SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número2Queixas iniciais no processo de psicoterapia pais-bebêSaúde mental e apoio social materno: influências no desenvolvimento do bebê nos dois primeiros anos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.12 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2019.122.03 

ARTIGOS

 

Mulheres vítimas de violência física na infância e as repercussões na maternidade na idade adulta

 

Women victims of physical violence in childhood and the repercussions on motherhood in adulthood

 

 

Amanda Munique ReichertI; Cris Aline KrindgesII

ISociedade Educacional Três de Maio – SETREM. Graduação em Psicologia. Avenida Santa Rosa, 2405, Centro, 98910-000, Três de Maio- RS, Brasil. amanda_munique@yahoo.com.br
IIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Avenida Ipiranga, 6681, Partenon, 9061990, Porto Alegre, RS, Brasil. cris.krindges@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou investigar as consequências comportamentais, emocionais e psicossociais em mulheres que sofreram violência física intrafamiliar na infância e as repercussões na relação maternal na idade adulta. Sabe-se que a infância é um período crucial do desenvolvimento humano e as vivências desses primeiros anos de vida serão representativas ao longo da vida. O delineamento utilizado foi qualitativo exploratório a partir de estudo de casos coletivos. Participaram do estudo quatro mulheres maiores de 18 anos, escolhidas por conveniência, usuárias do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, que foram vítimas de violência física no contexto intrafamiliar durante a infância e que passaram pelo processo da maternidade na idade adulta. Como instrumentos para a coleta de dados, foram utilizados questionário sociodemográfico e entrevista semiestruturada. A coleta de dados ocorreu nas dependências do CAPS, em um encontro com cada participante. A análise das entrevistas foi orientada pelo método de análise de conteúdo temática. Os resultados evidenciaram que todas as participantes apresentaram repercussões negativas nos aspectos comportamentais, emocionais e psicossociais, em menor ou maior intensidade. As participantes que sofreram polivitimização tiveram as consequências negativas intensificadas. Além disso, foi possível identificar que o tornar-se mãe sofreu influência das situações de violência na infância. Os resultados mostraram aumento do cuidado na relação maternal na idade adulta de modo a compensar a falta de cuidados na própria infância. Porém, apareceram dificuldades na demonstração de afeto para com os filhos.

Palavras-chaves: violência física; infância; relação maternal.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the behavioral, emotional and psychosocial consequences in women who suffered physical intrafamily violence in childhood and the repercussions in the maternal relation in adulthood. It is known that childhood is a crucial period of human development and the experiences of these early years of life will be representative throughout life. The design used was qualitative exploratory from a study of collective cases. The study included four women over the age of 18 who were users of the Psychosocial Care Center (CAPS). They had been physical violence victims in the intrafamilial context during childhood and went through the process of motherhood in adulthood. As a tool for data collection, a sociodemographic questionnaire and semi-structured interview were used. The data collection took place in the CAPS premises with meetings with each participant. The analysis of the interviews was guided by the thematic content analysis method. The results showed that all the participants had negative repercussions in the behavioral, emotional, and psychosocial aspects, to a lesser or greater intensity. Participants who experienced polyvictimization had the negative consequences intensified. In addition, it was possible to identify that becoming a mother was influenced by situations of violence in childhood. The results show increased care in the maternal relationship in adulthood in order to compensate for the lack of care in the childhood itself. However, difficulties appeared in the demonstration of affection towards the children.

Keywords: physical violence; childhood; maternal relationship


 

 

Introdução

A violência intrafamiliar infantil é considerada um problema de saúde pública (World Health Organization - WHO, 1999), envolvendo esferas políticas, econômicas e sociais. Mesmo com legislações específicas que visem a proteção de crianças e adolescentes de qualquer tipo de violência (Brasil, 1990), ainda existem inúmeras famílias que relacionam violência com educação e formas de repreender diante de alguma atitude equivocada de seus filhos. Para além de violação de direito, a violência física, principalmente no seio da família, é fator desencadeante de diferentes consequências negativas, dentre as quais a replicação da violência na idade adulta, principalmente na relação da maternidade.

A infância é um período crucial do desenvolvimento humano e as vivências desses primeiros anos de vida serão representativas na vida de cada sujeito, influenciando um desenvolvimento saudável ou não. A criança que é vítima de violência intrafamiliar, cometida pelos pais ou membros que assumem essa função pode apresentar consequências negativas na idade adulta, de ordem emocional, cognitiva, comportamental e social (Santos e Yakuwa, 2015). Além dessas consequências, a criança vítima de maus tratos pode compreender a violência como algo natural, ou seja, como forma de se relacionar. Com isso, existe uma possibilidade aumentada de replicar comportamentos violentos nas futuras relações vivenciais (Santos et al., 2012).

A violência intrafamiliar pode ser praticada por qualquer pessoa com vínculo consanguíneo ou por pessoas que desempenhem essa função (i.e. família substituta). É uma violência caracterizada por não ter um endereço fixo para acontecer, ou seja, a violência pode acontecer em qualquer família, de qualquer classe social e nível de escolaridade. Entretanto, ainda nas famílias de baixa renda ocorre a maioria das notificações, sendo estas também as mais sujeitas a sanções legais (Calza et al., 2016).

De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos (2017), a partir dos dados advindos do Disque 100 (serviço de atendimento público para o registro de notificações e prestações de informações sobre os direitos humanos), foram registradas mais de 260 mil notificações de violência física contra crianças e adolescentes entre os anos de 2011 a 2016 no Brasil. A violência física é a segunda maior violação de direitos de crianças e adolescentes, antecedida pela negligência e seguida pela violência psicológica e violência sexual. Com relação às vítimas de todos os tipos de maus tratos, 70% são do gênero feminino e 20% tinham entre quatro e sete anos de idade. As mães são as principais suspeitas de violência física contra crianças e adolescentes. Além disso, os dados notificados mostram acentuado crescimento de mães como as principais autoras. Notificações envolvendo esse perfil contabilizaram 20% no ano de 2011 e em 2016 o índice chegou a 41%. Em relação aos dados do Rio Grande do Sul, deste mesmo período, e em relação ao mesmo tipo de violência, foram contabilizadas em torno de 160 mil notificações. Acredita-se que os dados reais possam representar um número ainda mais elevado, pois existe uma subnotificação desses tipos de violências contras crianças e adolescentes (UNICEF, 2014).

Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Brasil, 1990), o Estado deve tomar todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais adequadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso e negligência, maus tratos ou exploração sexual, enquanto a criança estiver sob a tutela dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela. No entanto, mesmo com todos os direitos garantidos pela ECA (Brasil, 1990), muitas crianças e adolescentes estão sendo desrespeitadas no próprio ambiente familiar, tendo os cuidados essenciais privados pelos pais ou pessoas que deveriam zelar pelos seus cuidados (Silva, 2013).

Violência Física na infância

Segundo o Ministério da Saúde (2002), a violência pode ser compreendida como o "uso intencional da força ou poder em forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações". As agressões físicas podem variar de simples palmadas, beliscões, pontapés, puxões de orelha, mordidas, cortes, queimaduras, até o espancamento. O nível da severidade das agressões deve ser analisado pela força utilizada pelo agressor, pelo sofrimento causado à vítima e sequelas físicas e psíquicas que a mesma possa apresentar (Lima, 2010). Já para Weber et al., (2004), a violência deve ser definida pela sua função (e.g. infligir dano a outro) e não pela sua intensidade, visto que é difícil a delimitação entre "palmada" e "espancamento", uma vez que o critério estaria na pessoa que bate, e não na que apanha.

Nesse sentido, entende-se que a violência sofrida por crianças não pode ser medida, tampouco classificada como de maior ou menor gravidade, pois independente da agressão praticada, seja ela física, psicológica, sexual ou negligência, acarretará prejuízos na vida de quem sofre, a curto, médio ou longo prazo. Cabe ressaltar que a criança não é apenas vítima quando sofre a violência diretamente, mas também quando presencia atos de violência no ambiente em que se encontra (Delanez, 2012).

Consequências Desenvolvimentais Ocasionadas pela Violência Física na Infância

Sabe-se que a violação dos direitos das crianças e adolescentes pode causar impactos imediatos ou danos posteriores no desenvolvimento desses sujeitos (Norman et, al., 2012). Os estudos brasileiros que versam sobre a violência física na infância e as consequências na idade adulta identificaram relação entre violência e ocorrência de problemas de ordem psicológica nos entrevistados (Ximenes et, al., 2009). Dados semelhantes foram encontrados em um levantamento bibliográfico realizado por Barros e Freitas (2015) a partir de estudos prévios a respeito de violência doméstica. Diante dessa avaliação foi possível identificar prejuízos no desenvolvimento psicológico, físico, cognitivo e social das vítimas.

Para Milani e Loureiro (2009) as crianças com história de violência intrafamiliar apresentam um autoconceito negativo na área do comportamento e demonstram uma maior dificuldade no desempenho escolar. Além disso, a violência intrafamiliar pode comprometer o desenvolvimento emocional das vítimas, interferindo nas crenças que a criança tem sobre si, sobre os outros e sobre o futuro, podendo implicar em crenças disfuncionais sobre desenvolvimento de tarefas naturais do cotidiano como: comunicar-se com os outros, reconhecer e se comprometer com os desafios encontrados e desenvolver sentimentos de confiança nas suas próprias decisões (De Antoni e Koller, 2012). Cabe destaque para o fato de que a variação dessas consequências para as vítimas também está relacionada ao apoio social e afetivo, por elas obtidos após a ocorrência do ato violento. Tal situação não ameniza a gravidade e a complexidade do fenômeno da violência, mas revela que a rede de apoio social e afetiva pode atenuar as consequências da violência para as vítimas (Barros e Freitas, 2015).

Relação Maternal

A mãe tem papel importante no desenvolvimento saudável ou disfuncional de seus filhos (Espirito Santo e Araújo, 2016) e o estabelecimento do vínculo entre mãe e bebê acontece antes mesmo do nascimento, no período em que esta acompanha o desenvolvimento da gestação e vai estabelecendo conexões com seu bebê que está sendo gerado (Krebs, 2015). Após o nascimento, o bebê é totalmente dependente dos cuidados e da proteção da mãe, pois é ela quem deve lhe proporcionar um ambiente seguro e confiável (Winnicott, 2006). Bowlby (2006), ao longo de suas obras discorre a respeito do vinculo e apego inicial e defende que é essencial à saúde mental do bebê e da criança pequena que vivenciem uma relação afetiva calorosa, íntima e contínua com a mãe (ou quem desempenhe esse papel) para que a dupla encontre satisfação e prazer. A mãe ou um cuidador substituto que desempenhe esse papel são denominados por Bowlby (2009) como "Figura de Apego" e essa relação, se bem estruturada, poderá proporcionar à criança um desenvolvimento biopsicoafetivo seguro e saudável. No entanto, essa perspectiva ideal de maternagem nem sempre é real, como pode ser observado na literatura e em dados advindos de órgãos de notificação, os quais mostram que a mãe pode ser uma das principais responsáveis pela violência cometida contra crianças no âmbito familiar (Ministério dos Direitos Humanos, 2017; Brito et al., 2005).

Estudos têm demonstrado que a mãe figurou como a maior responsável pelas agressões, particularmente em casos de violência física e de negligência de seus filhos (Pinto Junior et, al., 2015; Ministério dos Direitos Humanos, 2017). Pesquisas tem mostrado também que a qualidade da maternagem e a habilidade de ambos os pais em lidar com as necessidades da criança são comprometidas, em ambientes domésticos violentos (Holt et, al., 2008). Frota, et al., (2016) identificaram que a percepção de mulheres-mães sobre violência doméstica praticada contra crianças era aversiva, porém em certos momentos as participantes não conseguiam identificar algumas atitudes como violentas e abusivas, pois eram vistas como "educativas" e perpassadas de geração em geração.

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, de caráter retrospectivo e transversal, investigou a transmissão intergeracional de abuso infantil com o objetivo de examinar como as histórias maternas de abuso físico, emocional e sexual estavam associadas ao conhecimento e ao comportamento delas. Participaram do estudo 681 mães adolescentes e adultas. Os dados foram obtidos durante entrevistas laboratoriais seis meses após o nascimento do primeiro filho e as participantes foram recrutadas de um estudo prospectivo longitudinal maior. Os resultados demonstraram que indivíduos com histórico de maus tratos estavam mais propensos a maltratar seus filhos. Foi evidenciado também que mães adolescentes possuiam maior probabilidade de cometer atos abusivos e de maus-tratos contra os filhos, do que mães adultas (Bert, Guner, Lanzi, e Centers for the Prevention of Child Neglect, 2009).

Mesmo diante das consequências identificadas, a literatura aponta que o castigo físico no contexto intrafamiliar brasileiro é comumente utilizado, sendo reproduzido enquanto prática cultural (Andrade, Nakamura, Paula, Nascimento e Martin, 2011), como medida disciplinar apropriada para a educação dos filhos, transmitida de pais para filhos, por muitas gerações (Patias et, al., 2012; Pinto Junior et, al., 2015). Diante disso acredita-se na importância de estudos que busquem identificar as consequências da violência física na infância, suas repercussões na idade adulta e a transgeracionalidade desse tipo de violência. Para além de identificar esses aspectos, acredita-se na importância do rompimento do ciclo de violência, a partir de protocolos efetivos de tratamento, que possam ser subsidiados por estudos como este.

 

Método

Delineamento

O presente estudo está inserido no Núcleo de Pesquisa em Psicologia (NUPSI), do curso de Psicologia da Faculdade Três de Maio - SETREM, articulando-se a linha teórica da Psicologia do Desenvolvimento. Teve como base a abordagem qualitativa e foi de cunho exploratório (Gil, 2009). Foi utilizado o método de estudo de casos coletivos (Stake, 2005), aonde buscou-se estudar conjuntamente alguns casos para investigar um dado fenômeno. Nesse método, os casos são escolhidos porque acredita-se que seu estudo permitirá melhor compreensão, ou mesmo melhor teorização, sobre um conjunto de casos.

Participantes

Participaram deste estudo quatro mulheres, maiores de 18 anos de idade, usuárias do CAPS, escolhidas por conveniência e que foram vítimas de violência física no contexto intrafamiliar durante a infância. O procedimento para determinação do número de casos foi o adicionamento progressivo de novos casos, até o instante em que se alcançou a "saturação teórica", isto é, quando o incremento de novas observações não conduziu a um aumento significativo de informações (Gil, 2009).

Instrumentos

(1) Questionário Sóciodemográfico - questionário desenvolvido pelas proponentes da pesquisa com o objetivo de coletar informações tais como: idade, estado civil, escolaridade, renda familiar e moradia.

(2) Entrevista semiestruturada - roteiro desenvolvido pelas proponentes da pesquisa, com o objetivo de investigar em profundidade aspectos do relacionamento familiar na infância, violência, consequências emocionais, psicossociais e comportamentais

relacionadas à violência na infância e possíveis repercussões na maternidade na idade adulta.

Procedimentos Éticos

Esta pesquisa respeitou a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regulamenta pesquisa com seres humanos e foi submetida à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa sob o número de protocolo 1.893.295. Os dados das participantes foram mantidos em sigilo e toda a documentação oriunda da pesquisa foi devidamente guardada em local protegido. Durante a coleta, não foi identificado sofrimento nas participantes, sendo assim, não houve necessidade de interromper a entrevista. Após a conclusão do estudo, as participantes receberam a devolução dos resultados individualmente.

Procedimentos para Coleta de Dados

As participantes foram recrutadas a partir de contato inicial, por telefone, com o CAPS de um município do Rio Grande do Sul. A coleta de dados ocorreu nas salas de atendimento psicológico do local, em um encontro com cada participante, com duração de aproximadamente uma hora e meia. A coleta seguiu a seguinte ordem: (1) aplicação do questionário sociodemográfico (2) aplicação da entrevista semiestruturada. As entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente.

Procedimentos de Análise de Dados

A análise das entrevistas foi orientada pelo método de análise de conteúdo temática conforme Castro et, al., (2011). Na etapa de pré-análise foram definidas unidades de análises, ou seja, temas a priori. Esses temas guiaram o processo de análise (inferência dedutiva) que aconteceu a partir de leitura sistemática das entrevistas transcritas e de agrupamento de frases que ilustrassem cada tema. Realizada a

composição dos eixos temáticos, nova leitura foi realizada para garantir a homogeneidade de conteúdo. A partir disso, foi identificada a necessidade de subtemas para maior refinamento da análise. Essa etapa foi realizada a partir de lógica indutiva. A análise de conteúdo temática originou os seguintes temas a priori: relações familiares, situações de violência, funcionamento das emoções, funcionamento do comportamento, relação maternal e consequências psicossociais.

 

Resultados

A partir da análise do questionário sociodemográfico, as participantes entrevistadas tinham média de idade de 48 (DP=14,7). Todas possuíam mais de um filho, os quais residiam ou ainda residem com elas. Todas as participantes estavam em acompanhamento psicoterapêutico no CAPS de seu munícipio, e faziam o uso de medicação controlada. Todas elas relataram tentativa de suicídio em algum período de suas vidas. As quatro entrevistadas desempenhavam tarefas do lar e recebiam um salário de auxílio doença. O perfil completo das participantes encontra-se detalhado na Tabela 1.

Em relação à análise de conteúdo, além dos eixos temáticos definidos a priori, identificou-se a necessidade de criar subtemas, com o objetivo de atender as especificidades do conteúdo. A Tabela 2 apresenta os temas, subtemas e unidades representativas de análise identificados a partir das entrevistas.

 

Discussão

Evidenciou-se a partir do relato das participantes que elas cresceram em ambientes vulneráveis e de desamparo. A infância delas foi caracterizada como um período turbulento, em que precisaram trabalhar desde muito cedo e por vezes, não tiveram suas necessidades básicas (i.e., alimentação, moradia e vestimentas) atendidas, já que os pais não tinham condições financeiras favoráveis. Essas experiências de vulnerabilidade e violência em um momento tão peculiar do desenvolvimento são citadas pela literatura como preditoras de sofrimento psicológico na idade adulta (Miller et al., 2013). Além disso, podem deixar sequelas por toda a vida (Ministério da Saúde, 2002).

A participante I relatou que o pai foi diagnosticado com Transtorno Bipolar e manifestava-se de forma muito agressiva em suas crises. A participante II relatou que seu pai era alcoolista, o que a colocava em situação de risco e dificultava a convivência entre ambos todas as vezes que ele consumia bebida alcoólica. A literatura aponta que o uso e abuso de bebidas alcoólicas e transtornos mentais são fatores de risco para comportamentos agressivos, confirmando que crianças vitimizadas podem pertencer a famílias que passaram por adversidades, como o elevado consumo de álcool e outras drogas, bem como experiências transgeracionais de violências (Ximenes et, al., 2009).

Com base nos aspectos relacionados a violência, identificou-se que em três casos o pai foi apontado como principal autor de violência física. Já em um dos casos, a mãe foi apontada como a autora de violência física, contrapondo os dados advindos do Disque 100 (Ministério dos Direitos Humanos, 2017).

Ao serem questionadas sobre suas percepções sobre a violência física, as participantes referiram-se a este acontecimento como inconcebível no ambiente familiar, além disso, a entonação e o modo de se expressarem mostraram sentimentos de aversão, reflexo da realidade por elas vivenciada, trazendo à tona no decorrer das entrevistas, situações que por muito tempo estiveram esquecidas. Identificou-se na

fala da participante II, episódios de violência física, sexual, psicológica e negligência. As consequências nessa participante parecem ter sido mais intensas, o que pode estar relacionado como a polivitimização, ou seja, vivenciar múltiplas formas de violência concomitantemente ou em diferentes momentos do ciclo vital (Finkelhor et al., 2011). A literatura aponta que vivenciar um episódio traumático na infância pode facilitar a ocorrência de novas experiências nesses contextos (Finkelhor et al., 2015).

A partir dos resultados, compreende-se que a violência física vivenciada no contexto intrafamiliar gerou consequências significativas, como comportamentos descontrolados, distorções cognitivas e dificuldades de regulação emocional (e.g. medo, raiva, reações destemperadas e impulsivas). Essas consequências podem contribuir para um bloqueio na socialização com membros da família e/ou com a sociedade de um modo geral, gerarando desinteresse e dificuldades nas atividades cotidianas e principalmente na afetividade, corroborando com os achados de Pereira, Santos e Williams (2009).

A participante II relatou ter feito o uso de bebidas alcoólicas e drogas durante muito tempo de sua vida, inclusive durante a gestação. Pesquisas tem demonstrado que situações agressivas na infância podem relacionar-se com intensas complicações na vida adulta, influenciando na maneira de lidar com os problemas, bem como dificultar as relações interpessoais ao longo do desenvolvimento humano. E essas consequências tardias da violência intrafamiliar podem atuar como facilitadores da inserção desses indivíduos vitimizados ao uso e abuso de drogas ao longo de suas vidas (Peruhype et al., 2011).

Ao questionar sobre a maternidade, foi possível identificar na fala das participantes que isso se mostrou como marco fundamental na vida delas. Mesmo sofrendo violência na infância, puderam se perceber mais responsáveis e amáveis com a maternidade e mesmo com seus históricos de maus tratos não gostariam de transmitir essa prática aos filhos. Pelo contrário, utilizaram-se dessas marcas para modificar suas ações com seus filhos, demonstrando serem mães presentes e participativas. Embora o histórico de violência seja um dado importante, é plausível destacar que nem todas as mães vítimas de violência física cometem o mesmo tipo de violência contra seus filhos (Dixon et al., 2009).

No entanto, por mais que existisse uma boa relação com os filhos, as participantes ressaltaram a falta de proximidade afetiva como uma dificuldade. No que tange a demonstração de carinho, não se sentiam à vontade em abraçar e tocar os filhos, como se existisse uma barreira entre eles. Esses dados estão em consonância com a pesquisa de Lau et al., (2006) em que apontam sobre dificuldades de elogios, falta de encorajamento e de demonstrações de afetos como características mais frequentes em famílias que apresentam histórico de violências.

Diante disso, mesmo que a prática da violência não tenha sido perpetuada na relação materna, foi possível identificar que as participantes apresentaram consequências negativas decorrentes da violência vivenciada na infância. Essas consequências parecem influenciar negativamente suas relações interpessoais. Acredita-se que por terem se desenvolvido em ambientes negligentes e com desamparo afetivo, possam ter dificuldades de experienciar essa prática com seus filhos. Young et al., (2008) identificaram em suas pesquisas que experiências negativas repetidas de forma sistemática durante a infância e a adolescência são capazes de influenciar a forma como o sujeito interpreta suas experiências e interações na vida adulta. Isso demonstra o quão importante as vivências iniciais são e o quanto suas marcas permanecem ao longo do desenvolvimento.

Por fim, é preciso levar em consideração que todas as participantes estão afastadas de suas atividades laborais em decorrência de dificuldades de saúde. Os diagnósticos não foram compartilhados, inclusive as participantes não souberam relatar de maneira exata por qual motivo estavam afastadas do trabalho, mas informaram que o afastamento envolvia aspectos psiquiátricos/psicológicos. Essas informações, aliadas ao fato de frequentarem o serviço do CAPS, podem servir como indícios de que as participantes sejam acometidas por psicopatologias. Sabe-se que violências vivenciadas na infância podem ser preditoras de psicopatologias na idade adulta. E essas psicopatologias também podem influenciar a maneira como essas participantes interpretaram e vivenciam suas relações na idade adulta (Miller et al., 2013).

 

Considerações Finais

A partir da investigação por meio de entrevista, foi possível compreender as experiências da violência física intrafamiliar e as repercussões para o desenvolvimento, na idade adulta. O delineamento qualitativo a partir de estudos de casos coletivos possibilitou compreender em profundidade aspectos da vitimização da violência física na infância e como esta pode afetar o comportamento, as emoções e as relação afetivas da maternidade na idade adulta. Mulheres vítimas de violência física na infância, agora mães, conseguem dar-se conta da gravidade da violência sofrida na infância e das repercussões desses atos em suas vidas na idade adulta. Com esse estudo foi possível perceber que a problemática da violência intrafamiliar na infância não é um fenômeno contemporâneo, mas que ganhou maior visibilidade a partir da promulgação do ECA (Frota et al, 2016).

O baixo número de participantes pode ter sido um limitador do estudo, embora isso não tenha prejudicado o caráter exploratório dessa pesquisa, que não tem o objetivo de generalizar os dados, mas sim compreender a singularidade de cada caso. Outro limitador dessa pesquisa pode ter sido o fato de as participantes frequentarem o CAPS, o que está relacionado a sofrimento psicológico importante. Esse sofrimento pode ter influenciado a maneira como as participantes encararam a maternidade e também como formularam suas respostas frente aos questionamentos da pesquisa.

Diante disso, esta pesquisa visa contribuir com estudos futuros e também subsidiar protocolos de acolhimento e de tratamento psicossocial em CAPS que atendam mulheres vítimas de violência física na infância, bem como familiares que também sofrem prejuízos psicossociais em decorrência dessa violência. No mais, esse estudo pode ser utilizado como ferramenta para conscientização da gravidade das consequências e de auxílio para pessoas que enfrentam essa situação cotidianamente.

 

Referências

ANDRADE, E. M.; NAKAMURA, E.; PAULA, C. S.; NASCIMENTO, R.; MARTIN, D. 2011. A visão dos profissionais de saúde em relação à violência doméstica contra crianças e adolescentes: um estudo qualitativo. Saúde e Sociedade, 20(1):147-155. doi: 10.1590/S0104-12902011000100017        [ Links ]

BARROS, A.S.; FREITAS, M.F.Q. 2015. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: consequências e estratégias de prevenção com pais agressores. Pensando Famílias, 19(2):102-114.         [ Links ]

BERT, S. C.; GUNER, B. M.; LANZI, R. G.; CENTERS FOR THE PREVENTION OF CHILD NEGLECT. 2009. The Influence of Maternal History of Abuse on Parenting Knowledge and Behavior. Family Relations, 58(2):176-187.         [ Links ]

BRASIL. 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília,         [ Links ] DF.

BOAS, A.C.V.B. 2013. Violência física contra a criança: fatores de risco e proteção e padrões de interação na família. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília. 227 p.         [ Links ]

BOWLBY J. 2006. Cuidados maternos e saúde mental. 5a ed. São Paulo, Martins Fontes.         [ Links ]

BOWLBY J. 2004. Apego e perda: separação, angústia e raiva. v. 2. 4a ed. São Paulo, Martins Fontes.         [ Links ]

BRITO, A.M.; ZANETTA, D.M.T.; MENDONÇA, R.C.V.; BARISON, S.Z.P.; ANDRADE, V.A.G. 2005. Violência Doméstica contra crianças e adolescentes: estudo de um programa de intervenção.         [ Links ]

CALZA, T.Z.; DELL'AGLIO, D.D.; SARRIERA, J.C. 2016. Direitos da criança e do adolescente e maus-tratos: epidemiologia e notificação. Revista da SPAGESP, 17(1):14-27.         [ Links ]

CASTRO, T.G.; ABS, D.; SARRIERA, J.C. 2011. Análise de conteúdo em pesquisas de Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(4):814-825.         [ Links ]

DE ANTONI, C.; KOLLER, S.H. 2012. Perfil da violência em famílias com história de abuso físico. In: HABIGZANG. L.F.; KOLLER, S.H. E COLS. (ed.), Violência Contra Crianças e Adolescentes: Teoria, Pesquisa e Prática. Porto Alegre, Artmed, p. 43-53.

DELANEZ. G. E. 2012. A violência intrafamiliar e as consequências no desenvolvimento da criança. Trabalho de Conclusão de Curso de Direito. PUC/RS.         [ Links ]

ESPIRITO SANTO, C.S.O; ARAÚJO, M.A. 2016. Vínculo Afetivo Materno: Processo Fundamental à Saúde Mental. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, 5(1):65-73.         [ Links ]

FINKELHOR, D., TURNER, H., SHATTUCK, A., & HAMBY, S. 2015. Prevalence of childhood exposure to violence, crime, and abuse. JAMA Pediatrics, 169(8):746-754. doi: 10.1001/jamapediatrics.2015.0676        [ Links ]

FINKELHOR, D., TURNER, H., HAMBY, S., & ORMROD, R. 2011. Poly-victimization: Children's exposure to multiple types of violence, crime, and abuse Juvenile Justice Bulletin - NCJ 235504, 1-12.         [ Links ]

FROTA, M.A.; LIMA, L.B.; OLIVEIRA, M.G.P.; NOBRE, C.S.; COUTO, C.S., NORONHA, C.V. 2016. Perspectiva materna a cerca da repercussão da violência doméstica infantil no desenvolvimento humano. Revista de Enfermagem do Centro Oeste Mineiro, 6(2):2180-2189.         [ Links ]

GIL, A. C. 2009. Como elaborar projetos de pesquisa. (4ª ed.) São Paulo: Atlas.         [ Links ]

GUERRA, V. N. A. 2011. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. (7ª ed.). São Paulo, Cortez.         [ Links ]

KREBS, L.C. 2015. O impacto da violência doméstica da relação mãe-filho (s): reflexõessobre uma experiência e as possíveis intervenções terapêuticas. Porto Alegre/RS. Monografia de Especialização em Infância e Família: avaliação, prevenção e intervenção. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

HOLT; BUCKLEY, H, S..; WHELAN, S. 2008.The impact of exposure to domestic violence on children and Young people: A review of the literature. Child Abuse & Neglect, 32:797-810.         [ Links ]

LIMA, J. A. A. 2010. Violência doméstica infantil: aspectos psicossociais. Caruaru/SP. Trabalho de conclusão de curso em Psicologia. Faculdade do Vale do Ipojuca.

MILANI, R. G.; LOUREIRO, S. R. 2009. Crianças em risco psicossocial associado à violência doméstica: o desempenho escolar e o autoconceito como condições de proteção. Estudos de Psicologia (Natal), 14(3):191-198. doi.10.1590/S1413-294X2009000300002        [ Links ]

MINISTÉRIO DA SAÚDE BRASIL. 2002. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: Um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília, p.14.         [ Links ]

MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. 2017. Balanço completo: Disque 100 - Disque Direitos Humanos. Brasil. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/disque100/balanco-2016-completo.         [ Links ]

MILLER, A.B.; SCHAEFER, K.E.; RENSHAW, K.D.; BLAIS, R.K. 2013. PTSD and marital satisfaction in military service members: examining the simultaneous roles of childhood sexual abuse and combat exposure. Child Abuse and Neglect, 37(11):979-85. doi: 10.1016/j.chiabu.2013.05.006.         [ Links ]

NORMAN, R. E., BYAMBAA, M., DE, R., BUTCHART, A., SCOTT, J., & VOS, T. 2012. The Long-Term Health Consequences of Child Physical Abuse, Emotional Abuse, and Neglect: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS Medicine, 9(11),[e1001349]. DOI: 10.1371/journal.pmed.1001349.         [ Links ]

PEREIRA, P. C., SANTOS, A. B. & WILLIAMS, L. C. I. DE A. 2009. Desempenho escolar da criança vitimizada encaminhada ao fórum judicial. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(1):19-28.         [ Links ]

PERUHYPE, R.C.; HALBOTH, N.V.; ALVES, P.A.B. 2011. Uso da violência doméstica como prática educativa: conhecendo a realidade em Diamantina - MG/Brasil. Textos & Contextos, 10(1):170-178.         [ Links ]

PINTO JUNIOR, A.A.; CASSEPP-BORGES, V.; SANTOS, J.G. 2015. Caracterização da violência doméstica contra crianças e adolescentes e as estratégias interventivas em um município do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Caderno de Saúde Coletiva, 23(2): 124-131.         [ Links ]

PATIAS, N. D., SIQUEIRA, A. C.; DIAS, A. C. G. 2013. Práticas educativas e intervenção com pais: A educação como proteção ao desenvolvimento dos filhos. Mudanças - Psicologia da Saúde, 21(1):29-40.         [ Links ]

SANTOS, S. S., PELISOLI, C.; DELL'AGLIO, D.D. 2012. Desvendando segredos: padrões e dinâmicas familiares no abuso sexual infantil. In: HABIGZANG L. F.; KOLLER S. H. (Ed), Violência Contra Crianças e Adolescentes. Teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre, Artmed, p. 55-68.         [ Links ]

SANTOS, J. S.; YAKUWA, M. S. 2015. A estratégia saúde da família frente a violência contra crianças: revisão integrativa. Revista da Sociedade Brasileira de Enfermagem Pediátrica, 15(1):38-43.         [ Links ]

SILVA, M. V. 2013. A violência doméstica contra crianças: histórias e contextos. Ijui/RS. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pedagogia. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

STAKE, R. Cases Studies. In: DENZIN, N.; LINCOLN, T. Handbook of Qualitative Research. London: Sage, 2005, p. 108-132.         [ Links ]

UNICEF. 2014. The state of the world's children 2014. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/unicef_sowc/sit_mund_inf_2014_numeros_ing.pdf. Acesso: 25/10/2016.         [ Links ]

WEBER, L. N. D., PRADO, P. M., VIEZZER A. P., & BRANDENBURG, O. J. 2004. Identificação de estilos parentais: o ponto de vista dos pais e dos filhos. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17:323-331.         [ Links ]

WINNICOTT, D.W. 2006. Os bebês e suas mães. 3ª.ed., São Paulo, Martins Fontes, 112 p.         [ Links ]

WORLD HEALTH ORGANIZATION - WHO (1999). WHO recognizes child abuse as a major public health problem. Recuperado de http://www.who.int/inf-pr-1999/en/pr99-20.html.         [ Links ]

YOUNG, J. E., KLOSKO, J. S., & WEISHAAR, M. E. 2008. Terapia do esquema: Guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

XIMENES, L. F.; OLIVEIRA, R., V., DE C. DE; ASSIS, S., G., DE. 2009. Violência e transtorno de estresse pós-traumático na infância. Ciência & Saúde Coletiva, 14(2):417-433. doi.org/10.1590/S1413-81232009000200011        [ Links ]

ZANOTI-JERONYMO, D. V.; ZALESKI, M.; PINSKI, I.; CAETANO, R.; FIGLIE, N. B.; LARANJEIRA, R. 2009. Prevalência de abuso físico na infância e exposição à violência parental em uma amostra brasileira. Caderno de Saúde Pública. 25(11):21-27.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 11.08.17
Aceito em: 27.07.18

Creative Commons License