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CliniCAPS

versão On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.4 Belo Horizonte abr. 2008

 

ARTIGOS

 

Vertentes da estabilização em um caso de psicose1

 

 

Simone F. Gonçalves*

IEC-PUC/Minas

 

 


RESUMO

Trata-se do relato de um caso clínico que, durante um período de 18 anos, no circuito psiquiátrico, e seis anos de trabalho analítico, constrói uma saída que instaura questões acerca da forma como se desenvolve sua invenção. Consideramos que a saída na psicose, neste caso, poderia se dar pela via do significante com a construção de uma metáfora delirante, ou ainda com a produção de um objeto condensador de gozo. Portanto, essas duas vertentes parecem apresentar-se como saídas possíveis e conciliáveis para este sujeito.

Palavras-chave: Psicose, Estabilização, Invenção


ABSTRACT

One is about the story of a clinical case that, during a period of 18 years, in the psychiatric circuit, and six years of analytical work, it constructs an exit that restores questions concerning the form as if it develops its invention. We consider that the exit in the psychosis, this in case that, could be given for the way of the significant one with the construction of a delirious metaphor, or still with the production of a condensing object of joy. Therefore, these two sources seem to present themselves as possible exits and conciliated for this citizen.

Keywords: Psychosis, Stabilization, Invention


 

 

Trata-se do relato de um caso clínico que, durante um período de 18 anos, no circuito psiquiátrico, e seis anos de trabalho analítico, constrói uma saída que instaura questões acerca da forma como se desenvolve sua invenção 1.

Francisco criou sua trajetória, como Narciso, em uma busca incessante diante do espelho, através das possibilidades do olhar. Nomeia esse movimento com a seguinte frase: “Os olhos são o espelho da mente”, explicitando a miragem especular como a base do campo imaginário, em que a imagem é “a rainha que reina, mas não governa” (MILLER, 1997).

Em um laço do imaginário com o real, tentou dar acepção à realidade, insistindo na consistência daquilo que poderia estar ali presente em sua inconsistência: uma imagem ideal que se fazia refletir na figura de uma cantora. Na trilha dessa construção, foram identificados três momentos clínicos, cujos fragmentos se descreve a seguir:

 

DESENCADEAMENTO

A primeira crise aconteceu aos 19 anos, quando seus pais hospedaram um parente, e F. assim o descreveu:

“sou homossexual desde a infância, gostava de brincar de casinha[...] fiquei deprimido [...] cismei com um rapaz que morava lá em casa, achei que estava tomando meu lugar [...] depois cismei com meu pai [...] não distinguia o real do irreal [...].

O ponto que faz precipitar a psicose parece acontecer com a presença de um terceiro que se coloca desestabilizando a dupla a-a’, formada por uma relação dual de F. com seu duplo imaginário, no caso a mãe. O pai, que interrogava F. quanto a sua masculinidade, passa a reagir à posição transexulalista de forma incisiva, caindo no lugar de perseguidor, lugar que mais tarde também será ocupado pela mãe.

 

PRIMEIRO MOMENTO

F. se encontrava com 32 anos, tendo sido atendido por vários profissionais até 1999, data em que se iniciou essa construção apoiada no diagnóstico de esquizofrenia. Esta época foi marcada por grande rotatividade de profissionais no serviço, na qual o paciente foi atendido várias vezes pelos plantões.

Em um dos atendimentos de urgência, anuncia ao plantonista: “sou objeto de estudo dos médicos”. A partir dessa fala, que caracterizava uma posição delicada diante de uma nova crise que se deflagrava, foi-lhe oferecida escuta, passando o analista a assumir a referência clínica do caso.

Nesse primeiro momento, F. definiu-se a partir de uma eclosão de alucinações, alusões e interpretações delirantes e se apresentou: “sou preto, pobre, doido e homossexual, tem jeito para mim?”

Nas sessões seguintes, continuou seus relatos em um deslizamento fragmentado:

“[...] minha família não gostava de mim, não gosto da raça negra, Donna Summer é uma presta de alma branca, é o meu espelho, chego a olhar no espelho e ver a Donna Summer, sou um preto de alma branca, [..] Donna Summer parece com meu pai e minha mãe.”

Continua a tecer imagens:

“[..] desde o primário apaixonava com os colegas e gostava dos heróis, achava o Tarzan lindo, queria ser uma musa de Hollywood, [..] sou revoltado com meu pai, que não me aceitava, queria que parecesse masculino, sou uma mulher [..] as vozes ficam me chamando de bichinha preta [...].”

Nesse primeiro momento clínico, quando F. é acolhido, deslizava em uma série de relações pelas quais era relançado à posição estrutural do psicótico: a de ser objeto do gozo do Outro. Um Outro absoluto, sem limites, ao qual estava submetido como rebotalho, completamente invadido, em um processo de desagregação acelerado, em que brotavam em descompasso vários núcleos delirantes e alucinações.

Dessa forma, o empuxo-à-mulher se presentificava com toda a sua força, e, por não poder situar-se como homem na partilha dos sexos, F. situava-se de forma delirante do lado da mulher. (LACAN,1973).

A oferta do dispositivo de escuta funcionou como um princípio organizador em que se possibilitou uma báscula dessa posição de objeto à palavra, que operou a emergência, ainda incipiente, de significantes metonímicos que compunham a sua história.

 

SEGUNDO MOMENTO

Nesse período, F. começou a construir suas idéias ordenando palavras em núcleos delirantes um pouco mais sistematizados, como se as imagens tomassem um pouco mais de densidade e pudessem ser nomeadas.

Da sua relação com o pai dizia:

“[..] meu pai era um carrasco, aquele que domina, invade as leis, a privacidade, os sentimentos, meu pai me matava aos poucos, humilhava.”

Em relação à mãe, trazia o seguinte relato:

“[...] sou pregado na minha mãe, que será de mim se ela morrer? [...] ela controla minha mente, coloca alguma coisa no café para escurecer a minha pele, rouba a minha cor para agradar mais a ela e aos negros.”

O ponto de ancoragem do delírio passa a se organizar:

“[...] pessoas negras não tem luz [...] pareço com a Donna Summer no jeito e no corpo, ela é uma negra de alma branca e tem olhos azuis, as pessoas de olhos azuis são iluminadas e podem escolher outro ser para se parecer com elas, eu me pareço com ela e nos comunicamos por telepatia. [...] às vezes ainda tenho uma certeza que vou fazer uma cirurgia e virar uma mulher linda, [...] sou um branco em um corpo de negro e uma mulher em um corpo de homem, [...] os olhos são o espelho da mente, quando estou vestido de mulher, me sinto completo, pareço com meu pai , minha mãe e com a Donna Summer.”

Nesse ponto da construção imaginária, percebe-se que o gozo próprio da psicose, um gozo não castrado, que se espalha sem o lastro do falo, precisa encontrar uma imagem cada vez mais grandiosa para responder ao excesso instaurado pelo empuxo-àmulher.

Presentifica-se, em um retorno no real, aquilo que, para F., foi excluído do simbólico, ou seja, o enigma do que é ser uma mulher em um corpo de homem e que ele vai transformando em um projeto que o moverá desse lugar: tornar-se uma mulher, via Donna Summer, no veículo de um arranjo delirante. Porém não qualquer mulher, mas uma mulher inatingível, uma mulher que, entre o real e o ideal, vem ser a tentativa de construção de uma metáfora delirante.

 

TERCEIRO MOMENTO

Esse período se caracterizou por uma redução das construções delirantes, com a manutenção do núcleo de sistematização. F. teve um quelóide do tamanho de um ovo de galinha no lóbulo auricular esquerdo, o que o incomodava bastante até a extração cirúrgica. Esse procedimento acompanhado de uma manobra da transferência, parece ter tido um efeito na evolução do caso:

“Fiquei pensando no dia internacional da mulher, é muito profundo, dentro de mim, sou uma mulher, vejo no espelho uma mulher, e um homem, é como se não tivesse sexo, vivo na vida de Donna Summer, [...] acho que minha família pensa que você tem que pensar que eu só vou curar se fizer uma cirurgia para transformar em mulher[...]”.

Logo segue a intervenção do analista: “¬ Já te encaminhei para a cirurgia que foi possível.”

A partir desse momento, ocorre uma circunscrição ainda maior do núcleo delirante, permanecendo a questão de forma limitada na miragem feminina do triangulo pai, mãe e Donna Summer.

F. está estudando para terminar o primeiro grau e freqüentando o coral espírita em que agora conquistou um lugar: apresenta orgulhoso seu crachá com letras destacadas em negrito - TENOR - e diz: “venho quando quero, ri com bom humor.”

Nesse ponto em que se encerra a descrição de alguns fragmentos clínicos, apresenta-se um esvaziamento do delírio e a permanência de um núcleo delirante em um patamar de estabilização que permite uma certa circulação social a F.

A estabilização, na clínica, pode se dar, das seguintes formas:

“pela construção de uma metáfora delirante, por um lado, pela vertente do significante, e produção de um objeto condensador de gozo por outro.” (ALVARENGA, 2000).

Ambas as soluções podem ocorrer sem ser excludentes. Essas duas vertentes parecem apresentar-se como saídas possíveis e conciliáveis no caso de F. Este tece seus arranjos delirantes no caminho de transformar a imagem de Donna Summer em um significante ideal, que vai representá-lo em sua cadeia de construções.

Donna Summer é um significante ideal que tem função de semblante em uma nomeação que opera como ponto de ancoragem para F. Portanto, a idéia da cirurgia de mudança de sexo, a ser possibilitada pela tecnologia científica, faz perder a dimensão de semblante e lança novamente F. ao encontro de um gozo eruptivo 2.

A intervenção permite que uma cirurgia menor possa vir no lugar de uma cirurgia maior, funcionando, assim, como objeto condensador de gozo. Por outro lado, restaura para Donna Summer a dimensão de significante ideal.

Surge a criação de outro significante imaginarizado na cadeia: “TENOR”, que confere a F. um lugar entre os homens, uma posição masculina, que o lança no meio musical e que, por sua vez, faz par com o significante ideal Donna Summer. Se estabelece assim, para F., uma via, ainda que frágil, de nomeação e estabilização.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA, E. (1999) O trabalho criativo e seus efeitos na clínica da psicose. Curinga, Belo Horizonte, EBP-MG, n.13, set.         [ Links ]

LACAN, J. (1992) O seminário, livro 3: As psicoses. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.         [ Links ]

_________(1973) L’Ètourdit, Silicet 4 , Paris, Seuil, p.22.         [ Links ]

MANDIL, R. (2000) As psicoses e seus destinos. Curinga, Belo Horizonte, EBP-MG, n.14.         [ Links ]

MILLER, J. A . (1997) A Imagem Rainha. In: Lacan Elucidado – Palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

 

 

1 Paciente atendido no CERSAM, caso clínico apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental da EBP em convênio com a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
2 Construções elaboradas à partir da discussão do caso no Núcleo de Psicose.
* Psicanalista, psicóloga, membro correspondente da EBP/Seção Minas, Coordenadora do Curso de Especialização em Saúde Mental do IEC-PUC/Minas, Membro da Equipe de Saúde mental do CERSAM/Barreiro/PBH. Endereço: Av do Contorno 4045/605 – Funcionário cep – 30110021. E-mail: simone.de.goncalves@terra.com.br

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