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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.13 no.2 São Leopoldo May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2020.132.13 

ARTIGOS

 

Marcas identitárias do cuidado em fim de vida

 

Marks of identity in the end of life care

 

 

Amanda Valério Espíndola; Luísa da Rosa Olesiak; Fernanda Nardino; Alberto Manuel Quintana

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Correspondência para

 

 


RESUMO

Cuidados de fim de vida correspondem a ações assistenciais dirigidas às pessoas cujos prognósticos apontam para os últimos seis meses de vida. Os Serviços de Atenção Domiciliar possibilitam o retorno para o domicílio nesse período, a partir da presença de um cuidador na residência. Este artigo buscou compreender as repercussões do cuidado em fim de vida às trajetórias e identidades de familiares cuidadores. A investigação utilizou o método clínico-qualitativo. Foram entrevistados seis familiares cuidadores mediante o uso de entrevistas semidirigidas. A análise dos dados deu-se por meio da análise de conteúdo. Identificou-se que a exigência de um cuidado permanente àqueles em período final de vida promove câmbios identitários nos familiares cuidadores. Tais mudanças garantem aos familiares uma atribuição social, além de uma posição de poder em seus núcleos familiares.

Palavras-chave: cuidados paliativos; cuidador familiar; fim de vida.


ABSTRACT

End of life care correspond to actions of care that are driven to people whose prognosis point out to their last six months of survival rate. Home Care Services enable the home return in this last period, depending on the presence of a caregiver in this residence. This article aimed to comprehend the repercussions of end of life care to family caregivers. It was used the clinical-qualitative method. Participants were six family caregivers who were interviewed by the usage of semi-directive interviews. As for data analysis, it was used the content analysis. It was identified that the demand of a continuous care by those who are experiencing their end of life, promotes changes on the identities of family caregivers. Such changes guarantee a social attribution to these caregivers, and, also a superior position in their nuclear family.

Keywords: palliative care; family caregiver; end of life.


 

 

Introdução

A ocorrência de importantes avanços tecnocientíficos no campo da saúde a partir do século XX relaciona-se a uma mudança global em relação às formas de adoecimento e morte. Enquanto 47,5% das mortes no Brasil em 1930 eram decorrentes de doenças infectocontagiosas, desde a década de 1980 estas enfermidades cederam espaço às doenças crônicas não-transmissíveis nas posições de maiores índices de morbimortalidade (Carmo, Barreto, & Silva Jr., 2003). Essa conjuntura associa-se ao aumento na expectativa de vida ao nascer da população geral - entre os brasileiros, esse dado corresponde a 76,3 anos, 30,8 anos a mais do que se prospectava na década de 1940 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019).

O tratamento de doenças crônicas envolve diversos manejos e terapêuticas, exigindo o uso de tecnologias leves, leveduras e duras, além de implicações aos estilos de vida e a necessidade de cuidados continuados. Essas enfermidades, por seu curso crônico e, usualmente, progressivo, levam os doentes a enfrentar morbidades relacionadas à doença primária ou sintomatologias associadas aos efeitos adversos do tratamento, situações em que há agudização da doença e necessidade de intervenção (Mendes & Vasconcellos, 2015).

Procedimentos, tratamentos invasivos e internações hospitalares frequentes são situações comuns aos doentes crônicos. Muitas vezes, lança-se mão destes mecanismos a fim de se promover a evitação da morte e um prolongamento da vida com terapêuticas "fúteis" ou "inúteis" que geram maior sofrimento ao indivíduo, levando a ações de obstinação terapêutica ou distanásia, o que se contrapõe à compreensão da ortotanásia - ou "boa morte". Esta corresponde a um processo no qual a morte é vivenciada pelo doente consciente, dispondo de conforto físico e psicossocial, de forma autônoma, minimizando possíveis sofrimentos, através de um manejo que favoreça a compreensão e a aceitação da morte, buscando um fim de vida digno e com qualidade (Silva, Quintana, & Nietsche, 2012).

Em consonância àquilo que se compreende enquanto ortotanásia, os cuidados paliativos constituem uma modalidade terapêutica cujo foco concentra-se na busca pela melhora na qualidade de vida de doentes e familiares acometidos por doenças potencialmente ameaçadoras à continuidade da vida, através de um cuidado multidimensional, o qual compreende o sofrimento destas pessoas como sendo de ordem física, psicossocial e espiritual (World Health Organization [WHO], 2002). A paliação percebe o doente e sua família como uma unidade, o que leva a se considerar que a busca pela melhora na qualidade de vida abrange o cuidado a toda essa unidade (Naoki, Matsuda, Maeda, & Kamino, 2017). Em relação aos cuidados de fim de vida, pontua-se que são compreendidos como parte integrante da assistência paliativa - considera-se, em geral, que estes cuidados são dirigidos às pessoas cujo prognóstico aponta para os últimos seis meses de vida (Silva, 2016).

Em um índice que estima a qualidade de morte em diferentes países, o Brasil ocupa a 42ª posição. Esse índice analisa a ambientação dos cuidados paliativos no sistema de saúde, a disponibilidade de recursos humanos e o acesso aos cuidados, a qualidade dessa assistência e o envolvimento da comunidade com a temática da paliação (The Economist Intelligence Unit, 2015). Recentemente os cuidados paliativos foram formalmente incluídos na rede de atenção à saúde do SUS, conforme disposto na Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018 (Brasil, 2018), a qual dispõe sobre a sua organização enquanto eixo de cuidado continuado e integrado. Essa resolução encontra amparo em outras legislações que passaram a incluir os cuidados paliativos, como a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (Brasil, 2017), a qual contempla a paliação na abrangência da atenção básica em saúde e a Portaria n° 825, de 25 de abril de 2016 (Brasil, 2016a), a qual dispõe sobre os Serviços de Atenção Domiciliar (SAD). Esta portaria entende a paliação como um dos eixos assistenciais dos SAD, exigindo, enquanto prerrogativa para admissão ao serviço, um cuidador formal ou informal que execute ações assistenciais nos domicílios de usuários funcionalmente dependentes.

A atenção domiciliar configura-se como um dispositivo em assistência paliativa à medida que opera como instrumento de cuidado, promovendo a busca pela autonomia e por reconhecer a pessoa adoecida como sujeito de seu processo saúde-doença e, não, mero objeto de intervenção, por meio da concepção do ambiente domiciliar como um espaço de cuidado e pela possibilidade de amparo deste sujeito em suas relações familiares (Brasil, 2011). Como alicerce fundamental desta atenção e cuidado paliativo, encontra-se a figura do cuidador.

A identidade do cuidador é definida pelo seu fazer e, em especial, pela consciência da atuação de cuidar e os significados desta em sua vida. Esta identidade é construída a partir de um processo no transcorrer do tempo, no qual o sujeito reflete acerca das relações que tal atividade cria no seu cotidiano, e assim passa a significar para si como um novo papel (Mendes, 1995). O cuidador como aquele que se apropria dos cuidados de modo contínuo, pode ou não ser alguém da família. Em estudos anteriores se observa que o lugar de familiar cuidador é, na maioria das vezes, ocupado por mulheres. Em decorrência da dedicação ao cuidado em fim de vida, muitos cuidadores manifestam sobrecarga física e emocional, o que pode levá-los a experienciar manifestações depressivas e ansiosas diante dos sentimentos de impotência e tristeza face ao agravamento da condição de saúde de seus entes queridos e, ainda, lutos complicados após o óbito desses familiares (Fratezi & Gutierrez, 2011; Lima & Machado, 2018; Delalibera, Presa, Barbosa, & Leal, 2015; Oliveira, Oliveira, Santos, & Crizel, 2016). Frente a tais considerações e, partindo-se da compreensão paliativista que percebe a família e o doente como uma unidade, justifica-se, a necessidade de investigar a fundo este grupo e esta temática. Para isso, este estudo buscou compreender as repercussões do cuidado em fim de vida às trajetórias de familiares cuidadores.

 

Método

Este artigo - o qual compõe uma dissertação de mestrado intitulada "Significações atribuídas ao cuidado exercido em fim de vida" - propôs a investigação acerca das repercussões do cuidado oferecido por familiares cuidadores a doentes recebendo cuidados domiciliares, a partir do método clínico-qualitativo. A pesquisa clínico-qualitativa é descrita por Turato (2013) como um método que se ocupa dos possíveis impactos que as investigações científicas das ciências humanas em espaços de saúde possam causar aos participantes, a partir do reconhecimento de que o pesquisador não é um mero espectador da pesquisa, entendendo-o como um outro participante ativo.

Participantes

Participaram da pesquisa familiares adultos de indivíduos maiores de 18 anos, de ambos os sexos, em processo de fim de vida, cujos prognósticos de sobrevida fossem inferiores a seis meses, recebendo cuidados paliativos exclusivos, assistidos pelo Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) de um Hospital Universitário do interior do Rio Grande do Sul, no período de abril a setembro de 2017. Foram excluídos da investigação familiares de indivíduos em tratamento curativo, sujeitos inconscientes, com evidência de prejuízo cognitivo e/ou capacidade de fala prejudicada. A fim de se definir o familiar participante, foi solicitado ao grupo familiar que apontasse o cuidador principal.

Estes familiares foram contatados inicialmente por telefone a partir de uma lista fornecida pelo SAD. Posteriormente, agendou-se encontro nos domicílios de cada um dos que demonstraram interesse em participar. Nesses encontros, o processo de coleta iniciava com o rapport da pesquisa, momento em que foram novamente explicados os objetivos e os procedimentos envoltos no processo de coleta de dados, a partir da apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual constavam os dados relativos à pesquisa e aos pesquisadores, aos potenciais benefícios e prejuízos e acerca da possível desistência em participar da investigação a qualquer momento.

Procedimentos

A coleta de dados deu-se com todos aqueles cuidadores familiares que consentiram em participar, através do uso da entrevista semidirigida, composta por eixos norteadores que correspondiam a tópicos relacionados aos objetivos da pesquisa, os quais versavam sobre aspectos relativos à família antes e após o adoecimento do familiar em fim de vida; o processo de adoecimento e as repercussões às relações familiares; percepções sobre a transferência dos cuidados hospitalares para os cuidados em domicílio; impressões quanto a tornar-se cuidador principal; sentimentos sobre a proximidade do fim de vida de seu familiar e impressões quanto ao futuro após a morte do familiar. A coleta foi interrompida mediante critério de saturação dos dados, quando não se percebem novos elementos nas entrevistas (Turato, 2013). Os seis participantes estão descritos na tabela abaixo:

 


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Salienta-se que as entrevistas foram realizadas em um único encontro, tendo sido todas gravadas e posteriormente transcritas. O grupo responsável pelas entrevistas era composto por uma psicóloga e três alunas de graduação em Psicologia, as quais haviam participado da construção da investigação e foram capacitadas pelos pesquisadores responsáveis (psicólogos) para acompanhar as entrevistas. Pontua-se que, em cada entrevista, participavam a psicóloga e uma aluna.

A fim de que se pudesse dar cabo à análise, conduzida pelos pesquisadores responsáveis pela investigação, optou-se pela análise de conteúdo de Bardin (2010), a qual corresponde a estratégias cujo foco concentra-se na análise das palavras e das significações a elas atribuídas. Nesse contexto, a análise de conteúdo temática consiste na descoberta de núcleos de sentido a partir da análise da presença ou frequência de aparição de determinados termos nas falas dos entrevistados, relacionando as estruturas semânticas (significantes) às estruturas sociológicas (significados) (Minayo, 2010).

Quanto aos aspectos éticos, pontua-se que este estudo obedeceu aos princípios éticos regidos pela Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, a qual pauta as questões éticas envolvidas nas pesquisas com seres humanos em ciências humanas e sociais (Brasil, 2016b). Além disso, esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) através do CAAE 63065216.9.0000.5346.

 

Resultados e Discussão

Durante o processo de análise das entrevistas, observou-se que os familiares cuidadores descreviam situações em que a assistência a seus familiares adoecidos atravessava as suas vidas e as suas experiências. Desde as suas rotinas diárias, aos papéis sociais que executam, havia em seus discursos a narrativa predominante de uma ocupação voltada para o cuidado. Os resultados oriundos da análise das entrevistas foram distribuídos em duas categorias temáticas: 1) "Significados atribuídos ao cuidado: um imperativo" e 2) "O cuidado como uma condição identitária".

1) Significados atribuídos ao cuidado: um imperativo

A função de cuidador principal é assumida por uma única pessoa e relaciona-se ao desejo, disponibilidade ou capacidade para o cuidado. Além desses fatores, o sentimento de obrigação e de dever para o cuidado são usualmente relacionados ao compromisso afetivo estabelecido na construção das relações entre cuidador e doente (Cattani & Girardon-Perllini, 2004), conforme se evidencia no discurso de uma cuidadora: "Eu disse ah, eu não posso abandonar minha vó né? Como que eu vou abandonar minha vó se toda a vida ela sempre fez tudo por mim né? Aí eu disse não, vó, então eu vou morar contigo" (Familiar 05). Nesse sentido, sugere-se que essa retribuição dos cuidados origina-se de um compromisso afetivo entre a avó e a neta - a neta sente que o comprometimento com os cuidados da avó é inerente a sua relação com ela, como uma obrigação que não questiona. Entende-se assim que há aspectos subjetivos envoltos na determinação do cuidador familiar como a proximidade afetiva e o desejo para o cuidado e, há questões reais e concretas, como a fragilidade e dependência progressivas do doente, o que culmina na exigência de um cuidado ininterrupto.

Em relação à determinação do cuidador familiar, observa-se que outros familiares também demonstraram em seus relatos a disponibilidade para o cuidado vivenciada como algo que se relaciona aos laços de afeto partilhados antes e após o adoecimento, como expresso na fala da Familiar 01: "E eu não cuido por cuidar, eu cuido por amor, por carinho. Eu faço o que eu posso por ele, eu cuido por amor". Nesse contexto se infere que, para a Familiar 01, o ato de cuidar parece aportar significações além de uma atividade ou um papel a ser exercido, pois envolve um valor que compreende uma alteridade com sentidos de respeito, sacralidade, reciprocidade e complementariedade. Dessa forma, o exercício da função de cuidador pode permitir a ressignificação de um momento doloroso, representado pela proximidade do fim da vida, através do cumprimento de expectativas sociais que possibilitam a emergência de sentimentos de reconhecimento, realização pessoal e evitação da culpa (Mafra, 2011).

Observa-se no depoimento do Familiar 02 que este também apresenta um entendimento do ato de cuidar como recompensador ao afirmar: "Olha, o que eu me sinto, é cuidar dele até a última hora dele, né? A gente fazer o que pode. Tá junto com ele. Ele é uma pessoa maravilhosa, sempre foi uma pessoa maravilhosa". Essa fala denota o reconhecimento de uma reciprocidade - aquele de quem está cuidando "sempre foi uma pessoa maravilhosa" - o que leva a supor que há nessa oferta de cuidado um sentido de recompensa.

Entretanto, os significados atribuídos ao cuidado também perpassam a compreensão dos limites negativos que o circundam, frente à lógica de que o processo de fim de vida constitui uma situação de vulnerabilidade extrema, o qual pode levar a um contexto de progressivo isolamento daquele próximo a sua finitude e daqueles que o cercam, especialmente do cuidador principal, que enfrenta um período de indisponibilidade de investimento em si mesmo (Costa, Mourão, & Gonçalves, 2014). Em relação a esse aspecto identifica-se na narrativa da Familiar 06 referências à interdição a um autoinvestimento:

Eu agora to só assim o meu pensamento é só elas, só cuidar e... Não consigo pensar em outra coisa, não, não... Não tenho como (...) Sempre tem uma coisa, tem outra pra fazer e... Pagar é difícil. Assim, pagar uma pessoa pra ficar. Então... Eu tenho que ficar... Ficar cuidando (Familiar 06).

Observa-se que ao assumir os cuidados de sua familiar em fim de vida, a Familiar 06 opera uma recusa de si - as atribuições são diversas, ininterruptas, levando-se a pensar que a atuação desses familiares cuidadores sobre uma situação de desamparo e vulnerabilidade extrema envolvem uma ação de abdicação a seus próprios desejos, suas identidades, espaços e papéis anteriores ao adoecimento e/ou ao processo de fim de vida de seus entes queridos. Quanto a ela, depreende-se que abdicou de sua rotina, de sua casa e de seu núcleo familiar para executar o cuidado de sua irmã. Pontua-se que o cuidado a pessoas em fim de vida pode provocar sentimentos de frustração (Costa et al., 2014), os quais se relacionam à negação de si observada em familiares cuidadores.

Ainda sobre esse aspecto, a partir da fala de algumas participantes infere-se a vivência do processo de fim de vida de seus familiares como uma situação compulsória e penosa, assim como externalizado no discurso da Familiar 04: "[O marido dizia] 'Tu não tem nada a ver com isso'. E eu dizia 'mas vai sobrar é pra mim depois. E quem vai ter que te cuidar sou eu'. Como sobrou, como eu sabia que ia sobrar". Neste excerto, invés de referências à satisfação ou à recompensa pelas atividades de cuidado, encontram-se alusões à contrariedade para o exercício da assistência. Ademais, identifica-se ressonância no depoimento da Familiar 06 acerca da exigência de ininterrupção dos cuidados em fim de vida:

Ah, pra mim tá... Ah, é difícil né, é cansativo, porque tu vê eu passo o dia inteiro, a noite toda né. Então assim, é difícil. Mas... Tem que fazer né? Daí agora eu fico sozinha pra fazer o serviço e cuidar elas. Daí é tudo comigo. Mas não é fácil. É difícil... É, e a [irmã adoecida] tem dias que caminha melhor, tem dias que não caminha. E ela tava cada vez perdendo mais a consciência assim, sabe... Tem dias que é bem complicado. E é difícil. Mas... Tem que cuidar, não adianta, né (Familiar 06).

Os cuidados de fim de vida, muitas vezes expõe um caminho com desafios e angústias a quem cuida e ao sujeito que é cuidado. No enlace desse cuidado, atua-se no sentido da Paliação. Tal terminologia deriva da palavra do latim pallium, que possui significado de manta, capa, atribuindo os sentidos de cuidar, proteger e cobrir o sujeito. Frente a um nível da enfermidade que torna inviável a cura, passa-se a considerar a paliação como meio de obter qualidade de vida mediante os reflexos da doença. Nessa forma, busca-se a amenização do sofrimento que seria vivenciado diante do tratamento convencional, para experienciar com qualidade o seu processo de morte, atentando a promoção de bem-estar e manejo das dores (Pessini, 2003). Assim, a paliação condiz a uma forma de se subjetivar frente ao adoecer, ao decidir não investir na cura desmedida da doença, onde sujeito em conjunto com o cuidador atuam de forma a conviver com a realidade da proximidade da finitude.

As vivências de sofrimento em relação à execução do cuidado de familiares em fim de vida podem levar cuidadores a sentir esse papel como um fardo, o que se relaciona à atenção integral dirigida ao familiar adoecido, ao isolamento social, à falta de suporte, às limitações que envolvem a proximidade da morte, às mudanças nas relações (Stadjuhar, 2013). Por outro lado, um adequado funcionamento familiar e maiores níveis de satisfação em relação ao cuidado estão associados a um menor nível de sobrecarga (Chang et al., 2013). Nesse sentido, Naoki et al. (2017) apontam que a experiência do cuidado em fim de vida como um fardo ocorre em cuidadores que sentem que sua saúde física ou emocional, sua vida social e suas condições financeiras sofreram degradações como resultado do cuidado que ofereceram a seus familiares. Pode-se identificar repercussões dessa experiência de cuidado no seguinte depoimento:

Até o [membro da equipe de saúde] esteve aqui esses tempos e disse assim 'mas a senhora não pode fazer isso com a senhora, a senhora tem que arrumar alguém, tem que sair, a senhora tem que viver a sua vida'. Ele me disse. 'A senhora tem que sair, a senhora tem que aproveitar a sua vida... A senhora tem que separar'. Mas eu não consigo (Familiar 06).

Ainda que reconhecesse o sofrimento que estava enfrentando ao abrir mão de sua casa, seu núcleo familiar e sua vida social para exercer o cuidado de sua irmã, a Familiar 06 demonstrava não conseguir identificar alternativas à dedicação exclusiva ao cuidado - sentia-se sozinha, sobrecarregada, queixava-se de não encontrar amparo de outros entes queridos para auxiliar nesse processo. Entende-se que essa sobrecarga poderia ser minimizada pela articulação da equipe assistencial em relação à oferta de educação em cuidados paliativos aos familiares cuidadores (Vale, Neto, Santos, & Santana, 2019). Conforme observado nas narrativas desses familiares cuidadores, as orientações da equipe se restringiam a questões técnicas do cuidado (higienização de sondas, posicionamento dos doentes acamados, cuidados com a alimentação), enquanto que aspectos relativos a expressões de sofrimento dos familiares ou sinais de aproximação da morte eram negligenciados.

Por fim, considera-se que familiares cuidadores de pessoas em fim de vida sentem-se impelidos a esse cuidado solitário, visto que se trata de uma atividade que "tem que fazer, não adianta", que "sobrou para si" ou que "como não iria fazer?". Ainda que os familiares apresentem diferenças quanto à forma como vivenciam essas ações de cuidado - seja de maneira positiva ou negativa -, apresentam como padrão essa experiência de compulsoriedade quanto ao cuidado de seus entes.

2. O Cuidado como uma condição identitária

Familiares cuidadores de pessoas em fim de vida são expostos a mudanças na rotina, nos papéis sociais, nas organizações familiares. Identifica-se que estas modificações podem operar câmbios identitários, à medida que esses familiares passam a perceber o cuidado como parte de suas identidades. Nesse sentido, essa categoria busca descrever as significações atribuídas pelos cuidadores familiares ao cuidado como uma característica identitária.

O cuidador e a sua identidade são construídos pelo seu fazer constante e pelos sentidos vinculados a tal papel em sua vida (Mendes, 1995). Em especial, os familiares cuidadores são aqueles membros da família que, ainda que não disponham de formação na saúde, realizam o cuidado informal de seus familiares adoecidos. Da mesma maneira, são reconhecidas como cuidadoras informais pessoas da comunidade que, por já terem exercido atividades de cuidado, passam a executar estas ações como uma ocupação (Floriano, Azevedo, Reiners, & Sudré, 2012). Referente a esses aspectos, identifica-se no depoimento da Familiar 01 referências às funções de cuidadora em contextos intra e extrafamiliar:

Porque antes disso, eu cuidava de duas senhoras, fazia companhia de duas senhoras no hospital, e quando elas foram pra casa, eu dei seguimento. Como elas foram um dia, mais um dia, hoje faz quase dois anos, foi quase junto com o problema dele [marido]. Elas são uma de 88 e uma de 86, então hoje eu já digo que elas precisam de mim e ele precisa de mim, eu não consigo me desligar nem delas e dele (Familiar 01).

Observa-se no discurso da Familiar 01 menções à percepção de necessidade da presença e cuidado dela para todos aqueles a quem oferece ações de cuidado. Entretanto, pode-se inferir que esses papéis de cuidadora são também importantes a ela, pois concedem um lugar, uma atribuição social - é o seu trabalho. Sugere-se que esse papel assumido pelos cuidadores familiares provoca mudanças em seus comportamentos e na forma como percebem a si mesmos nas relações com seus entes adoecidos. Nesse sentido, pontua-se que alterações quanto à percepção de si condizem a modificações na identidade dos cuidadores, o que pode ser melhor compreendido pelo entendimento que a construção das identidades se dá através das interações sociais (Montgomery & Kosloski, 2009; Valentim, 2008).

De maneira similar ao relato da Familiar 01, a narrativa da Familiar 04 indica que ela também costumava assumir os cuidados de seus familiares, consoante à seguinte narrativa: "Porque ele nunca se cuidou e eu tava sempre cuidando. Porque a maioria da minha vida sempre foi (...) Cuidar dos outros, cuidar de doença". O depoimento da Familiar 04 sobre as relações de cuidado que assumiu em diferentes situações de adoecimento de seus familiares parecem delegar a ela a função social de cuidadora em sua família, função com a qual se identifica e se reconhece, compreendendo este papel como parte de sua vida e, portanto, de sua identidade. A Familiar 04 ainda destaca os rearranjos que a tomada deste lugar de cuidadora provoca quando discorre acerca das mudanças que opera em sua rotina para dar conta deste papel. Ademais, identifica-se no discurso desta familiar a percepção de que ela seria a responsável pelo exercício do cuidado, mesmo anterior aos diagnósticos de doenças em sua família, como se estivesse predeterminada a isso.

Salienta-se que a função de cuidador emerge de funções já assumidas no relacionamento entre doente e familiar cuidador em períodos anteriores ao adoecimento. Destarte, a função de cuidador familiar não seria apenas um novo papel em relação às funções sociais executadas e, sim, uma transformação de papéis já previamente executados naquele relacionamento. Considera-se ainda que a proximidade imbuída nessa relação pode configurar um dos mais importantes papéis sociais que esses cuidadores familiares (maridos e esposas, filhos e amigos) executarão em suas vidas, o que se relaciona às significações que estes familiares atribuirão às ações de cuidado (Montgomery & Kosloski, 2009).

Quanto à importância da identificação com esse papel de cuidador, observamos no discurso da Familiar 01 uma referência à gratidão pela possibilidade de executar o cuidado de seu marido: "Eu até agradeço a deus né, por mim tá cuidando dele né? Porque hoje eu me sinto bem de poder tá com ele, porque se eu não tivesse voltado e ele tivesse do jeito que ele tá, eu ia ficar muito triste, muito chateada, não ia poder tá do lado dele né?". Já a Familiar 03 aponta um sentido missionário ao relatar situação em que presenciou o processo de fim de vida de pessoas hospitalizadas enquanto acompanhava seu marido em uma internação:

Ah, é, no começo foi duro pra mim ver aquelas pessoas morrendo do lado né [no hospital]. E eu como, assim, como espírita eu assim, né, comecei na hora que eu via que as pessoas tavam indo, eu fazia as minhas preces pra eles, ajudei muito né? Porque às vezes a pessoa sofre porque não quer ir embora né? (Familiar 03).

Entende-se que os sofrimentos associados ao ato de cuidar demandam a busca por significados para essa ação, a fim de que se opere a continuidade da execução dessa tarefa a partir dos sentidos atribuídos a ela. Em relação a esse aspecto, evidencia-se que as significações outorgadas por familiares cuidadores ao ato de cuidar podem ser de crescimento, gratidão, doação, reparação, retribuição, obrigação, elaboração de conflitos, vontade de Deus, aprendizado (Silveira, Caldas, & Carneiro, 2006).

Potencialmente relacionado aos sentidos atribuídos ao ato de cuidar, identifica-se uma resistência em parte de familiares cuidadores quanto a permitir que outras pessoas assumam tarefas de cuidado por seus entes queridos, o que pode levá-los a uma sobrecarga e, por conseguinte, à vivência negativa dessa prestação de assistência em fim de vida, conforme depoimentos como o da Familiar 04: "Se a [filha] não tá em casa, eu não me animo de deixar com essa moça em casa, ela me ajuda em tudo, ela dá medicação e tudo, mas eu tenho receio, medo de me ausentar muito tempo de casa". Ainda nesse contexto, o discurso da Familiar 06 aponta para esta dificuldade em permitir-se ser auxiliada nesse processo de cuidado:

Até às vezes eu me pergunto, como é que eu to conseguindo. Não sei. E outra coisa... Eu já pensei, em arrumar uma pessoa pra ficar aqui pelo menos de noite... Pra eu ficar de dia, ou ficar de noite. Mas eu não tenho coragem de deixar elas (Familiar 06).

Concernente a esta perspectiva de impossibilidade de compartilhar as tarefas de cuidado, pontua-se que familiares cuidadores costumeiramente apresentam dificuldades em dividir o cuidado com outras pessoas, assumindo-o completamente e evitando solicitar auxílio aos outros por imaginar que não devem, por acreditar que exercem melhor as tarefas assistenciais do que os demais, ou por supor que as pessoas deveriam procurá-las para oferecer ajuda (Silveira et al., 2006; Teston, Santos, Cecilio, Manoel, & Marcon, 2013). Tais dificuldades impõem aos cuidadores, muitas vezes, situações de sobrecarga com as tarefas assistenciais, o que pode acarretar sofrimento psíquico àqueles que assumem uma postura de "viver para cuidar", quando estes familiares cuidadores dedicam-se exclusivamente às ações de cuidado, abdicando de suas outras funções e papéis sociais (Oliveira & Caldana, 2012).

Ainda que o cuidado contínuo e solitário associe-se a situações de sofrimento psíquico, assumir as ações de cuidado pode também representar a esses familiares cuidadores um sentido de poder sobre o restante do núcleo familiar, como observado no discurso da Familiar 03: "Deixa eu falar que tu não sabe nada [dirige-se ao filho que acompanhou a entrevista]. É que sempre eu que fui lá no hospital então eu to mais...". Similar a esse depoimento, o relato da Familiar 04 sugere que esta se sente fortalecida por poder executar tarefas como às de um profissional da saúde: "Mas eu faço a Fisio com ele, a mesma coisa que ela faz ali eu faço com ele". Além destas narrativas, observa-se no depoimento da Familiar 01 uma relação de hierarquia nas decisões familiares após o adoecimento do marido em que ela, por ser a cuidadora principal, aparenta deter maior poder decisório:

Eu falo, independente de gostarem ou não, e eu digo com todas as letras pra filho, pra nora, pra genro, pra filha e tudo, pras irmã dele, agora pra mim o que vale é o bem estar dele. Não importa se eu achar não, eu vou deixar ele aqui porque pra mim é melhor. Não, ele vai ficar no lugar que é bom pra ele. Não vai levar ele pra lá porque é difícil pra mim me deslocar. Não! Ele que tá precisando de cuidados (Familiar 01).

A partir destes relatos, infere-se que ao assumirem o cuidado como marca identitária, os cuidadores familiares adquirem além de uma função social, um espaço de poder nas relações familiares que encontram-se marcadas pelo adoecimento e pelo processo de fim de vida. De acordo com a Teoria da Identidade do Cuidador (Montgomery & Kosloski, 2009) os cuidadores familiares não apresentam modificações apenas em seus comportamentos, mas também na maneira como percebem os seus papéis na relação com aquele a quem dirigem seus cuidados, o que leva, portanto, a uma mudança nas representações sobre si. Aponta-se que esse câmbio identitário se relaciona a importantes modificações no contexto de cuidado, as quais envolvem, comumente, um aumento do nível de dependência do membro adoecido.

Tendo em vista os cuidados contínuos demandados por pessoas em situação de fim de vida, por vezes o papel de cuidador principal é delegado pelos familiares àquele membro da família que dispõe de mais tempo para a assistência, como aposentados ou trabalhadores do lar, assim como no caso de alguns participantes da pesquisa (Familiar 02; Familiar 03 e Familiar 06). Essa peculiaridade quanto à definição do cuidador pode levar a situações em que o cuidador familiar e o doente não estejam conectados por laços afetivos profundos anteriores à relação de cuidado (Fratezi & Gutierrez, 2011).

Observa-se que os cuidadores familiares além de compartilharem ocupações semelhantes, também são identificados por um gênero predominante. Em geral, o cuidado em fim de vida é executado por mulheres (Meira, Reis, Gonçalves, Rodrigues, & Philip, 2017; Oliveira & Caldana, 2012; Williams, Giddings, Bellamy & Gott, 2017), o que também foi observado nesta investigação - à exceção do Familiar 02 (o qual estava substituindo a assistência realizada por uma mulher - sua esposa), todas as outras cuidadoras familiares eram mulheres: esposas, irmã e neta.

Quanto à predominância do gênero feminino na execução do cuidado, pontua-se que as identidades são entendidas como produto das interações sociais, as quais determinam as aquisições de papéis e funções. Nesse sentido, sugere-se que, em contextos familiares, as mulheres foram historicamente encarregadas pela fecundidade, proteção, nutrição e abrigo como atribuições que garantiriam a continuidade da vida dos grupos, encargos que as aproximariam de posições de cuidado (Meira et al., 2017). Entretanto, considera-se fundamental a discussão sobre o que leva à conexão inerente entre feminino e cuidado. Atribui-se ao senso moral da sociabilidade burguesa a naturalização das ações de cuidado como algo intrínseco ao feminino. Às mulheres cabem os encargos profissionais diversos ao cuidado, além da responsabilidade por cuidar de seus familiares em diferentes fases - ora por conta das necessidades subjacentes aos períodos da infância e adolescência, ora em decorrência de processos de envelhecimento ou adoecimento - em consequência da imposição de normas sociais historicamente predominantes (Guedes & Daros, 2009).

Em relação aos participantes desta investigação, aponta-se que duas familiares mantiveram-se encarregadas de suas ocupações prévias ao processo de adoecimento de seus entes queridos - Familiares 01 e 05. Quanto a esse aspecto, o depoimento da Familiar 05 denota que o zelo de seus filhos - crianças e adolescentes - e da avó doente implicava na necessidade de seguir com sua ocupação formal e, ademais, sugere que apesar da avó ter mais familiares que poderiam ajudá-la (filhos), coube a ela ocupar a função de cuidadora principal:

Mas ele é uma pessoa extremamente egoísta, só pensa nele [tio]. (...) E ele... Ele acha assim que ah, que a mãe já viveu bastante e agora... Sabe? Então isso é uma coisa que me incomoda muito. E aí quando ela ficou doente que eu falei isso pra ele, né. Ele também não se mobilizou assim de fazer nada, né? (...) E as minhas filhas a mãe se mudou pra minha casa pra ficar cuidando, só que aí como são três né... A mãe também não aguentou (Familiar 05).

Já a ocupação da Familiar 01 é também relacionada ao cuidado - trabalha como cuidadora de idosos. Ainda que não considerasse uma ocupação formal, percebia a sua atividade como imprescindível, o que a levou a se reorganizar para dar conta do cuidado do marido adoecido e das idosas: "Então agora, quando a coisa se estendeu, eu não podia deixar elas mal, mas não podia também deixar ele mal né?". Concernente a este aspecto, Contatore, Malfitone, & Barros (2017) apontam para uma subvalorização em relação ao cuidado pelas ciências humanas e naturais. Esta minimização da importância do cuidado se originaria de uma concepção do cuidado como uma responsabilidade familiar, cujas atividades de rotina seriam implicitamente designadas às mulheres, como uma imposição social a este gênero. Convergente a esse aspecto, identifica-se no depoimento da Familiar 06 essa relação intrínseca entre sua identidade de gênero e a imposição do cuidado - já havia operado ações de cuidado para o marido, estava cuidando da irmã e reconhecia que, após a morte desta, a qual se encontrava em processo de fim de vida, ainda seria a responsável pelo cuidado da mãe, mesmo que pudesse recorrer a outras pessoas para auxiliá-la, como o filho:

O dia que acontecer alguma coisa com a [irmã], eu tenho mais a mãe... Que eu tenho que cuidar. Porque eu... É só eu, né. Eu tenho o meu filho, ele me ajuda, né, e tudo, mas... Vai ser eu. A responsabilidade é minha, né. E olha, vou te dizer uma coisa bem sincera, eu não tenho mais plano pra nada, eu... Não consigo mais pensar em outras coisas, fazer planos. (...) Eu como mulher já nem penso mais, eu penso ali só no... Dia-a-dia, cuidar, e cuidar e cuidar. Eu agora to só assim o meu pensamento é só elas, só cuidar e... Não consigo pensar em outra coisa, não, não... (Familiar 06)

De acordo com este depoimento, pode-se depreender que toda a organização da vida da Familiar 06 opera em função de seu papel como cuidadora, visto que sequer se permite planejar para um futuro após exercer todas as ações de cuidado que supõe ter de assumir. Sugere-se que o cuidado se impõe, dessa forma, como uma missão e, ainda, como uma característica identitária das familiares cuidadoras participantes desta investigação, visto que passaram a assumi-lo como parte de suas vidas por conta do avanço do adoecimento de seus familiares e da necessidade progressiva de ações de cuidado, o que se relaciona ao proposto pela Teoria da Identidade do Cuidador (Montgomery & Kosloski, 2009).

Pontua-se, por fim, que os resultados deste estudo, os quais compreendem o cuidado como atributo identitário das familiares cuidadoras entrevistadas, estão também marcados por uma cultura que promove a cristalização de elementos que associam a figura da mulher ao cuidado à saúde: as imposições dos papéis sociais às mulheres derivam dessa cultura naturalizadora (Gutierrez & Minayo, 2010).

 

Considerações finais

A partir dos achados deste estudo, observou-se que para os familiares cuidadores de pessoas em fim de vida é comum que se encontrem histórias pregressas de execução de atividades de cuidado em suas trajetórias. Em razão da situação de terminalidade exigir cuidado contínuo, familiares cuidadores são colocados frente à necessidade de abdicar de suas vidas, rotinas e atividades para que possam se dedicar inteiramente àquela assistência. As ações de cuidado passam de tarefas a atributos identitários, pois são aspectos que os caracterizam diante do período final de vida de seus familiares adoecidos. Em geral, o cuidado em fim de vida é marcado por uma cultura que promove a cristalização de elementos que associam a figura da mulher à assistência em saúde.

Pontua-se que este artigo apresenta limitações relacionadas ao desenho do estudo - visto que a população do estudo concentrava-se nos cuidadores em fim de vida, optou-se pela construção de uma investigação transversal. Acredita-se, porém, que estudos longitudinais, os quais acompanhem esses familiares cuidadores nas diferentes etapas enfrentadas ao longo do adoecimento, poderão trazer novos elementos acerca dessa população.

Ainda assim, em relação aos cuidadores de pessoas em fim de vida, a investigação aponta para situações que envolvem a sobrecarga do familiar cuidador, o qual costuma encarregar-se sozinho dos cuidados. Ainda que a paliação compreenda o doente e sua família como uma unidade, sugere-se que as intervenções dirigem-se, em geral, ao paciente. Assim, propõe-se que esses cuidadores sejam também assistidos pelas equipes de saúde, buscando-se intervenções que os aproximem de suas redes de suporte familiar e comunitário, tendo em vista que o cuidado domiciliar ocorre em seus territórios. Enquanto ferramenta de suporte a esse cuidado, sugere-se a formalização de estratégias de educação em cuidados paliativos aos familiares cuidadores. Por fim, sustenta-se que os achados deste estudo poderão fortalecer a construção de conhecimento e de promoção de uma assistência que vise a compreensão e o acolhimento dos familiares de referência de pessoas em fim de vida.

 

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Correspondência para:
Amanda Valério Espíndola
Av. Roraima nº 1000 Cidade Universitária Bairro - Camobi, Santa Maria - RS, 97105-900
E-mail: amndvesp@gmail.com

Submetido em: 21.02.2020
Aceito em: 23.09.2020

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