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CliniCAPS

versión On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.4 Belo Horizonte abr. 2008

 

ARTIGOS

 

O sintoma na psicose: um resultado psicanalítico

 

 

Simone Oliveira Souto*

CPCT/MG

 

 


RESUMO

Pretendo discutir neste texto o que poderíamos considerar não apenas um resultado terapêutico, mas ainda um resultado psicanalítico, no que concerne ao tratamento das psicoses, a partir do fragmento de um caso clínico que tive a oportunidade de comentar no Núcleo de Pesquisa em Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG), filiado ao Campo Freudiano. Esse caso clínico, apresentado por Simone Gonçalves, traz como problema principal o transexualismo: o paciente quer fazer uma cirurgia e virar mulher. Minha hipótese é que o transexualismo é, nesse caso, um sintoma. Um sintoma que faz um percurso e que se transforma no decorrer do tratamento, de tal maneira que o resultado alcançado ultrapassa, a meu ver, a dimensão puramente terapêutica e nos ensina sobre o que pode ser considerado analítico no tratamento das psicoses.

Palavras-chave: Psicose, Sintoma,Transexualismo


ABSTRACT

I intend to argue in this text what we could to consider not only one result therapeutical, but still result psicanalítico, in what it concerns to the treatment of the psychoses, from I break up it of a clinical case that I had the chance to comment in the Nucleus of Research in Psychosis of the Institute of Psychoanalysis and Mental Health of Minas Gerais (IPSM-MG), filiado to the Freudiano Field. This in case that physician, presented for Simone Gonçalves, brings as main problem the “transexualismo”: the patient wants to make a surgery and to turn woman. My hypothesis is that the “transexualismo” is, in this in case that, a symptom. A symptom that makes a passage and that if it transforms into elapsing of the treatment, in such way that the reached result exceeds, in my opinion, the purely therapeutical dimension and in teaches them on what it can be considered analytical in the treatment of the psychoses.

Keywords: Psychosis, Symptom, Transexualism


 

 

Na “Conversação de Arcachon “ (1998) , Miller retoma a fórmula da Metáfora Paterna, para dizer que o Nome-do-Pai é um sintoma.

 

 

O Nome-do-Pai é uma modalidade do sintoma, na medida em que sua incidência se traduz não só pela emergência de uma significação, a significação fálica, que dá sustentação à realidade psíquica do sujeito, mas, principalmente, porque essa significação que o Nome-do-Pai produz comporta uma vertente libidinal, que não se pode desconhecer: o Nome-do-Pai localiza o gozo. O Nome-do-Pai, como sintoma, assegura a articulação entre a operação significante e suas conseqüências sobre o gozo do sujeito. Assim, segundo Miller, a conexão entre significante e gozo é o que fundamenta o conceito de sintoma. No entanto, se o Nome-do-Pai é um sintoma, ele não é o único. Como lembra Ram Mandil (1999), a experiência da clínica das psicoses revela, no que concerne ao sintoma, não só impasses e dificuldades, mas também as soluções criativas encontradas por aqueles que se colocam a tarefa de lidar com o sintoma, sem o recurso do Nome-do-Pai.

O caso apresentado por Simone Gonçalves traz como problema principal o transexualismo, na medida em que é objeto não propriamente de uma queixa, mas de uma demanda constante: ele quer fazer uma cirurgia e virar mulher. Gostaria de basear meu comentário na hipótese de que o transexualismo é, nesse caso, um sintoma. Um sintoma que faz um percurso e que se transforma no decorrer do tratamento, de tal maneira que o resultado alcançado ultrapassa, a meu ver, a dimensão puramente terapêutica e nos ensina sobre o que pode ser considerado analítico no tratamento das psicoses.

No texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan (1998, p.537-590) dirá que, em parte alguma, o sintoma, se souber lê-lo, está mais claramente articulado na própria estrutura do que na psicose. Ainda neste mesmo escrito, toma como referência o texto de uma psicanalista inglesa, Ida Malcapine (PRADO DE OLIVEIRA, 1979, p. 111-168) – “Discussão sobre o caso Schreber” (1995) - no qual, segundo Lacan, ela faz uma crítica magistral ao chavão comum, na época, entre alguns analistas, que restringiam a psicose a uma defesa contra o que chamavam de pulsão homossexual. Tal proposição definia toda “fantasmagoria alucinatória” como uma defesa contra a tentação do instinto, ou seja, contra a masturbação e a homossexualidade.

É a partir dessa discussão, introduzida por Ida Malcapine, que Lacan dirá que a homossexualidade, pretensamente determinante na psicose paranóica, é precisamente um sintoma articulado em seu processo. No caso Schreber (FREUD, 1976), por exemplo, de acordo com Lacan, esse processo iniciou-se com seu primeiro sinal sob a aparência de uma idéia : “...como seria belo ser uma mulher na hora da copulação”. Pode-se dizer que esse foi, para Schreber, o início de todo um processo, o início de um percurso em direção a uma solução que se pode chamar de solução sintomática, na medida em que é uma invenção que tem como função localizar um certo gozo. Ver-se-á que o percurso de F. assemelha-se em alguns pontos, embora sem tanta grandiosidade, ao percurso de Schreber, distinguindo-se deste em relação à solução final encontrada.

Toda construção, na psicose, tem como origem o que o presidente Schreber chamava de liegen lassen - “deixar largado” - (SCHREBER, 1984) ou seja, esse abandono fundamental no qual parece desnudar-se, pela forclusão do Nome-do-Pai, a ausência a partir da qual se constitui o desejo da mãe. Dessa forma o chamado ao Nome-do-Pai terá como resposta, no campo do Outro, um puro e simples furo - P o - que, por sua vez, provocará, pela carência do efeito metafórico, um furo correspondente no lugar da significação fálica – F o (LACAN, 1966/1998).

É em torno desse buraco que se trava toda luta pela qual o sujeito se reconstrói. Abrese, então, no campo imaginário, a hiância correspondente à falta da metáfora simbólica, falta essa que encontra os meios de sua solução, no caso de F., assim como em Schreber, na tentativa de eviração, no desejo de que seu corpo se transforme em um corpo de mulher.

No caso F., a seguinte seqüência de frases apresenta muito claramente esse processo que vai da forclusão do Nome-do-Pai à eviração como tentativa de solução:

1- “...meu pai era um carrasco, aquele que domina, que invade as leis, a privacidade, os sentimentos”. “Culpo meu pai por minha condição...”

2- “...sou pregado na minha mãe...que será de mim se ela morrer...”

3- “...às vezes ainda tenho a certeza de que vou fazer uma cirurgia e virar uma mulher linda..., “...não quero ser uma mulher comum, quero ser uma Deusa como Donna Summer”.

Como lembra Lacan, a equação girl=phallus tem sua raiz nos caminhos imaginários por onde o desejo da criança vem-se identificar à falta de ser da mãe. Assim como Schreber, na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta a F., em um primeiro tempo de seu tratamento, a solução de ser a mulher que falta aos homens. É assim que Donna Summer ocupa para F., no eixo imaginário, o lugar do eu: “...acho que sou uma cantora e me comporto como ela...” “Donna Summer é uma preta de alma branca, é o meu espelho... Chego a olhar no espelho e ver Donna Summer”. Mas, ao mesmo tempo F. diz também que, do outro lado do espelho, ele é “preto, pobre, doido e homossexual”. É desse lugar que ele escuta a injúria das vozes que o chamam de “bichinha preta”. Desse lado do espelho, ele ocupa o lugar de objeto: onde a vida é mórbida, “sem brilho, sem cor, sem Donna Summer”.

 

 

Para o presidente Schreber, a idéia de se transformar em mulher era, inicialmente, objeto de horror; depois, passa a aceitá-la como um compromisso razoável para, então, tornarse uma decisão irreversível e motivo futuro de uma redenção concernente ao universo: ser a mulher de Deus e dar origem a uma nova raça. Em Schreber, vê-se claramente um percurso que vai da indignação, que a idéia de eviração suscitava, até sua aceitação. Para entender o que se passa nesse percurso, dois pontos são importantes: o primeiro refere-se à vertente do sacrifício presente na idéia de tornar-se mulher de Deus. Freud utiliza a palavra versöhnung, que tem p sentido de expiação, de sacrifício, mas também de aceitação do destino. Mas um segundo aspecto, também presente nessa idéia, não escapa a Lacan (1998, p.537-590). Ele comenta que se Freud depositou tanta ênfase na questão homossexual, no que se refere à psicose de Schreber, foi para demonstrar que ela condiciona a idéia de grandeza do delírio. A metáfora delirante, ser a mulher de Deus, segundo Lacan, satisfaz o mais exigente amor próprio. Aqui, o sujeito se entrega ao sacrifício, em nome de um gozo maior, o gozo d’A mulher. Trata-se de uma aliança, de uma formação de compromisso entre mortificação e volúpia.

Da mesma forma, no caso de F., se o sujeito estava disposto a perder o pênis em uma cirurgia, submetendo-se a uma castração real, ele o faria para ter acesso a um gozo infinito, o gozo d’A mulher que seria toda, aquela que falta aos homens, aquela que não existe e que aparece, para F., na figura de Donna Summer.

Nesse sentido, a intervenção feita por Simone Gonçalves foi fundamental, na medida em que incide sobre esses dois aspectos do delírio de F., quer dizer, tanto na vertente do sacrifício, no apelo que ele faz à castração, quanto na vontade de gozo, no gozo infinito que ele pretende atingir.

Diante da demanda insistente do sujeito para que ela o encaminhe para uma cirurgia de mudança de sexo, ela responde, referindo-se à cirurgia da orelha que ele havia feito: “eu já te encaminhei para cirurgia que foi possível”. Essa intervenção tem como efeito não só fazer existir, simbolicamente, a perda real, já efetivada pela cirurgia da orelha, na medida em que esta perda pode ser nomeada por um Outro, como também favorece uma nova localização do gozo, ao propor que uma cirurgia pode vir no lugar de outra, na qual, se a perda é menor, o gozo ao qual ela dá acesso também o é. Essa intervenção permite ao sujeito localizar um gozo possível no lugar daquele que se pretendia infinito, promovendo uma nova forma de amarração, de solução, diferente daquela da via da metáfora delirante, ou mesmo da passagem ao ato, pela qual ele se transformaria em Donna Summer, a mulher que falta aos homens.

Assim, em decorrência dessa intervenção, vê-se esse sujeito tornar-se tenor do coral de sua igreja, consentindo em ocupar um lugar certamente menos grandioso que aquele que o delírio e a passagem ao ato poderiam proporcionar-lhe. Pode-se dizer que o tratamento desse sujeito se abre para um percurso no qual se observa um deslocamento do gozo, que passa da oposição Donna Summer – bichinha preta, que sustentava seu delírio, ao tenor, sendo este último o lugar onde, pelo menos por enquanto, ele tem podido alojar sua voz.

Esse resultado pode ser considerado terapêutico, na medida em que intervém no sofrimento que o delírio, como sintoma, comporta. No entanto, se a solução encontrada por F. transborda essa dimensão puramente terapêutica, e pode ser considerada, também, um resultado psicanalítico, é porque esse mesmo resultado implica uma pequena invenção: um nome - TENOR - que tem como efeito uma modificação no modo de gozo do sujeito, inaugurando, para ele, uma outra forma de satisfação. Assim, no que diz respeito ao resultado, o caso de F. nos demonstra, principalmente, como o tratamento pode vir a constituir-se em um lugar que, conforme nos ensina Miller, “recolhe as contingências e onde a necessidade se desfaz”, tornando-se, sobretudo, “o lugar do possível” (MILLER,1998,p.9-17).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. (1976) “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia paranoides)”. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, vol.XII, 1976, p.15-108.         [ Links ]

HENRY, F.; JOLIBOIS, M. & MILLER, J. A. (Ed.) (1998). Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica; a conversação de Arcachon.São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1988.         [ Links ]

LACAN, J. (1966/1998) “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In: Escritos (1966) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998,, p.537-590.         [ Links ]

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MANDIL, R. (1998) “As psicoses, hoje , como a histeria, ontem”. Agenda EBP-MG E IPSM-MG, Belo Horizonte, p. 9-17, set.         [ Links ]

MILLER, J. A. (1998) “Les contre-indications au traitement psychanaytique”, Mental, Paris, n.5, p.9-17, juillet, 1998.         [ Links ]

SHCREBER, D. P. (1984) Memórias de um doente dos nervos (1903). Rio de Janeiro: Graal, 1984.         [ Links ]

 

 

* Membro da AMP e da EBP/mg./Seção Minas. Diretora do CPCT/MG. Email: ssouto.bhe@terra.com.br

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