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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.11 no.1 São Leopoldo jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.111.11 

ARTIGOS

 

Integração entre pesquisa empírica e prática clínica psicanalítica: um estudo ilustrativo

 

Integration between empirical research and psychoanalytic practice: an illustrative study

 

 

Aline Alvares Bittencourt; Silvia Pereira da Cruz Benetti; Fernanda Barcellos Serralta

Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93020-190, São Leopoldo, RS, Brasil. alinealvares@hotmail.com, spcbenetti@gmail.com, fernandaserralta@gmail.com

 

 


RESUMO

Entre as alternativas para superar a dissociação entre a investigação científica e a prática clínica psicanalítica, destaca-se a utilização de procedimentos empíricos que avaliam questões clinicamente importantes, como a inclusão da perspectiva do psicoterapeuta no estudo e a publicação de resultados de pesquisa em linguagem acessível ao psicoterapeuta. O presente trabalho mostra, por meio de um estudo sistemático de caso único de uma psicoterapia com uma paciente borderline, como dados clínicos e empíricos podem ser conjugados para ampliar a compreensão da paciente e das mudanças no seu funcionamento ao longo do 1º ano do tratamento. A sistematização do caso foi baseada nas anotações clínicas da psicoterapeuta e na aplicação de dois instrumentos: o SWAP-200, que avalia personalidade, e o SCL-90-R, que examina a sintomatologia. Esses dados foram integrados para formular uma hipótese compreensiva clínico-empírica sobre o processo psicoterápico e as mudanças no funcionamento da paciente no 1º ano de tratamento. A conclusão indica que, embora não seja uma tarefa simples, a integração entre a pesquisa empírica e a prática clínica psicanalítica é possível e potencialmente útil para ambos os campos. A superação dessa histórica separação depende do esforço conjunto de psicoterapeutas e pesquisadores.

Palavras-chave: pesquisa em psicoterapia psicanalítica, estudo de caso sistemático, processo psicoterápico.


ABSTRACT

Among the alternatives to overcome the dissociation between scientific research and clinical practice, we highlight the use of empirical procedures that evaluate clinically important questions, the inclusion of the psychotherapist's perspective in the study, and the publication of research results in accessible language for the psychotherapist. This paper shows, through a systematic study of a single case of psychotherapy with a borderline patient, as clinical and empirical data can be combined to increase the understanding of the patient and changes on her functioning over the first year of treatment. The systematization of the case was based on the clinical notes of the psychotherapist and on the application of two instruments: the SWAP-200, which evaluates personality, and the SCL-90-R, which evaluates symptomatology. The data were integrated to formulate a comprehensive clinical and empirical hypothesis about the psychotherapeutic process and changes in the functioning of the patient in the 1st year of treatment. The conclusion indicates that although it is not a simple task, the integration between empirical research and psychoanalytic practice is possible and potentially useful for both fields. Overcoming this historical separation depends on the combined efforts of therapists and researchers.

Keywords: psychoanalytic psychotherapy research, systematic case study, psychotherapy process.


 

 

Muito se argumenta sobre a psicanálise ser ou não ciência e, caso o seja, sobre que tipo de ciência é essa. Freud (1972) é taxativo: "Em minha opinião, a psicanálise é incapaz de criar uma Weltanschauung1 por si mesma. A psicanálise não precisa de uma Weltanschauung; faz parte da ciência e pode aderir a Weltanschauung científica" (p. 220). Sabe-se, entretanto, que a possibilidade de adotar procedimentos empíricos derivados de outras ciências é extremamente controversa na psicanálise e que uma ampla maioria de psicanalistas e psicoterapeutas de orientação psicanalítica vê com desconfiança uma maior aproximação entre o seu método e os métodos empíricos (Kernberg, 2015; Sandler et al., 2000; Wallerstein, 2003; Wallerstein, 2009).

Psicólogos clínicos de orientação psicanalítica, via de regra, valorizam muito mais suas experiências pessoais do que as evidências de pesquisa (Baker et al., 2009; Dattilio et al., 2010). Os institutos de formação em psicoterapia de orientação psicanalítica são distanciados dos departamentos de psicologia e psiquiatria das universidades e sua ênfase de estudo encontra-se na transmissão em detrimento da geração de conhecimentos (Fonagy, 2004). De modo geral, os psicoterapeutas acreditam que não se pode avaliar por métodos não-psicanalíticos os elementos essenciais da sua abordagem e acreditam que qualquer intervenção externa traria alterações indesejáveis à técnica e ao processo terapêutico (Baker et al., 2009; Kernberg, 2015; Serralta e Streb, 2003). Assim, o distanciamento entre investigação empírica e prática clínica parece vir "de berço", pois os psicoterapeutas, em suas formações, não são ensinados a apreciar material que apresente tabelas repletas de símbolos e números e nem desenvolvem o conhecimento técnico para apropriar-se criticamente das informações que emergem da investigação empírica (Krause, 2011).

Historicamente os psicoterapeutas de orientação psicanalítica têm tentado demonstrar a veracidade das suas hipóteses clínicas e a efetividade de suas terapias através dos relatos de caso. Porém, nas últimas décadas eles têm sido convidados a fornecer evidências empíricas da efetividade de seus tratamentos (Lingiardi et al., 2010). Já existe um volume significativo de estudos empíricos que dão suporte e validade a constructos e intervenções psicanalíticas. A meta-análise realizada por Shedler (2012), por exemplo, mostra que os efeitos da psicoterapia psicodinâmica são equivalentes aos de abordagens consideradas baseadas em evidências, além de indicar que os ganhos terapêuticos parecem continuar após o término do tratamento. Assim, o abismo entre os dois campos pode explicar parte da dificuldade que a psicanálise enfrenta hoje em relação a outras abordagens cujo status científico é mais valorizado e melhor difundido por seus praticantes.

Embora clínicos e pesquisadores busquem o melhor tratamento para seus pacientes, pesquisadores procuram maximizar a evidência negativa para aumentar o grau de questionamento e crítica ao conhecimento e os clínicos, pelo contrário, buscam maximizar a evidência positiva a fim de serem capazes de agir de forma coerente na situação terapêutica (Jiménez, 2007). Diferenças no estilo da comunicação também são destacadas. A escrita clínica é persuasiva, simbólica, literária; a escrita científica é demonstrativa, enxuta e direta. Como a maioria dos estudos empíricos estão escritos em linguagem de difícil compreensão para não-pesquisadores (Shedler, 2012), dificilmente atingirão o psicoterapeuta de orientação psicanalítica. Com este artigo, buscamos contribuir para diminuir esse distanciamento, discutindo e ilustrando, através de um estudo sistemático de caso, como as psicoterapias de orientação psicanalítica podem ser estudadas com métodos mistos que conjugam interesses e perspectivas tanto da prática psicanalítica clínica como da ciência empírica.

 

O estudo empírico do processo terapêutico como ponte entre pesquisa e prática clínica

Para que serve a investigação empírica se ela não é capaz de nutrir a prática? (Krause, 2011). Décadas de pesquisas fundamentalmente preocupadas em avaliar resultados de tratamentos serviram para obter evidências da eficácia, efetividade e custo-benefício das psicoterapias como tratamento para uma variedade de condições clínicas, mas pouco ajudaram a compreender por que as psicoterapias funcionam (Aveline et al., 2007; Bucci, 2007; Krause, 2011; Wallerstein, 2007).

Ablon e Jones (2005) sugerem que pesquisadores em psicoterapia deveriam mudar o foco da pesquisa dando ênfase à explicação ou compreensão e não mais à descrição, voltando-se assim para a avaliação do que acontece durante o processo. Nesse tipo de estudo, o pesquisador está interessado em compreender o que acontece na psicoterapia e o que promove a mudança. Tais questões são, em grande medida, as que os clínicos costumam buscar responder nos escritos clínicos tradicionais. Por conseguinte, possuem maior potencial para produzir conhecimentos de interesse do psicoterapeuta e influenciar a prática psicanalítica.

Do ponto de vista metodológico, entretanto, em geral, estudos empíricos do processo são mais difíceis de serem realizados quando comparados com estudos de resultados. Entre as dificuldades estão a operacionalização dos conceitos e a medição de processos subjetivos complexos (Serralta e Streb, 2003). Dificuldade não significa impossibilidade. De fato, algumas dimensões da psicoterapia psicanalítica são muito difíceis de investigar empiricamente, tais como as fantasias inconscientes, o conteúdo onírico latente, o significado inconsciente da transferência e da contratransferência entre outros. Mas existem constructos, como por exemplo, o conteúdo e a expressão formal do terapeuta, as comunicações do paciente, os mecanismos de defesa, a estrutura de personalidade e os componentes da aliança terapêutica, que podem ser mais facilmente identificados e mensurados, gerando conhecimento útil para a prática psicanalítica (Lingiardi et al., 2010). A tradição clínica sustenta-se em teorizações minuciosas sobre o encontro terapêutico. Estudos de casos empíricos sistemáticos mantém essa tradição, porém agregam diversos elementos que implicam conjugar subjetividade e objetividade e adotar procedimentos metodológicos mais rigorosos desenvolvidos do ponto de vista das ciências empíricas (Dattilio et al., 2010; Edwards, 2010; Serralta et al., 2011).

O delineamento conhecido como "estudo sistemático de caso" pressupõe que o conhecimento sobre o funcionamento de uma psicoterapia só pode ser construído pela busca de informações do processo terapêutico através de uma variedade de métodos, sistematizando-os e integrando-os de forma crítica e reflexiva. A conceituação do caso é realizada tendo como base uma teoria coerente e reconhecida e a formulação de hipóteses clínicas orienta o plano de tratamento. São feitas gravações das sessões para posterior descrição detalhada através de diferentes instrumentos e métodos. Os dados qualitativos são a base da avaliação e da conceituação do caso formando uma narrativa do tratamento. Os dados quantitativos, normalmente obtidos por meio de escalas de autorrelato aplicadas em diferentes tempos do tratamento, fazem parte do processo de avaliação, como escalas de sintomas aplicadas regularmente durante o tratamento. Os pontos de melhora ou piora clínica podem ser ligados à narrativa do tratamento proporcionando a base para avaliar o impacto de um componente específico do tratamento ou de um evento externo à terapia naquele paciente (Dattilio et al., 2010; Westen e Weinberger, 2004).

A aplicação de métodos mistos para o estudo da psicoterapia significa integrar metodologias qualitativas, que buscam a microanálise do processo terapêutico e são voltadas para o descobrimento, com metodologias quantitativas, que buscam dados empíricos válidos e fidedignos e são orientadas para a testagem de hipóteses (Krause, 2011). Essa abordagem usa estratégias dos diferentes métodos de pesquisa dentro do mesmo estudo, permitindo que as informações de um lancem luz sobre a interpretação de resultados do outro. O método misto conjuga por um lado as contribuições da pesquisa qualitativa, com suas apresentações de casos clínicos, com descrições profundas, detalhadas e sutis insights, e, por outro, as da pesquisa quantitativa, com o suporte empírico para as opções técnicas, sendo utilizado com sucesso para avaliar o processo e os resultados dos tratamentos psicanalíticos (Lingiardi et al., 2010). A adoção dessa abordagem possui grande potencial para aproximar a prática clínica da pesquisa empírica, áreas tão distintas e ao mesmo tempo tão próximas (Krause, 2011). Conforme Lingiardi et al. (2010), há um crescente movimento para desenvolver critérios e métodos que possam garantir uma base segura aos estudos de caso para que se tenha como resultado um conhecimento clínico confiável.

Este artigo tem como objetivo mostrar como dados empíricos e clínicos se complementam para o entendimento do processo e das mudanças no transcorrer do primeiro ano de tratamento de um caso de uma paciente borderline atendida em psicoterapia psicanalítica. O estudo, conduzido pela própria psicoterapeuta, conjuga as anotações clínicas realizadas após as sessões com medidas repetidas de avaliação da personalidade e dos sintomas.

 

Método

Delineamento

Este é um estudo de caso único sistemático (Edwards, 2007) que conjuga o método clínico psicanalítico com dados empíricos de avaliação de psicopatologia e mudança terapêutica.

O caso em estudo

No presente estudo, o primeiro ano de uma psicoterapia psicanalítica (58 sessões) com uma paciente com transtorno de personalidade borderline (TPB) adulta é analisado. Durante o primeiro ano de tratamento a frequência proposta para a psicoterapia variou de 1 a 2 sessões semanais. A terapeuta possui treinamento formal em psicoterapia psicanalítica em uma instituição local e mais de nove anos de experiência clínica. A psicoterapia encontrava-se ainda em andamento no momento da submissão deste estudo para sua publicação.

 

Instrumentos

Anotações clínicas

A terapeuta fez anotações sistemáticas sobre o funcionamento da paciente e sobre o desenvolvimento da psicoterapia, levando em consideração o conteúdo de cada sessão. As anotações clínicas são instrumento importante para o acompanhamento do caso e possíveis supervisões. São registros feitos pela memória do terapeuta após o término de cada sessão e considerados material importante para a compreensão e o estudo do caso em psicoterapia de orientação psicanalítica (Lomax et al., 2007).

Shedler-Westen Assessment Procedure (SWAP-200).

O SWAP-200 (Shedler e Westen, 1998) é um instrumento utilizado para fazer diagnóstico de psicopatologias de personalidade. Sua avaliação utiliza o método Q-sort e consiste em um conjunto de afirmações que descrevem diferentes aspectos da personalidade que refletem os critérios de diagnóstico do Eixo II do DSM-IV-TR (APA, 2002). Além dos sintomas observáveis, o SWAP-200 também avalia as dinâmicas de personalidade subjacentes a esses sintomas tendo como resultado as alterações patológicas da personalidade e não estados momentâneos do sujeito.

O SWAP-200 é constituído por 200 afirmações que descrevem o paciente totalmente, parcialmente ou de modo irrelevante, distribuídas pelo próprio terapeuta ou pelo observador externo em uma escala de 8 pontos (variando de 0 a 7) numa distribuição fixa dos itens, típica dos Q-sorts. O vocabulário dessas afirmações é livre de jargões, permitindo aos clínicos fornecerem descrições psicológicas dos pacientes de uma maneira que elas possam ser quantificadas e analisadas estatisticamente, minimizando as interpretações idiossincráticas, podendo ser usadas por psicoterapeutas de todas as orientações teóricas. É sensível a mudanças tênues na personalidade, sendo utilizado para avaliar mudança estrutural em psicoterapia. O instrumento tem propriedades psicométricas para a medição e avaliação dos transtornos de personalidade e os resultados dos trabalhos de Shedler e Westen (1999a; 1999b) fornecem suporte para a validade convergente e discriminante do instrumento para a avaliação dos transtornos de personalidade. Conforme revisão de Shedler (2015), diversos estudos indicam que as escalas diagnósticas do SWAP-200 apresentam coeficientes de fidedignidade entre avaliadores superiores a 0,80 e coeficientes alpha entre 0,72 e 0,94, sendo, portanto, comparáveis aos obtidos com entrevistas diagnósticas estruturadas.

As pontuações são transformadas em escores padronizados que dão origem a três perfis de pontuação: (i) DSM-IV Transtornos de Personalidade (PD T-Scores): fornece uma pontuação para cada transtorno de personalidade do DSM-IV e pode ser utilizado para dar origem a um diagnóstico formal do eixo II do mesmo manual. Pontuação igual ou superior a 50 pontos indica a proximidade do diagnóstico em questão, sendo escores superiores a 60 indicativo considerável de diagnóstico de transtorno de personalidade; (ii) Síndromes de Personalidade (Q-Factor T-Scores): fornece pontuações para um conjunto alternativo de síndromes de personalidade que foram identificadas empiricamente. Esse sistema de diagnóstico alternativo aborda as limitações de diagnóstico do DSM-IV e é projetado para capturar mais fielmente os padrões de personalidade e síndromes observadas na prática clínica; e (iii) Traços de Personalidade (Factor T-Scores): fornece escores a 12 fatores (traços) de personalidade identificados através da análise fatorial do conjunto de itens do SWAP-200. É complementar ao diagnóstico de personalidade, destacando áreas específicas do funcionamento psicológico (Shedler, 2009). Nas dimensões síndromes e traços de personalidade pontuações superiores a 55 indicam perturbação (Shedler e Westen, 1999a; 1999b). Além disso, clínicos e pesquisadores podem obter uma formulação do caso do paciente através da análise dos 30 itens que receberam as pontuações mais altas (Shedler e Westen, 2007), descrevendo assim, em termos qualitativos, o seu funcionamento psicológico característico. Para avaliar as forças psicológicas o SWAP-200 inclui uma pontuação para o Índice de Saúde Psicológica (Psych Health Index). Esse índice mede a semelhança entre o paciente e um modelo representativo de saúde psicológica ideal. Um escore T > 50 indica um nível médio de funcionamento em relação a uma amostra de pacientes com diagnósticos do Eixo II do DSM-IV. Uma pontuação baixa (T-score < 40) indica uma grave patologia de personalidade. Valores acima de 60 indicam recursos psicológicos significativos (Shedler, 2009).

A versão em Português do Brasil foi desenvolvida por Wellausen (2014) e teve as evidências de validade e fidedignidade avaliadas em uma amostra clínica de 95 pacientes em tratamento e a concordância entre avaliadores (duplas de psicólogos e psiquiatras) em uma amostra de 11 pacientes internados. Os resultados apontam para índices satisfatórios de fidedignidade dos itens (acima de 0,70) e de concordância geral entre os examinadores (escore geral de 0,73).

A Symptom Checklist-90-Revised (SCL-90-R)

Instrumento desenvolvido por Derogatis (1994) para avaliação de sintomas psicopatológicos, trata-se de um inventário multidimensional de autoavaliação. É uma escala do tipo Likert de 5 pontos (0= nem um pouco até 4= extremamente) composta por 90 itens que visam verificar o padrão psicológico dos respondentes. O SCL-90-R é composto por nove dimensões primárias de sintomas: somatização, obsessividade-compulsividade, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideias paranoides e psicotismo. Além das 9 dimensões, a SCL-90-R fornece 3 índices globais: o índice global de severidade (IGS), o índice de distribuição por sintomas positivos (IDSP) e o índice total de sintomas positivos (ITSP). O IGS traz informações sobre os sintomas e a intensidade do prejuízo, o IDSP é uma medida de intensidade e o ITSP fornece dados sobre o número de sintomas. Foi utilizada a versão traduzida para o português por Laloni (2001) que apresentou boa confiabilidade (α de Cronbach entre 0,73 e 0,88) e estabilidade temporal regular entre 7 e 15 dias (r entre 0,40 e 0,82) numa amostra de pacientes de hospital geral.

 

Procedimentos

As anotações clínicas foram feitas pela terapeuta logo após cada sessão. O SWAP-200 foi preenchido, por concordância, por dois avaliadores externos previamente treinados no uso do instrumento. Eles tiveram acesso às seis primeiras e às seis últimas sessões do primeiro ano de tratamento gravadas em vídeo. Primeiro, o SWAP-200 foi completado com relação às sessões iniciais e, posteriormente, às finais. A paciente, a cada seis meses, recebeu da terapeuta, um envelope contendo o SCL-90-R. O instrumento foi preenchido em sua casa e devolvido na sessão seguinte.

 

Aspectos éticos

O presente estudo está vinculado a um projeto de pesquisa mais amplo já em andamento (Psicoterapia psicanalítica na adolescência -Características e avaliação do processo terapêutico), submetido e aprovado no Comitê de Ética da Unisinos sob o número CEP 12/028. A paciente e a terapeuta leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), elaborado conforme as diretrizes regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, fornecido pela pesquisadora coordenadora do projeto.

 

Resultados e Discussão

Para descrever o entendimento das características do processo e das mudanças de Mariana (nome fictício) no transcorrer do primeiro ano de tratamento esta seção está dividida em três tópicos: (i) a história de vida, organizada a partir das anotações clínicas da terapeuta; (ii) a formulação inicial do caso, com base na integração entre as anotações clínicas da terapeuta na etapa inicial do tratamento, os dados do SWAP-200 e do SCL-90-R iniciais; e (iii) processo terapêutico e mudanças observadas no transcorrer do primeiro ano de tratamento, considerando as anotações clínicas e o reteste dos instrumentos psicométricos. Esse conjunto pode ser entendido como uma formulação de hipótese compreensiva, de base clínico- -empírica, sobre o processo psicoterápico e as mudanças no funcionamento da paciente no primeiro ano do tratamento.

 

A história de vida

A infância de Mariana foi permeada por muitas brigas entre seus pais. Seu pai e sua mãe eram usuários de álcool, faziam festas e tomavam grandes porres. Aos oito anos a paciente relata que um amigo do pai tentou beijá-la na boca, escondido, no banheiro da sua casa. Nesse mesmo período, passou a sentir um temor exagerado do barulho de quando puxava a descarga da privada, chegando a ter episódios graves de prisão de ventre. É dessa mesma época o aparecimento de pesadelos seguidos de gritos que terminavam no seu despertar. Também temia dormir e não acordar mais. Esse temor, assim como os episódios de prisão de ventre e os pesadelos, se mantém até o final do primeiro ano de tratamento.

A paciente lembra-se de muitas brigas e as relata de forma clara. Uma única vez teve medo que o pai matasse a mãe e, nesse dia, trancou-se no banheiro ficando em silêncio até que parasse a discussão, o que ocorreu após um estrondo. Alguns minutos depois, abriu a porta, viu uma estante jogada no chão e o pai e a mãe no quarto tendo relações sexuais com a porta aberta. Então, foi para seu quarto e tentou dormir.

Mariana tinha 11 anos quando seu pai morreu de complicações decorrentes do alcoolismo. Suas lembranças giram em torno da impossibilidade de despedir-se dele. A partir daí "tudo de ruim" passou a acontecer na sua vida. Na entrada da adolescência, com 13 anos, namorou um rapaz de 20 anos. Com ele começou a beber e teve suas primeiras experiências sexuais. Tinham muitas brigas e por diversas vezes teve de fugir dele para não ser agredida. Esse relacionamento durou em torno de um ano. Durante o processo da psicoterapia relatou que nunca mais conseguiu se apaixonar por um homem e que a partir daí começou a ter interesse por mulheres, mas que não se considerava homossexual. Dessa mesma época são os relatos de suas primeiras crises de choro e das primeiras buscas por tratamento.

O desempenho acadêmico de Mariana, a partir da entrada na adolescência foi decaindo, com diversas trocas de escola. Seus relacionamentos interpessoais foram se restringindo e ela passou a ficar muito tempo em casa dormindo. Com 17 anos, depois de ter tomado uma grande quantidade de vodca e arranhado várias partes do seu corpo pediu para que a mãe a internasse. Esta não entendeu o ocorrido como uma tentativa de suicídio, mas sim como desejo de "aparecer, de querer chamar a atenção".

Depois de passar por diversos psicoterapeutas e iniciar diversas vezes tratamento medicamentoso, aos 18 anos Mariana buscou novamente atendimento psicoterápico, já com a promessa de um novo abandono. Foi encaminhada para psicoterapia individual e tratamento farmacológico, assim como convidada para participar dessa pesquisa. Começou o tratamento no início de 2013.

No início do tratamento seus sintomas proeminentes eram: conduta auto e hetero agressiva, comportamentos fóbicos e compulsões e rituais para dormir. No segundo semestre letivo de 2013 iniciou a graduação e foi morar sozinha. Com o início das aulas, um período de desorganização ocorreu com aumento dos episódios de uso abusivo de álcool e automutilações, culminando com uma internação psiquiátrica depois de uma tentativa de suicídio. A internação durou três semanas em uma clínica particular da cidade em que morava. Mariana abandonou a graduação. No final do primeiro ano de tratamento, comparecia à psicoterapia uma vez por semana, tendo períodos de maior resistência, deixando de ir a diversas sessões. Não conseguiu retomar os estudos e estava com dúvidas quanto ao seu futuro.

 

Formulação inicial do caso

Conforme as anotações clínicas da terapeuta, Mariana buscou atendimento há aproximadamente 3 anos, quando contava 18 anos por se cortar em momentos de raiva e ter crises de choro desde os 12 anos. O psiquiatra que assumiu o caso diagnosticou transtorno de personalidade borderline (TPB) e iniciou a administração de estabilizador de humor e antipsicótico. Sua sintomatologia era acentuada, principalmente no que se refere ao descontrole de impulsos e do humor. Suas emoções eram sentidas como muito intensas ou inexistentes: "ou eu não sentia nada ou rasgava os lençóis da minha cama com os dentes". Já nas sessões iniciais, Mariana pontuou com agressividade que as antigas terapias não funcionaram e que provavelmente essa também não funcionaria. Sua irritação e raiva para com as pessoas eram evidentes, chegando a verbalizar intensas ideias homicidas. Suas fantasias homicidas são relatadas com um sadismo irônico: "Às vezes tenho vontade de pegar a cabeça das pessoas e chutar contra o meio fio da calçada até ver o cérebro saindo! Tu consegue imaginar como isso ia ser bom? Acho que tu não consegue porque nunca pensou isso, mas ia ser muito bom!" Tinha frequentemente pesadelos e rituais obsessivos na hora de dormir.

Nesta etapa, os sintomas mais proeminentes apontados pelo SCL-90-R circulavam na esfera da obsessividade-compulsividade, depressão e hostilidade. Os índices globais foram: IGS= 2,04, IDSP=2,56 e TSP= 184, evidenciando uma gama ampla de sintomas presentes.

Conforme a formulação compreensiva da terapeuta, Mariana apresentava pouco controle de impulsos, não conseguindo adiar a descarga, colocando-se em situações de risco. Seus conflitos internos eram postos em ação e o seu juízo crítico ficava prejudicado, porém não apresentando alucinações. Repetidas vezes, em momentos onde havia aumento de ansiedade, buscava refúgio na bebida e nos entorpecentes. As automutilações eram utilizadas cada vez que a intensidade de afetos depressivos aumentava e eram justificadas por frases como "assim eu tenho algo para sentir dor de verdade". Utilizava, com frequência, mecanismos de defesa primitivos como a negação, isolamento de afetos, desvalorização e atuação. Embora, na maior parte do tempo, Mariana apresentasse um self coeso, estava propensa a fragmentações em resposta a ações externas, como por exemplo, quando alguém não respondia às suas necessidades de atenção como havia desejado. No plano interpessoal, parecia ter muitas dificuldades ligadas ao processamento das informações que recebia, tendendo a interpretá-las erroneamente, interferindo na sua conduta e prejudicando seus relacionamentos.

A formulação de caso obtida com os dados do SWAP-200 indicou que Mariana apresentava emoções que costumam fugir de seu controle, levando-a a extremos de ansiedade, tristeza, raiva, excitação, etc. (12)2. Era raivosa e hostil (seja consciente ou inconscientemente) (16) e expressava-se de forma inapropriada e intensa, desproporcional à situação do momento (185). Sua percepção da realidade podia tornar-se completamente distorcida quando estressada (44); tinha dificuldade de compreender o comportamento das outras pessoas, interpretava mal ou se atrapalhava com as ações e reações dos outros (29) sendo crítica (114). Costumava culpar os outros pelas próprias deficiências e fracassos (14) e sentia-se mal compreendida, maltratada ou vitimada (127). Mariana parecia obter prazer e satisfação sendo sádica ou agressiva com os outros (39). Costumava despertar rechaço/aversão ou animosidade (96), sendo opositora, desafiadora ou pronta para discordar (170). Faltava-lhe uma imagem estável de si mesma ou de quem gostaria de se tornar (15), seus relacionamentos interpessoais costumavam ser instáveis, caóticos e de curta duração (153), assim como sua vida profissional/laboral (188). Demonstrava ao mesmo tempo precisar dos outros e rejeitá-los, desejando intimidade e cuidado, mas rejeitando-os quando lhes são oferecidos (167).

Parecia possuir um limitado ou pequeno repertório de emoções (126) e costumava tornar-se irracional quando emoções fortes eram despertadas, chegando a demonstrar um declínio visível em seu funcionamento normal (157). Costumava reprimir ou esquecer eventos estressantes ou distorcer as lembranças relativas a esses eventos até o ponto de não mais reconhecê-los (152), suas percepções eram superficiais, globais e impressionistas com dificuldade em focar nos detalhes (72), parecendo sentir que as experiências passadas eram uma série de eventos soltos ou desconexos, com dificuldade em apresentar uma história de vida coerente (151). Mariana era frequentemente acometida por pensamentos obsessivos que considerava como sendo sem sentido ou intrusivos (6) e possuía uma fobia específica (102). Costumava se sentir letárgica, cansada ou sem energia (30), parecia encontrar pouco ou nenhum prazer, satisfação ou divertimento nas atividades da vida (56) e possuía dificuldade em se permitir experimentar emoções prazerosas intensas (131). Era articulada, conseguindo se expressar bem através das palavras (92), porém, com frequência, agia impulsivamente sem considerar as consequências (134), costumava ver nas outras pessoas os próprios sentimentos e impulsos inaceitáveis ao invés de em si mesma (116) e oscilava entre atitudes descontroladas ou supercontroladas a respeito das próprias necessidades e impulsos (166).

A avaliação feita pelo SWAP-200, no que se refere ao diagnóstico de Eixo II do DSM-IV indica características antissociais (T = 58,72), paranoides (T = 58,14), esquizotípicas (T = 56,56) e borderline (T = 55,68) significativas. Em relação aos traços de personalidade, os fatores identificados como significativos são dissociação (T = 74,6), hostilidade (T = 68,6) e desregulação emocional (T = 54,1). Seu Índice de Saúde Psicológica era T = 38,5 indicando uma grave patologia de personalidade.

 

Processo terapêutico e mudanças observadas no transcorrer do primeiro ano de tratamento

Com o passar dos meses, os afetos agressivos para com a terapeuta e para com a mãe foram intensamente trabalhados durante as sessões. Sentimentos com relação à perda do pai começaram a ser aceitos. Porém, a raiva e a agressão estiveram sempre presentes, ora voltadas contra a terapeuta, ora contra a mãe e as outras pessoas. A terapeuta pontuou, em diversos momentos, que só conseguiria ajuda-la se deixasse que as pessoas se aproximassem dela, porém ela sempre rebatia dizendo não ser uma paciente fácil. Parecia querer impressionar a terapeuta e se dizia uma pessoa muito ruim, mas a terapeuta não se incomodava e não respondia às investidas com agressão. Por exemplo, utilizava intervenções que levavam a paciente a pensar se ela era realmente ruim como, por exemplo, quando questionada sobre como a aguentava e que por isso era a terapeuta que necessitava de psicoterapia respondeu: "Sei que tu sente assim, mas ainda estou aqui. Será que tu é tão ruim assim como tu acha?".

O tratamento pareceu entrar em uma nova etapa com o início das aulas da graduação. Mariana começou a relatar que se sentia nervosa com o retorno da vida acadêmica, mas que quando o nervosismo estava presente ela o fazia desaparecer. Estranhava muito a disponibilidade da terapeuta para ajudá-la nas questões acadêmicas e dizia tentar deixar a terapeuta se aproximar. As sessões foram mais silenciosas e com menos agressividade. Começou a verbalizar medo de ficar louca e passou a aceitar as colocações da terapeuta que ligavam a raiva à loucura. Eventos em que ela se sentia abusada vieram à tona e a agressão dirigida à terapeuta voltou a fazer parte das sessões.

O aceite maior da ajuda da terapeuta provavelmente provocou a redução da sintomatologia. Os dados da SCL-90-R evidenciaram a diminuição na sintomatologia no sexto mês de tratamento em todos os aspectos avaliados. O grupo de sintomas que se refere à hostilidade foi o que apresentou menor diminuição. Os índices globais de sintomas nessa etapa eram: IGS = 1,47, IDSP = 2,27 e TSP = 132.

Com o aumento das exigências acadêmicas e com as novas tarefas necessárias para manter seu apartamento habitável, a hostilidade tomou conta do clima dado por Mariana às sessões. Ameaçou por diversas vezes largar a psicoterapia e depois de uma sessão onde suas dificuldades foram apontadas fez uma tentativa de suicídio que a levou à internação psiquiátrica.

Após uma semana na ala fechada, a terapeuta do caso reiniciou o atendimento. Ainda hospitalizada, Mariana participou de uma série de quatro sessões de psicoterapia. A terapeuta encontrou uma paciente muito dócil, buscando ajuda para refletir sobre seus conflitos e sobre as "coisas que estão guardadas". Dizia ter vivido coisas ruins como a raiva pela morte do pai, ter que ser mãe da mãe, que parecia entregar-se para ser usada pelos outros e concluiu que não merecia coisas boas, mas que queria tentar melhorar e que contava com a ajuda da terapeuta. Falou de um pai menos idealizado e mais agressivo. Não estava tendo pesadelos, mas não conseguia desenvolver os conteúdos dos sonhos.

A saída da internação inaugurou uma nova gama de características da Mariana. Mostrou-se muito deprimida, porém associava e trabalhava junto com a terapeuta. Aceitava a maioria das intervenções da terapeuta, contando sonhos e relatando chorar sozinha em casa. Porém, sua angústia foi aumentando e os pesadelos reaparecem. Ficou mais apática e silenciosa, reclamava de tudo e de todos e não conseguia buscar alternativas possíveis para seus conflitos. A terapeuta interpretou e a paciente relatou estar "inconscientemente se isolando".

O silêncio e a apatia tomaram conta da paciente nas sessões que antecederam suas férias. Relatou ter perdido a vontade de fazer tudo e pediu para diminuir a frequência das sessões. Na data combinada para a sua volta não veio a três sessões seguidas e a terapeuta entrou em contato. Retornou exigindo mais atividade e direcionamento nas intervenções. A terapeuta questionou seus desejos de morte e a paciente negou, porém, o seguinte diálogo foi presente: terapeuta colocou: "Parece que tu deu um jeito de morrer" (referindo-se à sua apatia) e a paciente logo completou: "Eu me matei e ninguém viu". A terapeuta tirou férias fora do período habitual e a paciente não veio à última sessão antes da saída. Também não veio à sessão marcada para a volta.

A formulação de caso proposta pelo SWAP200 descreveu a paciente no fim do primeiro ano do tratamento e evidenciou as mudanças em sua personalidade. Mariana parecia possuir um pequeno repertório de emoções (126) que pareciam fugir do seu controle levando-a a extremos de ansiedade, tristeza, raiva, excitação, etc. (12), tornando-se irracional quando emoções fortes eram despertadas, chegando a demonstrar um declínio visível em seu nível de funcionamento normal (157). Costumava ser crítica com os outros (114), raivosa e hostil (16), expressando raiva de forma inapropriada e intensa, desproporcional à situação do momento (185) e culpando os outros pelas próprias deficiências e fracassos (14). Nesse período, Mariana costumava sentir-se infeliz, deprimida ou desanimada (189), parecendo encontrar pouco ou nenhum prazer, satisfação ou divertimento nas atividades da vida (56) sentindo-se letárgica, cansada ou sem energia (30). Possuía dificuldade em se permitir experimentar sensações prazerosas intensas (131) sentindo-se vazia e entediada (90). Costumava se sentir excluída e/ou como "alguém de fora", como se não fizesse parte da situação ou do grupo (149), parecendo querer se punir, criando situações que levavam à infelicidade ou ativamente evitando oportunidades prazerosas e gratificantes (163). Costumava descrever as experiências de modo genérico; não tinha vontade ou era incapaz de oferecer detalhes específicos (155), assim como parecia ser incapaz de descrever as pessoas que lhe são importantes de uma forma realista; suas descrições envolviam somente duas dimensões, sendo pobre em detalhes (41) com percepções superficiais, globais e impressionistas (72). Via as pessoas como totalmente más e perdeu a capacidade de perceber qualquer qualidade positiva (79). Tinha dificuldade de compreender o comportamento das outras pessoas, interpretando mal ou se atrapalhando com as ações e reações dos outros (29), ou seja, possuía pouca empatia, parecendo incapaz de compreender ou corresponder às necessidades ou sentimentos dos outros a não ser que coincidam com os seus (52).

A vida profissional/laboral de Mariana era caótica ou instável (188), faltavam-lhe habilidades sociais, tendendo a ser socialmente esquisita ou inadequada (193), sentindo-se inferior ou fracassada (54). Reagia a críticas com sentimentos de fúria e humilhação (103), gerando reações extremas ou despertando sentimentos intensos nos outros (154). Não era verbalmente articulada, possuía limitada habilidade de se expressar com palavras (198) e suas verbalizações pareciam incoerentes com os afetos que as acompanhavam ou incoerentes com as mensagens não verbais concomitantes (184), tendo pouco insight sobre as próprias motivações e comportamentos e sendo incapaz de considerar interpretações alternativas para as próprias experiências (148), porém apreciava e respondia bem ao senso de humor (68). Sobre sua sexualidade, experimentava conscientemente interesses homossexuais moderados, implicando uma bissexualidade (85).

Em termos de diagnóstico do Eixo II (PD T-Scores), nesta etapa, Mariana apresentou características marcantes de transtorno de personalidade esquizotípico (T = 60,94), bem como características histriônicas (T = 59,9), esquizoides (T = 58,33), borderline (T = 57,97), e paranoides (T = 56,35). Em relação aos traços patológicos de personalidade (Factor Scores), Mariana apresentou dissociação (T = 63,7), disforia (T = 63,4) e hostilidade (T = 68,6). Seu Índice de Saúde Psicológica foi T = 40,1.

Nas últimas sessões do primeiro ano, logo após o retorno das férias da terapeuta pareceu mais animada, falando do reingresso na faculdade e da mudança de curso. Parecia mais descontraída e as agressões verbais reapareceram. O SCL-90-R respondido ao fim do primeiro ano do tratamento demonstrou melhora e diminuição considerável na sintomatologia. Os índices globais de sintomas nessa etapa foram: IGS = 0,52, IDSP = 1,38 e TSP = 47.

A Figura 1 apresenta a evolução das 9 dimensões sintomáticas propostas pelo SCL-90-R no primeiro ano de tratamento.

 

 

Com base no conjunto de dados apresentados, entendeu-se que no final do primeiro ano de tratamento, Mariana apresentava imaturidade psíquica importante e sentimentos como tristeza, melancolia, infelicidade e desamparo. Sofria por apresentar vulnerabilidade às dificuldades diante das múltiplas tensões do cotidiano. Tendia a funcionar melhor nos meios bem estruturados, rotineiros e livres de ambiguidade parecendo ser mais ineficaz do que a maioria das pessoas quando havia aumento de tensão. A paciente vinha apresentando empobrecimento psicológico ao longo dos anos devido ao uso maciço dos mecanismos de defesa, a fim de evitar sensações e percepções desprazerosas, podendo ser interpretada como uma pessoa negligente, descuidada ou impulsiva. Porém, deste modo, acabava não registrando nem sequer suas necessidades básicas, mostrando que existia uma lacuna muito importante na sua capacidade de perceber o seu mundo interno e o mundo externo.

A depressão e o isolamento característicos do fim do primeiro ano do tratamento levaram, segundo dados do SWAP-200, a um funcionamento mais regressivo do que o inicial. O entendimento frente à integração dos dados clínicos e empíricos aponta para uma reação à evolução da psicoterapia. Dentro do setting psicoterápico, com o vínculo positivo que foi se estabelecendo e a confiança crescente na terapeuta, Mariana pôde regredir, deixando vir à tona alguns conflitos que estavam sendo encobertos pelas defesas. É característico de pacientes borderline que, após o estabelecimento de um bom vínculo, ocorra a regressão e a entrega de si mesmo para o terapeuta, possibilitando a análise e melhora do paciente. Isso se reflete nas mudanças positivas observadas na sintomatologia. As desenfreadas atuações da paciente começaram a ser questionadas, procurando-se um significado para as mesmas. No espaço terapêutico, buscou-se colocá-las em palavras. Entretanto, considerando o discreto aumento no seu Índice de saúde psicológica (passou de T = 38,5 para T = 40,1), que avalia as forças psicológicas do paciente em comparação com um modelo representativo de saúde psicológica ideal, entende-se que há ainda muito trabalho terapêutico a ser desenvolvido para que a paciente possa atingir níveis menos patológicos de funcionamento psíquico.

O tratamento de Mariana está em andamento. Com a análise dos dados, podemos evidenciar que a psicoterapia não é um processo linear, principalmente se tratando de uma paciente com TPB, transtorno este que tem como característica básica a oscilação entre estados mentais e vulnerabilidade à ocorrência de crises de desorganização agudas e transitórias (como a evidenciada no transcorrer do primeiro ano da psicoterapia). É esperado que os sintomas mudem antes dos traços de personalidade e que existam traços disfuncionais e até pioras, que persistam durante o andamento de um processo psicoterapêutico. Nota-se que há uma progressiva melhora sintomática, especialmente nos sintomas obsessivo-compulsivos, depressivos, de hostilidade e sensibilidade interpessoal, embora ainda que persistam diversas características patológicas e traços disfuncionais de personalidade. Outro ponto importante a ser considerado é que a paciente não abandonou o tratamento e vinculou-se à terapeuta, contrariando seu discurso inicial e histórico anterior de tratamentos interrompidos, e, possivelmente, abrindo novas perspectivas para o seguimento de sua mudança.

 

Considerações Finais

A dissociação histórica entre a pesquisa e a prática clínica empobrece o diálogo entre a psicanálise e as demais ciências e reforça a crença de que as capacidades clínicas são antagônicas e incompatíveis com as científicas (Fonagy, 2003). Porém, há atualmente um movimento crescente de aproximação entre essas duas áreas buscando desenvolver conhecimento baseado em evidências para aumentar a compreensão sobre os mecanismos da ação terapêutica (Serralta et al., 2011). É nesta direção que se situa este estudo.

Apresentamos um estudo de caso sistemático ilustrativo com o objetivo de enriquecer e aproximar duas áreas distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas. Dados clinicamente sensíveis foram apresentados juntamente com instrumentos validados empiricamente buscando articular uma mudança da atitude psicanalítica com relação à pesquisa, demonstrando a complementaridade das perspectivas clínica e empírica. O caso de Mariana foi compreendido à luz dessa possibilidade, que, a nosso ver, enriquece e amplia as possibilidades de compreensão do material clínico. A linguagem utilizada procurou aproximar os dois campos de saber, assegurando a integridade dos fatos clínicos e apresentando de forma clara os dados empíricos.

A curiosidade, o espírito crítico e a capacidade de fazer perguntas significativas parecem fazer parte da vivência dos psicanalistas e dos pesquisadores. No entanto, os que buscam a integração são frequentemente vistos como destoantes ou inadequados por ambos os lados (Fonagy, 2003). Buscamos com este estudo demonstrar a utilidade da integração, pois o fim último de psicoterapeutas e pesquisadores é promover a melhora do paciente. Acreditamos que esforços de pesquisadores para propor e divulgar estudos de interesse e compreensão ao psicoterapeuta, de um lado, e a formação científica de psicoterapeutas, de outro, são vetores de uma mudança de cultura que pode levar a um progressivo reconhecimento do valor da união entre as perspectivas empírica e psicanalítica.

O estudo da psicoterapia realizado no seu cenário natural, ou seja, os consultórios de atendimento – em processos terapêuticos reais – envolvendo a perspectiva do paciente, do terapeuta e de observadores externos favorece resultados que são mais facilmente extrapolados para a prática diária. Os pesquisadores deveriam buscar falar com os psicoterapeutas mostrando como os resultados das investigações poderiam fornecer valiosa ajuda no seu trabalho com os pacientes. Como pesquisadoras e terapeutas compartilhamos a constatação de Krause (2011) segundo a qual, passado o susto inicial, a investigação promove, no psicoterapeuta, uma atitude empírica que permite a interação das observações clínicas com suas teorias, contribuindo significativamente para o desenvolvendo e ampliação das possibilidades de aplicação da psicanálise.

 

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Submetido: 28/10/2016
Aceito: 20/02/2017

 

 

1 Weltanschauung pode ser traduzida como 'uma visão de universo'.
2 Os números apresentados entre parênteses indicam o item a que se refere a característica de personalidade.

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