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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.11 no.3 São Leopoldo set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.113.05 

ARTIGOS

 

Tornar-se família de uma criança com transtorno do espectro autista

 

Becoming the family of a child with autistic spectrum disorder

 

 

Mônica Sperb Machado; Angélica Dotto Londero; Caroline Rubin Rossato Pereira

Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, 1000, Prédio 74B, Sala 3206A, Camobi, 97105-900, Santa Maria, RS, Brasil. monicasperb@hotmail.com, angelicadl2006@hotmail.com, carolinerrp@gmail.com

 

 


RESUMO

Estudo qualitativo e exploratório que objetivou refletir sobre o tornar-se família de uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) a partir das repercussões do transtorno nas famílias, das características, das perspectivas futuras destas e de como elas se reconhecem nesse contexto. Participaram do estudo sete familiares de crianças com TEA atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi). Na coleta de dados, utilizaram-se questionário sociodemográfico, grupo focal e entrevistas semiestruturadas. O grupo focal e as entrevistas foram gravados, transcritos e submetidos à Análise de Conteúdo. Os resultados indicaram que o diagnóstico de TEA repercutiu nas famílias dos participantes, demandando alterações na rotina, na dinâmica e nas relações familiares. As famílias se afastam do convívio social, centram-se na criança, vivenciam falta de apoio e dificuldade no acesso aos tratamentos, possuem preocupações e perspectivas diferentes das de outras famílias, reconhecendo-se como famílias unidas que alternam entre tristeza e alegria e que investem na criança.

Palavras-chave: autismo, criança, família.


ABSTRACT

This qualitative and exploratory study aimed at reflecting on becoming the family of a child with Autistic Spectrum Disorder (ASD) based on the effects of the disorder in the families, their future characteristics and perspectives as well as how they recognize themselves in this context. The participants of the study were seven relatives of children with ASD attending a Children's Psychosocial Care Center (CPCC). In the data collection, a demographic questionnaire, a focus group, and semi-structured interviews were used. The focus group and the interviews were recorded, transcribed and subjected to content analysis. The results indicated that the ASD diagnosis has affected the participants' families, demanding changes in routine, dynamic, and family relationships. They move away from social interaction, focus on the child, experience lack of support and difficulty in access to treatment, and have concerns and different perspectives from other families, recognizing themselves as united families alternating between sadness and joy and investing in children.

Keywords: autism, child, family.


 

 

Introdução

O autismo corresponde a um transtorno do neurodesenvolvimento que se manifesta precocemente e acarreta prejuízos ao funcionamento social do sujeito acometido. Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID 10 (OMS, 2008), ele é descrito como "Autismo Infantil" e se enquadra nos "Transtornos Globais do Desenvolvimento", junto à Síndrome de Asperger e Síndrome de Rett. Já o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V; APA, 2014), em sua última revisão, propôs a denominação de Transtorno do Espectro Autista (TEA), passando a englobar neste diagnóstico os transtornos que na versão anterior (DSM-IV; APA, 2002) eram classificados como: Transtorno Autista, Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno Global do Desenvolvimento Não Especificado e Síndrome de Asperger. A Síndrome de Rett passou a ser considerada uma entidade própria, separada do espectro autista, mas podendo estar associada a ele. Ambas as classificações, no entanto, reconhecem o fenômeno como caracterizado por: (a) déficits na comunicação, interação e reciprocidade social; e (b) por padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades.

As características do TEA são peculiares e afetam o modo de viver da criança que possui o transtorno. Quando bebês, por exemplo, podem se demonstrar apáticas e mais interessadas nos objetos que nas pessoas (Muratori, 2014). Com o tempo, as crianças tendem a apresentar outros prejuízos no desenvolvimento, tais como a capacidade de interagir e de se comunicar com o mundo, apresentando dificuldades na reciprocidade social. Além disso, frequentemente, demonstram comportamentos estereotipados ou rígidos, podendo abanar mãos, enfileirar objetos, aderir excessivamente à rotina, resistir à mudança, apresentar interesses limitados e fixos, além de outros sintomas (APA, 2014; Dumas, 2011). Tais características podem causar significantes prejuízos ao funcionamento social da criança, a qual pode se tornar dependente dos cuidados de sua família, bem como fonte de intensas preocupações aos familiares.

A família é, no entendimento de Borba et al. (2011), uma complexa unidade social formada a partir de um conjunto de pessoas e suas ligações. Corresponde, dessa forma, a um sistema de relações perpassado pela cultura, pelas crenças, por conflitos, segredos e sonhos, adquirindo inúmeras formas e que, ao longo das fases de seu ciclo evolutivo vital, sofre constantes mudanças (Groeninga, 2003). Essas mudanças lhe afetam, implicando a necessidade de lutos e rearranjos, além de gerarem crises consideradas esperadas e necessárias ao desenvolvimento dos membros (Carter e McGoldrick, 2001).

Uma dessas crises refere-se ao nascimento de um filho, evento que provoca intensas mudanças e demanda reorganização de papéis para atender às necessidades da criança que virá. No entanto, o nascimento de uma criança com necessidades especiais, como a criança com TEA, desencadeia uma crise familiar ainda mais complexa, a qual altera o padrão de ciclo de vida da família, podendo ser causadora de intensa ansiedade e estresse. Esta crise deve-se, em parte, ao fato de que as famílias desejam que a criança nasça com saúde. Neste sentido, de acordo com Franco (2015a, 2015b, 2016), pais e mães idealizam um bebê saudável, que virá ao mundo para concretizar muitos feitos. Ao nascer uma criança que, em algum momento, apresenta-se diferente da esperada, como a criança com um Transtorno do Desenvolvimento, os pais vivenciam um processo doloroso de luto pela perda da criança imaginada, em que sentimentos depressivos, como dor e negação (dentre outros), são comuns.

Uma vasta literatura tem se ocupado de investigar as repercussões do TEA no contexto familiar (Andrade e Teodoro, 2012; Fávero, 2005; Fávero e Santos, 2005; Gomes et al., 2015; Madeira, 2014; Marques e Dixe, 2011; Pinto et al., 2016; Smeha e Cezar, 2011). Fávero e Santos (2005), por exemplo, destacaram a presença de estudos sobre as intensas mudanças nas atividades diárias das famílias de crianças com autismo, indicando a sobrecarga emocional, física e financeira, além do estresse e das incertezas em relação ao futuro dos filhos, em função de sua grande dependência. Já Marques e Dixe (2011) revelaram que tais mudanças acarretam necessidades específicas com implicações psicológicas a níveis pessoal e familiar, diante das quais os familiares precisam se adaptar, numa experiência complexa construída em direção à conservação de sua saúde mental.

No entendimento de Franco (2016), as repercussões são bastante negativas, uma vez que os familiares veem o seu próprio desenvolvimento ameaçado. Neste sentido, Laznik (2015) e Visani e Rabello (2012) referem que a interação com um filho com características autísticas pode desencadear nos pais o sentimento de fracasso, frente às dificuldades vivenciadas no contato com um bebê que aparenta ignorar sua existência, não demonstrando interesse explícito pelas figuras parentais. Ademais, Sprovieri e Assumpção Jr. (2001) ressaltam a impossibilidade de, no contexto do autismo, os pais cumprirem um papel socialmente esperado de educar suas crianças para a participação na sociedade de acordo com suas normas, o que pode interferir no desenvolvimento dos papéis familiares.

Diante do reconhecido impacto do TEA nas famílias das crianças acometidas pelo transtorno, destaca-se que muitas dessas famílias são capazes de se reorganizar frente às mudanças, buscando estratégias que auxiliem em suas necessidades. Nesse sentido, a literatura tem se referido às "estratégias de coping" como formas encontradas pelas famílias para lidarem com os desafios geradores de estresse, além do processo de resiliência familiar, no que encontram formas saudáveis de lidar com a situação adversa sem sucumbir a ela (Fávero, 2005; Fávero e Santos, 2005; Ferreira, 2016; Franco e Apolónio, 2002; Gomes et al., 2015; Marcos e Dixe, 2011; Schmidt et al., 2007; Sousa, 2014).

Entre as possíveis estratégias estão, por exemplo: a utilização de jogos para interação e comunicação da criança com os familiares e a busca por aconselhamento informativo (Fávero e Santos, 2005); a avaliação positiva dos conflitos e a procura por apoio social (Marques e Dixe, 2011); bem como as iniciativas para resolução dos problemas (Schmidt et al., 2007). Nesse sentido, de acordo com Ferreira (2016), ao criarem estratégias para contornar as situações difíceis, os familiares podem adquirir a capacidade de superação das adversidades e, assim, terem implicações positivas em sua qualidade de vida.

No entanto, para que as famílias sobrevivam diante da crise instaurada (podendo enfrentá-la o mais saudavelmente possível) e para que retomem seu curso de desenvolvimento (podendo também auxiliar no desenvolvimento da criança), entende-se que devam receber adequado amparo e suporte. Conforme Fiamenghi e Messa (2007), a adaptação das famílias depende da rede de apoio e dos serviços disponibilizados para o acompanhamento delas e de suas crianças. Assim, o bem-estar da criança e o da família caminham juntos, sendo necessário investir esforços em sua promoção.

De acordo com Franco (2016), são muitos os estudos que abordam o impacto do autismo no contexto familiar, destacando os aspectos negativos de se ter uma criança com este transtorno na família. Contudo, entende-se que para além de identificar as dificuldades encontradas por essas famílias ou compará-las com as famílias de crianças com o desenvolvimento típico em termos de aspectos como nível de estresse, por exemplo, faz-se necessário o investimento em pesquisas que focalizem nos processos desenvolvidos pelas famílias em busca de adaptação à situação, ressaltando suas potencialidades. Destaca-se, ainda, que conhecer a experiência das famílias de crianças com TEA é fundamental para qualificar as intervenções destinadas a elas, bem como para fundamentar as ações que incluam a família no trabalho com as pessoas com este transtorno.

Nesse sentido, este estudo possui o objetivo geral de refletir sobre o tornar-se família de uma criança com TEA, buscando, especificamente, o conhecimento das vicissitudes do transtorno no contexto familiar, das características e das perspectivas futuras das famílias. Além disso, busca-se compreender como essas famílias se reconhecem e se organizam nesse contexto, a fim de se constituírem e se desenvolverem enquanto famílias de uma criança com necessidades especiais, promovendo, também, o desenvolvimento desta criança.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo sete familiares de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (APA, 2014), dentre os quais há três mães, dois pais, uma avó e uma irmã, sendo representantes de três diferentes famílias, de baixo nível socioeconômico e que frequentavam um Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Os participantes foram selecionados por meio de indicações dos profissionais do serviço, caracterizando a amostragem como não probabilística e intencional (Marconi e Lakatos, 2002). As crianças possuíam entre 5 e 6 anos e foi considerado o diagnóstico de TEA contido nos prontuários da instituição, que foram atribuídos por profissionais da área médica e confirmados pela equipe do serviço, independente de avaliação realizada pela pesquisadora. Ressalta-se que não participaram do estudo familiares de crianças que possuíam diagnóstico de outro transtorno ou síndrome para além do TEA, sendo este o único critério de exclusão da participação. A Tabela 1 descreve os participantes, na qual há informações coletadas por meio de um questionário sociodemográfico respondido por eles.

Delineamento e procedimentos

O estudo desenvolvido corresponde a uma pesquisa com delineamento transversal e exploratório de abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa envolve a compreensão da dinâmica do ser humano e de suas relações, a partir dos significados de suas experiências e valores (Minayo, 2014; Turato, 2005). O presente estudo possui caráter exploratório, pois visa aprofundar o conhecimento sobre a temática escolhida, possibilitando maior familiaridade com o problema (Gil, 2010). Foi realizado um grupo focal e três entrevistas individuais de caráter semiestruturado, que foram previamente agendados com os participantes e que ocorreram em uma sala disponibilizada por uma instituição pública de ensino superior. O grupo focal contou com a participação da pesquisadora, uma observadora e cinco familiares de crianças com TEA (três mães, um pai e uma irmã). Já as entrevistas foram realizadas com um pai, uma avó e uma mãe, sendo que a última também havia participado do grupo focal.

O grupo focal seguiu um roteiro que englobava três temáticas consideradas relevantes para compreender o tornar-se família da criança com TEA: (a) a história da família, ou seja, a família antes e após a chegada da criança; (b) o momento do diagnóstico, englobando suas repercussões na família e as mudanças desencadeadas; e, por fim, (c) as percepções da família e suas perspectivas futuras. Tais temáticas contaram com algumas questões norteadoras, as quais também orientaram as entrevistas individuais realizadas. O grupo focal e as entrevistas foram gravados e transcritos. O término da coleta obedeceu ao critério de saturação dos dados (Fontanella et al., 2008).

A técnica de grupo focal, que se caracteriza como uma entrevista em grupo, propõe-se a investigar temas em profundidade através de um contexto interacional, em que pessoas, reunidas em local e tempo específicos, relatam suas experiências e interagem para a construção de ideias em respostas aos questionamentos em foco (Barbour, 2009; Minayo, 2014; Silva e Assis, 2010). Já a técnica de entrevista com caráter semiestruturado permite a exploração de um tema sobre o qual o entrevistado é convidado a discorrer, a partir da combinação de perguntas abertas e fechadas pré-estabelecidas pelo pesquisador, sem, no entanto, necessidade de restrição absoluta a estas (Minayo, 2014).

Considerações éticas

Em todas as etapas da pesquisa, foram considerados os preceitos da Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2016), os quais regulamentam as condições da pesquisa com seres humanos em ciências humanas e sociais. Os responsáveis pela instituição que colaborou com o estudo assinaram um Termo de Autorização Institucional. Já os familiares assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual lhes garantia os direitos à privacidade e à livre decisão pela interrupção da participação na pesquisa sem prejuízos. Ademais, os participantes foram devidamente informados dos riscos e benefícios da participação no estudo e dos possíveis encaminhamentos deste. Ressalta-se que o projeto de pesquisa foi encaminhado à apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma universidade pública de ensino superior, tendo sido aprovado sob o número CAAE: 57996016.6.0000.5346.

Análise de dados

Os dados coletados nas entrevistas, seja na modalidade conjunta - grupo focal -, ou individual, foram analisados através da Análise de Conteúdo. Conforme Bardin (2009) e Minayo (2014), ela corresponde à procura por sentidos e compreensões comuns aos dados coletados e à identificação de categorias a serem analisadas e discutidas. Dentro desta proposta, destaca-se a modalidade de análise temática, na qual se busca descobrir os núcleos de sentido significantes presentes numa comunicação, por meio de diferentes etapas. Dessa forma, a análise foi composta da pré-análise dos dados, em que se realizou a leitura flutuante do material coletado depois de retomados os objetivos da pesquisa. A pré-análise possibilitou a identificação de núcleos de sentido, cuja presença ou frequência de aparição correspondiam à representatividade e à pertinência dos dados. A partir disso, foi possível a determinação de categorias que reduziram o texto às expressões mais significativas. Por fim, os dados foram tratados com interpretações dessas informações e inferências com outros achados teóricos.

Destaca-se que, primeiramente, analisaram-se as entrevistas de forma individual na medida em que foram sendo transcritas e, posteriormente, analisou-se o grupo focal. Então, procedeu-se uma análise conjunta de todo material, entendendo-se que a combinação das duas técnicas permite a complementação dos dados. Por sua vez, na discussão, optou-se por apresentar as categorias contendo os resultados integrados, identificando as falas provenientes apenas de entrevistas com a letra E, e com as letras GF as falas provenientes do grupo focal. A análise contou com dois juízes para a definição do conteúdo das categorias, a fim de conferir-lhe maior credibilidade. Estes classificaram separadamente o material transcrito em cada uma das categorias e, em um segundo momento, as discordâncias ou dúvidas foram sanadas em conjunto e por consenso. A elaboração das categorias ocorreu a partir do modelo aberto, no qual estas são definidas após a coleta de dados, tendo em vista a frequência e/ou relevância dos conteúdos manifestados (Laville e Dionne, 1999).

 

Resultados e discussões

A partir da análise de conteúdo realizada, foi possível a identificação de seis categorias: (1) o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista e seu impacto nas famílias; (2) repercussões do transtorno da criança na dinâmica e nas relações da família; (3) a falta de apoio e o empoderamento familiar; (4) a família no futuro: preocupações e perspectivas; (5) a criança no futuro: reidealização e a esperança no tratamento; (6) as famílias que se tornaram. Estas serão apresentadas e discutidas a seguir.

O diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista e seu impacto nas famílias

A presente categoria aborda tanto a trajetória das famílias até o diagnóstico de TEA (a partir da percepção de que havia diferenças na criança), quanto os sentimentos relacionados ao impacto do diagnóstico nos familiares. Nesse sentido, o estudo demonstrou que, até determinado momento do desenvolvimento da criança, os familiares não percebiam sintomas. A maioria dos participantes começou a notar atrasos, principalmente na fala - mas também no comportamento - entre o 2º e 3º ano de vida da criança. A partir disso, iniciaram a busca por profissionais da área médica, os quais fecharam o diagnóstico:

Com dois anos e meio eu tirei fralda, ele falava [...] aí ele foi se fechando, se fechando, se fechando e não falava mais! Voltou a usar fralda! E daí eu parei de trabalhar e comecei a procurar médico pra ver o que era... Daí veio a proposta de que poderia ser autismo (M1, GF).

E veio assim, veio crescendo normalmente como eu digo, né? Brincava, saia, passeava, interagia, falava bem certinho o que ele queria [...] Com dois anos e oito meses é como se tivesse... Como se não aumentasse nada. Como se tivesse parado! Daí eu procurei saber o que ele tinha (M3, GF).

O estudo de Zanon et al. (2014) com pais de crianças pré-escolares com TEA evidenciou que o atraso na fala é, em geral, o aspecto mais frequentemente observado pelos pais e o que leva a buscarem o auxílio de profissionais, ainda que percebam precocemente outros sintomas, como dificuldades no comportamento social. A partir dessas percepções, os familiares da criança iniciam uma busca incansável em serviços e profissionais de saúde até obterem o fechamento do diagnóstico, processo que pode demorar, dificultando a detecção precoce (Ebert et al., 2015; Fávero, 2005; Gomes et al., 2015).

De acordo com os participantes, o diagnóstico foi sentido como um momento de desespero e tristeza, o qual desencadeou dúvidas relacionadas ao futuro da família e da criança: "Ai olha, parece que o chão some! (M1, GF); "O dia que eu descobri, assim, eu fiquei chorando acho que uns 3 dias. Levantando chorando e indo dormir chorando" (M2, GF); "Ah eu senti uma tristeza. Eu senti assim, não sei nem te explicar [...] Como eu te falei, eu conhecia, mas eu nunca tinha visto uma criança com este problema, nunca! (A2, E); "Mas assim, quando te falam que teu filho é autista parece que te caiu o mundo! [...] Falava assim, 'o que vai ser dele? O que vai ser de nós também que vamos ter que cuidar dele pro resto da vida?'" (M3, GF).

O recebimento do diagnóstico de TEA da criança é um momento bastante discutido na literatura, sendo entendido como um processo difícil, em que os familiares vivenciam sentimentos de tristeza, dúvida e desamparo (Fávero, 2005; Madeira, 2014; Miranda, 2015; Pinto et al., 2016; Smeha e Cezar, 2011). As mães estudadas por Fávero (2005), por exemplo, sentiram revolta e dificuldades na aceitação, vivenciaram choro e sofrimento, além do sentimento de estarem perdidas, em vistas das incompreensões pelo que estava acontecendo e da insuficiência das informações recebidas. Pinto et al. (2016) e Madeira (2014) também identificaram tristeza, sofrimento e negação nos familiares de crianças com TEA, sendo que o desconhecimento sobre o transtorno contribuiu para a dificuldade desse momento.

Percebeu-se, a partir das falas dos participantes, que o sofrimento evidenciado estava muito relacionado à perda da criança idealizada: "A gente sonha tanto pra um filho, né? E depois... A gente pensa assim, o que vai ser dele assim? [...] Porque né? Como foi nascer uma criança tão linda assim?" (M1, GF); "Eu achava que eu era dona da razão, que com 3 anos o meu filho ia falar inglês já, que ele ia fazer tal esporte, que ele ia... Então, não é assim, né?"(M2, E); "Eu não queria aceitar que ele tivesse aquele problema. Então foi bem... Porque ele era meu único filho, né? Esperado, né? Então pra mim ele tinha que ser normal! Daí isso foi bem difícil pra mim assim... Foi bem difícil pra família toda!" (M3, GF).

Percebe-se que as características do TEA expõem os familiares ao luto pela perda da criança saudável idealizada por eles. De acordo com Franco (2015a, 2015b, 2016), no início da constituição da parentalidade, está presente a idealização de um bebê saudável, bonito e competente que virá ao mundo para concretizar muitos feitos. No entanto, quando se apresenta uma criança que não seja a esperada, como uma criança com um Transtorno do Desenvolvimento, tem-se um doloroso processo de luto, no qual sentimentos depressivos são esperados e inevitáveis. No entanto, o autor destaca a necessidade desses pais continuarem o seu desenvolvimento após a crise, esforçando-se em serem pais amorosos à sua criança e superando as dificuldades a fim de não se tornarem pais funcionais e utilitários, que apenas correspondem às necessidades básicas dos filhos, sem, no entanto, reinvesti-lo.

Repercussões do transtorno da criança na dinâmica e nas relações da família

Esta categoria aborda as repercussões do TEA da criança no cotidiano da família e dos membros, incluindo as mudanças na rotina, nas relações entre os membros e na relação da família com o social. Neste estudo, pode-se observar que a realidade do transtorno levou à necessidade de alterações na rotina dos membros da família, principalmente no âmbito do trabalho: "E a gente, como eu te falei, eu trabalhava antes e agora tô trabalhando em casa, né? Ele (Avô2) também parou, saiu do trabalho, né?" (A2, E); "E eu parei de trabalhar quando ele tinha 4 anos!" (M3, GF); "Ela (M3) trabalhava, eu trabalhava, aí até que a gente descobriu isso aí né? Desse transtorno aí... Daí ela teve que ficar em casa pra cuidar dele, né?" (P3, E).

Mudança do horário do meu pai do trabalho pra trazer ele pra fono, pra trazer ele pro CAPS, né? A minha mãe não trabalha fora para poder receber ele da escolinha, eu troquei de trabalho pra poder ter o sábado com ele (M2, GF).

No presente estudo, percebe-se que, frente às demandas características do transtorno, foram principalmente as figuras femininas que deixaram de trabalhar para se dedicarem integralmente aos cuidados para com a criança. Isso corrobora os achados dos estudos brasileiros de Pinto et al. (2016) e Smeha e Cezar (2011), os quais destacam que, diante da necessidade de adaptação a novos papéis e tarefas cotidianas, as responsabilidades pelos cuidados para com o filho geralmente recaem sobre as mães, as quais frequentemente se sentem sobrecarregadas ao se dedicarem exclusivamente à criança. Madeira (2014), em seus estudos com pais e mães de crianças com TEA de Portugal, também encontrou as mudanças na rotina e na conciliação de horários, assim como as necessidades dos familiares, como mudanças significativas após o diagnóstico.

No que tange às relações entre os membros da família, o estudo revelou que as famílias tiveram que se unir ainda mais frente à problemática da criança com TEA: "A gente se uniu muito por este problema do C2" (A2, E); "A gente se une, nossa casa nossa família!" (M1, GF); "Eu acho que unida!" (I1, GF).

Depois que veio o C3 a gente teve que ficar melhor ainda pra poder dar aquela... Se unir mais pra poder dar aquela segurança pra ele, pra ele poder ficar mais tranquilo e mais seguro! [...] Então o que eu vou dizer, minha família entrou nessa luta comigo (M3, GF).

Na visão de M2 e P2, que se separaram antes do diagnóstico, uma reaproximação também foi necessária e sentida como positiva: "Se uniu mais também né? Se não tivesse sido esse diagnóstico acho que eu e o pai do A. a gente não teria essa relação que a gente tem agora, a gente estaria bem distante um do outro" (M2, E).

A união da família revela-se, portanto, de grande importância na adaptação dos membros ao transtorno, possibilitando apoio comum e atenção às demandas da criança. A aceitação pela família pode amenizar o impacto e tornar as relações mais sólidas ou, em outras palavras, unir mais a família (Pinto et al., 2016). Com relação aos casais, apesar das repercussões do diagnóstico, eles podem se aproximar ou se afastar, dependendo do grau de investimento e aceitação de cada cônjuge (Madeira, 2014).

No entanto, os participantes do estudo também relataram que suas famílias vivem em função da criança, dedicando-se integralmente a ela: "A minha família é toda... Toda assim em função do C3. O C3 é a atenção da casa. [...] Então a família é toda em função do C3. [...] Como eu digo assim, eu não tenho vida. Minha vida é o C3." (M3, GF); "Ele é o centro das atenções né? Ele é sempre! Por mais que a gente não queira, ele é, sabe? A gente vive só pra ele!" (M2, E); "Mas tudo o que eu faço é por ele, né? Eu não me arrependo que tudo o que eu faço é por ele! Porque ele precisa. Precisa muito de nós!" (A2, E); "É, a gente tá fazendo de tudo por ele. Só em torno dele! Nem minha cerveja eu não tomo mais (risos)" (P3, E).

Assim, entende-se que as famílias se deparam com intensas mudanças em suas atividades diárias em vista das demandas da criança e encontram a necessidade de responder a isso se voltando à criança. Minatel e Matsukura (2014), ao estudarem experiências e demandas cotidianas no contexto de cuidados de filhos diagnosticados com TEA em diferentes etapas do desenvolvimento humano, identificaram que as famílias organizam sua rotina em função deste membro, tanto no que diz respeito à rotina interna (domiciliar) quanto à externa (social), independentemente da fase desenvolvimental, de possuírem outros filhos, trabalharem ou estudarem. Já Fávero (2005) e Fávero e Santos (2005) discutem a sobrecarga emocional que pode advir disso, sendo que, em geral, são as mães da criança quem mais se envolvem com ela e se deparam com tais consequências. No presente estudo, percebeu-se que as figuras femininas (mães e avó) também são as que mais se voltam à criança.

Através deste estudo, ainda percebeu-se que o TEA repercutiu de formas diferentes em cada membro. No entanto, tais vicissitudes revelaram-se comuns quando relacionadas a perdas e frustrações por momentos básicos da vida de uma criança, como as primeiras palavras, as experiências na escola, a creche ou a festas infantis: "Ele nunca tinha falado 'mamãe', ele não falava 'mamãe'! Ele simplesmente não falava!" (M2, E); "A tristeza de ele não poder ir numa festa infantil, não ir numa apresentação do colégio nos dias de mãe, dias de pai..." (M1, GF); "O que eu sinto assim uma necessidade é quando ele chega da escolinha ele falar o que ele fez na escolinha sabe? Isso é, parece que isso deixa uma falta assim, sabe? (M2, GF); "Ele travou [...] Daí ele não se apresentou e a gente teve que vir pra casa. Aí fui com a expectativa de ver ele vestido de Shrek e não... Mas ao mesmo tempo eu fui pra casa, mas pensei assim: 'não, se é pra ser assim, sabe? Eu vou aceitar, sabe?'" (P2, E).

Pode-se refletir que as características da criança com TEA, como suas dificuldades na interação e comunicação com o mundo e seus comportamentos estereotipados e repetitivos, geram dificuldades no desempenho de tarefas que são comuns e esperadas de outras crianças. Assim, a família pode acabar isolando-se em relação ao convívio social quando as características da criança com TEA não correspondem ao socialmente esperado, uma vez que os comporatamentos da criança poderiam ocasionar estranhamento por parte das pessoas que não compreendem suas peculiaridades. Neste sentido, Sprovieri e Assumpção (2001) discutem a impossibilidade, frente às dificuldades da criança com deficiência, de ela se adequar às normas e aos valores da sociedade, o que tem impacto no convívio social da família e no desenvolvimento dos papéis de pais e cônjuges. As famílias precisam conviver com o desgaste e a tensão de, por exemplo, optarem a todo o momento pelos lugares possíveis de frequentar ou por quanto tempo devem permanecer (Minatel e Matsukura, 2014).

A forma como Rolland (2001) discute a necessidade de, no contexto de uma doença crônica, a família se voltar ao seu centro, permite a melhor compreensão desses aspectos. De acordo com o autor, a fim de dar conta das demandas, a família se envolve em um movimento centrípeto no qual os cotidianos dos membros e da família enfatizam a vida familiar interna, sendo que as fronteiras para o social são estreitadas, ao passo que as fronteiras entre os membros da família são afrouxadas, permitindo maior união e trabalho em equipe. Este é um movimento esperado no momento do ciclo de vida familiar em que há crianças pequenas e, no entanto, pode ser amplificado no contexto de uma doença crônica, podendo levar a uma paralisação da família nesta fase do desenvolvimento.

A falta de apoio e o empoderamento familiar

A presente categoria propõe-se a abordar o sentimento de desamparo das famílias participantes do estudo frente à insuficiência de apoio recebido, o que demanda que desenvolvam algumas estratégias que podem ser discutidas a partir da noção de empoderamento familiar. Os familiares, em sua maioria, relataram falta de apoio relacionada à família extensa, a qual não parece compreender as demandas da família e da criança com TEA: "Eu acho que a gente assim, é mais a gente mesmo... A gente não tem tanto apoio do resto" (I1):

Eu vi também assim que as pessoas só se interessam pelo assunto quando acontece na família né? [...] Mas nem as minhas irmãs, as pessoas de casa... Que a gente considera assim, não moram com a gente, mas que são da família, querem se interessar ou fazer alguma coisa pelo C2, ou tentar aprender alguma coisa, ou tentar colaborar com alguma coisa... Não! Elas vivem a vida delas, os filhos delas! (M2, GF).

Ele é uma criança bem quista assim quando ele chega... Mas né, como cada um tem a vida deles... [...] Eu acho que tu tem que tá ali vivendo aquilo pra ti entender, sabe? [...] A necessidade, o dia a dia, acaba passando despercebido eu acho (P2, GF).

Nossa família é a nossa casa! Só! Tem vó, tem tio, mas ninguém quer saber. Entra uma criança com problema os outros querem distância. Não querem aquela criança baguncenta, que grita, que bate nos outros... (M1, GF).

De acordo com Madeira (2014), o apoio da família extensa tende a contribuir com a adaptação ao TEA. No entanto, não é incomum os familiares negarem ou terem dificuldades em aceitar o diagnóstico da criança. Minatel e Matsukura (2014) e Pinto et al. (2016) destacam, para além disso, as vivências de preconceito por parte da própria família em relação ao diagnóstico de TEA da criança e suas características.

Essa falta de apoio desencadeou, nas famílias participantes do presente estudo, um sentimento de desamparo. Tais famílias indicaram a necessidade de possuírem espaços de orientação e escuta: "Um apoio assim. [...] Porque assim, a gente se sente uma família bem solitária, né? [...] É, maior apoio psicológico assim pras famílias, sabe? Pra, assim, pra desabafar, pra se sentirem bem, seja individual, seja em grupo..." (M2, E); "Porque não é fácil assim ter que aprender praticamente sozinha, sem orientação de ninguém!" (A2, GF).

A literatura refere que os familiares de crianças com TEA possuem necessidades de apoio emocional, para lidar com as repercussões do transtorno no cotidiano familiar, e profissional, para receberem orientações sobre como agir com a criança. Em relação ao apoio emocional, a literatura sugere, em geral, a disponibilização de suporte formal, como grupos de apoio e escuta nos serviços de saúde. Já com relação ao apoio profissional, sugere programas de orientação e educação aos pais, por exemplo, além de melhor qualificação e integração dos profissionais que atendem as crianças com TEA e suas famílias (Andrade e Teodoro, 2012, Fávero e Santos, 2005; Gomes et al., 2015; Lopes, 2015; Marques e Dixe 2011, Sousa, 2014).

Diante da falta de acesso aos recursos citados, os familiares participantes do estudo buscaram respostas às suas questões e alternativas às suas necessidades através da internet e do estudo: "Eu não sabia como lidar. Então, quando a gente descobriu aí sim que eu fui pra internet procurar vídeos, depoimentos de mães, ver como é que era né o dia a dia da criança com esse problema" (A2, E); "A gente já tem pós-graduação em autismo de tanto que a gente já pesquisou de teorias sobre, tudo!" (I1, GF); "Aí eu fui pra biblioteca da minha faculdade e procurei ler mais né? (M2, E); "Tanto que, quando nós tivemos esse diagnóstico, ela (I1) começou a estudar pra passar em psicologia justamente pensando nele" (M1, GF).

Essas buscas dos familiares por maiores entendimentos sobre o autismo, por meio de leituras, bem como em espaços online para compartilhamento de experiências, podem ser caracterizadas como estratégias para lidar com as inúmeras dúvidas e com a falta de apoio vivenciada. Madeira (2014), em seus estudos com famílias de crianças com TEA, também evidenciou que essas famílias necessitam de apoio, orientações e espaços de trocas de informações e vivências, e as que buscam o fazem em profissionais da saúde e em grupos de apoio. No entanto, muitas vezes, frente à dificuldade de acesso aos profissionais e aos grupos, as famílias encontram nas redes sociais alternativas para terem tais experiências.

Entende-se que essas estratégias podem ser entendidas sob a ótica do empoderamento familiar. O termo "empoderamento" tem origem inglesa, "empowerment", e corresponde a um conceito que vem sendo discutido em diversos âmbitos, possuindo diferentes entendimentos e aplicações. No que tange à sua relação com famílias, pode ser entendido, por exemplo, como um processo que objetiva torná-las mais capazes de construir formas saudáveis de lidar com as suas problemáticas, sem dependerem exclusivamente de amparo técnico (Souza et al., 2006). Nesse tocante, pode-se refletir que as estratégias desenvolvidas pelos familiares do estudo parecem demonstrar movimentos das famílias de se empoderarem diante das suas demandas, sendo agentes protagonistas em suas vidas e demonstrando capacidade de construir formas de enfrentamento das vicissitudes relacionadas ao transtorno, ainda que carentes de amparo e suporte externo.

A família no futuro: preocupações e perspectivas

Nesta categoria são apresentadas as preocupações e perspectivas dos familiares da criança com TEA em relação ao futuro da família. Nesse sentido, o estudo revelou que preocupações com o futuro da família e da criança com TEA são recorrentes e inevitáveis aos familiares participantes. No entanto, a fim de lidar com as frustrações que as preocupações geram, os familiares realizam esforços em não pensar no futuro, ainda que seja uma difícil tarefa: "Eu procuro não pensar muito. [...] Porque quando eu começo a pensar assim me entristece, porque a gente não sabe também o dia de amanhã. Ninguém, nenhum de nós, né? Então, procuro nem pensar" (M1, GF).

Aí sabe, eu quando eu começo a pensar assim vem um sentimento assim de tristeza, sabe? De sei lá, uma angústia de ter acontecido isso e a gente fica perdido e não saber como... Né? Então, bá... A gente se preocupa. A gente sente muita preocupação. Então às vezes assim eu procuro nem pensar muito, se não fica bem complicado... É, não é fácil (A2, E).

Buscar não pensar o futuro, evitando sofrimento, parece ser também uma alternativa criada pelos familiares para serem capazes de se empenharem no hoje e dar conta das demandas imediatas: "A gente pensa no futuro, pode ser mil coisas, entendeu? 'N' coisas. Daí se tu for parar pra pensar, aí tu vai criar um universo que nem existe, um futuro que nem existe, entendeu? Tem que ir criando conforme as coisas vão acontecendo, eu acho" (P2, GF).

Porque daí eu penso assim, se eu ficar pensando como que vai ser daqui a 10, 11 anos, vou deixar de viver o agora pra ele, vou deixar, vou me entristecer e eu não vou conseguir ficar ali em volta dele brincando com ele. Então, às vezes, é melhor não pensar! Embora seja inevitável, né? (M2, GF)

A gente sabe que é preocupante o futuro dele, mas não, não... Às vezes na hora assim a gente não quer ficar desesperado, né? Porque não adianta. A gente tá fazendo o possível, né? (P3, E).

É compreensível a dificuldade dos familiares em pensar no futuro de suas famílias e da criança com TEA, visto que este é incerto e ameaçador. Conforme Franco (2015b), é comum que pais de crianças com transtornos do desenvolvimento vivam intensamente o presente (um dia de cada vez), diante de um futuro que gera angústias, preocupações e frustrações. No entanto, o autor defende que isso pode conduzir os pais a sentimentos de incapacidade e melancolia. Neste sentido, sugere que, ainda que os pais não possam prever o que está no seu futuro ou no de seus filhos, é necessário que sejam capazes de pensar no futuro com esperança e desejo, buscando possibilidades.

Percebe-se que as preocupações dos familiares em relação ao futuro da criança demonstram-se muito atreladas ao quanto ela continuará dependente de cuidados, visto que pais e avós, em algum momento, irão se ausentar. Assim, os familiares desejam à criança o máximo de independência: "Eu e meu marido, um dia a gente morre, né? Um dia a gente já não vai tá mais aqui. Então, aí eu me preocupo muito com ele, sabe? [...] Que ele possa fazer tudo sozinho por ele mesmo né? Eu espero, né? Espero que aconteça isso!" (A2, E).

A gente pra o futuro, pra ele o que a gente espera, é que ele consiga o máximo de independência possível, que ele seja feliz. E eu já fiquei assim muito preocupada com o que vai ser do C3 futuramente? Porque o C3 é filho único né? Daí eu penso assim, a gente não é pra sempre né? (M3, GF).

Tais preocupações são discutidas no estudo de Madeira (2014), cujos participantes, familiares de crianças com TEA, também revelaram receios sobre como será a vida da criança na fase adulta, visto que os pais não estarão sempre presentes e encontram pouco auxílio com o qual possam contar futuramente. Diante disto, a dinâmica familiar desenvolve-se para promover o máximo de desenvolvimento na criança, a fim de garantir sua maior independência de cuidados. Fávero e Santos (2005) também mencionam as incertezas dos pais em relação ao futuro dos filhos, em função de suas dificuldades em adquirir autonomia, conforme identificaram em sua revisão da literatura sobre autismo e estresse familiar.

A presença de irmãos na família revelou-se, no presente estudo, como um fator importante diante das preocupações relacionadas aos cuidados futuros com a criança. Uma das famílias do estudo possui em sua constituição uma irmã, a qual é tida como grande fonte de apoio, uma vez que auxilia nos cuidados com a criança: "Pra ela (I1) o C1 é como se fosse o filho dela, sabe? É uma super proteção dela..." (M1, GF). Ressalta-se, no entanto, que a presença deste apoio não exclui o desejo de que a criança desenvolva o máximo de independência: "Eu tenho ela, mas eu não quero que ela pense o dia de amanhã ela vai ter que cuidar o irmão dela como se fosse uma criancinha. Eu quero que ele cresça!" (M1, GF).

Já nas famílias em que não há presença de irmãos, no entanto, evidenciou-se um desejo pela adoção: "A gente pensa em adotar futuramente, mas só para o C3 ter aquele apoio que ele precisa e a gente não é pra sempre" (M3, GF).

Como ele é o único um dia meus pais vão ir, um dia eu vou ir, um dia o pai dele vai ir, sabe? Quem vai ficar? Sabe? Aquela necessidade de ter um irmão, alguém muito próximo que cuide. [...] Eu gostaria e até pensei mais tarde, depois que eu estude, depois que eu me formar, que eu tivesse uma vida financeira um pouco melhor, eu adotar pra alguém ficar cuidando do C2, sabe? (M2, E).

Destaca-se que o desejo por adoção nessas famílias se deve tanto à idade avançada de algumas mães, quanto ao fato de terem estudado sobre o papel da genética no transtorno e entendido que poderiam ter outra criança com TEA. Ressalta-se ainda que os familiares consideram a adoção, embora entendam que a criança adotada entraria para a família com uma função determinada: "Mas eu não queria aquela carga pra aquela pessoa, 'adotar pra cuidar do meu filho' (M3, GF); "Porque hoje querer adotar uma criança também só pra ficar, pra formar uma família pra mais tarde, pra ter, é complicado também hoje né" (P3, E).

Entende-se que, para as famílias deste estudo, diante da falta de apoio comumente encontrada e das preocupações futuras, uma estratégia para lidar com a situação é a busca por apoio dentro da própria família, seja na presença atual ou planejada de um irmão que possa vir a assumir os cuidados do membro com TEA. Estudos voltados à investigação de vivências e impacto do TEA nos irmãos de pessoas com o transtorno têm revelado o reconhecimento dos irmãos como importantes fontes de apoio nos cuidados com a criança, sendo que muitas vezes assumem papéis que excedem os comuns ao relacionamento fraternal. Quanto ao impacto disso nos irmãos, relacionar-se-ia a um distanciamento da vida social, vivências de preconceito, falta de atenção provinda dos pais, situação de possuírem seus desejos voltados ao irmão com TEA e não a si mesmos, além de preocupações com o futuro, no que possuem a consciência de que deverão assumir os cuidados para com a criança com o transtorno (Cardoso e Françoso, 2015; Cezar e Smeha, 2016; Miranda, 2015; Rodrigues, 2015).

A criança no futuro: reidealização e esperança no tratamento

Esta categoria aborda as expectativas dos familiares para a criança com TEA, revelando como a percebem e a pensam para o futuro, além de abordar a importância que atribuem ao seu tratamento. O presente estudo demonstrou que os familiares possuem expectativas futuras positivas relacionadas ao desenvolvimento da criança. Essas expectativas estão relacionadas à aceitação da criança em sua condição:

Eu sempre pensei positivo, sabe? Vamos esperar como ele vai... O desenvolvimento dele! Mas eu acredito que, espero que e acredito que vai melhorar. [...] Pra mim ele é do jeito que é e pronto, sabe? Eu gosto dele assim, sabe? E eu vou, né? E eu acredito que ele vá se tornar uma criança né talvez com alguma limitação né? Mas quem não tem também? (P2, GF).

Ainda, uma forma positiva de pensar a criança é reconhecendo suas pequenas conquistas, as quais, de acordo com os participantes do estudo, parecem conferir forças para os membros da família: "Também a evolução dele dá forças, sabe? (M2, E); "Cada superação, cada coisa que ele aprende, pra nós, pra mim, é a maior alegria" (A2, E); "Então parece que cada dia uma coisa diferente, cada passo que ele dá pra mim é uma, como é que eu posso dizer, é uma medalha digamos da olimpíada!" (P2, GF). Assim, a própria criança e o investimento emocional no cuidado com ela podem promover resiliência na família, permitindo lidar melhor com a situação. Em outras palavras, o vínculo afetivo é fundamental tanto para aceitação e valorização da criança, quanto para encarar os aspectos difíceis da situação (Franco e Apolónio, 2002).

Entende-se que as formas positivas de pensar a criança podem se constituir em maneiras de idealizá-la novamente, considerando suas reais possibilidades: "A gente não quer que ele seja um doutor, um médico, sabe? Que ele seja simplesmente cuide dele, que ele consiga ser feliz cuidando dele!" (M1, GF); "A gente pensa o melhor pra um filho, mas não precisa ele cursar uma graduação e coisa, mas que ele seja feliz e conviva assim, consiga se encaixar no mundo e fazer as coisas dele também, sabe?" (M2, GF).

Ah, eu escuto muito assim, tem que aprender a ler e escrever; tem que aprender a fazer assim... Mas eu até não me preocupo muito com isso. Eu me preocupo com a independência dele [...] Essa independência eu acho até mais importante do que saber ler e escrever (M3, GF).

As imagens positivas sobre a criança e a idealização para o seu futuro, realizadas pelos participantes deste estudo, podem ser fatores que contribuem para o fortalecimento de suas famílias e do vínculo delas com a criança com TEA. Nesse sentido, Franco (2015a, 2015b, 2016) refere-se ao processo de reidealização da criança, o que possibilita o restabelecimento do desenvolvimento da relação dos pais com seu filho com deficiência ou Transtorno do Desenvolvimento. Essa reidealização significa, portanto, empenhar-se no estabelecimento de um vínculo com a criança real, diferente da idealizada inicialmente, a partir do investimento emocional na criança e do pensamento em como realmente pode ser e não como poderia ter sido. Para o autor, três dimensões são necessárias neste processo: a da estética, a das competências e capacidades e a do futuro. Assim, os pais precisam olhar a criança real e achá-la bonita, ver potencial na criança e centrar-se no que ela é capaz - além de pensar o futuro, visto que está relacionado à esperança.

Percebe-se, ainda, a importância atribuída pelos familiares participantes do estudo ao tratamento da criança com TEA e o entendimento de que este não significa a cura, mas sim a busca do melhor desenvolvimento da criança: "Por isso a gente pensa no dia de amanhã assim! Se eles não tiver um bom tratamento hoje, o dia de amanhã eles tão perdido! [...] E busca tratamento desesperado em tudo que é lugar! De psicologia, de TO..." (M1, GF).

A gente não mede esforços pra colocar ele nas terapias. [...] Isso não tem cura! Não tem cura, mas com o tratamento ele pode melhorar, ele pode ter uma vida quase que normal... Não digo normal, porque hoje em dia o que é normal, né? (M3, GF).

No entanto, para os familiares, a dificuldade do acesso aos tratamentos é fonte de preocupações constantes. Eles relatam o quão demorado pode ser conseguir atendimentos gratuitos em serviços públicos e a sobrecarga financeira que vivenciam quando precisam recorrer a atendimentos particulares: "Se tivesse oportunidade dele ir mais vez (no serviço gratuito) e não precisar pagar tanto..." (P3, E); "Alegria de ver que ele é feliz, do jeitinho que ele é muito feliz, mas a tristeza de ver que ele poderia ser muito mais feliz. Se ele tivesse mais atendimento, mais recursos, mais interesse público, sabe? Que ele não tem" (M1, GF).

Se for falar de dificuldades da família de uma criança autista é a dificuldade de conseguir os tratamentos, as terapias... A gente tem que correr muito! [...] Então o que mais frustra também é correr atrás das terapias e demorar tanto, sabe? [...] E se a gente vai gastar a gente gasta o que não tem né? (M2, GF).

Outros estudos também evidenciaram as dificuldades financeiras e de acesso aos tratamentos vivenciadas por famílias de crianças com TEA (Gomes et al., 2015; Marques e Dixe, 2011; Miranda, 2015; Sousa, 2014). De fato, é possível compreender as preocupações e os sentimentos de frustração diante essas dificuldades, na medida em que os familiares atribuem grande importância e esperança aos tratamentos da criança. No entanto, cabe lembrar que a promoção de desenvolvimento da criança vai além da atuação de técnicos e profissionais, incluindo o papel do próprio contexto relacional em que a criança se encontra inserida. Conforme Franco (2015a, 2016), portanto, faz-se necessário o reconhecimento e fortalecimento das famílias enquanto protagonistas no desenvolvimento da criança, investindo esforços em suporte e recursos para que tenham condições de incluí-las num contexto familiar e relacional saudável, ampliando suas potencialidades.

As famílias que se tornaram

Esta categoria aborda as formas como os familiares participantes do estudo percebem suas famílias e as descrevem enquanto famílias de uma criança com TEA. Nesse tocante, evidenciou-se que os familiares das crianças com o diagnóstico de TEA se percebiam como comuns antes de começarem a conviver com as vicissitudes do transtorno: "A gente era uma família que tinha muitos planos né? Planos positivos, planos comuns pra uma família né? [...] A gente não esperava nada de anormal, né? [...] Então era uma família de pai, mãe, filho, avós, tios, madrinha, era uma família né, cotidiana" (M2, E).

A partir do convívio com as demandas relacionadas ao TEA e suas características na criança, tais famílias descrevem-se como felizes, mas que cotidianamente dividem momentos alegres com frustrações e tristezas: "A família do C3 é uma família assim feliz e também se frustra de vez em quando com alguma coisa também em função do C3, né?" (M3, GF).

A nossa casa é a nossa família! É baguncenta, berrona, grituda, mas é uma família feliz dentro do possível. [...] A gente fica da felicidade a tristeza ao mesmo tempo. Assim como a gente fica muito feliz pelo um sorriso, por uma palavra que eles dão em um dia que eles tão bem, a tristeza de ver eles pulando, no caso do meu, pulando e se batendo (M1, GF).

A partir dos relatos, entende-se que as famílias das crianças com TEA participantes deste estudo se reconhecem como semelhantes a outras, mas encaram demandas diferentes daquelas que não convivem com as repercussões do transtorno. Tais demandas possuem aspectos tanto positivos quanto negativos. Isso porque os familiares, neste contexto, são capazes de identificar possibilidades de crescimento pessoal, além de sentirem como positiva a maior união entre os membros da família. Contudo, existe a alternância entre momentos de felicidade e tristeza, sendo que consideram suas famílias como fortes e perseverantes, mas não completamente felizes. Essas ideias são exemplificadas e sintetizadas nas palavras seguintes:

Então quando veio o autismo, veio tudo isso, mas veio também uma, um novo modo de ver as coisas, sabe? [...] Quando vem uma criança e uma criança especial, a gente vê o mundo e as pessoas de um modo bem mais diferente, de um modo mais amplo, mais né, humilde. [...] Eu sei que a minha família, a gente se tornou uma família forte, sabe? Uma família perseverante. [...] A gente se tornou uma família mais forte, de autoconhecimento também, da gente ser... Se uniu mais também, né? [...] Então eu acho que a gente se tornou uma família mais forte, mas não mais importante ou mais feliz. Mais feliz não, mais forte sim! Mas feliz por completo, eu acho que só quando a gente ver mesmo, acho que isso só os anos vão dizer, como a gente conseguiu transformar o C2, né? (M2, E).

De fato, a presença de uma criança com Transtorno do Desenvolvimento pode interferir no ciclo de vida da família, atingindo sua estrutura e representando um desafio ao seu desenvolvimento, em virtude dos desafios que surgem ao longo do tempo com o aumento dos problemas no que diz respeito a sua gravidade. Na visão de Franco e Apolónio (2002), quando uma criança com deficiência nasce, toda a família é atingida, abalada na sua identidade e funcionamento. Para lidar com essa situação, dois aspectos são fundamentais: (1) força e resistência psicológica pessoal; e (2) a coesão familiar. Este olhar remete à necessidade de observar famílias que vivem em um contexto de adversidades sob as lentes da resiliência familiar, ou seja, evidenciando seu potencial ao crescimento.

A resiliência define-se como a capacidade de superação das adversidades diante de um momento de crise, buscando encontrar recursos que promovam fortalecimento, reestruturação e crescimento (Walsh, 2005). No que se refere ao contexto familiar, pode-se considerar que famílias resilientes são aquelas que são capazes de desenvolver competências para enfrentar os problemas existentes. Contudo, para que as famílias sobrevivam diante da crise instaurada, podendo enfrentá-la da forma mais saudável possível, e para que retomem seu curso de desenvolvimento, podendo também auxiliar no desenvolvimento da criança, entende-se que devam receber adequado amparo e suporte (Fiamenghi e Messa, 2007; Sousa, 2014).

Nas palavras de Walsh (2005, p. 12) "não basta encorajar a resiliência de crianças e famílias em risco para que elas possam 'vencer obstáculos'; devemos também lutar para mudar os obstáculos que são colocados para elas". Assim, entende-se que o bem-estar da criança e o da família caminham juntos, e a adaptação delas depende em grande parte da rede de apoio e dos serviços disponibilizados para o acompanhamento das famílias e de suas crianças. Para isso, é necessário que se empenhem na compreensão de suas fragilidades, e que, principalmente, dirijam esforços visando ao seu fortalecimento.

 

Considerações Finais

O presente estudo buscou refletir sobre o tornar-se família de uma criança com Transtorno do Espectro Autista. Para isso, foram realizadas compreensões sobre as vicissitudes do transtorno no contexto dessas famílias, suas características e funcionamento, como percebem a si e à criança, bem como sobre suas perspectivas futuras.

Evidenciou-se que os familiares participantes do estudo, em sua maioria, começaram tardiamente a notar dificuldades na criança, o que impediu um diagnóstico precoce. Também, foi possível perceber que o diagnóstico desencadeou sentimentos de desespero e tristeza na unidade familiar, além de gerar inúmeras dúvidas. Entende-se que parte deste sofrimento esteve relacionado a um processo de luto pela perda da criança que havia sido idealizada como saudável pelos familiares.

O diagnóstico trouxe repercussões nas vidas dessas famílias, no que tange às mudanças na rotina familiar e de trabalho, sendo que principalmente as figuras femininas deixaram seus empregos para assumirem os cuidados com a criança. Também foram identificadas repercussões nas relações familiares, pois os participantes entendem como fator positivo a maior união da família diante das dificuldades cotidianas. No entanto, um aspecto negativo consiste em se centrarem integralmente na criança, num movimento que as afastam do social. Ainda, destacam-se as perdas relacionadas a momentos comuns na vida de uma família com crianças pequenas, como a criança se apresentar em festividades escolares.

A maioria das famílias participantes do estudo experienciam a falta de apoio por parte da família extensa, além de vivências de preconceito e incompreensão por parte dela, o que desencadeia sentimentos de desamparo. Neste tocante, as redes sociais e os livros constituíram-se como estratégias para lidar com as dúvidas e necessidades de amparo, as quais podem ser entendidas a partir do empoderamento familiar.

Sobre perspectivas futuras, os participantes do estudo destacam as preocupações com o futuro da família, visto que na ausência de pais e avós e diante da fragilidade de apoio, as crianças poderiam se encontrar desamparadas. Diante disso, ressaltam-se suas tentativas de evitar pensar o futuro e a grande importância que conferem a presença de irmãos da criança com TEA, sendo que nas famílias em que não há irmãos existe o desejo de adoção, para que alguém assuma as responsabilidades futuras.

Quanto à visão dos familiares sobre a criança com TEA, eles a percebem positivamente, revelando tanto uma adaptação à sua condição, quanto à capacidade de reidealizarem a criança de acordo com suas reais possibilidades e tendo em vista que sua evolução gradual confere forças para a família. Nesse contexto, os familiares atribuem ao tratamento da criança as chances das expectativas positivas relacionadas ao seu progresso se concretizarem, mas encontram dificuldades no acesso ao tratamento.

Por fim, o estudo pode evidenciar o reconhecimento dos familiares de que suas famílias possuem características comuns às de outras famílias, mas que vivenciam demandas distintas daquelas em que não há uma criança especial. Diante dessas demandas, os familiares relatam a alternância entre momentos de alegria e tristezas, mas também a união, a dedicação e a perseverança da família.

Pode-se refletir, a partir deste estudo, que o tornar-se família de uma criança com TEA parece demandar adaptação do contexto familiar a uma nova realidade e a uma nova criança. A uma nova realidade, no sentido de que o contexto do transtorno desencadeia repercussões ao cotidiano familiar, frente às quais as famílias precisam, por meio de diferentes estratégias, buscar a adaptação. E adaptação a uma nova criança, no sentido de que a criança com TEA apresenta-se diferente da esperada inicialmente por sua família e precisa ser novamente idealizada dentro de suas reais possibilidades. Entende-se que, para isso, movimentos de reequilíbrio e retomada do desenvolvimento da família sejam necessários, num processo de resiliência, e que tais movimentos podem ser facilitados se as famílias puderem receber adequado apoio e suporte, voltados ao fortalecimento de suas competências e possibilidades.

Considera-se que este estudo é relevante no que enfoca reflexões sobre o tornar-se família de uma criança com TEA, a partir do conhecimento de suas dificuldades, porém atentando às formas como se organizam para lidar com estas. Neste sentido, amplia-se o foco para além da identificação do estresse elevado nos familiares das crianças com TEA, amplamente corrente na literatura, a fim de destacar as potencialidades das famílias para reorganizarem-se neste contexto, a partir de suas próprias percepções.

Sugere-se a realização de novos estudos que ampliem a discussão da temática, a partir de amostras maiores, que permitam maior generalização dos resultados e que possam englobar famílias com características sociodemográficas e culturais distintas, pois essas foram limitações do presente estudo. Também a escolha pela inclusão de diferentes membros da família neste estudo pode ser apontada como uma limitação, embora se entenda que a percepção de cada um dos membros que convivem como família (avós, irmãos...) é tão importante quanto à dos pais e mães para a compreensão do modo como as famílias se percebem e lidam com o contexto vivenciado.

Por fim, espera-se que o estudo possa contribuir para pensar estratégias de apoio em serviços frequentados por famílias de crianças com TEA, a partir da compreensão das fragilidades e especificidades delas, mas principalmente do entendimento de seu funcionamento, desenvolvimento e potencial para o crescimento. Sugere-se, por exemplo, a maior inclusão dos familiares nos atendimentos de suas crianças, o reconhecimento de que necessitam suporte para dividir os cuidados práticos com suas crianças, bem como o aumento da oferta de apoio psicológico no contexto dos serviços e instituições, seja por meio de grupos de familiares ou atendimentos individuais. Isto porque entende-se que a atenção às famílias e seus membros pode contribuir tanto para o bem-estar deles quanto ao de suas crianças.

 

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Submetido: 31/01/2017
Aceito: 26/10/2017

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