que é especifico à Psicanálise.

Não se pode, por exemplo, hoje, analisar uma histérica da época de Freud, porque estava inserida num outro contexto social que não era o nosso, um contexto cultural absolutamente diverso do nosso. Nosso contexto cultural hoje está ali como base de um outro tipo de subjetividade que vai surgir, e isso não se pode negar e não se pode fechar os olhos. Não podemos olhar para o pulsional de um sujeito completamente desvinculado da cultura onde está, isso é fato, ainda que não se possa determinar que um sujeito seja do jeito que é única e exclusivamente por sua cultura (P6).

Quando mudam os conteúdos do mal-estar cultural, também mudam as subjetividades e, portanto, também mudam as novas formas de expressão sintomática do sofrimento humano (P2).

Para Bleichmar (2009), a constituição do psiquismo comporta elementos invariantes, referentes ao sujeito psíquico (enigma das origens, angústia da morte, temor da perda de amor); já a produção de subjetividade corresponde a modos de ser e estar no mundo produzido pela cultura e sofre mutações ao longo do tempo. O exercício clínico, portanto, precisa considerar a complementaridade entre esses elementos.

A psicanálise tem que ser mais inventiva para lidar com essas demandas que decorrem justamente da análise muito aguda de Freud em relação à cultura, em relação ao sujeito na cultura, em relação ao mal-estar na cultura (P5).

As subjetividades são sempre de época. [...] Há patologias mais frequentes em uma época que em outra. As problemáticas que são mais arcaicas eu não posso deixar de considerar que elas se relacionam com a cultura atual (P3).

A cultura e a produção sintomática estão absolutamente entrelaçadas (P4).

A contemporaneidade é identificada com a predominância de vínculos alicerçados no domínio do consumo (Bauman, 2008), da vigência de uma sociedade do espetáculo (Debord, 1997) e do predomínio da cultura do narcisismo (Lasch, 1991). A partir da afirmação de serem esses os modos predominantes de ser do sujeito que habita os tempos atuais, Birman (2012) afirma o predomínio contemporâneo da modalidade individualista de ser e estar. Para o autor, há um evidente autocentramento do sujeito, tornando o espaço intersubjetivo desinvestido e esvaziado no que diz respeito à qualidade das trocas inter-humanas. Na história recente da Psicanálise, a partir da metade do Século XX, tornaram-se mais presentes estudos sobre o aumento das demandas de "novas psicopatologias". Referem os participantes que:

Creio que a psicanálise, novamente em diálogo constante com outras disciplinas e aberta, digamos, às configurações epistemológicas atuais, nos dará possibilidades de repensar novas problemáticas que se configuram a partir das mudanças culturais que, por certo, nas últimas décadas são absolutamente vertiginosas (P1).

A clínica deixou de ser neurótica e foi se ampliando para outras questões, outras patologias, principalmente as questões ligadas ao narcisismo [...] Esse tema dos ideais, esse tema do narcisismo, esse tema da ação, do ato foram questões que se colocaram na clínica que foram ampliando o meu estudo (P4).

A constatação nas demandas contemporâneas do predomínio de fraturas no narcisismo e do prejuízo na capacidade representacional do sujeito têm resultado em questionamentos em relação ao enquadre clínico. Green (2008a) afirma ser o enquadre um conjunto das condições de possibilidades requeridas para o exercício da Psicanálise. Segundo o autor, há de se distinguir duas partes no enquadre:

A matriz ativa, composta pela associação livre do paciente, da atenção e da escuta flutuantes, marcadas pela neutralidade benevolente do analista, formando um par dialógico onde se enraíza a análise e, parte dois, o estojo, constituído pelo número e duração das sessões, a periodicidade dos encontros, as modalidades de pagamento, etc. A matriz ativa é a joia que o estojo contém (p. 54).

A Psicanálise, assim como foi em seu nascimento, segue tendo que ultrapassar os limites do instituído para reafirmar o seu caráter inovador frente aos diversos padecimentos humanos. A ênfase à exigência de trabalhar a própria Psicanálise se impõe diante das transformações da clínica. Segundo Macedo et al. (2016) as expressões do mal-estar contemporâneo constituem um desafio à Psicanálise e convocam o analista a qualificar sua condição de pensar a clínica. Nessa perspectiva, compreende-se o tema relativo às transformações do enquadre enfatizado pelos participantes.

Claro que para mim o enquadre é essencial, o enquadre não é só horários e tal. [...] O enquadre é mantido de qualquer jeito, mas as forças às quais ele está sujeito na clínica atual geram modalidades muito diferentes. Exigem do analista formas de atendimento que enriquecem o trabalho analítico (P5).

Não se trabalha de uma determinada maneira, numa quantidade de sessões semanais com o divã, com isso ou aquilo, previsto de antemão. Não é uma boa psicanálise ou, o que é pior, não é psicanálise. [...] A psicanálise contemporânea leva muito em conta um enquadre para cada paciente de acordo com as manifestações sintomáticas (P2).

Há um eixo que é a tentativa permanente de harmonizar rigor teórico e flexibilidade clínica. [...] Já mostrei flexibilidade, sempre quando não foram impulsos próprios e sempre que eu, antes, durante ou depois, possa fundamentar teoricamente o porquê ou, ao menos, tentar fazê-lo. [...] Uma intervenção clínica que não liga, que não se relaciona com uma fundamentação teórica, torna-se curta (P3).

Se trabalhar na ritualização do enquadre empobrece as possibilidades de vigor da Psicanálise, desconhecer o valor da vigência de seus fundamentos também acarreta inegáveis riscos à ética da escuta. Cabe ao psicanalista criar estratégias de transformação no enquadre. Toma-se a noção de estratégia no contraponto à ideia de programa conforme apresentado por Hornstein (2013). Para o autor, "estratégia supõe modificar a ação em função de novos elementos que vão surgindo. Isso é pertinente para sistemas complexos e na prática analítica" (p. 166). Já o programa diz respeito, segundo Hornstein (2013), à repetição de passos rigidamente estruturados. A abertura ao improviso e a elasticidade do enquadre aproximam a definição de estratégia a modalidade de escuta clínica.

Os impasses clínicos são evidentes. Segundo Birman (2012), o mal-estar das subjetividades contemporâneas se evidencia como dor, inscrita nos registros do corpo, da ação e das intensidades. Esses aspectos aparecem na fala dos entrevistados:

O sujeito sofre mais por angústia, por busca de uma identidade que não consegue alcançar. A angústia também tem a ver com a velocidade (P3).

A cultura te demanda performance, enfim, demanda esse ilimitado, e é nesse sentido que eu falo em ideal porque o ideal é justamente aquilo que é ilimitado [...] e quando isso está muito demandado, é como se a produção psíquica exatamente mostrasse essa super exigência da qual o psiquismo não dá conta (P4).

É no reconhecimento da singularidade da psicopatologia do sujeito que a Psicanálise abre a possibilidade da escuta ética que orienta o fazer analítico. Recorre-se, então, na clínica a hipóteses diagnósticas que orientam a elasticidade do enquadre. Os participantes destacam a importância e a especificidade do diagnóstico na e para a Psicanálise:

O diagnóstico serve para balizar o método (P6).

O diagnóstico tem que ser, sempre, um orientador, tem que ser sempre presuntivo e nunca definitivo (P2).

O diagnóstico é um balizador da tua compreensão do que é o sofrimento psíquico do outro (P4).

O diagnóstico é para o analista se situar, é um tipo de mapeamento onde a gente se situa em relação ao paciente (P5).

A produção científica contemporânea sobre os padecimentos que têm marcado presença na clínica psicanalítica invariavelmente enfatiza a necessidade de labor criativo do analista (Birman, 2012; Green, 2011; Hornstein, 2013). Nessa linha de raciocínio, apresenta-se, no Quadro 2, a Segunda Categoria Final deste estudo, denominada "A clínica psicanalítica atual: exigência de trabalho ao psicanalista".

No exercício clínico contemporâneo, a percepção de patologias que não respondem somente à dinâmica neurótica tem contribuído, significativamente, para a atividade de revisão intrateórica e a ampliação dos alcances da técnica psicanalítica. Desde os interrogantes clínicos ampliam-se a teoria e a técnica:

Vejo na clínica um comparecimento do que a gente chama de casos difíceis, [...] pacientes barulhentos, pacientes que nos moldes antigos a gente ia dizer que não eram analisáveis. São pacientes que têm um desafio grande para a Psicanálise, que comparecem cada vez mais para análise (P5).

A demanda clínica tornou insuficiente alguns modos de intervenção e, como tantos outros psicanalistas, começamos a complexizar a teoria apoiados na obra de Freud e de outros psicanalistas para tentar dar conta (P3).

Há um fio condutor coerente com a história inicial da Psicanálise à medida que, ao constatarem os desafios oriundos da escuta de patologias com uma configuração singular, os participantes problematizam as novas demandas de modo a não criar uma ritualização dogmática da Psicanálise e tampouco recorrem ao rótulo "paciente não analisável" para tamponar um desafio clínico. Colocam-se no lugar daquele que cria estratégias – teóricas e técnicas – para abordar a complexidade por meio da qual se apresenta a dor psíquica.

Tem que estar atento às demandas do paciente. Por um lado, ter uma flexibilidade adequada e, ao mesmo tempo, uma presença organizadora (P1).

Com pacientes fronteiriços é preciso ser um pouco mais elástico no enquadre. [...] O que significa? Que há uma falha na representação. Então, quando o paciente fala, não é uma simbologia, não é um simbolismo que remete a outros elementos inconscientes, não é isso que está em questão (P6).

Faz-se necessário um trabalho mais ativo do psicanalista na cena analítica diante de fraturas nas possibilidades de expressão simbólica do analisando. Logo, a elasticidade do enquadre torna-se fundamental diante de padecimentos que têm sua configuração alicerçada nas fraturas da capacidade representacional. Green (2011) nomeia que, nessas situações, além das alterações no enquadre, surge a necessidade de um trabalho suplementar do analista. Segundo o autor, a noção de enquadre interno do analista é a criação necessária, nestas situações, de um espaço interno no analista no qual se sustenta a qualidade analítica da comunicação. Cabe ressaltar que o enquadre interno é resultante da própria análise do analista. Os impasses clínicos e o decorrente labor analítico são nomeados pelos entrevistados:

O trabalho hoje é, muitas vezes, criar condições de mediações ou de ligações psíquicas que deem conta da condição, inclusive, de poder fazer que um sintoma psíquico não apareça no físico, que possa aparecer no psíquico [...] A intervenção é exatamente essa, de poder criar redes, criar ligações, criar mediações psíquicas que possam ser capazes de transformar isso que é transbordante em algo ligado, simbólico (P4).

Alguém que não funciona de uma maneira tão simbólica, expulsa os conflitos através do ato e se pode pressupor que houve traumas severos na infância e que essa pessoa possui um déficit representacional. [...] Se lhe peço para deitar-se num divã e associar se dará um silêncio, porque há uma espécie de vazio impossível de preencher. Então trato de ir escutando se há possibilidade de uma interpretação ou se o material convida a uma construção ou a ajudar a tecer um tecido representacional (P3).

Segundo Garcia e Cardoso (2011), o aspecto fundamental nessas configurações psíquicas é a angústia relativa a marcas da história que remetem às dificuldades experienciadas no encontro com o outro. Portanto, diante dos estados limites ou das patologias fronteiriças, demarcar limites entre o Eu e o outro significa instaurar condições de cuidado em relação ao si mesmo e à promoção de acesso ao campo da alteridade. Tais considerações manifestam-se na seguinte fala:

São pessoas que às vezes produzem sensação de profundo desencanto, porque têm tanto medo de ficarem fusionadas com o objeto, às vezes a necessidade de um é tão profunda que pode ser excessivamente demandante ou ter uma atitude de desprezo, de maltrato. Temos que fazer um trabalho muito bom com a contratransferência, para não nos sentirmos desencantados e desestimulados muito rapidamente (P1).

O analista é ainda mais requisitado em relação à ética da escuta quando se inquieta diante dos desafios oriundos da clínica. Segundo Green (2008a), o analista não deve encorajar o paciente a enfrentar seus obstáculos e, também, não deve ter uma atitude glacial frente aos esforços do paciente durante o tratamento, mas manter, sim, uma atitude de neutralidade benevolente. Para o autor, neutralidade e benevolência não são contraditórias, pois esta deve ser pautada em uma atitude de receptividade compreensiva, sem que se torne cumplicidade. A entrevistada P3 aborda a abstinência na relação analista/analisando:

A abstinência, que é imprescindível, significa não fazer uma utilização perversa da situação de um paciente para a própria satisfação pulsional ou narcisista. Então, é poder ter um distanciamento em que o objetivo sempre é o processo analítico do paciente [...] Não significa não estar envolvido afetivamente, não significa silêncio, não significa rigidez, não significa fazer cara de psicanalista clássico (P3).

A escuta permite que a clínica seja o campo de confrontação da teoria com a prática, fomentando a expansão de um saber que nunca se propôs a ser uma "cosmovisão". Nessa linha de raciocino, apresenta-se a Terceira Categoria Final deste estudo, denominada "O ouro da Psicanálise", conforme Quadro 3.

Percebe-se o quanto é complexo o tensionamento entre demandas clínicas e recursos teóricos e técnicos. A capacidade de escrita é referida como um recurso encontrado pelos participantes para estimular o exercício de reflexão e o sistemático aprimoramento técnico:

Sempre que escrevo, escrevo como tentativa de domínio de uma inquietação clínica. A escrita em Psicanálise é sempre a partir da necessidade de teorizar, escrever parte de uma inquietação clínica. Como as inquietações clínicas são muitas, eu escrevo muito. Por quê? Porque a escrita é a forma que a gente tem de sistematizar o que já conhece e tentar articular questões a respeito do que a gente ainda não tem formulado (P6).

Sem dúvida, toda a formação teórica reverte sobre a clínica. E eu te diria que quando escrevo, inevitavelmente, reverte sobre a clínica (P2).

Escrever tem me ajudado muito [...] abre o horizonte, faz pensar e leva a refletir sobre a prática e que, quando volta ao contato com o paciente, dá uma condição de escuta diferente. Abre outros horizontes, outros canais que estavam meio obturados (P4).

A escrita psicanalítica é um dispositivo que realiza articulações entre o já conhecido e aquilo que, sistematicamente, interroga a teoria e a técnica. Há, ainda, uma relação de alteridade do analista frente aos dispositivos da escrita: a relação com à teoria, a construção de associações e hipóteses referentes a seu trabalho com o analisando e os avanços que decorrem delas. Ao escrever sobre seus interrogantes, o analista expõe não apenas seus questionamentos, mas, também, seu singular processo de construir e produzir conhecimento em Psicanálise.

Sempre que vou escrever um artigo, é porque tenho uma pergunta que me surgiu de um paciente, ainda que eu não vá contar o caso, o que está ali na base é uma questão que me surgiu numa análise. Daí preciso tentar responder. Ou tentar responder, ou tentar articular questões para que isso se responda (P6).

Então tem um efeito da escrita, uma propagação da escrita que é extremamente generosa e benéfica para o analista (P5).

Por meio da escrita, um autor testemunha sua identificação com a Psicanálise. Green (2008b) assinala a existência, para o analista que escreve, de um processo psicanalítico que denomina processo psicanalítico teórico. Para o autor, a formação psicanalítica que inclui análise pessoal, supervisões e estudo da teoria, por sorte, em nenhuma parte, forma o analista para escrever. Afirma o autor que "a obra escrita de um analista é provavelmente outro modo de prosseguir sua autoanálise com possível benefício para os demais" (Green, 2008b, p. 29).

Outro aspecto relativo à escrita é destacado por Hornstein (2013) ao afirmar que à Psicanálise têm sido dirigidas muitas questões, às quais, quando está viva, ela democraticamente responde e, também, agradece porque ajudam a pensar, reafirmando o valor do diálogo e das trocas entre disciplinas para o presente e futuro da Psicanálise. Surge o reconhecimento do valor do trabalho de psicanalistas contemporâneos que, com seus trabalhos, permitem um devir à Psicanálise:

Freud foi o criador da Psicanálise, deixou muitíssimo, mas nem tudo foi dito na obra freudiana.

Há muitos conceitos atuais que encontram suas raízes na obra freudiana, mas que têm sido muito complexizados e desenvolvidos por autores pós-freudianos como Green, Laplanche, Aulagnier, Anzieu, Pontalis, McDougall, entre outros, que são autores contemporâneos, pluralistas. Todos esses últimos autores estão embasados nessa nova epistemologia científica, complexa e contemporânea (P2).

Há importante diferença entre o exercício de problematização de conceitos que busca a ampliação, via cuidado e a atenção à especificidade psicanalítica, e uma simples "colagem" de outros saberes que leva a uma prática "pseudointerdisciplinar", na qual se borram diferenças, produzindo-se um conhecimento eclético e pouco rigoroso. Ilustra-se na fala a seguir a preocupação com a manutenção do valor de conceitos psicanalíticos fundamentais:

O debate é sobre como fazer para que o método psicanalítico da associação livre, da atenção flutuante, transferência e neutralidade benevolente sigam tendo vigência apesar de todas essas trocas de enquadre. Esse é o debate mais importante. Como alcançar que os fundamentos mais importantes da clínica sigam mantendo seu valor (P2).

As instituições de formação e transmissão da Psicanálise surgiram com o intuito de fortalecer e cuidar da prática da Psicanálise. Porém, paradoxalmente, quando se trata de pensar sobre o devir da Psicanálise, é atribuído às instituições um papel ambivalente. Se, por um lado, espera-se que nelas ocorra esse movimento de fortalecer, promover a circulação e oxigenação do saber psicanalítico, por outro lado, a rigidez da estruturação passa a ser apontada como risco ao futuro da Psicanálise. Apresenta-se, então, a última categoria deste estudo, intitulada "O mal-estar próprio à Psicanálise: riscos e potenciais".

Ao escrever seu texto Sobre o Ensino da Psicanálise na Universidade, Freud (1996 [1919]) apresenta os três dispositivos necessários para se tornar um psicanalista: estudo teórico, supervisão da prática clínica e análise pessoal. Faz-se presente nas reflexões dos participantes da pesquisa o cuidado a esses aspectos:

É preciso cuidar com a patrulha. Os psicanalistas precisam se analisar mais para que a gente não fique muito dogmático, não fique achando muito que as verdades estão prontas e que a gente não precisa fazer mais nada, e não é verdade. Quando a gente herda uma teoria, como herdamos a teoria de Freud, precisamos fazer ela trabalhar. Tem que se afastar um pouco do Freud no sentido de retomar os conceitos dele e poder pensar além. A coisa não está toda pronta. [...] O luto pela morte de Freud fez com que se pensasse em Psicanálise que, para uma pessoa produzir teoria, tem que ser um outro Freud (P6).

 

Quadro 4

 

Segundo Kupermann (2008), Freud "sempre recusou a captura da Psicanálise em um sistema totalizante e imóvel" (p. 55). Daí a importância do "modelo" de formação experimentado. Os entrevistados reforçam a especificidade da condição permanente de estudo e de criação como aspectos essenciais do processo de ser analista:

Hoje, na psicanálise contemporânea, na clínica atual, é extremamente importante o tripé da formação do analista: análise pessoal, a formação teórica permanente e a reflexão permanente sobre sua prática que é a supervisão (P2).

Os psicanalistas precisam se analisar e estudar. Essa história de que uma pessoa faz uma formação e depois nunca mais abre um livro, isso é sério, é grave. E a pessoa faz uma análise e depois nunca mais volta (P6).

A exigência de continuidade na formação de um psicanalista surge associada na fala dos participantes ao risco de que um analista conceba sua formação como algo protocolar. Neste modelo, depois de ter cumprido o programa institucional, não seria mais necessário manter-se aberto ao estudo, à necessidade de análise e à busca por supervisão.

Análise não é uma coisa que tem a ver só com os rituais, vamos dizer assim, a receita, o protocolo. Não é o protocolo que garante a análise, é o contrário. Às vezes o protocolo pode mascarar o não trabalho analítico (P5).

A instituição que regulamenta, oficialmente, como deveria ser a transmissão da Psicanálise, a International Psychoanalytical Association (IPA), tem sido alvo de críticas uma vez que parece estar marcada mais por questões protocolares, que impedem a possibilidade do pensar diferente, do que por práticas que estimulem a autonomia, a qualidade e a criatividade do analista. Kupermann (2009) refere que os "dois dispositivos cruciais da formação analítica institucionalizada – análise didática e supervisão clínica" (p. 303) tiveram o efeito de produzir uma forma de normal candidate.

Em artigo que reflete sua preocupação com o modelo adotado de transmissão nas instituições vinculadas à IPA, Kernberg (2010) afirma que se fomenta que o "estudante" memorize as conclusões de Freud, e não o aprendizado da metodologia do pensamento de Freud, "que era indiscutivelmente revolucionário" (p. 16). O dano de uma formação analítica alicerçada fundamentalmente em aspectos protocolares inibe a capacidade reflexiva e criativa do "candidato" à analista. Assim, o que deveria ser propulsor do pensamento complexo psicanalítico, torna-se impeditivo, pois evita o que deveria ser "a criatividade naturalmente estimulada pela natureza de nosso trabalho" (Kernberg, 2010, p. 15). Há um importante risco na confusão entre uma formação – estímulo às possibilidades de um analista criativo e autônomo – e um processo de deformação – predomínio de prática institucional protocolar que deforma e destrói a capacidade criativa e autônoma. Segundo Kupermann (2008), é no trânsito por diferentes teorias, mestres e associações psicanalíticas que se dá a possibilidade de um nomadismo teórico-institucional. Nesse cenário, conforme o autor, pode-se instalar o que nomeia como transferência nômade, a qual possibilita "transferir de forma múltipla no âmbito institucional da Psicanálise, permitindo assim a preservação da singularidade da experiência analítica no processo de formação" (p. 54). Observa-se que a necessária sistematização do estudo e a consideração à singularidade do percorrido de tornar-se analista estão contempladas nas falas dos participantes do estudo:

Na formação analítica é muito interessante que alguém tenha uma experiência mais clássica, mais contínua. Mas isso talvez também seja algo idealizado, porque a gente tem analistas excelentes que fizeram períodos, que fizeram análise deles de uma forma não clássica (P5).

A formação tem muito a ver com a experiência de trabalho e como você vai repensando a sua experiência a partir da teoria e da utilização do método, dos fracassos e dos êxitos no seu próprio exercício profissional. A formação é desde o início porque comecei a estudar quando me formei e nunca parei [...] Um critério importante é o conhecimento do seu inconsciente através da sua análise e através da supervisão no sentido que essa alteridade se estabeleça (P4).

Os entrevistados referem não somente à condição de abertura, mas também de comprometimento para se tornar um psicanalista, independentemente se isso ocorrer em instituições oficiais – vinculadas à IPA – ou em instituições não oficiais. Para Tanis (2005), o esperado é que as instituições formadoras adquiram modelos que proporcionem e favoreçam o exercício ético, criativo e não alienante da Psicanálise.

Outro aspecto que se alinha ao trabalho exigido dos analistas surge na referência à crise da Psicanálise. A existência da crise é reconhecida pelos entrevistados com tendo um duplo sentido. Por um lado, referem a preocupação com a perda de um lugar de destaque ocupado pela Psicanálise, por outro, identificam a crise como uma fecunda demanda de trabalho criativo ao analista:

Todas as crises são horríveis, mas são muito bem-vindas. [...] Muito da crise se deu porque a Psicanálise, para tentar dar conta, afrouxou seus princípios teóricos e seus princípios técnicos no sentido de se aproximar das outras terapias, como se o mundo não comportasse mais a Psicanálise do jeito que era. Mas a questão era que a gente precisava desenvolver teoria e desenvolver técnica, mas dentro dos princípios fundamentais da Psicanálise, a saber: inconsciente; pulsão; transferência; recalcamento, narcisismo (P6).

Acho que essa perda do lugar hegemônico, por mais angustiante que seja, é uma abertura para que se possa pensar em questões mais criativas (P4).

Entende-se, portanto, que a criatividade de um analista tem como base sua capacidade de interrogar a complexidade advinda da clínica e, a partir dela empreender um trabalho criativo. Neste sentido, o empreendedorismo do analista sustenta-se na transferência com a capacidade criativa freudiana e não com a mera repetição de sua obra. Cabe resaltar, porém, que esse trabalho empreendedor do analista sustenta-se nos fundamentos epistemológicos que afirmam a vigência e a complexidade do Inconsciente. Não se trata, portanto, de atentar contra o rigor e a especificidade da Psicanálise, mas, sim, fomentar continuamente a imperiosa necessidade do analista contemporâneo ser um empreendedor que cria possibilidades (teóricas e técnicas) no cuidado à renovação do fazer analítico. A definição de um analista contemporâneo extrapola a restrita lógica de situar-se em uma época histórica e alude a essa necessária condição de acolhimento aos impasses e inquietações do exercício de escuta na clínica, reconhecidos como motor de um necessário trabalho de criação e autoria em Psicanálise. Além disto, é na condição de contemporâneo que um analista assume a permanente abertura as demandas oriundas da leitura sobre o humano marcada pelo reconhecimento da complexidade. A solidez da identidade psicanalítica pressupõe esse consistente exercício de revisão e criação intrateórica.

Segundo Green (2008a), um dos fatores do relativo descrédito atual da Psicanálise é devido "à fragmentação de seu saber, sua dispersão – além do tolerável, porque põe em questão sua unidade, e, portanto, sua identidade, e acarreta a ausência de consenso entre os psicanalistas" (p. 19). Trata-se da necessidade de evitar dialetos que impeçam reconhecer em seus argumentos o que é fundamental em Psicanálise. Os impedimentos à produção de conhecimento em Psicanálise são abordados nas seguintes falas:

O luto pela morte de Freud fez com que se pensasse em Psicanálise que, para uma pessoa produzir teoria, tem que ser outro Freud. E daí todo mundo fica constrangido porque não é Freud, e não tem esse poder todo, e não é genial. A pessoa é um ser humano comum, não é genial. Isso não quer dizer que a pessoa não possa fazer a sua parte (P6).

E o que ele [Freud] fez, nós temos que fazer em nossa pequena medida (P3).

Um grande problema nosso é o que a produção da Psicanálise, hoje em dia, apresenta. É visto um monte de coisa repetida e repetida e repetida, um certo temor daquilo que possa ser discutido mesmo e ser inovador, enfim, de ser mais ampliado (P4).

A noção de crise impele à reflexão sobre as condições de produção de saber em Psicanálise. Dessa forma, surge na fala da participante P6 uma referência à relação existente entre Psicanálise e universidade.

Se a Psicanálise sair da universidade, o futuro é curto. O trabalho da pesquisa na universidade é fundamental para existência da Psicanálise [...] eu acho fundamental que tenham pessoas que se dediquem à pesquisa psicanalítica (P6).

Atualmente um importante espaço de possibilidade ao devir da Psicanálise se dá na Universidade. A inserção da Psicanálise na Universidade e, mais especialmente nos cenários da Pós-Graduação, vem contribuindo de maneira efetiva para a produção de conhecimento em Psicanálise, porém, que a sua inserção na Universidade prescindir da problematização tanto relativa aos aspectos positivos, quanto da consideração ao risco de que nessa inserção se perca o vigor de sua epistemologia diante de concessões que possam ferir sua especificidade e rigor. O trabalho investigativo realizado nos Programas de Pós-Graduação com Psicanálise, de modo ético e consistente, contribui com o fortalecimento de suas diretrizes epistemológicas, constituindo-se importante espaço de produção de conhecimento e de troca com outras disciplinas.

O valor e a importância da sistemática de produção de conhecimento em Psicanálise contemplam dessa forma, diferentes espaços de inserção do psicanalista. É referido nas entrevistas o modo como destacados analistas contemporâneos podem dar vigor às possibilidades da Psicanálise:

Hoje se resgata de Freud, coisas que são fundamentais, das quais não se pode arredar o pé, mas se busca nos pós-freudianos, todos os grandes mestres, o principal das suas contribuições, e a partir delas se cria. Hoje não se pode ser fechado a ponto de não visitar Lacan, Winnicott, são autores dos quais não se pode prescindir, André Green, Laplanche, não se pode prescindir dos grandes mestres e das suas tentativas de elaboração teórica e técnica nas novas demandas clínicas (P6).

Para os entrevistados produzir conhecimento em Psicanálise está associado à independência e à criatividade do analista: independência de escolas e/ou mestres, na busca do conhecimento plural e da criatividade que possa sustentar a inovação na prática clínica. Sua capacidade de empreender um trabalho criativo em prol da Psicanálise é evidenciada na fala a seguir:

Tenho muitas preocupações com o futuro da Psicanálise. Todos nós, psicanalistas, somos absolutamente responsáveis com isso. Com isso não quero dizer que eu tenha que ser fundadora de escola, reconheço os meus limites, não é isso que estou dizendo. Acho que a gente tem uma obrigação com as gerações que vêm vindo [...] Se a gente não cuidar da Psicanálise, o futuro dela preocupa. Cada um tem essa responsabilidade. Eu tenho muito clara a minha parte nessa história (P6).

Segundo Urribarri (2010), a crise da Psicanálise pós-freudiana exige um novo paradigma: freudiano, pluralista, ampliado e complexo. Nesse sentido, Green (2010) afirma que o futuro da Psicanálise dependerá da forma como os psicanalistas irão se direcionar ao encontro de um pensamento complexo. O devir da Psicanálise se faz possível em cada esforço de reflexão, de criatividade, de diálogo e de produção de conhecimento de um psicanalista que, assim, aceita à convocatória de contínuo trabalho presente no legado freudiano.

Propõe-se, a partir dos achados nesta categoria, que o efetivo exercício de paixão clínica e do cuidado à essência criativa do legado freudiano instauram o que se denomina empreendedorismo em Psicanálise. Esta atividade empreendedora acontece toda vez que um analista não se retira, com sua singular modalidade de pensar e fazer, de espaços de diálogo e de enfrentamento às críticas, sejam esses espaços intracampo, sejam os pontos de tensionamento da Psicanálise com outros saberes. O agente ativo deste trabalho empreendedor no exercício da escuta analítica permite a denominação de analista contemporâneo. Assim, propõe-se, a partir dos achados deste estudo, a distinção entre um analista na contemporaneidade e um analista contemporâneo. O analista na contemporaneidade é um psicanalista que habita um dado período histórico, o tempo atual. Já o analista contemporâneo está impulsionado por seu com promisso com a vigência da Psicanálise e com a abertura à capacidade criativa, ancorada essa no reconhecimento do saber necessariamente incompleto e não dogmático da Psicanálise.

 

Considerações Finais

A investigação realizada abordou o processo de enfrentamento de impasses na clínica contemporânea e a possibilidade de produção de conhecimento em Psicanálise a partir da experiência dos participantes da pesquisa. Na tentativa de formular uma compreensão a respeito dos elementos implicados nesse processo, buscou-se explorar o relato dos analistas que têm em seu percorrido profissional a produção de artigos, capítulos de livros, livros, teses de doutorado como produtos decorrentes da disponibilidade e da motivação para exercitar o compromisso com a vigência e o devir da Psicanálise.

Na investigação realizada o caráter de abertura e de incompletude da Psicanálise destacaram como importantes dados referidos pelos entrevistados. Repousa nesse reconhecimento uma dupla constatação: trata-se de um valoroso legado não dogmático que, também, convoca os analistas a se encarregarem da responsabilidade que lhes toca em relação à vigência e à ampliação da Psicanálise. É na importância atribuída às teorias da complexidade e sua decorrente impulsão ao constante intercâmbio entre saberes que os analistas entrevistados, não apenas identificam Freud como um pioneiro da modalidade de pensamento complexo, bem como vêm encontrando subsídios para problematizar e empreender um criativo trabalho diante dos impasses clínicos e teóricos contemporâneos.

Um analista comprometido com o avanço da Psicanálise resgata a metodologia criativa de Freud, mantendo-se ativo na busca e construção de dispositivos que lhe permitam operar diante dos impasses clínicos. O espaço de formação tem, assim, um importante papel nessa transferência a ser estabelecida com a Psicanálise. A vigência da Psicanálise está associada à forma de sua transmissão. É sabido que um modelo ritualístico e protocolar retira do analista em formação o estímulo à criatividade frente às dificuldades da escuta clínica.

É na perspectiva de abertura, a qual privilegia o constante trabalho criativo, que se efetiva a condição de empreendedorismo na Psicanálise. Empreender significa que um analista faz a Psicanálise marcar presença desde sua especificidade e seu rigor, contribuindo para o debate sobre o humano e reafirmando o compromisso com o valor do legado freudiano.

Nesse sentido, os analistas entrevistados referem-se à liberdade para realizar o efetivo ofício da Psicanálise, sendo a assunção à condição de autor em Psicanálise o exercício dessa liberdade. Essa tarefa exige, em todas as suas etapas, o estudo constante, o fomento ao exercício de criatividade e o reconhecimento da incompletude do saber como motores de um trabalho a ser constante e criativamente empreendido. Percebe-se, por fim, por meio das falas dos participantes deste estudo, a certeza de residir nas mãos de cada psicanalista a possibilidade de ser um analista contemporâneo e, assim, dar sólidas e efetivas condições de devir à Psicanálise. O futuro da Psicanálise está ancorado na ampliação e no fortalecimento de suas ferramentas intrateóricas, as quais não somente permitem sua expansão teórica e técnica, bem como promovem sua inserção nos espaços genuínos dediálogo com diversos saberes.

 

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Submetido: 16/08/2016
Aceito: 11/04/2017

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