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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.14 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2021.142.02 

ARTIGOS

 

Alteridade na prática da abordagem centrada na pessoa a partir de versões de sentido de terapeutas iniciantes

 

Alterity in person-centered approach practice from the sense's version of beginning therapists

 

 

Janine Brasil CordovilI; Emanuel Meireles VieiraII; Vera Lucia Pereira AlvesIII; Francisco Pablo Huáscar Aragão PinheiroII; Cristina Silmara Duarte RodriguesII

IUniversidade Federal do Pará
IIUniversidade Federal do Ceará
IIIEspaço John Wood - Estudos e Pesquisas na Abordagem Centrada na Pessoa

Correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho tem por objetivo descrever a experiência dos terapeutas iniciantes que usam o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) sobre a relação terapêutica. Utilizou-se como referencial teórico a Ética da Alteridade Radical, proposta por Emmanuel Lévinas, por evidenciar o caráter obrigatório e vertical da relação com o Outro, a partir da qual é constituída a subjetividade, além de discussões sobre psicoterapia no campo da teoria psicológica em questão. Para a construção dos dados, utilizaram-se versões de sentido produzidas pelos terapeutas. Adotou-se o método fenomenológico empírico para análise. Apresentam-se sete formas assumidas pela alteridade no manejo de terapeutas iniciantes - Outro do encontro, Outro da experiência, Outro da simbolização, Outro da penumbra, Outro da ousadia, Outro da satisfação e Outro dos afetos. Para estudos posteriores, indica-se pensar a forma como a alteridade se manifesta em contextos que não apenas a clínica, bem como uma comparação sobre as manifestações da alteridade na prática de terapeutas iniciantes e experientes.

Palavras-chave: alteridade; formação do psicólogo; terapia centrada no cliente.


ABSTRACT

This work aims to understand the ways of dealing with the description of the experience of therapists about therapeutic relationships that are present in the clinical management of beginning therapists that use the Person-Centered Approach as a reference. We used as a theoretical background the Ethics of Radical Alterity proposed by Emmanuel Lévinas as it highlights the obligatory and vertical aspect of the relationship with the Other, from which subjectivity is constructed, as well as discussions about psychotherapy regarding the psychological theory in question. For the construction of data, we used versions of sense produced by the therapists. We adopted the empirical phenomenological method for analysis. Alterity assumed seven forms in the management of beginning therapists - Other of the encounter, Other of experience, Other of symbolization, Other of the Twilight, Other of Audacity, Other of Satisfaction and Other of Affection. For later studies, among others, we suggest approaching how alterity is manifested in contexts other than the clinical one, as well as a comparison about the manifestations of alterity in the practice of beginning and expert therapists.

Keywords: alterity; psychologist formation; client-centered therapy.


 

 

Introdução

A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), proposta por Carl Rogers (1942/1987), criou um modo de fazer psicoterapia em que o cliente guia o processo, que se caracteriza por ser não diretivo, o que significa que o terapeuta é responsável por proporcionar um ambiente favorável ao desenvolvimento e mudança psicológica daquele que procura ajuda. Nesse contexto, a compreensão empática, a autenticidade e a consideração positiva incondicional são as atitudes facilitadoras que fazem parte de um conjunto de condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica da personalidade (Rogers, 1957/2008).

A atitude empática é um exercício de pensar o mundo como se fosse o outro para compreendê-lo sem se esquecer dessa condição. É um ato de permitir ser tocado pelo outro que envolve um processo de intimidade. Ser autêntico, ou estar em acordo interno, significa harmonia entre sentir, simbolizar e comunicar uma dada experiência, de modo que esta possa ser simbolizada e comunicada, caso necessário, sem maiores barreiras. Finalmente, a consideração positiva incondicional refere-se à aceitação de cada aspecto da pessoa, por esta ter valor, independentemente de suas ações e afetos (Rogers, 1957/2008, 1961/2009).

Foi também preocupação de Rogers a questão do treinamento de terapeutas (Rogers & Kinget, 1977; Rogers & Wallen, 2000). É sabido que, de acordo com Vieira, Bezerra, Pinheiro e Castelo Branco (2018), a atuação do terapeuta iniciante se dá como um pêndulo que transita entre extremos de entrega à experiência e apego à técnica e à teoria. Isso significa que, por um lado, há uma série de pressupostos a respeito de uma relação terapêutica bem-sucedida que fundamentam a atuação do terapeuta (Rogers, 1957/2008). Por outro, essa mesma relação ocorre através de uma abertura ao fluxo da experiência no presente, a um devir que é da ordem do desconhecido. Essa abertura à experiência, ao outro, diz respeito à dimensão da alteridade do manejo terapêutico.

É importante destacar que as pesquisas relacionadas à prática clínica atentam para aspectos técnicos e, muitas vezes, abandonam as questões éticas e o contato com o que há de estranhamento na experiência. Para a compreensão deste estranhamento, adotamos a perspectiva da Ética da Alteridade Radical, de Emmanuel Lévinas (1961/2000), que admite a relação com o Outro como assimétrica, uma vez que esse Outro não pode ser capturado, isto é, não é possível compreendê-lo em sua totalidade. Nesse sentido, a relação com a diferença, com o Outro, ocorre de forma obrigatoriamente vertical e passiva, em que o Eu não tem controle e é obrigado a responder aos apelos da outridade. Isso implica uma responsabilidade com o Outro da qual o sujeito não pode fugir e, a partir dela, sua subjetividade é constituída (Lévinas, 1961/2000; Worsley, 2011).

A relação entre os pensamentos de Lévinas e Rogers têm crescido nos últimos anos, tanto no Brasil (Araújo & Freire, 2017; Vieira, 2017), como fora internacionalmente (Schmid, 1998; 2012; Schmid & Mearns, 2006). Lévinas é usado como fundamento para estabelecer um questionamento a respeito da abertura do pensamento rogeriano ao que é radicalmente Outro. Isso implica em um diálogo que, por vezes, é atravessado por críticas a uma preocupação de Rogers com a natureza humana, bem como reconhece neste mesmo autor elementos que o abrem para lidar com o radicalmente Outro em sua teoria e prática. Desta maneira, o objetivo do estudo é descrever a experiência dos terapeutas iniciantes que usam o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) sobre a relação terapêutica.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo seis estudantes do último ano do curso de Psicologia de uma universidade pública. Todos realizavam estágio anual em Psicologia clínica e utilizavam o referencial da ACP. Os discentes tinham idades entre 22 e 36 anos e eram três de cada sexo. Quatro participantes se dedicavam exclusivamente à vida estudantil e dois possuíam ocupações além do curso de graduação, trabalhando em repartições públicas.

Instrumentos

A presente pesquisa é de natureza qualitativa com enfoque empírico-fenomenológico. Tal método visa estudar o sentido do fenômeno investigado, qual seja, a relação com a alteridade no manejo clínico de terapeutas iniciantes através de sua descrição e compreensão (Amatuzzi, 2009). Utilizou-se a versão de sentido (VS) como instrumento de registro dos atendimentos realizados. A VS é um relato em que o sujeito discorre sobre sua experiência imediata, de forma oral ou escrita, como uma reação viva a ele, e aponta o que lhe foi significativo (Amatuzzi, 2001). Desta forma, entendemos que este instrumento nos fornece maior clareza sobre como o terapeuta era tocado pelo encontro com o cliente.

Procedimentos

Coleta de Dados

Inicialmente, foi realizado um treinamento com os estagiários, para que aprendessem a usar a VS. Foram orientados a escrever textos em primeira pessoa, logo após a realização de cada atendimento, em que descrevessem, o mais genuinamente possível, o que lhes foi mais significativo no encontro. A partir disso, foram produzidas 97 VSs, registradas textualmente, oriundas do atendimento de 15 clientes diferentes ao longo de um ano de estágio. Cada cliente teve, em média, 20 atendimentos. Parte das versões de sentido produzidas pelos terapeutas não foi utilizada, pois, às vezes, os relatos se detinham mais aos fatos e pareciam mais relatórios do que de fato um relato significativo. Além disso, houve sessões que não foram registradas pelos terapeutas. Por isso, em média, foram tomadas pouco mais de 6 VSs a respeito de cada cliente atendido pelos terapeutas para fins de análise.

Análise de Dados

A partir da análise dos dados foram propostas sete figuras de alteridade que se relacionam com as atitudes facilitadoras. São elas: (a) Outro do encontro, no qual o terapeuta se torna parte do processo e adentra o mundo do cliente através da sua narrativa; (b) Outro da experiência, que consiste na compreensão do cliente por meio da comunicação não verbal e não se limita apenas à narrativa apresentada; (c) Outro da simbolização: o terapeuta faz uma aproximação da experiência através de símbolos, imagens e figuras e não tem pretensão de capturar o todo exposto pelo cliente; (d) Outro da penumbra, a partir do qual o terapeuta se permite sair do lugar de especialista ou mantenedor de controle, atravessa o estranhamento do não saber e dá mais abertura à fala do cliente; (e) Outro da ousadia, que é um lançar-se para além da técnica, por parte do terapeuta e, além disso, este responde de acordo com a demanda da interação; (f) Outro da satisfação que, como o nome diz, aponta para um sentimento de satisfação para com o cliente e para com o processo terapêutico, possibilitando maiores aberturas para a experiência e, por fim, (g) Outro dos afetos, que se remete aos momentos em que o terapeuta se deixa afetar pela relação, pela narrativa do cliente, pelo reconhecimento de seus sentimentos envolvidos.

Os dados foram analisados a partir do método fenomenológico empírico (Castelo Branco, 2014). Inicialmente, foi realizada a suspensão fenomenológica, deixando os pré-conceitos dos pesquisadores suspensos. Em seguida, os dados foram organizados por meio da identificação de unidades de significação que, posteriormente, foram agrupadas em sete categorias temáticas. Essas categorias correspondem a figuras de alteridade que, de acordo com Vieira (2017), consistem em dimensões de abertura para a relação com a diferença, e foram utilizadas para classificar os relatos dos terapeutas iniciantes. Chegou-se às seguintes categorias: Outro do encontro, Outro da experiência, Outro da simbolização, Outro da penumbra, Outro da ousadia, Outro da satisfação e Outro dos afetos.

Para fins de apresentação dos resultados, cada estagiário será indicado pela letra "T" acompanhada de um número (de 1 a 6). Cada cliente destes estagiários será apresentado pela letra "C" também seguida por um número (de 1 a 15). Já o número da versão de sentido correspondente a cada cliente será apresentado pela letra "V" acompanhada por um número (de 1 a 97). Assim, o trecho que corresponde à terceira sessão do cliente 2 do terapeuta 1 será apresentado, por exemplo, como T1C2V3.

Considerações Éticas

O projeto foi apreciado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará e autorizado sob o número CAAE - 02896018.0.0000.0018, segundo todas as diretrizes e normas regulamentadoras descritas na resolução CNS 510/2016.

 

Resultados e Discussão

Uma figura de alteridade compreendida na prática do terapeuta iniciante é o Outro do encontro, que se relaciona à empatia. Podemos compreender esse fenômeno a partir do que Rogers (1961/2009) chama de unidade de vivência, isto é, quando o cliente vivencia seus afetos com liberdade e intensidade e o terapeuta experiencia a compreensão desse sentimento do mesmo modo, como é observado no seguinte extrato de uma VS:

T2C1V1: Naquele momento eu senti sua angústia, estávamos caminhando juntas e, a cada novo relato, eu sentia o alívio em sua fala.

É sabido que essa unidade de vivência pode ser alcançada por meio da empatia do terapeuta, que compreende e compartilha a narrativa do cliente (Nerys, 2019). Em Moreira (2009), a empatia é tratada como um andar de mãos dadas com o cliente, uma intimidade, que pode ser percebida no seguinte excerto:

T3C1V9: ... Assim como eu ofereço uma mão à [cliente] para caminharmos juntas, ela oferece a dela pra mim.

Neste sentido, Schmid e Mearns (2006) dizem da necessidade de o terapeuta movimentar-se em direção ao Outro, sem capturá-lo e abrindo-se para o inesperado. Pressupõe-se, portanto, que essa abertura começa com o movimento do terapeuta em direção a uma intimidade com o outro, ou seja, posicionar-se diante do desconhecido e ser tocado por ele (Schmid, 1998). Segundo Haugh e Merry (2001/2013), na ACP, a empatia tem maior prioridade no contexto terapêutico, considerando que a pessoa se encontra ferida, confusa, ansiosa e incerta de sua identidade. Por outro lado, Geller e Greenberg (2002) declaram que esta, assim como a congruência, pode ser um modo de expressão da presença no encontro terapêutico.

Um aspecto importante colocado por Rogers (1967/1976) quanto à empatia é o seu envolvimento com a comunicação não verbal, pois ela também permite adentrar e acompanhar o fluxo da experiência do outro (Schmid, 1998). Alguns autores diferenciam a empatia que considera aspectos corporais, como é o caso de Cooper (2001/2013), que propõe uma empatia somática. Essa modalidade diz respeito a fazer emergir as experiências do cliente de um modo corporal, uma vez que o autor afirma que é através do corpo que ocorre a experiência no mundo. Nesta direção, há três pontos: evitar falar muito e rapidamente no início do encontro; não focar exclusivamente nos pensamentos e emoções do cliente; e cuidar do próprio corpo do terapeuta fora da sessão, por meio de corpoterapia ou relaxamento, com o objetivo de o estresse pessoal não interferir na sintonização empática corporal. É justamente a essa comunicação não verbal que o Outro da experiência diz respeito. Isso pode ser visto no segmento a seguir:

T6C2V7: Hoje percebi o quanto ela parece mais à vontade, ocupando seu espaço, através de sua postura mais relaxada, menos mexidas no cabelo. Parece que ela pode se concentrar apenas na nossa comunicação.

Notadamente, a atenção à linguagem corporal da cliente propiciou uma maior compreensão, por parte da terapeuta, acerca da experiência vivida. Esta figura de alteridade nos remete também à interação subverbal proposta por Gendlin, que prioriza a experienciação (conteúdo implícito e vivencial) de terapeuta e cliente em relação ao conteúdo verbal (Rogers, 1967/1976). Nesse tipo de interação, pode-se identificar o Outro da experiência, já que não se exige um conhecimento ou compreensão plena das significações do cliente. Isso pode ser notado na seguinte passagem:

T1C1V6: O encontro com C1 foi muito diferente. A atmosfera envolta nela me sugeria alegria, algo que não havia acontecido antes. Lhe comuniquei essa sensação, C1 me confirmou...

Aqui o Terapeuta 1 se remete às sensações somáticas presentes na interação com sua cliente, que não estavam diretamente ligadas às verbalizações dela, mas ao ambiente relacional que os circunda. A fala do terapeuta contempla sua vivência, sua experiência na relação terapêutica com a cliente. Nesse sentido, podemos nos referir a Moore (2001/2013), que compreende que a consideração positiva incondicional foi claramente transformada para ser a aceitação do que está acontecendo no momento da experiência, não apenas em quesito de pensamento e sentimento, mas também quanto às sensações corporais. Considerando também que Bozarth (2001/2013) trata a empatia como veículo de comunicação da consideração positiva incondicional, podemos dizer que no Outro da experiência ocorre a aceitação das sensações corporais do cliente, que é comunicada por meio da empatia, como no seguinte trecho:

T1C1V4: [Ela] me contou sobre suas expectativas da atenção de sua filha e como isso não aconteceu. No entanto, através de um sorriso que transmitia um sentimento completamente diferente, C1 disse .... Ao concluir sua fala eu lhe informei sobre uma aparente alegria por não ter sentido tanto a falta de atenção da filha. Ela confirmou essa sensação.

Pode-se notar a aceitação de T1 quanto às expressões corporais de alegria de sua cliente, sendo capaz de comunicá-la empaticamente. As propriedades citadas anteriormente podem também ser analisadas no seguinte excerto:

T1C2V5: Pela forte gesticulação eu sentia uma forte determinação nele, e rapidamente o comuniquei, ele confirmou e trouxe outras experiências de sua vida...

É perceptível que T1 aceita a expressão corporal do cliente e comunica essa aceitação a partir da compreensão empática. Isso exibe a abertura do terapeuta para as questões extraverbais, a sua presença na relação e como esse novo modo de compreender o cliente permite que ele, isto é, o terapeuta, afaste-se de uma rigidez, de um fechamento para a experiência. Rogers (1961/2009) declara que na psicoterapia se aprende a linguagem dos sentimentos e da emoção, como podemos observar no seguinte trecho:

T1C1V5: C1 se diz com muitos atravessamentos difíceis. Eu lhe devolvi minha percepção acerca disso e ela me respondeu metaforicamente, como se estivesse afogando no fundo do mar. Exploramos juntos esse exemplo e chegamos até o início de todo esse sofrimento...

É na relação que T1 e sua cliente manuseiam juntos esse novo modo de linguagem, ampliando a percepção de ambos sobre a experiência relatada. A metáfora proposta pela cliente desempenha função de alavanca para que ocorra o encontro entre ambos no caminho para a aprendizagem dessa nova maneira de comunicação.

Entendemos que a figura de alteridade aí presente é o Outro da Simbolização. Mais um exemplo da figura em tela é o seguinte extrato de uma versão de sentido de T6:

T6C2V9: Usei a imagem de uma roda gigante que representa a rotina na qual C2 está inserida, e fora dela várias coisas que parecem inalcançáveis, que ela não consegue dar conta ... Me senti mais próxima dela...

É evidente também que a empatia é a atitude que mais se destaca nesta figura de alteridade, uma vez que o terapeuta se abre para uma compreensão do cliente, desprendendo-se da visão de reflexo de sentimento como técnica. Deve-se ressaltar que Rogers (1986/2002) afirma que o reflexo de sentimentos é uma tentativa de checar se a compreensão do terapeuta acerca do mundo interno do cliente está correta ou não. O autor inclusive sugere uma mudança na nomenclatura, de reflexo de sentimentos para checagem de percepção ou teste de compreensão (checking perceptions e testing understanding) (Rogers, 1986/2002, p. 13) para que a ideia de compreensão se sobressaia em relação à de reflexão. Podemos aprender a partir de tais proposições que a simbolização também pode ser um modo de conferir a compreensão do terapeuta sobre a experiência do cliente, como se nota no seguinte trecho:

T5C1V3: Usei a metáfora de que a via como se estivesse em uma areia movediça, e que só conseguiria sair desta situação se recebesse algum tipo de ajuda externa; pois não encontrava forças para fazê-lo sozinha; ela afirmou que se sentia exatamente assim.

O fragmento anterior retrata justamente que a compreensão não ocorre apenas por meio da reflexão de sentimentos, sendo possível abrir-se para a narrativa e experiência do outro de modo menos rígido, com mais fluidez. O terapeuta, através do uso de metáforas, para de funcionar como um espelho e se transforma em uma espécie de caleidoscópio. Esse instrumento, ainda que formado por espelhos, reflete a imagem de um objeto de forma não convencional, criando figuras geométricas diversas.

Schmid e Mearns (2006) definem a ressonância empática complementar como a situação em que o terapeuta contribui com a simbolização do cliente, verbalizando o que o cliente mostra e aquilo que o cliente ainda não está apto para verbalizar. Ela indica o momento em que o terapeuta confronta o cliente com partes da experiência que ele revelou, mas não simbolizou. É possível que tal movimento se relacione ao Outro da Simbolização, visto que, ao desprender-se de um reflexo de sentimentos, o terapeuta permite que a percepção de ambos seja ampliada, podendo então suscitar novas questões no cliente. Podemos perceber esse processo no seguinte excerto:

T5C3V3: Apresentei a ele uma ilustração de como o percebia; disse que o via em um cabo de guerra; no qual ele puxava de um lado, e do outro as dificuldades financeiras e a doença o puxavam com força. E este esforço estava lhe causando muito desgaste e sofrimento.

Após tal ilustração, o cliente começou a se questionar sobre seus avanços e mudanças, isto é, pode-se dizer que a metáfora do terapeuta proporcionou o contato do cliente com questões que ainda não haviam sido verbalizadas em sessões anteriores e uma consequente abertura à experiência. Vale dizer que a relação entre alteridade e empatia, estabelecida por Vieira (2017), refere-se ao entendimento dos limites das diferenças presentes na relação terapêutica e na comunicação da compreensão. É isso que permite que a empatia forneça abertura a uma relação de alteridade, afastando-se do caráter de precisão da compreensão do terapeuta muitas vezes implicado na ideia, por exemplo, de resposta-reflexo. Nesse sentido, de acordo com os relatos ora analisados, o terapeuta iniciante, por vezes, torna-se capaz de abrir mão da preocupação inicial com a exatidão de sua compreensão e de abrir-se para novas possibilidades de compreensão a partir do uso de uma linguagem figurada e metafórica, como observamos na seguinte passagem, na qual se vê que, através do símbolo da caixa de sentimentos, T2 compreendeu os afetos relatados pela cliente sem capturá-los totalmente, o que permitiu que a cliente pudesse refletir mais profundamente sobre as questões levantadas pela metáfora:

T2C2V2: Diante dos relatos, comuniquei que era como se ela estivesse sufocada e que guardava todos os sentimentos dentro de uma caixinha para que ninguém tivesse acesso. Concordou dizendo que tem poucos amigos e que não confia nas pessoas....

A categoria Outro da penumbra, mais uma figura de alteridade, está relacionada à ideia de consideração positiva incondicional. Quando o terapeuta se vê em um momento de estranhamento por não saber como agir ou o que falar em algum ponto da psicoterapia, ele, pela falta de certeza de como proceder, volta-se mais para a narrativa do cliente e deixa que este se mostre, como é possível notar no seguinte trecho:

T6C2V3: Sinceramente, não soube muito o que fazer, então me mantive em silêncio, e aparentemente deu certo porque ela passou a falar de si.

Nesse contexto, destaca-se o terapeuta como não especialista, essencial para a abertura ao desconhecido, que se dá através da confiança que se tem no encontro de pessoa para pessoa, no qual o terapeuta é especialista em não ser especialista (Schmid, 1998). É possível observar esse momento em que T1 abre mão de uma intervenção para seguir o que a experiência demanda:

T1C2V1: Fiquei dividido entre interromper sua fala ou dar toda a possibilidade de escuta. Escolhi a segunda.

É a partir do encontro que ocorre a união dos aspectos relacional e autônomo da pessoa, uma vez que o terapeuta respeita a autonomia do cliente, recusando-se a assumir o controle sobre este (Schmid & Mearns, 2006). Pode-se vincular essa recusa do controle do terapeuta, seguida da disponibilidade para o encontro com o cliente, com a abertura presente no Outro da Penumbra, visto que a postura do terapeuta iniciante, muitas vezes, é de não controlar o processo, abrindo-se para novas possibilidades de respostas e para a narrativa do cliente.

É possível, portanto, que se estabeleça uma relação entre o Outro do Desconhecimento, figura de alteridade identificada por Vieira (2017) na obra de Rogers, e o Outro da Penumbra. Nota-se que o movimento do terapeuta de retirar-se do caminho do cliente e permitir que ele mostre sua narrativa se assemelha ao momento em que o terapeuta intervém, pois o centro é a narrativa do cliente. Diante disso, é essencial que se destaque também a declaração de Vieira e Dos Anjos (2013) quanto ao terapeuta iniciante, que começa sua prática preocupado em controlar o processo e prever o que se sucederá pelo domínio da técnica e caminha para uma maior abertura à experiência e ao que se dá na relação.

Outra figura de alteridade por nós identificada é o Outro da ousadia. Nessa figura, o terapeuta expõe-se ao risco de tentar fazer algo que não estava previsto. Nesse momento, o terapeuta consegue entregar-se à experiência, à relação. Esse tipo de resposta intuitiva é valorizado por Rogers (2004) em seu atendimento a Jan, em que o autor relata que tomou o que se passava consigo como referência para a construção de uma resposta. Ele associa o surgimento de tal resposta a um nível alterado de consciência, proporcionado pela sintonia com o cliente e a intimidade com seu mundo interno.

Podemos compreender o Outro da Ousadia a partir do que é dito por Greenberg e Geller (2001) sobre a resposta apropriada que surge no momento da interação, na experiência. Para as autoras, o terapeuta precisa estar aberto e receptivo para que isso ocorra, o que envolve a autenticidade do terapeuta e sua confiança no processo, na sua própria experiência e na experiência do cliente. Isso pode ser evidenciado a partir da fala de T1:

T1C1V7: Senti que essa frase estava além de abordagem. Era humano dizer a C1 que não foi o corpo quase formado dela o responsável por isso.

Neste trecho, o terapeuta demonstra que sua resposta ao cliente foi apropriada por ter emergido da relação, em função da valorização da pessoa, ultrapassando os limites da técnica, sem que se seguisse um protocolo estabelecido a respeito da relação terapêutica. Também é possível perceber no excerto anterior aquilo que Amatuzzi (2001) aponta em relação à fala autêntica como algo para além da expectativa alheia. A passagem acima diz de uma fala autêntica do terapeuta, na medida em que ele se desprende das expectativas como terapeuta e responde às demandas do cliente como pessoa.

Nessa perspectiva, Bowen (2004) declara que, a partir de sua congruência, o terapeuta pode conduzir ações de forma espontânea, sem conflitos e dúvidas. É preciso ressaltar aqui que no caso de terapeutas iniciantes não podemos afirmar essa ausência de conflitos, como demonstra a seguinte passagem:

T6C2V14: Fiz isso como um teste, não sabia se deveria apontar algo que não estava mais ali presente, pois tinha sido no começo da sessão. Mas senti que podia fazer isso, mesmo que desse errado.

Nesse trecho, podemos perceber que o terapeuta passou por um conflito em sua atuação, mas que preferiu correr o risco de experimentar a partir do que genuinamente sentia como apropriado. Mais do que uma escuta sem julgamentos, o terapeuta adota uma atitude receptiva aos riscos exigidos no ato de pautar o encontro pelo ineditismo do presente.

Outro aspecto importante na referida figura de alteridade é a ressonância pessoal ou dialógica proposta por Schmid e Mearns (2006). Trata-se de um diálogo, entre terapeuta e cliente, e um deslocamento do terapeuta do seu papel de especialista para mostrar-se como pessoa, tornando esse diálogo pessoal. É por meio dessa ressonância que o terapeuta é capaz de lançar-se para além da técnica. Vale dizer que "lançar-se para além da técnica" não significa ignorá-la, mas tomá-la como uma referência para o desenvolvimento relacional (Vieira, Bezerra, Pinheiro, & Castelo Branco, 2018).

Sobressai-se, portanto, a abertura à experiência como uma escuta de algo que emerge no contexto relacional. Vale dizer que, nesse caso, compreendemos experiência a partir de Bondía (2002), de modo diverso do que Rogers pensou originalmente. Para Rogers (Rogers & Kinget, 1977), experiência é tudo o que se passa num organismo num determinado momento e está potencialmente disponível à consciência. A definição rogeriana, como se vê, traz consigo a visão de que há um conteúdo já pronto, disponível a ser acessado pela consciência. O que se verifica, porém, é que a aproximação da experiência se dá como um momento de sua elaboração, e não apenas o acesso a algo cuja compreensão já está desvelada. Ao terapeuta que se abre à experiência, ocorre um deixar-se tocar pela diferença e, a partir deste ponto, elaborar uma concepção distinta. Entendemos que a noção de experiência, nesse caso, está mais próxima àquela apontada por Bondía (2002), segundo a qual experiência é aquilo que nos ocorre. Isso implica uma certa passividade, um deixar-se tocar pela experiência como diferença.

As ações do terapeuta, portanto, não estão totalmente sob seu controle, pois são impactadas pela imposição da experiência. Isso só é possível porque, em vez de optar pela imposição do conhecimento, o terapeuta escolhe sua exposição à experiência. Esse tipo de análise é similar ao exame que Vieira (2017) faz sobre a fase não diretiva do pensamento rogeriano e a figura de alteridade por ele chamada de o Outro do desconhecimento. Segundo o referido autor, nesta figura de alteridade, o terapeuta abdica do lugar de especialista e reconhece sua ignorância diante da experiência do cliente. É nessa mesma direção que Schmid (2005/2012) entende que a tarefa do terapeuta é manter a capacidade de ser surpreendido.

Outra figura de alteridade identificada é o Outro da Satisfação, momento em que o terapeuta sente maior confiança no poder transformador da relação terapêutica. Rogers (1961/2009) afirma que o motivo para entrar em uma relação terapêutica é o reconhecimento do valor e da satisfação presentes nas relações humanas. É nesse contexto que a experiência é vivida e que se unem sentimentos e conhecimentos das pessoas que nela estão envolvidas.

Amatuzzi (2010) discorre sobre a autonomia do sujeito, na qual se baseia o Humanismo, aderindo à ideia de que a psicoterapia é o contexto em que o poder do ser humano é promovido. Isso ocorre devido a vários fatores, dentre os quais se encontra a característica aceitadora do trabalho psicológico humanista, que o autor define como "desejo de valorizar o outro como pessoa, naquilo que ele tem de radicalmente positivo" (p. 19). Os relatos dos terapeutas iniciantes revelaram que essa valorização do cliente surge na relação, na experiência da psicoterapia. Isto significa dizer que não se trata de um estado do terapeuta anterior à psicoterapia, mas que pode ser experienciado a partir do encontro entre terapeuta e cliente.

Nessa linha de raciocínio, concordamos parcialmente com o que Hendrick (2001/2013) propõe, isto é, que o terapeuta não consegue experienciar a condição positiva incondicional e ser autêntico ao mesmo tempo. Não obstante, uma ressalva é necessária: de acordo com as VSs que analisamos, os terapeutas iniciantes não conseguem experienciar ambos simultaneamente no início do processo terapêutico. É somente ao verificar alguma mudança produzida pela relação que se manifesta a abertura à diferença e se experiencia a valorização do outro. Esse fenômeno pode ser identificado na seguinte passagem:

T6C2V5: Percebi que estava muito satisfeita com a forma como C2 está olhando para a própria vida. ... Acho que pela primeira vez escutei ela dizer de algo que está lhe fazendo bem. E fiquei muito feliz com isso.

A satisfação expressa nessa passagem assinala o reconhecimento do poder de transformação da relação terapêutica e uma maior confiança na capacidade de autonomia da cliente. Há uma ressonância do cliente no terapeuta que pode ser ilustrada pela figura de alteridade do Outro da Satisfação, tendo em vista o envolvimento do terapeuta a partir de seu sentimento de satisfação perante as transformações terapêuticas do cliente. Pode-se notar, a partir das VSs analisadas, que existe uma maior confiança no processo terapêutico e um reconhecimento do valor humano, assim como da não necessidade de tutela do cliente para que a mudança terapêutica aconteça. Tais características são visíveis no seguinte trecho de versão de sentido da T2:

T2C2V5: Diante desses relatos eu me senti muito feliz em saber que ela estava tendo uma percepção de si, e de todo o processo que estava lhe causando sofrimento, de fato ela estava mais leve na sessão e mais solta, e isso ajudou para que o atendimento fluísse. Consegui entender melhor e com mais clareza as coisas.

A terapeuta aprecia a mudança na postura da cliente e percebe também a influência dessa mudança para a relação e para o processo terapêutico. Diante disto, podemos considerar o que Bozarth (2018) diz, isto é, que a partir da confiança da terapeuta no valor do cliente como pessoa e na sua capacidade de mudança, ela fica livre para concentrar-se em criar um ambiente interpessoal que favoreça o desenvolvimento dessas características.

A autenticidade se revela como uma atitude facilitadora muito importante na prática de terapeutas iniciantes e na sua lida com a alteridade. Esta atitude está presente no Outro dos afetos. Desse modo, o terapeuta se dispõe a estar presente com seus afetos na interação, como observamos na fala do Terapeuta 5:

T5C2V7: Comuniquei-lhe que sentia tristeza e ao mesmo tempo revolta pelo que lhe ocorreu em seu atendimento naquele serviço público. Estes sentimentos me tocaram a ponto de quase me fazer chorar.

Podemos perceber que a narrativa da cliente despertou afetos no terapeuta, que se colocou como pessoa e permitiu-se experienciar os sentimentos de tristeza e revolta, fazendo-se presente e autêntico na relação. O Outro dos afetos se aproxima do que Vieira (2017), em alusão à fase não diretiva de Rogers, chama de o Outro da afetação, que alude à afetação que a narrativa do cliente provoca no terapeuta, já o Outro dos afetos diz respeito aos afetos que impactam o terapeuta no contexto terapêutico. Nesse sentido, tanto o Outro dos afetos quanto o Outro da afetação abordam a forma como a pessoa se implica na psicoterapia a partir de sua própria experiência, ressaltando o atravessamento que a narrativa provoca naqueles envolvidos na relação terapêutica. Tal atravessamento ocorre em razão de a estranheza do outro tocar o terapeuta. Trata-se do que Vieira (2017) define "ser si mesmo", um constante processo de se reconhecer como outro, receber o que o atravessa e deixar-se tocar por isso. Isso significa dizer que o terapeuta passa por uma aceitação de si mesmo a partir da aceitação da diferença que o outro provoca. O seguinte trecho exemplifica o que foi discutido anteriormente:

E2C3V1: Não consegui conter as lágrimas, quando ele relatou uma frase que a mãe fala pra ele, que uma mãe nunca deveria sentir a dor de enterrar um filho.

Podemos constatar que a terapeuta se implica na relação, aceitando os seus afetos provocados pelo encontro com o Outro, com a estranheza do cliente. Ela foi afetada emocionalmente pela fala do cliente, e decide por ser o que verdadeiramente é, posicionando-se como pessoa dentro da relação terapêutica.

Nessa mesma direção, Bondía (2002) salienta a passividade, a disponibilidade e receptividade do sujeito da experiência. O autor sugere que essa pessoa seria um território de passagem, de superfície sensível em que a experiência deixa suas marcas, suas pegadas. Isso implica uma necessária passividade diante da experiência, uma abertura essencial, que significa uma "ex-posição", admitindo a vulnerabilidade e os riscos envolvidos nesse movimento. Pode-se dizer que a figura de alteridade em tela diz exatamente desse sujeito "ex-posto" diante da experiência que é a relação terapêutica, isto é, do terapeuta que se posiciona sensivelmente diante da narrativa do cliente, que o afeta, deixando-o marcado. Os afetos suscitados no terapeuta representam as referidas marcas, como no segmento seguinte, no qual a terapeuta colocou-se como vulnerável à experiência, sendo marcada pela história do cliente:

E2C3V1: Ao ouvir suas palavras meu coração apertou, senti uma triste(za) me invadir, por imaginar o quanto é difícil saber que tem diagnóstico de câncer [...].

Ocorre, também, uma distinção entre a congruência e a transparência do terapeuta, ambas contidas na ideia de genuinidade. Conforme Lietaer (2001), a congruência é a parte interna, em que o terapeuta tem acesso consciente a todos os aspectos do seu fluxo de experiência, a self-awareness. Já a transparência, por outro lado, versa sobre a comunicação, verbal ou não verbal, do terapeuta sobre suas percepções, sentimentos, atitudes, qual seja, sobre ele mesmo. A partir das subunidades contidas no Outro dos Afetos, é possível afirmar a presença maior de momentos de congruência do terapeuta em comparação com os de transparência, sendo maior a consciência do terapeuta iniciante acerca de seus sentimentos e pensamentos, como notamos no seguinte excerto:

E4C3V5: Eu me permiti sentir a impotência que ela sentia naquele momento, juntamente com a revolta e a sensação de 'o que fazer em relação a isso'.

Ressaltamos ainda o que Rogers (1942/1987) afirma sobre o terapeuta em formação, visto que o autor considera que na relação com o outro na psicoterapia, ele pode abranger a sua consciência dos aspectos que envolvem sua satisfação, seus afetos e suas fraquezas e limitações.

 

Considerações finais

O manejo terapêutico é um desafio para terapeutas iniciantes, que apresentam diferentes formas de encontrar a diferença. Podemos apontar o movimento pendular que é realizado pelo terapeuta iniciante, transitando entre a familiaridade da técnica e o inesperado da experiência de estar com o outro, como exemplo das maneiras como ocorre a lida com a alteridade na prática clínica desses terapeutas. No presente estudo, foram identificadas, por meio das versões de sentido produzidas, sete formas de manifestação da dimensão alteritária no manejo clínico de terapeutas iniciantes.

Considerando esse contexto, foi realizada a discussão sobre o manejo terapêutico proposto pela ACP e a relação entre esse referencial teórico e a alteridade presente na prática clínica do terapeuta iniciante a partir do significado atribuído pelos terapeutas iniciantes. O objetivo geral de descrever a experiência dos terapeutas iniciantes que usam o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) sobre a relação terapêutica foi atendido, visto que, nesta descrição, foram identificadas e analisadas sete figuras a partir dos relatos desses terapeutas. São elas: o Outro do Encontro, o Outro da Experiência, o Outro da Simbolização, o Outro da Penumbra, o Outro da Ousadia, o Outro da Satisfação e o Outro dos Afetos.

Podemos classificar como figuras de alteridade que estabeleceram maior relação com a compreensão empática o Outro do encontro, da experiência, da simbolização e da penumbra, em que o terapeuta caminha em direção a uma compreensão do cliente sem tomá-lo como objeto a ser capturado. Já a consideração positiva incondicional experienciada pelos terapeutas iniciantes demonstra sua ligação com a alteridade principalmente a partir da figura do Outro da Satisfação e do Outro da Penumbra, em que o terapeuta começa a valorizar o cliente e a relação como ferramenta de mudança. Esta última figura, o Outro da penumbra, assim como o Outro da Ousadia e o Outro dos afetos, também aponta para a dimensão alteritária presente na autenticidade do terapeuta na relação com o cliente, ligada ao posicionamento do terapeuta como pessoa real diante do cliente. Como Rogers (1976) já indica ao longo de sua obra, é na experiência imediata da relação que a abertura ao cliente ocorre. Assim, podemos dizer que, ao primar pela abertura à experiência e lançar sobre elas uma visada ética (como a aqui proposta), é que essas figuras se revelam e indicam como as atitudes facilitadoras, como o embasamento técnico e teórico, muitas vezes já estabelecidos e tomados com verdadeiros, podem viabilizar o contato com o estrangeiro, com a diferença. Pode-se dizer que os pressupostos de uma relação terapêutica bem-sucedida só se atualizam na medida em que permitem um encontro com o Outro como tal.

Diante disso, a empatia mostrou-se como a atitude facilitadora mais presente na relação entre prática clínica e alteridade, uma vez que obteve grande destaque em metade das figuras de alteridade aqui identificadas. Podemos concluir também que terapeutas iniciantes apresentam algumas dificuldades em experienciar a consideração positiva incondicional no início de sua atuação. É essencial que se destaque que as três atitudes estão sempre interligadas e que a presença delas é fundamental para que ocorra a mudança terapêutica. Podemos perceber o reflexo dessa integração das atitudes a partir das figuras aqui propostas, uma vez que, embora uma atitude tivesse maior destaque dentro de uma categoria, de qualquer forma, todas falam de compreensão, de aceitação, de abertura ao outro, de posicionamento e disposição do próprio terapeuta.

Como questões para pesquisas posteriores, deve-se pensar na forma como a alteridade se manifesta em outros contextos, no trabalho com grupos ou em escolas, por exemplo. Isso significa investigar o modo como o contexto de atuação se relaciona com a manifestação da alteridade na prática do psicólogo. Também é possível pensar que figuras de alteridade podem ser identificadas no trabalho de terapeutas experientes e quais as principais semelhanças e diferenças com as reconhecidas no manejo de terapeutas iniciantes.

Entendemos, ainda, que estudo traz uma importante contribuição quanto a um enfoque ético na atuação do terapeuta. Se o manejo da relação é algo relevante, ele não pode vir descolado de uma reflexão ética sobre os caminhos para maior abertura à alteridade do outro. Neste sentido, a VS se mostrou um potente instrumento para a descrição e análise da relação terapêutica em seu caráter experiencial.

Esperamos que essa pesquisa possa ter despertado outras questões ao leitor, a partir da leitura e das provocações expostas acima. É importante lembrar que o tema aqui proposto não é considerado encerrado, uma vez que a alteridade e a prática clínica de terapeutas iniciantes estão em constante transformação, assim como o debate que as circunda.

 

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Correspondência para:
Emanuel Meireles Vieira
Av. da Universidade, 2762
Benfica - CEP: 60.020-180 - Fortaleza/CE
E-mail: emanuelmeireles@ufc.br

Submetido em: 10.04.2021
Aceito em: 12.08.2021
Financiamento: a primeira autora foi bolsista PIBIC/Prodoutor da UFPA

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