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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.11 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.112.10 

ARTIGOS

 

Dor cortante: sofrimento emocional de meninas adolescentes

 

Sharping pain: emotional suffering from teenage girls

 

 

Guilherme Wykrota TostesI; Natália Del Ponte de AssisI; Tânia Maria José Aiello VaisbergI; Elisa CorbettII

IPontifícia Universidade Católica de Campinas. Av. John Boyd Dunlop, s/n, Jardim Ipaussurama, 13034-685, Campinas, SP, Brasil. gwtostes@gmail.com, nataliadpassis@gmail.com, aiello.vaisberg@gmail.com
IICentro Universitário Salesiano de São Paulo. Av. de Cillo, 3500, Parque Novo Mundo, 13467-600, Americana, SP, Brasil. licorbett@hotmail.com

 

 


RESUMO

Esta pesquisa objetiva investigar a experiência vivida por meninas adolescentes que se autolesionam, sintoma de sofrimento emocional que vem ganhando maior visibilidade social e motivando preocupação entre profissionais de saúde mental. O trabalho articula-se como pesquisa qualitativa mediante uso do método psicanalítico, pelo estudo de postagens em blogs assinados por oito meninas adolescentes que se identificam como praticantes de atos autolesivos. Leituras e releituras do material, em estado de atenção flutuante, permitiram a produção interpretativa de dois campos de sentido afetivo-emocional: "Desprovidas de afeto" e "Crime e castigo". O quadro geral indica que essas pessoas habitam, imaginariamente, um mundo hostil, marcado pela experiência de culpa persecutória pela privação de afeto, cuidado e consideração, apontando que exigências fundamentais na constituição da pessoalidade não estão sendo satisfatoriamente contempladas.

Palavras-chave: autolesão, sofrimento, adolescência.


ABSTRACT

This research aims at investigating the experience lived by teenage girls who cut themselves, a symptom of emotional distress that has had social visibility nowadays and caused concern among mental health professionals. This is a qualitative research that uses the psychoanalytic method to study some blog posts signed by eight teenage girls who identify themselves as practitioners of self-injurious acts. The reading and the re-reading of the material, in a state of floating attention, allowed the production of two fields of affective-emotional meaning: "Devoid of affection" and "Crime and punishment". The general picture indicates that these people inhabit an imaginary hostile world, marked by the experience of a persecutory guilty caused by the lack of affection, care, and consideration, pointing out that fundamental requirements in the constitution of the personality are not being satisfactorily contemplated.

Keywords: self-harm, suffering, teenager.


 

 

Compreendemos como autolesivo todo ato que tem por escopo consciente danificar a estrutura corpórea gerando dores decorrentes de lesões leves ou moderadas e que não têm o intuito manifesto de suicídio. Tais condutas são, compreensivelmente preocupantes, não apenas em função das lesões físicas decorrentes e dos prejuízos causados nas relações sociais de seus praticantes, mas especialmente pelo sofrimento emocional que expressam.

Como produção social, a adolescência pode ser vivida de diversas formas, dependendo dos contextos históricos, sociais, políticos e culturais em que se insere (Barus-Michel, 2005). Entretanto, adolescência parece ser concebida imaginariamente, nos dias de hoje, como uma fase problemática e arriscada, tanto entre as camadas médias como entre as camadas mais desfavorecidas, mobilizando a atenção de pais, pedagogos, juristas, sanitaristas, psicólogos e pesquisadores (Assis et al., 2016a; Camps, 2003).

O elevado número de artigos1 sobre adolescentes em bases de dados, tais como, por exemplo, "Pubmed" e "Scielo regional", fornece indícios do reconhecimento sobre a importância de investigar questões ligadas a esse grupo etário. São vários os temas pesquisados, tais como transtornos alimentares (Peebles et al., 2017; Lindstedt et al., 2017), o uso de substâncias psicoativas (Guareschi et al., 2016) a gravidez na adolescência (Thomazini et al., 2016; Quaresma da Silva, 2016) as doenças sexualmente transmissíveis (Taquette et al., 2017) e a violência (Faria e Martins, 2016; Zequinão et al., 2016).

Um aspecto curioso, acerca do que pode significar o reconhecimento de que a adolescência seria um difícil período de vida, diz respeito ao fato de constatarmos certa oscilação entre concepções que veem os adolescentes como vítimas sofridas de falta de cuidados, que competiriam às gerações mais velhas, e outras que os consideram como intrinsecamente problemáticos, vale dizer, como pessoas que criam problemas para os demais em virtude do seu próprio modo de se colocar no mundo (Assis et al., 2016a). Nessa segunda linha, os adolescentes se tornam facilmente alvos de um verdadeiro preconceito etário, segundo imaginários generalistas, discriminatórios e desesperançados, que contribuem para a configuração de ambientes sociais hostis ou insensíveis, pouco favoráveis ao desenvolvimento emocional saudável (Montezi et al., 2011).

Quando adotamos uma perspectiva clínica concreta (Bleger, 1989[1963]), entendemos que, ao apresentar condutas preocupantes, o adolescente manifesta sofrimento emocional, comunicando desconforto e mal-estar. Ou seja, atribuímos valor sintomático a tais manifestações, mesmo reconhecendo que via de regra acabam gerando novos sofrimentos, que se articulam sob a forma de uma trama complexa, difícil de ser compreendida pelo próprio adolescente, por sua família e por pessoas e grupos, mais ou menos diretamente envolvidos. É neste contexto que compreendemos todas as variadas condutas sintomáticas, dentre as quais incluímos a autolesão, como manifestação de sofrimento emocional.

Há uma tendência, entre estudos nacionais, de vincular a autolesão, de modo independente da faixa etária, ao diagnóstico psiquiátrico de psicose (Tostes et al., 2016). Contudo, esse quadro não parece corresponder ao que se tem apresentado na experiência clínica psicológica, nem ao que podemos encontrar na internet, na medida em que nos deparamos com adolescentes que praticam o chamado cutting em condições que não podem ser consideradas como condutas estruturalmente psicóticas (Bergeret, 2013[1974]).

Quando nos detemos nas diversas condutas adolescentes problemáticas, presentes na literatura cientifica, apercebemo-nos facilmente que sua apresentação se vincula ao gênero, condição absolutamente relevante, ao longo de toda a vida individual, na sociedade em que vivemos. Deste modo, sabemos que a dramática de vida da menina adolescente carrega sentidos diversos daqueles vividos por meninos adolescentes. A literatura científica sobre adolescência feminina abrange estudos sobre vários temas, tal como exemplificados a seguir: (i) sobre gravidez/maternidade na adolescência (Thomazini et al., 2016; Quaresma da Silva, 2016; Pacheco Sánchez, 2015); (ii) sobre transtornos alimentares (Peebles, 2017; Lindstedt, et al. 2017; Martins e Petroski, 2015); (iii) sobre formas de violência e abuso (Brancaglioni e Fonseca, 2016; Souza et al., 2015) e (iv) sobre o empoderamento da mulher em condições sociais nas quais se destacam tanto dificuldades como possibilidades de mudança (Pisani, 2016), entre outros.

Em estudo anterior, motivados pelo interesse em articular os sofrimentos de adolescentes e relações de gênero, estudamos o imaginário coletivo sobre o sofrimento da menina adolescente, o que nos levou à percepção de uma configuração complexa, na qual se mesclariam a falta de afeto parental com a apresentação de sexualidade promíscua (Assis et al., 2016b). O corpo da menina adolescente apresentou-se sob uma luz ambivalente, na medida em que objetivado e submetido, como bem de consumo, mas também valorizado pelo seu poder de despertar o desejo masculino. Evidentemente, esse tipo de imaginário indica a prevalência de ambientes despreparados para acolher e lidar com as questões existenciais que as meninas adolescentes enfrentam na sociedade contemporânea.

A relação entre gêneros na adolescência é assunto complexo, gerador de sofrimento, que vem preocupando pesquisadores há alguns anos. Santos e Silva (2008) analisaram criticamente, em pesquisa qualitativa, ideais de feminilidade expressos em revistas, dirigidas ao público adolescente brasileiro, que abordam temas relativos à sexualidade, à saúde sexual e às relações entre gêneros. As autoras encontraram padrões tradicionais que sugeriam certa limitação da condição feminina, na medida em que caberia à mulher manipular o parceiro evitando que esse percebesse qualquer gesto erótico dela como fruto de iniciativa própria. Destacam, por fim, a contradição das matérias, pois as revistas apresentam uma roupagem descolada e moderna, encobrindo a propagação de ideais essencialmente conservadores.

É pensando nas dificuldades relacionadas ao tornar-se mulher, em uma sociedade em transformação, que justificamos, neste momento, o interesse pelo sofrimento emocional da menina adolescente. Partimos da compreensão de que cutting, como conduta, deve ser compreendido como uma das inúmeras formas de expressão dramática de sofrimento de vida da menina adolescente. Tal sintoma, significativamente frequente na adolescência e, de modo mais especifico, no sexo feminino (Giusti, 2013), deve ser considerado, quando abordado pela psicologia concreta, que é fundamentalmente compreensiva, como comunicação emocional importante. Sua consideração nos parece plenamente justificada quando pretendemos auxiliar no cuidado psicológico de indivíduos e grupos que lidam com adolescentes e fornecer subsídios para debates e ações tendo em vista melhoria das condições concretas de vida. Tal como alertou Bleger (2007[1966]), não cabe ao psicólogo aguardar passivamente, em seu consultório, que as pessoas lhe venham pedir ajuda, mas sim ir ao encontro de suas demandas, buscar compreendê-las, evitando sofrimentos ou tratando-os o quanto antes.

Podemos observar que são muitas as situações nas quais as pessoas se deparam com condições de vulnerabilidade, o que acarretará consequências de diversos matizes, muitas das quais resultarão em problemas que chegarão a equipamentos psiquiátricos por se relacionarem a situações que envolvem riscos graves. A experiência clínica como psicólogos e supervisores de futuros colegas de profissão, em diferentes dispositivos de atenção à população, tem demonstrado a ocorrência clinicamente significativa de condutas de agressão contra si mesmo, evidenciando que o cuidado, nesses casos, é muito importante, tanto pelo fato desses sintomas se vincularem a sofrimentos emocionais quanto por prejudicarem a saúde física de modo transitório ou duradouro.

Diante desse quadro, delimitamos nosso problema de pesquisa, o estudo de práticas de autolesão de meninas adolescentes, compreendendo tal sintoma como expressão de sofrimento emocional. Optamos por abordá-las a partir de postagens assinadas por internautas brasileiras em um blog sobre autolesão porque a internet permite a veiculação de narrativas, elaboradas pela própria iniciativa da adolescente, e não em resposta a demanda de profissionais de saúde. Atualmente, a internet oferece material de pesquisa rico, fartamente disponível, permitindo a abordagem de variadas questões humanas (Schulte et al., 2016; Visintin, 2016).

 

Fundamentos teórico-metodológicos e a experiência vivida como conduta

No desenvolvimento de nossos trabalhos, fazemos uso do método psicanalítico, concebido como forma geral de compreensão dos fenômenos humanos a partir do uso da associação livre e da atenção flutuante (Herrmann, 1991). Tal opção respalda-se na concordância com Politzer (2004[1928]), quando reconhece que o método freudiano tem como pressuposto fundamental a compreensão de que toda conduta humana tem sentidos que se relacionam estreitamente às condições reais e concretas em que vive aquele que a manifesta, o que o caracteriza como visão rigorosamente ética e inclusiva (Aiello-Vaisberg, 1999).

Concordamos ainda com a crítica de Politzer (2004[1928]), dirigida à metapsicologia freudiana, quando afirma que a consideração dos fenômenos psicológicos de forma abstrata, concebendo a ideia de um aparelho psíquico movido por forças e energias, afasta-se do acontecer humano. Priorizamos, portanto, teorizações maximamente próximas do modo como a vida ocorre, vale dizer, sempre em campos vinculares que se inserem em contextos sociais, históricos, culturais e geopolíticos. Nesse sentido, vemos, na psicologia da conduta blegeriana, proposição que contempla as exigências politzerianas.

Considerando as teorias de diferentes autores de destaque na psicanálise, Greenberg e Mitchell (1994) reconhecem dois modelos distintos de compreensão do homem. De um lado, o modelo estrutural-pulsional, representado sobretudo pela metapsicologia freudiana, que concebe a mente como um aparelho percorrido por energias impessoais. De outro, o modelo estrutural-relacional, ao qual nos alinhamos, que teoriza em termos dramáticos e vinculares, reconhecendo que a própria constituição de si mesmo se dá na e pela coexistência.

Já que esta pesquisa visa investigar psicanaliticamente a experiência vivida por meninas adolescentes que se autolesionam, é conveniente explicarmos a nossa compreensão acerca do termo "experiência". O conceito de experiência emocional, ou experiência vivida, corresponde a noção fundamental, na medida em que se constitui como a dimensão essencial da abordagem psicológica da conduta, um dos campos disciplinares das ciências humanas2. Nessa perspectiva, entendemos a experiência vivida à luz do conceito de drama proveniente da psicologia concreta de Politzer (2004[1928]). A seu ver, "só se trará à tona a pertinência dos fatos psicológicos ao eu ficando nesse plano: os fatos psicológicos devem ser homogêneos ao 'eu', só podem ser as encarnações da mesma forma do 'eu'" (Politzer, 2004[1928], p. 66, grifos do autor). "Ora, o ato do indivíduo concreto é a vida, mas a vida singular do indivíduo singular, isto é, a vida no sentido dramático do termo". (Politzer, 2004[1928], p. 67, grifos do autor).

Em outros termos, propõe o autor que tais segmentos de vida sejam, precisamente, atos humanos, sempre e inevitavelmente prenhes de sentido, que se expressariam sempre sob forma narrativa, segundo uma visão ampliada que não se restringe à fala e à escrita, para abranger atos e gestos. Nessa linha, apregoa que o drama não seria interior nem exterior ao indivíduo, para constituir-se como acontecer significativo (Politzer, 2004[1928]).

O psicanalista argentino José Bleger (1989[1963]), entusiasmado com as formulações politizerianas, tomou-as como referencial para repensar a psicanálise, desvencilhando-a da especulação metapsicológica. Por essa via, chegou à proposição de uma psicologia psicanalítica da conduta que, mantendo-se fiel aos primeiros ensinamentos metodológicos freudianos, adotou como pressuposto fundamental a ideia de que todo o acontecer humano é provido de sentido, mesmo quando aparenta ser incompreensível, estranho ou bizarro (Aiello-Vaisberg, 1999). Desse modo, firma convictamente a impossibilidade de distinção, pensada por Jaspers (1987[1913]) entre as condutas compreensíveis e explicáveis, convergindo com os psicanalistas, vale dizer, aqueles que defendem que não existem limites para a compreensibilidade dos fenômenos humanos (Aiello-Vaisberg, 1999).

Bleger (1989[1963]) entende a conduta como o produto de campos inter-relacionais - sendo que mesmo aquilo que parece individual consiste em memória afetiva de interações pretéritas, que se configuram na interação inter-humana. Nessa perspectiva, a ideia de fenômenos inconscientes como forma de funcionamento mental, dá lugar à consideração de campos inter-relacionais, vinculares. O inconsciente passa a ser compreendido não mais a partir de uma esfera intrapsíquica, mas intersubjetiva. Bleger (1989[1963]) denomina campo psicológico o modo como uma situação pode ser experimentada pelas pessoas, compreendendo-o como parcialmente consciente e parcialmente inconsciente. Quando utilizamos o conceito de campo de sentido afetivo-emocional, visamos nos manter bastante próximos e alinhados à noção blegeriana de campo psicológico não consciente.

Entendendo a experiência como conduta que emerge a partir de campos relacionais, podemos, portando, defini-la como "modos de habitar, dramaticamente, mundos ou ambientes psicológicos humanamente produzidos - não correspondendo, portanto, a fenômenos internos e descolados das condições materiais em que a vida transcorre" (Ambrosio et al., 2013, p. 182). Percebemos, assim, que a psicologia concreta pode ser produtivamente aprofundada quando articulada ao pensamento winnicottiano, uma vez que neste último se valoriza, de modo raro no campo psicanalítico, a importância do ambiente inter-humano. Tal articulação tem sido produtivamente levada a cabo pelo chamado estilo clínico Ser e Fazer, que aqui adotamos (Ambrosio e Aiello-Vaisberg, 2016; Aiello-Vaisberg, 2004).

 

Procedimentos investigativos

Pesquisas empíricas, no campo da pesquisa qualitativa, requerem a comunicação do modo como a perspectiva teórico-metodológica utilizada veio a ser efetivamente operacionalizada em termos dos procedimentos investigativos colocados em marcha. Tal providência é indispensável uma vez que se tem como intenção estimular o debate entre estudiosos que pesquisam os mesmos fenômenos mas aderem a diferentes orientações.

No que se refere aos procedimentos investigativos aqui adotados, vale destacar que iniciamos a presente pesquisa por meio do procedimento de levantamento e seleção do material a ser considerado, vale dizer, postagens feitas em blog por pessoas que se identificam como autoras de práticas de autolesão. Para tanto, realizamos uma pesquisa3 no website de buscas "Google" a partir das palavras-chave "blog" e "automutilação". A escolha pelo termo automutilação se deu a partir da constatação de que esta palavra vem sendo bastante utilizada para se referir às autolesões na internet. Em seguida, dentre os blogs encontrados, identificamos aqueles que continham narrativas de atos de autolesão redigidas por pessoas que afirmam realizar essa prática. Estabelecemos, como critério aleatório de seleção, trabalhar com o primeiro daqueles que obtivéssemos como retorno. Desse modo, chegamos a um blog criado por uma pessoa que se apresenta como uma adolescente de quatorze anos. Dele participam, com postagens e comentários, trinta e seis pessoas que afirmam se autolesionar, compondo um coletivo humano que se caracteriza como majoritariamente feminino e adolescente. A presente investigação se realizou a partir da consideração das manifestações de oito pessoas que se identificaram como meninas adolescentes, com idade variando entre treze e dezoito anos.

O procedimento de apresentação do material se deu pela compilação de postagens realizadas por meninas adolescentes que se identificam como praticantes de atos autolesivos, preservando o contexto em que estavam inseridas no blog.

O procedimento de interpretação do material se deu a partir de leitura e releituras das postagens, em estado de atenção flutuante. Tal postura caracteriza-se como abertura fenomenológica de acolhimento à expressão subjetiva das participantes, a partir do cultivo de desprendimento máximo de ideias e teorias pré-concebidas. Nesse procedimento investigativo, fizemos uso de uma série de encontros em duplas e em grupo, envolvendo integrantes de nosso Grupo de Pesquisa, tendo em vista favorecer que a multiplicidade de olhares aprofundasse nossa compreensão sobre as comunicações em foco. Vale lembrar que, partindo de uma perspectiva epistemológica intersubjetiva, buscamos o que está "entre" o pesquisador e o material, jamais na interioridade psíquica do narrador da postagem, pois entendemos o drama como inerentemente vincular.

Por fim, dedicamo-nos ao procedimento de interlocuções reflexivas, que diz respeito ao diálogo com autores das ciências humanas, psicanalistas ou não, sobre os principais temas veiculados em cada campo de sentido afetivo emocional. Aqui, abandonamos o método psicanalítico e a postura de abertura ao fenômeno, pois estamos comprometidos com a produção científica de conhecimento, que, sabemos, não se faz sem interlocução teorizante (Corbett, 2014). Afinal, se os estudos qualitativos não visam generalizações semelhantes às dos paradigmas científicos positivistas (Guba e Lincoln, 1994), não deixam de pretender atingir certa transcendência (Souza e Lima, 2011), seja na linha de generalizações analíticas (Yin, 1984), seja na linha de generalizações naturalísticas (Stake, 2000), que exigem sempre interlocuções teóricas. De todo modo, é importante ressaltar que o pesquisador qualitativo, especialmente aquele que faz uso do método psicanalítico, evita deixar-se obcecar pela busca de generalizações fundadas na estatística, mantendo-se atento à tarefa de produzir apreensões densas e detalhadas dos fenômenos que estuda, tendo em mente contribuir para o debate científico.

 

Interpretações (Resultados)

A consideração psicanalítica das comunicações das oito meninas adolescentes, que se manifestaram no blog selecionado, sobre suas práticas de autolesão, permitiu a produção de dois campos de sentido afetivo-emocionais, ou inconscientes relativos às condutas, que denominamos "Desprovidas de Afeto" e "Crime e Castigo". Vale lembrar que tais campos apresentam caráter relacional e correspondem a uma concepção do inconsciente como algo que ocorre entre pessoas e não dentro da interioridade psíquica individual, conforme a perspectiva da psicologia concreta (Bleger, 1989[1963]). Assim, não admira que se organizem ao redor de crenças ou fantasias inconscientemente compartilhadas.

Definimos "Desprovidas de Afeto" como um campo de sentido afetivo emocional que se organiza ao redor da crença ou fantasia de que o outro é devedor de carinho, afeto e atenção. Segue um exemplo de narrativa que emerge desse campo:

Quem viu pela primeira vez foi minha amg que andava inconformada de só eu andar de moletom num calor insuportavel, um tempo depois meus pais descobrira, eles não quiseram procurar ajuda e só tacaram na minha cara que se isso realmente aliviasse a dor eles tbm faziam. Parei durante umas semanas só pra esperar a pueira abaixar com meus pais, mas voltei e voltei com cortes maiores e cada vez mais fundos. Meus motivos? Incompreensão! Não me entendem, não gosto do meu corpo (já fui bolemica/anorexa) sou desprezada e não tenho ngm além de Deus que seja meu verdadeiro amigo, que me ligue e que se preocupa.

Definimos "Crime e Castigo" como um campo de sentido afetivo-emocional que se organiza ao redor da crença ou fantasia de que as pessoas que se comportam mal devem ser castigadas de vários modos, que incluem virem a ser privadas de afeto. Abaixo um exemplo de narrativa sustentada por esse campo:

me corto quando fico com raiva e quando as pessoas fala que eu faço isso pra chamar atenção e quando eu fico feliz tbm me corto isso já virou um vício nunca tentei suicídio mais eu só penso em morto e me vingar de algumas pessoas da minha família me sinto muito sozinha Eu sinto um prazer enorme de vê me braço sangrando.

O quadro geral indica que as adolescentes que praticam atos de autolesão habitam um mundo hostil, marcado pela experiência de não se sentirem amadas e consideradas, que tentam elaborar imaginativamente considerando oscilantemente que sua própria maldade, ou a dos demais, seria a causa dessa situação. Esse mundo hostil corresponde ao que se constela nas relações afetivas próximas, vale dizer, como campos intersubjetivos, que, por seu turno, não podem ser considerados como isolados do contexto social mais amplo, sob pena de incorrermos nos equívocos designados por Bleger (1989[1963]) como mito do homem natural, mito do homem abstrato e mito do homem isolado.

 

Interlocuções reflexivas (Discussão)

Na pesquisa qualitativa psicanalítica, a discussão assume um caráter reflexivo e dialógico. Corresponde a uma retomada das interpretações, vale dizer, dos campos inconscientes que subjazem às condutas em estudo, à luz do pensamento de autores, psicanalíticos ou não, que mantem visões antropológicas convergentes àquelas adotadas quando subscrevemos o estilo clínico Ser e Fazer (Aiello-Vaisberg, 2004). No presente caso, selecionamos, como interlocutores, José Bleger (1989[1963]), Luigi Giussani (2009) e Donald Winnicott (2008[1979], 1975[1971]).

Quando focalizamos os campos de sentido afetivo-emocional aqui produzidos, à luz de contribuições blegerianas, várias considerações permitem uma ampliação de nossa compreensão.

As vivências, narradas pelos participantes, que emergem do campo "Desprovidas de afeto", parecem indicar que as adolescentes reivindicam consideração, compreensão e cuidado por parte dos demais, principalmente daqueles afetivamente próximos. Deste modo, podemos considerar que as participantes habitam mundos imaginários, povoados por outros significativos, fantasiados como seres plenos, que se negariam imotivadamente a conceder afeto e consideração. Complementarmente, sentem-se vazias, carentes e desprovidas de recursos pessoais. Nessa atmosfera grassa uma busca por culpados, de modo que a relação com o outro fica bastante prejudicada, na medida em que este se afigura como poderoso, mas afetivamente indiferente. Por outro lado, poder-se-ia asseverar que nos defrontamos com um fechamento à alteridade, na medida em que os demais ficam todos aparentemente igualados na sua condição de seres que se recusam a amar a adolescente. Entretanto, é imprescindível recordar que tal fechamento não deriva, evidentemente, de opção consciente, mas da ausência de suporte para um desenvolvimento emocional.

Evidencia-se assim que, na vigência do campo "Desprovidas de Afeto", ocorreria uma predominância da estrutura de conduta paranoide (Bleger, 1989[1963]). A seguinte expressão pode traduzir a lógica dessa estrutura: "O outro, por ser poderoso e pleno, é o culpado por eu permanecer vazia, sem receber afeto e atenção". Esse campo se articula com o campo "Crime e Castigo" que, por seu turno, organiza-se ao redor da crença de que as pessoas que se comportam mal devem ser castigadas - sendo a privação do afeto um terrível castigo, de modo que cada um surge como culpado da miséria afetiva do seu próprio viver. A lógica desse segundo campo se configura segundo uma oscilação entre a estrutura de conduta paranoide e a estrutura de conduta depressiva (Bleger, 1989[1963]).

Assim, o campo de sentido afetivo-emocional "Desprovidas de Afeto" organiza-se segundo a lógica do chamado conflito divalente: "divisão em duas condutas dissociadas, com dois objetos distintos" (Bleger, 1989[1963], p. 131). Tais conflitos ocorrem quando não existe possibilidade de integração de aspectos gratificantes e frustrantes da experiência na percepção do objeto total que, na condição de outro afetivamente significativo, tanto gratifica como eventualmente frustra. Aliás, é oportuno lembrar que não existe outro absolutamente gratificador, na realidade vivida, precisamente pelo fato de ninguém corresponder a mero feixe de projeções das necessidades e desejos de ninguém, já que todos compartilham a mesma condição existencial. Um outro inteiramente devotado e esquecido de si mesmo só pode ser vivenciado, de modo ilusório, por um bebê pequeno atendido por uma mãe suficientemente boa (Aiello-Vaisberg, 2012).

No âmbito da vigência do campo "Desprovidas de Afeto", a questão podia ser colocada em termos da seguinte verbalização "O outro não me ama porque é mau, embora seja poderoso e cheio de amor, que não me quer entregar".

Por outro lado, no âmbito do "Crime e Castigo", um maior grau de complexidade seria atingindo porque "O outro não me ama porque eu sou má e ele me castiga me negando seu amor. Sinto-me culpada e por isso eu também me castigo". Aqui, a pessoa fica, por assim dizer, prisioneira da passagem entre a posição paranoide, na qual percebe o outro como maléfico, e a posição depressiva, que, quando saudável, resulta não apenas na percepção do chamado objeto total, que gratifica e frustra, mas também no aparecimento da crença de ser, ela própria, capaz de reparar "ataques" fantasiados contra um outro, inicialmente fantasiado como inteiramente mau, que se revela posteriormente como objeto total. Fantasias reparatórias, como sabemos, constituem um importante elemento na possibilidade de se lidar de modo amadurecido com a própria agressividade (Bleger, 1989[1963]).

Assim, conjuga-se, no âmbito do campo "Crime e Castigo", uma configuração fantasiosa muito particular, que combina um vislumbre do outro como objeto total com a crença na impossibilidade de reparação e de misericórdia. Nesse caso, ao dar-se conta de que fantasiou ataques contra um outro, não total e uniformemente maldoso, deixa de acusá-lo e passa a acusar-se bem como a acreditar que deve ser castigada. Encontramo-nos, portanto, diante da chamada culpa paranoide (Bohoslavsky, 2015[1971]), que se constela predominantemente sob forma de retaliação e castigo, mas não como preocupação autêntica com o outro (Klein, 1982).

Na ausência de capacidades de preocupação com o outro e de reparação de atos agressivos, o espaço da fantasia inconsciente é preenchido pela culpa persecutória e por necessidade de expiação, que percebemos no campo "Crime e Castigo". A seguinte expressão pode sintetizar a dinâmica aí presente: "Sinto que o outro não me ama e por isso eu o agrido. Entretanto, logo sinto remorso e culpa, uma vez que preciso dele e vejo que muitas vezes me trata bem. Sinto-me então uma pessoa má, que merece ser punida. Aliás, percebo que o outro não poderia realmente me amar, pois sou má!". Vemos que a menina adolescente inicia a vivência num patamar no qual quase se apercebe do outro como objeto total, mas rapidamente retorna a um posicionamento divalente, como comprova o fato de não dar um passo adiante, no sentido da reparação, para retroceder para a punição que, lembremos, provém do objeto mau e não do objeto total.

Por outro lado, interessantes ponderações podem ser aventadas se revisitarmos nossas interpretações sobre o inconsciente - concebido como campo - a partir do estabelecimento de diálogo com o segundo interlocutor escolhido: Luigi Giussani (2009). Assim, nesse momento, deixamos momentaneamente uma visão centrada nas oscilações afetivas, mais ou menos sutis, das relações afetivas, para adentrar num segundo modo de contemplar a questão da prática da autolesão.

Para o filósofo italiano, a experiência verdadeiramente humana dar-se-ia, primordialmente, como resposta a exigências fundamentais, de caráter axiológico4, que caracterizariam o modo humano de existência. Esse conjunto de exigências originárias foi designado, no texto de Giussani (2009), como experiência elementar, termo cunhado para designar um movimento originário, subjacente a todo posicionamento existencial. Segundo esse autor, as exigências fundamentais, apreensíveis de modo imediato, direto e intuitivo, e não por vias reflexivas e representacionais, assumem um caráter soberano diante da pessoa, de modo que toda e qualquer conduta se relaciona, de um modo ou de outro, com a experiência elementar que funda o valor do bem, da felicidade, da beleza, da justiça e mesmo do ser. Ora, nessa perspectiva, podemos aventar, beneficiando-nos das contribuições de Mahfoud (2012), que propôs um modo de trazer as contribuições da teoria da experiência elementar para o campo da psicoterapia, que o reconhecimento das exigências fundamentais, implícitas nas condutas das adolescentes que se autolesionam, poderia contribuir também para uma maior compreensão acerca do que aí se encontra em jogo.

Assim, por mais que as manifestações das participantes possam ser caracterizadas como solicitação de afeto, carinho e atenção, verificamos a interferência de um aspecto que se manifesta como mais preponderante do que a necessidade de cuidado, revelando-se como autopunição, que é o oposto do que demandam explicitamente em suas comunicações. De fato, identificamos, nas manifestações estudadas, indícios de um fenômeno que pode ser compreendido como conduta que atenderia a uma exigência de justiça (Giussani, 2009), valendo lembrar que muitas vezes nos deparamos com afirmações da justiça mediante adoção de condutas em si mesmas injustas:

Mas, para compreender a fome de justiça, é necessário compreender uma outra coisa. E para compreender a sede de amor, é necessário compreender uma outra coisa. Se não se compreende a misteriosidade do desígnio total, a fome de justiça e a sede de amor se transformam em lúgubres, terríveis mentiras que podem dar lugar a uma só coisa: à violência (Giussani, 2001, p. 40).

Em registro antropológico, Giussani (2001; 2009) aporta aspectos importantes para uma compreensão mais ampla do fenômeno da autolesão, fornecendo elementos para que possamos interpretá-lo como uma tentativa distorcida de atender à exigência de justiça. Se tal visão estiver correta, teríamos que admitir que a autopreservação seria menos valiosa do que a busca pela justiça, mesmo quando expressa em termos mais imaturos sob forma de demanda de afeto de um outro suposto como pleno e onipotente.

Entretanto, cumpre destacar que, no presente contexto, o clamor pela justiça vincula-se a um sentido de "direito ao amor" que, à luz da teoria do amadurecimento emocional de Winnicott (2008[1979]), nosso terceiro interlocutor, corresponderia ao direito de viver uma experiência de onipotência, que seria a base de toda possibilidade de amadurecimento posterior. A experiência de onipotência, vale dizer, aquela de poder criar o mundo conforme as próprias carências e necessidades, a partir do próprio gesto espontâneo e criativo, depende, na realidade compartilhada, do recebimento de cuidados parentais devotados.

Encontramos em Winnicott (2008[1979], 1975[1971]) sustentação para compreender os processos de amadurecimento emocional a partir de uma teoria do amadurecimento afetivo segundo a qual o bebê partiria de uma condição de dependência absoluta, alcançaria uma dependência relativa para posteriormente posicionar-se "rumo à independência", porque a independência propriamente dita não condiz com o modo humano de existir. Todo o processo seria presidido tanto por uma tendência inata à integração quanto pela necessidade de ser, que, a seu ver, caracterizam a natureza humana. Ao conceber sua teoria de desenvolvimento psicoemocional, Winnicott (2000[1945]) operou uma drástica mudança de perspectiva no esquema básico da psicopatologia psicanalítica, na medida em que muito valorizou o ambiente. Afinal, se muito depende do potencial humano, este não se realiza caso o ambiente não atenda às necessidades do bebê e da criança. Assim, compreende o psicanalista que o ambiente suficientemente bom seria aquele em que o indivíduo se sentiria considerado em sua pessoalidade, reconhecido em sua particularidade e não invadido, o que contribuiria para a experiência de continuidade de ser. Segundo esse autor, a ausência de um ambiente com essas características poderia retardar ou mesmo impedir o amadurecimento emocional do indivíduo. Além disso, relaciona o ambiente suficientemente bom à mãe suficientemente boa, declarando o reconhecimento de que a família se inscreve na organização social. Em suas palavras, "normalidade significa tanto a saúde de um indivíduo como da sociedade, e a maturidade completa do indivíduo não é possível no ambiente social imaturo ou doente" (Winnicott, 2008[1979], p. 80).

Entretanto, por variadas razões, não encontramos, no pensamento winnicottiano, uma teorização realmente satisfatória sobre os efeitos das condições sociais sobre a família e o indivíduo. Com base na perspectiva teórica "Ser e Fazer" (Aiello-Vaisberg, 2004; Ambrosio, 2013), que recomenda uma leitura da obra winnicottiana a partir da psicologia concreta de Bleger (1989[1963]), podemos verificar o quanto o ambiente emocional primário é influenciado pelas condições concretas da vida, vale dizer, pelos contextos sociais, econômicos, culturais, históricos e geopolíticos nos quais se insere a família. Desse modo, a busca de uma compreensão mais ampla sobre quais condições de vida favoreceriam bons cuidados parentais, segundo delineamentos que permitam um atendimento satisfatório das necessidades infantis, requer que nos lembremos, ainda que rapidamente, que os contextos da vida social, vigentes no país em que vivemos, impõem pesadas cargas tanto aos mais pobres, que são os mais numerosos, como às camadas médias da população que fazem esforços redobrados para equiparar seu estilo de vida com aqueles vigentes nos chamados países do primeiro mundo. A sobrecarga vivida no cotidiano certamente não contribui construtivamente para o bom exercício da parentalidade, principalmente quando se esgarçam laços com a família extensa e com a comunidade, aumentando os encargos da família nuclear. Aqui cabe lembrar, ainda que de passagem, que o passado como ex-colônia europeia ainda gera efeitos relevantes, fazendo-se sentir fortemente, como demonstram os autores que se tem debruçado sobre a pós-colonialidade latino-americana (Maldonado-Torres, 2007).

Buscando atender, ainda que de modo distorcida, uma exigência de justiça, vale dizer, do direito fundamental a cuidados suficientemente bons, as adolescentes estudadas debatem-se entre a percepção da falta e a busca de culpados a serem punidos, elas próprias, seus pais e outros afetivamente significativos. Por seu turno, sua queixa paradoxalmente é justa, mas também injusta - e sabemos bem com que ênfase os paradoxos vivenciais são destacados no pensamento winnicottiano (Aiello-Vaisberg, 2012). A falta vivida é evidentemente real - e aí é justa - mas o atendimento das necessidades da primeira infância nunca dependeu apenas da vontade individual das pessoas.

 

Considerações Finais

Compreender que as condutas humanas emergem sempre em campos de sentido afetivo-emocional, de caráter essencialmente vincular, que se inserem em contextos sociais, econômicos, culturais, históricos e geopolíticos, contrapõe-se à visão do ser humano desconectado do viver, reduzido a um cogito reflexivo e desencarnado. Ora, essa segunda perspectiva converge com a ideia de que aquilo que é essencial para a vida humana se encontra muito além de uma esfera consciente, ultrapassando a capacidade representacional. Sendo originárias, em sentido antropológico, as exigências fundamentais do ser, da bondade, da justiça, do amor e da felicidade, não seriam fruto da consciência nem da inteligência, mas verdades sentidas, intuídas ou reconhecidas em registros pré-representacionais. Assim, o adjetivo elementar aponta para o fato que tais fenômenos independem da sofisticação da consciência pensante. Levamos tal ideia em conta quando nos voltamos ao estudo de meninas adolescentes que apresentam condutas de autolesão, buscando compreender o substrato afetivo-emocional subjacente à tal manifestação sintomática, aparentemente estranha e irracional.

Nossas interpretações evidenciam que a menina adolescente, que pratica a autolesão, habita mundos vivenciais repletos de angústia, perseguição, carência e intenso sofrimento emocional. Tais campos são imaturos emocionalmente e pensamos que isso pode ser reflexo de um ambiente não suficientemente bom, não apenas no que diz respeito ao núcleo familiar, tão enfatizado na visão winnicottiana, mas também ao ambiente social, marcado por desigualdades e injustiça que caracterizam, ainda hoje, países com passado colonial. Se a menina adolescente sofre e reivindica por justiça, tal percepção diz respeito ao direito legítimo a receber cuidado e amparo amoroso por parte dos pais e pessoas próximas. Por outro lado, há um paradoxo, pois, as condutas imaturas impossibilitam a percepção de que o outro - "que deve cuidar de mim"- também vive carências e dificuldades. Afinal, sabemos que as famílias também estão inseridas em contextos marcados por impedimentos que dificultam marcadamente a continuidade de ser. Sendo assim, pensar que "o outro tem amor e não me oferece porque não quer, ou porque sou má" indica uma visão de mundo infantil, simplista e limitada, característica de um desenvolvimento emocional precário - e não de nenhum tipo de opção livre.

Finalmente, cabe acrescentar que, ainda que o material estudado não tenha trazido manifestamente alusões a uma relação clara entre a condição feminina das participantes e seu sofrimento emocional, não podemos deixar de lembrar que o tornar-se mulher apresenta-se como processo peculiarmente dificultoso na sociedade brasileira contemporânea, em evidente transição no que se refere aos problemas de gênero. Compreendemos que se encontrar às voltas com questões existenciais básicas, características de fases mais precoces do desenvolvimento psicoemocional, provavelmente dificulte a percepção das participantes acerca das complexidades da vida social que se traduzem sob múltiplas formas de opressão feminina, que atravessam condições de classe e idade, entre outras. O escotoma desse aspecto da realidade social, que merece futuras investigações, certamente se constitui como fenômeno de inegável interesse e de consequências presumivelmente relevantes.

 

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Submetido: 20/03/2017
Aceito: 11/09/2017

 

 

1 No Pubmed o termo "adolescence" gerou o retorno de 1.818.911 artigos no dia 9 de março de 2017. No mesmo dia, o termo "adolescência" permite acesso a 3.776 artigos pelo SciElo regional.
2 A bem da clareza, cabe lembrar que de acordo com Bleger (1989[1963]), todas as ciências humanas compartilham um mesmo objeto de estudo, que abordam a partir de diferentes perspectivas. A conduta, enquanto experiência vivida, configura o objeto de estudo da psicologia.
3 Busca realizada em 12/12/2015.
4 Vale aqui lembrar que Bleger (1989[1963]) considerou que todas as ciências humanas, que compartilham o mesmo objeto de estudo, a atividade humana, ou conduta, dependem de discussões sobre valores e ideologias, comportando, portanto, uma dimensão axiológica.

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