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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.13 no.1 São Leopoldo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2020.131.07 

10.4013/ctc.2020.131.07 ARTIGOS

 

A vida (in)dizível: a escuta ativa de crianças em acolhimento institucional

 

The (un)speakable life: the active listening of children in institutional care

 

 

Isabela Silva RochaI; Martha Franco Diniz HuebI; Fabio Scorsolini-CominII

IUniversidade Federal do Triangulo Mineiro
IIUniversidade de São Paulo/USP

Correspondência para

 

 


RESUMO

O acolhimento institucional é uma medida de caráter temporário que deve possibilitar à criança seu desenvolvimento e autonomia dentro de um ambiente seguro. Nesse processo, nem sempre é permitido à criança conhecer sua história de vida e construir uma narrativa própria. Movimento semelhante observa-se nas pesquisas sobre a infância, com pouco espaço para a manifestação da voz da criança. Este estudo teve por objetivo conhecer os sentimentos e as expectativas de crianças em acolhimento institucional. Trata-se de um estudo de caso coletivo sustentado na psicanálise winnicottiana, do qual participaram cinco crianças acolhidas e em processo de preparação para a adoção. Foram consultados os Planos Individuais de Atendimento e aplicadas a técnica de Observação Lúdica e o Procedimento Desenho-Estória com Tema (DE-T). Os dados foram analisados com base no Diagnóstico Compreensivo e na Livre Inspeção do Material. As expressões lúdicas, imagéticas e narrativas expressas pelas crianças revelaram a angústia relacionada tanto à espera pela adoção, como às vivências nesse contexto, identificado pela ausência afetiva e, muitas vezes, pela incerteza quanto ao futuro. Os resultados demonstram a relevância da escuta ativa dessas crianças como forma de viabilizar-lhes a expressão de sentimentos e ansiedades e possibilitar-lhes uma melhor transição para a família substituta.

Palavras-chave: adoção (criança); institucionalização; criança institucionalizada.


ABSTRACT

Institutional reception is a temporary measure that should enable the child to develop and autonomy within a safe environment. In this process, children are not always allowed to know their life stories and build their own narratives. Similar movement is observed in childhood studies, with little room for the manifestation of the child's voice. This study aimed to know the feelings and expectations of children in institutional care. This is a collective case study based on Winnicott's psychoanalysis, in which five children welcomed and in the process of preparation for adoption participated. Individual Care Plans were consulted and the Playful Observation technique and the Drawing-Story-Themed Procedure were applied. Data were analyzed based on Comprehensive Diagnosis and Free Material Inspection. The playful, imaginary and narrative expressions expressed by the children revealed the anguish related to both waiting for adoption and experiences in this context, identified by the affective absence and, often, the uncertainty about the future. The results demonstrate the relevance of these children's active listening as a way of enabling them to express their feelings and anxieties and enable them to make a better transition to their surrogate family.

Keywords: adoption (child); institutionalization; child institutionalized.


 

 

Introdução

Buscando investigar a transição da institucionalização para a adoção sob a ótica da própria criança que está vivenciando tal processo, este estudo procurou, inicialmente, revisitar, do ponto de vista teórico, três desdobramentos que o antecedem e que se inter relacionam: (1) o acolhimento institucional, (2) a adoção, e (3) a escuta de crianças institucionalizadas, os quais passam a ser apresentados em sequência.

As políticas públicas que são direcionadas à infância e à juventude, visando a garantir-lhes assistência e proteção, sofreram importantes modificações ao longo dos anos, sendo que muitas delas tiveram início a partir de 1990 com o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] (Lei Federal n. 8.069, 1990), o qual os reconhece como sujeitos possuidores de direitos e deveres (Guedes & Scarcelli, 2014). Dentre os principais direitos previstos pelo ECA, destaca-se a convivência familiar e comunitária, o que contribuiu para o fim da institucionalização arbitrária de crianças e adolescentes, ficando as instituições de acolhimento responsáveis por conduzir um trabalho que priorize a reintegração familiar (ECA, 1990).

O ano de 2009 foi significativo quanto às legislações que regulamentam a institucionalização e adoção de crianças e adolescentes no Brasil. Nesse período, foram criadas as Orientações Técnicas para Serviços de Acolhimento para crianças e adolescentes (CONANDA & CNAS, 2009), assim como foi promulgada a Lei 12.010, que ressalta a prioridade dada à criança - em instituição de acolhimento - na tentativa de diminuir o tempo que o judiciário despende na tomada de decisão sobre a sua reinserção na família de origem ou extensa e, como última opção, a sua inserção em família substituta.

Mais recentemente, em 2017, foi promulgada a Lei 13.509, a qual reduz de 24 para 18 meses o limite de prazo para que o Judiciário decida sobre a destituição da criança do poder familiar e sobre a sua inserção em programas de adoção, favorecendo, assim, seu crescimento afetivo e desenvolvimento em uma nova família, quando a de origem não possui mais condições mínimas de despender-lhe cuidados. Assim, a criança/adolescente somente poderá permanecer mais que 18 meses institucionalizada nos casos em que fique comprovado e seja fundamentado pela autoridade judiciária que a permanência é necessária e atende ao maior interesse do acolhido.

Tais regulamentações possibilitaram avanços para com o cuidado de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Esses documentos são, portanto, muito claros no que tange ao acolhimento institucional, ao tratar de seu caráter provisório e temporário, não devendo se constituir em privação de liberdade para o acolhido. Destaca-se também que os vínculos familiares devem ser preservados, preferencialmente, na família de origem e, quando não for possível, é necessário que se estabeleçam vínculos na família substituta. Além disso, o atendimento oferecido às crianças/adolescentes precisa ser personalizado, com participação nos serviços da comunidade e promoção de atividades que lhes possibilitem desenvolvimento e autonomia, preparando-os, gradativamente, para o desligamento.

Apesar dessas responsabilidades e do caráter provisório da institucionalização, a literatura tem destacado um imaginário social negativo construído acerca desse tema, permeado por descrições que associam esses espaços com a produção de estigmas que se cravam nas histórias de vida de seus egressos (Botelho, Moraes, & Leite, 2015; Wendt, Dullius, & Dell'Aglio, 2017). Inclusive muito se questiona sobre a forma, muitas vezes enérgica e inflexível, adotada na condução de uma instituição de acolhimento. Entretanto, Winnicott (1999/1947) ressalta que são exatamente as normas e códigos institucionais que promovem na criança e no adolescente o sentimento de estabilidade que muitas vezes não possuíam com seus pais de origem. Dessa forma, o ambiente institucional deve promover as condições básicas para o desenvolvimento do indivíduo como ser social, ou mesmo lhe possibilitar, antes de tudo, que possa vir a ser um indivíduo (Serralha, 2016).

Há de se destacar que quando a família de origem é preparada, ajudada e ainda assim não consegue se organizar, de modo a receber os filhos de volta, ocorrendo a destituição do poder familiar, a adoção representa uma possibilidade de convivência em família para estas crianças que não puderam ser criadas pelos pais consanguíneos (Winnicott,1997/1996), assim como também é uma oportunidade de exercer a paternidade/maternidade para pessoas que não puderam ter filhos ou que optaram por cuidar de crianças com as quais não possuem ligação genética (Pereira & Azambuja, 2015).

Desde a promulgação do ECA (1990), a adoção passou a ser concretizada somente quando apresenta vantagens para a criança ou adolescente, dando-lhes os mesmos direitos e deveres de filhos consanguíneos (Merçon-Vargas, Rosa & Dell'Aglio, 2015). A adoção é, pois, um processo complexo, tanto para aqueles que adotam quanto para os filhos que são adotados, sendo permeada por diversos sentimentos e expectativas. Por isso, destaca-se a necessidade de uma boa preparação dos postulantes nos âmbitos psicológico, social e jurídico, promovendo, assim, uma adoção mais consciente, sendo essa uma obrigatoriedade da Lei 12.010/09 (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2018; Hueb, 2016). Além disso, também é importante que as crianças sejam preparadas durante o processo de transição para uma nova família, tendo sido essa uma das recomendações da Lei 13.509/17.

Essa necessidade de preparar as crianças antes da inserção em uma família substituta é reconhecida na literatura científica (Contente, Cavalcante, & Silva, 2013). Entretanto, isto se dará de modo satisfatório quando as instituições de acolhimento atenderem a um pequeno número de crianças/adolescentes para que estes recebam, de fato, cuidados suficientemente bons da forma mais individualizada possível (Winnicott, 1980/1965; 1999/1947). Ademais, se o ambiente institucional conseguir ajudar a criança/adolescente a passar por todos os processos necessários ao seu desenvolvimento saudável, estará promovendo "uma terapia que certamente é comparável ao trabalho analítico" (Winnicott, 1993/1958, p. 510). Desse modo, segundo esse autor, um ambiente institucional seguro e suficientemente bom pode repercutir de modo positivo na estruturação psíquica dessas crianças/adolescentes institucionalizados, à semelhança de um processo analítico conduzido com os mesmos.

Hueb (2016) apresenta contribuições nesse sentido, apontando que durante o processo de transição da instituição à adoção é fundamental que a criança tenha espaço para falar de sua história de vida, ressignificar acontecimentos, tirar dúvidas, além de lhes serem apresentadas informações sobre a futura família por adoção. Ressalta que o mais adequado é que esse trabalho seja realizado por uma equipe interdisciplinar, envolvendo tanto as equipes do judiciário quanto as equipes das instituições de acolhimento. Nesse processo, tem emergido cada vez mais a necessidade de também ouvir a criança nesse itinerário.

A escuta de crianças é um assunto premente na ciência psicológica que, tradicionalmente, elencou a infância como o período prioritário para realizar as suas investigações, notadamente na Psicologia do Desenvolvimento. No entanto, a participação desse público dava-se, fundamentalmente, a partir da perspectiva do outro, do adulto, construindo inteligibilidades apartadas, muitas vezes, dos sentimentos e das vivências das mesmas. Na contemporaneidade, elas passam a ocupar o lugar de protagonistas na pesquisa e, com isso, o conhecimento obtido não fica restrito apenas ao relato de adultos sobre elas (Araújo, Nascimento, & Nascimento, 2017).

É notória a existência de desafios éticos e metodológicos nas pesquisas com crianças e famílias que vivenciam a adoção pelo fato de abordarem assuntos que podem expor vulnerabilidades. Sabe-se que são necessários cuidados específicos para aqueles que desejam desenvolver estudos nesta área, mas também se destaca o quanto tais pesquisas são importantes, pois a única maneira de se conhecer verdadeiramente as crianças é a partir do relato delas mesmas, para que através disso seja possível elaborar políticas públicas que lhes beneficiem (Araújo, Nascimento & Nascimento, 2017).

Rossetti-Ferreira, Solon e Almeida (2010) pontuam que, muitas vezes, as crianças passam por diversas situações de crise e transformações, durante o acolhimento institucional, destituição do poder familiar e processo de adoção sem receber os devidos esclarecimentos e sem compreender o que está acontecendo. Destarte, para que as crianças possam usufruir de seus direitos e participar ativa e efetivamente das decisões que lhes dizem respeito, precisarão ser, sobretudo, ouvidas, levando-se em conta suas singularidades e o contexto no qual estão inseridas.

Na literatura científica, são escassos os registros de estudos que se dispuseram a ouvir a criança nesse processo (Guimarães, 2015; Piske, Yunes, Bersch, & Pietro, 2018), o que pode se dever tanto ao fato das dificuldades éticas associadas a esse tipo de investigação, à necessidade de manejo desses encontros e suas possíveis ressonâncias na criança em institucionalização e até mesmo à tradição vigente em pesquisa, poucas vezes posicionando a criança como produtora de suas narrativas. Assim, emergem as vozes de quem é autorizado a dizer por elas, não assumindo a criança tanto como sujeito de direitos como passível de dizer, narrar, denunciar, posicionar-se. A escuta da criança parte da consideração de sua existência infantil, priorizando suas experiências, em uma recusa a um olhar adultocêntrico (Werle & Bellochio, 2016). Essa consideração posiciona a criança como sujeito histórico, produtor de sentidos, culturas e práticas, o que deve ser apreendido em uma investigação que se propõe não apenas a ouvi-las sensorialmente, mas a legitimar o seu posicionamento.

Visando a contribuir com as pesquisas na área de acolhimento e em resposta a essa lacuna identificada na literatura científica, este estudo teve por objetivo conhecer os sentimentos e as expectativas de crianças em acolhimento institucional. Posicionando-se a partir da escuta dessas crianças, oferecendo espaço para que suas narrativas e produções pudessem não apenas revelar como tem se dado o processo de acolhimento, mas também suas expectativas em relação ao futuro e a uma possível integração em outra família. Essa escuta foi construída enquanto um procedimento para acessar essas crianças, protagonistas do estudo, acolhendo suas falas sem julgamentos, de modo sensível aos conteúdos inconscientes que emergiram neste processo.

 

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa sustentada no marco teórico da psicanálise winnicottiana, em que foi utilizada a metodologia do estudo de caso coletivo, permitindo uma compreensão aprofundada de um determinado fenômeno, população ou condição geral (Stake, 2000). O fenômeno comum estudado foi um grupo de crianças, que estavam vivendo em uma instituição de acolhimento, já destituídas do poder familiar e em aproximação de uma família por adoção, período denominado Estágio de Convivência.

Participantes

Participaram cinco crianças com idades entre sete e 11 anos, sendo quatro delas do sexo masculino e uma do sexo feminino, conforme caracterizado na Tabela 1. Os critérios de inclusão foram: (a) possuir faixa etária compreendida entre cinco anos a 12 anos incompletos; (b) estar vivenciando um processo de acolhimento institucional há pelo menos seis meses; (c) ter sido destituída do poder familiar; (d) estar em aproximação de uma família substituta. Adotou-se como limite inferior a idade de cinco anos, tendo em vista que a partir dessa faixa etária a criança tem melhor compreensão das tarefas que foram solicitadas durante a realização da coleta de dados e, com isso, as desempenharam com mais facilidade. A idade máxima, de 12 anos incompletos, se dá em função do foco da pesquisa ter sido direcionado ao público infantil. A restrição acerca do tempo mínimo de acolhimento justifica-se pela possibilidade de a criança ter vivências significativas dentro da instituição. Foram excluídas as crianças que, porventura, apresentassem suspeita de deficiência cognitiva severa ou deficiência física aparente como: limitações psicomotoras, deficiência visual e/ou auditiva acentuada, uma vez que esses fatores poderiam inviabilizar a compreensão na execução do instrumento utilizado para a coleta de dados.

Procedimentos

Após as autorizações legais, teve início a coleta de dados. Nas datas e horários previamente agendados com a instituição de acolhimento, a pesquisadora se dirigiu à unidade para realizar a investigação. Primeiramente, foi apresentado o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido à coordenadora, que assinou os documentos assentindo a participação das crianças na pesquisa, após essas também terem demonstrado concordância em participar. Nesse momento também foi solicitada a permissão para que os encontros com as crianças fossem registrados em áudio e, em seguida, transcritos na íntegra.

Em um primeiro momento, foi consultado o Plano Individual de Atendimento, relatório que possibilitou conhecer a história de vida das crianças em relação à saúde, educação, lazer, bem como, o motivo e duração do acolhimento, a data da destituição do poder familiar e o andamento da preparação para a inserção em família substituta.

Na sequência, foi realizado um encontro inicial com cada criança participante, denominado sessão lúdica, que teve como objetivo o estabelecimento de um vínculo entre pesquisador e participante e a avaliação da realidade psíquica da criança, com base no que é proposto por Ocampo, Arzeno e Piccolo (2003). Nesta etapa da pesquisa, foram utilizados brinquedos diversificados, entre eles: Lego®, massa de modelar, fantoches, bonecos, miniaturas de animais, carrinhos, artigos de cozinha, jogos de cartas, jogos de tabuleiro, artigos sonoros (violão e vuvuzela), papel, lápis de cor e giz de cera, que serviram de mediadores da expressão das emoções. Esse procedimento foi escolhido, pois através da brincadeira a criança consegue ter liberdade de criação e expressão, revelando, assim, de forma sutil e simbólica, conteúdos com muito significado. Desse modo, o próprio brincar pode ser considerado uma atividade terapêutica (Fulgêncio, 2008; Winnicott, 1971/1975).

Na sequência, foi realizado um segundo encontro com as crianças, no qual foi executado o procedimento Desenho Estória com Tema (DE-T), que é uma técnica gráfico-verbal de investigação da personalidade, na qual se solicita que a criança faça um desenho baseado em um tema específico que é proposto pelo examinador, mediante uma instrução. Depois da realização de cada desenho, solicita-se que o examinando conte uma história relacionada ao que foi desenhado. Em seguida, o examinador pode fazer algumas perguntas com o intuito de ampliar a compreensão do desenho e da história e, por fim, pede-se que o examinando coloque um título em sua produção, o que passa a caracterizá-lo como uma Unidade de Produção (UP).

Para esta pesquisa foram solicitadas quatro UP para cada participante, cada uma delas composta por um desenho, uma história, inquérito e um título. Do mesmo modo, também foram utilizadas quatro consignas ou temas que foram propostos pela pesquisadora antes da realização dos desenhos. Visando atender aos objetivos da pesquisa, os temas escolhidos foram apresentados de acordo com os seguintes enunciados: (1) Desenhe o que uma criança gosta de fazer na instituição de acolhimento até ser adotada; (2) Desenhe uma criança que está esperando por uma família por adoção; (3) Desenhe o que você acha que sente uma criança que está vivendo na instituição, longe da família; (4) Desenhe a família que você gostaria de ter.

Quando se utiliza o desenho associado às histórias, sendo ele o principal estímulo para a elaboração de tais histórias é possível acessar conteúdos sobre a personalidade que não seriam facilmente detectados por meio de entrevistas psicológicas diretivas (Trinca, 2013). Por este motivo, a utilização do DE-T na presente pesquisa mostrou-se pertinente.

Procedimentos éticos

O projeto que originou este estudo foi inicialmente aprovado pelo Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude da comarca em que foi realizada a coleta de dados e, posteriormente, pela coordenação da instituição de acolhimento e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem da primeira autora (CAAE nº 82898218.2.0000.5154). Todos os participantes foram identificados por nomes fictícios.

Análise dos dados

Os dados obtidos tanto na Sessão Lúdica quanto no DE-T foram analisados a partir da livre inspeção do material com base no diagnóstico compreensivo. Este é um processo que vem da Psicologia clínica, bastante útil para atividades diagnósticas. Ao utilizá-lo considera-se o ser humano em sua totalidade, mas também é possível focar em determinados aspectos para poder compreendê-los de forma mais aprofundada (Trinca, 1984). Em geral, o diagnóstico compreensivo permite identificar o que há de mais significativo na personalidade investigada. Isso ocorre através da seleção de aspectos nodais, aqueles que demonstram ser mais relevantes por sua intensidade, afetividade ou repetição. Busca-se compreender quais são as questões mais perturbadoras para o indivíduo, suas angústias e as defesas que costumam ser usadas. Para isso, recorre-se à livre inspeção do material, aquela que se ancora na experiência do psicólogo e no julgamento clínico (Trinca, 1984). O corpus (PIA, Sessão Lúdica e DE-T) foi interpretado em relação ao tema (adoção e institucionalização) sustentado no referencial proposto pela psicanálise winnicottiana, além da literatura científica vigente nesse campo.

 

Resultados e Discussão

Neste primeiro momento, serão trazidas análises acerca das sessões lúdicas, aproximando os elementos interpretados nesses encontros na interface com as histórias de vida dessas crianças. As três primeiras crianças, Bento, Sabrina e Bruno, são irmãos, sendo os dois últimos irmãos germanos e o primeiro, irmão uterino dos demais. Essas, assim como o quarto participante, com nome fictício de Joel, tiveram em comum o motivo do acolhimento, que foi a suspeita de abuso sexual intrafamiliar, tendo sido apresentados conteúdos relacionados a essas vivências ao longo da coleta de dados, principalmente na sessão lúdica.

Esses quatro participantes demonstraram sentimentos de culpa pela vivência do abuso, chegando a desacreditar que a adoção seria efetivada, como se achassem que não eram merecedores de ter uma família. Esse sentimento é frequentemente reportado em vítimas de abuso sexual e amplamente relatado na literatura científica (Florentino, 2014; Hohendorff, Habigzang, & Koller, 2012).

Além disso, em todos os relatos referentes à história anterior ao acolhimento que foram apresentados por essas quatro crianças havia expressões de dor, sofrimento e solidão. Sabrina apontou que a liberdade de ser uma criança lhe foi tirada por um adulto mau, como pode ser visto no seguinte relato: "Primeiro começam a fazer maldade, começam a ensinar pras criança comé que faz namorar com uma pessoa na cama. São aqueles bem mau que ensinam isso".

Bruno escolheu na sessão lúdica um brinquedo nomeado de Cai, não cai, o qual consistia em montar e desmontar um muro, mantendo um ovo em cima dele, sem que esse caísse. Assim, de forma simbólica, mostrou sua fragilidade, que foi representada pelo ovo, e a necessidade de uma estrutura familiar que lhe fornecesse sustentação, simbolizada pelo muro. Ficou nítido o seu desejo por uma família que não se desestabilizasse, mas que permanecesse em pé, dando-lhe segurança. Caso isso não acontecesse era como se estivesse derrubando a sua vida, como já ocorreu quando sua família de origem "desmoronou", o que pode ser apreciado no trecho a seguir: "Não era pra dirrubá! Nossa, estragou com a minha vida, ela já tá ruim. " Essa instabilidade dificulta a emergência de uma noção de família que possa ser, em termos winnicottianos, suficientemente boa, justamente por, de um lado, revelar-se o abuso e, do outro, as sanções por conta dessa violência. A fantasia da criança, nesse sentido, é a de que ela é a responsável por essas duas rupturas, tanto da família que não pode se sustentar quanto da família que talvez não venha a se constituir.

Bento mostrou-se ferido, machucado e sozinho, solicitando ajuda e cuidados. Por várias vezes, simulou cena de dor, fingiu ter cortado o dedo na brincadeira, colocando-se como indefeso, solicitando socorro e atenção. Também mencionou um episódio em que se machucou e ninguém lhe auxiliou, tendo ele mesmo resolvido a situação sozinho. Do mesmo modo aconteceu em relação ao abuso, quando a mãe presenciou a cena e não interveio por conta própria, ele buscou ajuda de vizinhos, os quais realizaram a denúncia. A necessidade de cuidar e de ser cuidado também foi evidenciada durante a coleta de dados. Bento solicitou à pesquisadora para que lhe servisse água e comida ao longo da sessão. Em outra situação, ele é quem assumiu o papel de cuidador, alertando a pesquisadora para ter "cuidado para não se machucar", demonstrando o modo como gostaria de ser zelado. Da mesma forma, referiu-se à manutenção zelosa para com seus pertences, queixando-se de que ao confiá-los às outras crianças "elas não cuidam direito". Pode-se associar essa situação às suas vivências pessoais, quando confiou ser cuidado por alguém que não conseguiu desempenhá-lo como deveria.

Joel fez duas encenações durante a sessão lúdica nas quais se colocou como assustado, injustiçado com a maldade que lhe fizeram, como se o tivessem acordado de um sono da inocência, despertando-o sexualmente fora do tempo. Uma das cenas interpretadas se deu na brincadeira de polícia e ladrão, em que afirmava estar sendo preso injustamente: "Não foi eu que tô fazendo bagunça, foi aquele. Olha lá ele fazendo. Eu não tenho que ficar preso, quem tem que ficar preso é ele". Essa cena pode guardar ressonâncias em relação à visão da criança sobre a vida na instituição de acolhimento, sentida como uma prisão e também com o abuso, pois sentindo que a culpa recaiu sobre si, Joel percebeu a necessidade de reforçar sua inocência, afirmando que quem bagunçou com a vida dele, o levando a ser "preso" na instituição, na verdade, é quem deveria estar em privação de liberdade: o autor do abuso.

Por meio do lúdico, essas quatro crianças conseguiram se expressar e revelar seus mundos internos, apresentando conteúdos latentes sobre si mesmas e sobre suas vivências. De acordo com Winnicott (1971/1975, p. 70), "o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia". Assim, dentro de uma instituição de acolhimento, as atividades lúdicas podem auxiliar na elaboração da história de vida da criança acolhida, permitindo que ela se expresse, interaja com os pares e utilize seus impulsos criativos, potencializando também a mudança. Ao elaborarem suas fantasias e as posições relacionadas à culpa, à instabilidade e à disrupção, podem se mostrar mais preparados para os novos passos dentro e fora da instituição de acolhimento. Como a atividade lúdica esteve associada à coleta de dados da pesquisa, aventa-se que tal recurso possa ser empregado no cotidiano institucional, desde que possam ser acompanhados por profissionais que, de fato, atentem-se para esse universo emocional, não se resumindo apenas a uma atividade expressiva sem maiores ressonâncias. A ludicidade, desse modo, deve ser alçada à condição de via comunicativa da criança, uma oportunidade de também escutá-la sensorialmente.

Vinícius foi o quinto participante desse estudo, diferindo-se das demais crianças em relação ao motivo do acolhimento, que no seu caso ocorreu devido à prisão de ambos os genitores em decorrência do envolvimento com o tráfico de drogas, somando-se à impossibilidade da família extensa assumir a sua guarda. Vinícius teve preferência por jogos de tabuleiro e cartas durante a sessão lúdica, os quais permitem menos expressão de conteúdos subjetivos. Assim, ao longo do primeiro encontro não foram identificados conteúdos referentes à institucionalização e à possibilidade de adoção. Entretanto, a utilização dos recursos lúdicos com ele foi importante, pois possibilitou o estabelecimento de um ambiente agradável e descontraído entre a criança e a pesquisadora facilitando as sessões subsequentes.

Ainda durante a sessão lúdica, Sabrina, Bruno e Bento deixaram claro que almejavam estar em família e mostraram-se ansiosos e desejosos pelos próximos contatos com o casal postulante à adoção. Entretanto, também demonstraram medo do que iria acontecer nos próximos contatos com os pretendentes a pais e de que o sonho de ter uma família não se realizasse. Bento questionou se o casal estava certo de que queria realizar a adoção, ou seja, se não havia chances de que ocorresse uma devolução. Já Joel e Vinícius não expressaram sentimentos a esse respeito. A seguir, serão explorados os conteúdos narrados e interpretados a partir dos desenhos dessas crianças.

A narrativa da institucionalização: que casa é esta?

Assim como na sessão lúdica apresentada anteriormente, o DE-T possibilitou a manifestação de conteúdos relevantes em relação à história de vida das crianças, ao período de acolhimento e à transição da instituição para uma futura família por adoção, tendo destaque os sentimentos e expectativas que surgiram nesse processo, contemplando, assim, os objetivos que o estudo se propôs a responder.

Na primeira consigna do DE-T, foi solicitado aos participantes que desenhassem "o que uma criança gosta de fazer na instituição de acolhimento até ser adotada". As Unidades de Produções de Bruno, Joel e Vinícius sobre esse tema tiveram semelhanças, pois os três elencaram a brincadeira como aquela que traz alegria à criança institucionalizada: jogar bola e soltar pipa, as atividades citadas e praticadas por eles.

Ainda dentro dessa consigna, as UP de Bento e Sabrina também apresentaram importantes conteúdos, sinalizando estratégias e mecanismos de defesa utilizados por eles durante o período de acolhimento. Bento tinha sua preferência por atividades artísticas, como construção de maquetes, robôs, pintura, desenho, entre outras. Com isso, fazia uso de seu impulso criativo, o que é extremamente saudável, pois o viver criativo possibilita o sentimento de que "a vida merece ser vivida" (Winnicott, 1971/1975, p.117).

Sabrina projetou-se e citou o momento do banho como o que mais gostava de fazer na instituição, descrevendo-o como "um refresco que ninguém toma de mim". Ela relata que no banho conseguia desabafar com a água, com o chuveiro e com o rodo, o que não conseguia nem mesmo com sua psicóloga e, por isso, sentia-se aliviada. A seguir, serão apresentados o desenho, título e história elaborados por essa criança a título de ilustração:

 

 

"Eu, Sabrina, tenho um amigo que se chama rodo e também um chuveiro, mas eu converso demais no chuveiro com o rodo e o chuveiro e esqueço que eu estou gastando água e também esqueço que o meu amigo chuveiro fica triste. Aí, quando eu vejo, a tia só tá gritando: - Oh Sabrina, você já está meia hora no chuveiro. Aí eu já fico apressada e falo: - Nossa, é mesmo! Tchau chuveiro, tchau rodo! Visto a minha roupa e passo meu desodorante e fim." (Sabrina, 1º DE-T)

Com base na teoria de Winnicott (1951/2000) sobre objetos e fenômenos transicionais, notou-se que Sabrina elegeu o rodo - com o qual conversava no banho - como objeto transicional, referindo-se a ele como "meu rodo amigo" e, ao mesmo tempo, como aquele que sobrevivia à sua raiva e agressividade, como narrou durante a realização do inquérito no DE-T: "Quando eu tô com raiva, ele fala assim: pode me bater, eu sou de pau". Sabrina não se encontrava nos primeiros estágios da vida, período em que a transicionalidade ocorre, segundo Winnicott (1951/2000), mas notou-se que ela vivenciou recorrentes períodos de rupturas: da família de origem para a instituição de acolhimento e estava, no momento, vivenciando mais uma ruptura, a da conhecida instituição para uma família adotiva, até então pouco conhecida. O rodo, tratado como objeto transicional, se tornou importante nesses processos de separação, sendo um alívio, ou seja, uma defesa para suas ansiedades decorrentes de um não-saber acerca do futuro.

Na segunda UP com a consigna: "Desenhe uma criança que está esperando por adoção", os cinco participantes se referiram a esse período de espera como algo triste e doloroso. Assim como na sessão lúdica, Sabrina, Bento, Bruno e Joel também demonstraram no DE-T uma dificuldade em acreditar na possibilidade de adoção, gerando o sentimento de medo e tristeza e a ideia de que não seriam merecedores de uma família, sugerindo o sentimento de culpa em decorrência do abuso, como já foi citado anteriormente. Entretanto, Sabrina, Bento e Bruno estavam elaborando a situação, pois terminaram suas histórias com esperança e com o "coração bão", como é dito por Bruno.

O conteúdo apresentado por Bento nessa Unidade de Produção foi de grande relevância. A espera pela adoção foi sentida como tão cansativa e demorada, que ele a ilustrou com o desenho de uma pessoa sentada em uma cadeira, contendo uma "bolinha" em cada articulação do seu corpo, dando-lhe a semelhança de uma marionete, como pode ser visto na Figura 2. Desse modo, ele se representou como alguém que nunca tinha vontade própria, mas que sempre seguia os comandos e as vontades alheias, como uma marionete. Notou-se que é isso o que pareceu ter acontecido em sua história, a qual tem sido sempre decidida por profissionais diversos, pelo judiciário e não por ele próprio. Desse modo, mostrou que desejava mais liberdade e autonomia. Além disso, demonstrou que estava vivenciando um conflito entre desejar uma família e, ao mesmo tempo, pensar que não seria adotado, ou seja, queria viver em família, mas tinha medo de se entregar, confiar e amar, como pode ser visto na sua produção a seguir.

 

 

"Essa criança estava esperando por uma família, mas sempre passava uma e não adotava ele e ele gostava de tê muito uma família, mas um dia ele encontrou uma família que adotou ele. Fim!" (Bento, 2º' DE-T).

Bento vivia uma ambivalência por desejar muito uma família e, ao mesmo tempo, ter medo de vir a perdê-la, como aconteceu com sua família de origem. Por vezes o medo pode superar o desejo, fazendo com que a criança viva esse dilema, o que gera grande ansiedade.

Na terceira UP foi solicitado às crianças: "Desenhe o que você acha que sente uma criança que está vivendo na instituição longe da família". Diante de tal consigna, Sabrina, Bruno e Bento retrataram lágrimas, choro e tristeza. Entretanto, Sabrina e Bruno se colocaram em uma posição ambivalente ao tentarem descrever o sentimento referente à vida na instituição de acolhimento, como se fossem picos de alegria e tristeza. Assim como Sabrina e Bruno, Vinícius, a despeito de não ter retratado choro e lágrimas como os precedentes, descreveu em parte certa ambivalência, classificando a vivência longe da família como triste, mas podendo essa tristeza ser intensificada quando a criança não possui uma perspectiva de adoção ou de retorno para a família de origem.

Joel, talvez pela pouca idade, pareceu demasiadamente confuso com relação à vivência longe da família. Contudo, demonstrou desejo de sair da instituição, onde o seu coração "batia de fome", como retratou no inquérito, ao ser interrogado pela pesquisadora: "E quando ele estava lá no abrigo, longe da família. O que ele sentia?". Ele respondeu: "Sentia o coração dele batendo". A pesquisadora continuou: "E o que mais?", e a criança disse: "Tava batendo de fome e só!". Esta fome que Joel retratou pode ser interpretada como uma demanda afetiva, consistindo em uma fome que o corroía, que causava dor em seu coração, mostrando que ele se sentia sozinho e sem afeto naquele ambiente.

Winnicott (1936/2000) discorreu a respeito da relação entre o apetite e os problemas emocionais, sinalizando ser comum acontecer perturbações dessa natureza. Para o referido autor, a alimentação - seja ela comedida ou com exagero - consiste em uma defesa contra a ansiedade e/ou depressão. No caso de Joel, notou-se uma voracidade e constante repetição da cena alimentar em suas produções, demonstrando sua vontade de preencher seu vazio, ou sua carência afetiva, o que também foi percebido por Alves (2018) em pesquisa com crianças que vivenciaram a institucionalização e estavam inseridas em família substituta.

Por fim, o quarto e último tema utilizado foi: "Desenhe a família que você gostaria de ter". Nesta consigna, notou-se dificuldade por parte das crianças em descreverem a família idealizada, talvez pelo motivo de terem como parâmetro a convivência com suas famílias de origem, a qual lhes gerou sofrimento. Bento, Sabrina e Bruno já haviam se encontrado duas vezes com o casal postulante à adoção até a etapa da coleta de dados, já Joel e Vinícius ainda não tinham vivenciado esse acontecimento, o qual já estava agendado e as crianças tinham ciência de tal situação. Também já haviam recebido informações sobre a família com a qual iriam se encontrar como: composição familiar, nomes, idades e profissões dos componentes, cidade de origem, entre outras. Essas aproximações iniciais influenciaram as produções de Sabrina sobre esse tema, tendo relatado e desenhado que a família que gostaria de ter era cheia de cachorrinhos, característica bem peculiar da família que estava em aproximação. Acredita-se que isso não tenha inviabilizado a tarefa, nem que tenha ocorrido um viés de contaminação no trabalho, tendo em vista que a criança estava em boa adaptação com a família a ser inserida. Também vale destacar a importância do que Sabrina pontuou, de que seu sonho de ter uma família foi despertado através do convívio e incentivo de uma cuidadora da instituição, como mostrou o seguinte relato:

"Um dia eu até esqueci da minha mãe. Um dia eu fui tentar lembrar o nome dela e eu quase esqueci o nome dela. Aí, não sentia nada. Aí, chegou a tia [nome da educadora] e eu comecei a sonhar com uma família." (Sabrina, 4º DE-T / inquérito).

Tal informação sugere que é preciso ter esperança para continuar sonhando, ter alguém que sonhe junto, deixando, assim, um ponto de reflexão para todos os profissionais que lidam com crianças institucionalizadas, destituídas do poder familiar e a espera por uma família substituta. Ficou evidente a necessidade de que, durante a preparação das crianças para a adoção, os cuidadores/educadores, que são os profissionais mais próximos delas, sejam instruídos, capacitados, informados sobre suas histórias e sobre o andamento do processo de adoção para que consigam apoiá-las em suas necessidades (Wendt et al., 2017). Nesse sentido, a presente instituição também mostrou-se um ambiente seguro, de modo que essa educadora/cuidadora, nesse momento, revelou-se suficientemente boa, aplacando a angústia de Sabrina por meio do holding, demonstrando disposição empática e afetiva por meio do cuidado (Winnicott, 2000/1936).

A privação afetiva e o sonho de ter uma família foi uma linha comum a essas cinco crianças, ainda que para Bento seja difícil confiar e acreditar que possa ser "feliz para sempre", e para Joel a família citada seja aquela que oferece "comida com bicho", como pode ser observado na sua produção: "Ele tava comendo feijão com arroz e carne. Quando ele comeu teve um bicho na comida dele e ele foi, chamou a mãe dele e dormiu." (Joel, 4º DE-T). Referente a esse quarto tema do DE-T, destacou-se a UP de Vinícius, que revelou um grande desejo e também esperança de ter uma família. Ele refugiava-se na oração, pedindo a Deus que o ajudasse na realização desse sonho, como pode ser visto a seguir.

 

 

"Era uma vez um menino que queria ter uma família. Ou seria para a sua família biológica ou a sua família adotiva. E ele pedia ajuda para Deus todos os dias. E um longo dia, bem de tardezinha, chegou uma família querendo adotá-lo e essa criança ficou muito feliz, e conheceu a mãe, conheceu o pai e ficou tão feliz que chegou a noite, ele pediu: muito obrigado para Deus. E no outro dia, a família adotiva foi andar com ele no shopping, conhecer a casa, e ele conheceu tudo sobre a família inteira. Os dias foi passando, e todos esses dias que estava passando ele ficava sempre feliz, e toda noite agradecia ao seu Senhor Deus. Então, o dia que ele chegou na escola, e na saída os pais adotivos buscou na escola, ele ficou muito feliz por isso. No dia seguinte, ele teve uma audiência: se ele ia embora ou se era para a família adotiva esperar mais. O juiz viu o relatório e falou para o menino e disse: Você vai embora hoje. O menino ficou muito, muito alegre, por isso. Nessa noite ele pediu, pediu, pediu, pediu e pediu: Pai, muito obrigado por isso que Deus preparou para ele. Então, no dia seguinte, ele estava em sua casa. Cada dia desses, ele dizia: Muito obrigado, pai, mãe e, principalmente, para o seu Deus, que ele confiava e tinha fé. E a família foram felizes para sempre. Fim da história, tia!" (Vinícius, 4º DE-T).

Nesse relato emergem a esperança e a confiança em ser novamente integrado a uma família. Vinícius idealiza essa saída da instituição de acolhimento como algo bom, capaz de ser referido como uma premiação pela sua vigilância e oração constantes. Assim, pertencer a uma família é um mérito que ele pode alcançar se for vigilante, paciente e confiar em Deus. Embora possamos recuperar a literatura acerca das imagens sociais negativas das instituições de acolhimento (Costa, Santos, Santos, & Lima, 2018; Wendt et al., 2017), deve-se destacar que Vinícius mostra-se grato pela possibilidade de uma nova família, o que não necessariamente envolve uma visão negativa da instituição. O desejo por uma família não necessariamente se apresenta em oposição ao estágio de permanência em acolhimento.

Em outra possibilidade interpretativa, a oração é um recurso desenvolvido pela criança nesse contexto não apenas como uma proteção para manter-se com a esperança de integrar novamente uma família, em uma acepção que pode ser considerada adaptativa, mas também como uma dimensão de muita dificuldade, como se ele só pudesse sair do acolhimento por uma intervenção divina. A oração, nesse sentido, assim como a fantasia, pode assegurar à criança um lugar para a diminuição da ansiedade e da angústia frente ao sofrimento e também ao desconhecido (Winnicott, 1975/1971).

Em uma interpretação complementar, a esperança e a confiança relatadas na oração podem ser recursos que reafirmam a necessidade de um esforço acima das potencialidades da própria criança para que possa ser realizado o seu desejo (como esperar por algo que não se sabe, de fato, e confiar em algo que ainda não se pode ver?). Caso essa dimensão superior, mais potente que a criança, conceda a integração em uma família por meio da adoção, esse evento pode ser considerado como uma recompensa à espera silenciosa e paciente da criança, como um prêmio pela sua resignação. Nessa possibilidade interpretativa, a esperança pela adoção como um sinônimo de premiação, de mérito, de merecimento, pode ser apreendida como uma ambivalência: ao mesmo tempo em que ajuda na travessia da espera, também pode reforçar a ansiedade e a angústia diante de algo que ainda não foi concretizado.

Diante das possibilidades vindouras que se assentam no futuro, as expectativas das crianças em relação à adoção também foram identificadas na quarta UP do DE-T, por meio da esperança de uma família que dê amor e carinho, como pode ser visto a seguir: "Eu gostaria de ter uma família porque a família não vive só com dinheiro, porque só de dar amor vale mais do que dinheiro" (Vinícius); que dure para sempre: "Era um dia que esta família que estava querendo adotá umas criança e conseguiu adotar e depois eles levou eles para casa deles e eles viveu feliz para sempre. Fim!" (Bento); que seja cheia de cachorrinhos, que distribua e receba afetos: "A menina que sonhava uma família que tinha uns cachorrinhos" (Sabrina); que lhe sirva comida, ou seja, que supra suas carências afetivas: "Ele tava comendo feijão com arroz e carne" (Joel); que lhe permita brincar, viver a infância, mas que também lhe impulsione ao crescimento e autonomia: "Eu tava andando de bicicleta e depois eu mudei de brinquedo e também eu queria andar de carro quando eu crescer" (Bruno).

Esses movimentos revelam potências mesmo diante de cenários de vulnerabilidade fortemente marcados nas histórias de vida que trazem abandonos, violências e rupturas afetivas, demandando dessas crianças processos complexos de compreensão, reorganização e também de movimentação em torno dos itinerários futuros. A partir dessas dimensões, compreende-se que, a despeito dos processos de ruptura e fragmentação operados nas histórias de vida dessas crianças, permanecem preservados mecanismos que revelam a esperança pela escrita de histórias mais afetivas, com vínculos seguros e prenhes de significados. A espera, ora real, ora fonte de ansiedade e insegurança, de certa forma tem permitido a essas crianças o desenvolvimento de estratégias para fazerem frente a esse desamparo, como a oração, os objetos transicionais e mesmo a proximidade com algumas educadoras da instituição, apenas para destacar os que emergiram na presente investigação.

 

Considerações finais

Ao final deste percurso analítico, pode-se afirmar que as expressões lúdicas, imagéticas e narrativas expressas pelas crianças em processo de institucionalização revelaram a angústia relacionada tanto à espera pela adoção, como pelas vivências nesse contexto, identificado pela ausência afetiva e, muitas vezes, pela incerteza quanto ao futuro. Este fator é intensificado levando em consideração o tempo que essas crianças já se encontravam na instituição, que variou entre dois a quatro anos, excedendo o que a lei 13.509/17 preconiza, em caráter de excepcionalidade. Infelizmente, a adoção de irmãos ou de crianças mais velhas no Brasil ainda não tem se adequado à lei, excedendo o tempo por falta de pretendentes aptos para comporem novas famílias. Essa situação revela a complexidade do tema em nosso cenário, havendo a necessidade de maior diálogo entre a legislação e a realidade dessas instituições, promovendo uma cultura de adoção como uma escolha consciente dos futuros pais e ultrapassando o argumento caritativo muitas vezes associado à adoção.

As necessidades de proteção, abrigo e ajuda para ser contido e cuidado com afeto foram evidentes para as cinco crianças participantes do estudo. Também foi recorrente a expressão de sentimentos derivados de conflitos, como: culpa, abandono, solidão, tristeza e desproteção. Entretanto, perante a quarta consigna do DE-T, quatro crianças manifestaram sentimentos derivados do desejo de construir vínculos, como: alegria e amor, que foram expressos ao fazerem referência à família que gostariam de ter. Nota-se que pensar na possibilidade de viver em família lhes encorajou e motivou em relação ao futuro, dando-lhes esperança, mesmo com vivências pregressas consideradas desadaptativas.

A priorização da produção da criança como única fonte de informações neste estudo não deve ser considerada como uma limitação, mas sim um avanço. O delicado processo de entrar em contato com essas crianças e suas subjetividades, muitas vezes atravessadas por narrativas de abandono, violência e desamparo, permitiu um acesso a uma dimensão do que pode ser indizível a uma análise mais tradicional. O aparentemente indizível, nesse sentido, torna-se potência de palavra, de gesto e de representação que comunica ao outro um mundo interno que deve ser preservado, cuidado, protegido. Isso foi possível pelo método empregado e pelas diferentes possibilidades de escuta derivadas desses encontros.

Entende-se que este estudo, ancorado no caso coletivo, atingiu seu objetivo que foi compreender os sentimentos e expectativas que surgem durante a transição da institucionalização para a adoção, sob o ponto de vista das crianças, podendo também contribuir para uma melhor transição da institucionalização para a família substituta. Os profissionais que atuam nesse contexto devem estar mais atentos a essas narrativas não no sentido de generalizar sentidos vivenciados por essas crianças nesta etapa, como se houvesse uma narrativa comum a quem está institucionalizado, mas acompanhar as necessidades individuais e, na medida da disponibilidade, buscar atendê-las de maneira continente, preservando seu mundo interno e assegurando-lhes proteção e segurança em todo esse itinerário, que envolve a contenção de angústias e ansiedades típicas, bem como a preservação de expectativas em relação ao futuro.

Nota-se que é muito importante a realização de mais pesquisas que procurem escutar a infância institucionalizada para que a partir daí seja possível compreender como se dá o seu desenvolvimento e quais são os sentimentos que lhes sobrevém a partir das vivências em diversos contextos, como o da família de origem, o da instituição de acolhimento e o da família por adoção. Os modos de operacionalizar essa escuta também podem ser incrementados e diversificados tomando por base alguns recursos aqui empregados, mais próximos de uma escuta clínica institucional. Outros norteadores teóricos podem emergir, com outras recomendações metodológicas, também respeitando a posição da criança e do adolescente. Assim, a leitura winnicottiana aqui empreendida constitui apenas um dos amplificadores dessa escuta. A partir dessas recomendações, aventa-se que essas crianças e esses adolescentes, sendo escutados como sujeitos ativos e de direitos, poderão ser diretamente beneficiados e, de forma indireta, o trabalho de toda a rede de proteção à criança e ao adolescente poderá ser aperfeiçoada a partir de uma postura menos adultocêntrica e continente às necessidades dos protagonistas desse processo de acolhimento.

 

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Correspondência para:
Isabela Silva Rocha
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E-mail: isabelasilvarocha16@gmail.com

Submetido em: 18.11.2019
Aceito em: 06.04.2020

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