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CliniCAPS

versão On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.4 Belo Horizonte abr. 2008

 

CONEXÃO CULTURAL

 

Réquiem para nós todos: “Requiem aeternam dona eis: 'dai-lhes o repouso eterno'”1

 

 

Magda Campos*

 

 

Uma náusea pegou-me em cheio. Começou quando me peguei vendo/devaneando uma caçada a esmo, uma perseguição na penumbra, e todo mundo estava armado: armas/berros, armas/câmaras, armas/lamentos, esgares, sangue, choro, declarações sentenciais. E a caçada continuava, firme, decidida. Mas cadê o alvo? Onde está a caça? Tremor: está sem foco!

E não adiantava mudar de canal. Lá estava a mesma cena: uma caçada cega. Muitos caçadores bem focados, bem armados, firmes. Sem dúvidas. Eles parecem saber bem a quem caçar. Revejo: mas todos são caçadores!, e eu não distingo o alvo. Serei eu?

Horror: repenso: é uma caçada anunciada: falei, falamos, falaram tantas vezes dessa história, eu me lembro bem. Uma criança é violentada. Uma criança é sacrificada. Uma criança é morta. Todos os dias, falamos disso. Eu me lembro. Relembro: repetição - ela se impõe como uma compulsão. Obrigação, força, cegueira, certeza, não reflexão. Negação. Satisfação, e uma trégua de sossego. E logo, tudo recomeça. Agora não tenho dúvidas: vejo uma compulsão coletiva na televisão.

Então, de repente, o drama de balas perdidas e de crianças tombadas a esmo adquiriu outras tramas em minhas idéias. Aqui não se vêem balas perdidas; se vêem adultos perdidos e as mesmas crianças tombadas a esmo. E bem sei que “um adulto perdido” significa incontáveis balas perdidas. A eterna violência humana tem me ocupado, por razões várias, há muitos anos. Posso dizer que a minha profissão é mesmo o trato com as diversas formas de violência que a vida humana comporta, porta, importa e suporta.

Revejo a cena: a presença das câmaras é tão palpável quanto a presença das pessoas, ou melhor, é mais presente que elas, pois, o comportamento parece ensaiado, é bem conduzido. São muitas pessoas mas elas não se conhecem, nem se tocam, não se olham. Olham para uma câmara, e disparam. Disparam em mim?

Quero dizer, nessas cenas tão candentes e emocionantes, uma pele nunca encontra uma outra pele, todos parecem envolvidos no sentimento de estranheza – vejo repulsa e fascínio. E eu não estou emocionada. Não sinto repulsa nem fascínio. Estou perplexa neste momento.

Persisto: eu quero entender. Uma criança foi espancada. Foi jogada pela janela. Estava a cuidado dos pais. De quem? Quantas Anas! Confuso isto. Tantos advogados. Não, não... Este é o avô. Quero dizer, o pai. Ou melhor, é que, quando há uma questão qualquer os pais ligam para os pais, antes de ligarem para qualquer outro. Compreende? Não. O verdadeiro advogado é aquele rapazinho agitado. Não vê? Todos estão calmos, menos ele. Ah entendi! Oh, ainda não! Acabei de ouvir: a mãe, a mãe!?, tão serena, diz: “sou uma criança cuidando de outra criança”. Como!? Ela estava sendo consolada numa missa-show... Eu não entendo, desculpe. Ahhh! Estou vendo um filme: está bem feito; os atores são bons, a edição é boa, a trama é pungente. Há um crime abominável. O crime é planejado e bem executado. E parece que não há dúvidas quanto ao réu. Mas me confundo no roteiro... Agora me percebo: é que não é um filme, é uma história real, portanto mais absurda e complicada que qualquer ficção. Ah, agora eu entendo. Não é fruto da imaginação de um diretor genial e trabalho de uma equipe fantástica. Mas eu me confundo por inteiro pois, todos os que eu vejo se comportam tão comportadamente bem quanto diante da planície de um roteiro bem ensaiado. Mas são maus atores, alguma coisa está errada. São muitos os imaginários trançados neste fato dolorosamente real.

Eu não quero estar neste filme, mas não posso negar. EU ESTOU NESTE REAL. As câmeras estão aqui, ao meu lado, incômodas, quase no meu nariz, que, aliás, estão também em qualquer lugar, pois as câmeras correm atrás de qualquer um, correm atrás de todos, e de cada. Mas me sinto muito mal, diferentemente de todos que têm certezas, não tenho quase nada a dizer. Sei que também sou responsável por esta cena ignóbil. Não quero respostas fáceis e, conscientemente, tenho muito medo de tudo o que eu estou vendo. Tenho horror de tudo o que eu estou vendo. Estou vendo o elefante. E digo que ele está aqui, aqui mesmo na sala, pertinho, e vai esmagar a todos nós.

Elefante: difícil de se perceber por inteiro quando está perto demais. É tão grande que nos atropela, esmaga antes que saibamos do que se trata. O elefante é fatal se ignorado. Ele exige distancia e respeito, muito respeito, para o trato.

Diante de um elefante, eu quero dizer que a princípio eu não sei o que dizer, quero me calar, eu me recuso a essa verborréia fácil, frágil e rasa que desgraçadamente grassa. Quero fazer do meu silêncio e de minha perplexidade a eloqüente manifestação da minha tristeza, do meu horror e da minha indignação para com todos esses seres humanos adultos. Seres que são pedaços, partes, são frases quebradas, repetidas, semifrases, sons dissonantes, ordens automaticamente repetidas e automaticamente burladas. Nenhum diálogo coerente. E cada pedaço assume pose de verdade inteira. Sinto náuseas.

Mais um dia comum na vida: seres que matam-e-se-matam assim todos juntos, indistinguíveis. Sim, são os adultos. E as crianças? Estão inteiramente à mercê destes pedaços. Sinto nojo.

Não quero uma resposta qualquer, não quero inventar uma firmeza que simule alguma segurança. Não quero uma resposta só, quero uma resposta que implique a todos, e a cada um que tenha visto, ouvido, falado, mostrado, contado... Da violência vil a que submetemos os seres que geramos e de quem, portanto, devíamos cuidar.

Quero dizer que tudo está fragmentado, e que os fragmentos se movem de maneira errante, tentam se organizar, MAS NÃO SE ORGANIZAM. Não me engano, não há aqui unidade alguma, nenhuma síntese que me sirva de resposta. Porque não há uma pessoa nessa trama. Ninguém disse: eu fiz, eu vi, eu sei, eu sinto... Ainda que, o que eu faça, veja, saiba ou sinta seja pesado como elefante. Não são seres humanos, são pedaços de carne. Carne, ao mesmo tempo, faminta e podre. Só há um ser inteiro nessa trama. Uma criança que foi assassinada.

Para que se possa dizer alguma coisa responsável é preciso primeiro se organizar, se inteirar. E para se organizar é preciso encontrar um espelho no qual se reconheça. Só a partir de uma tela inicial haverá responsabilidade. Desta primeira unidade eu me livro, me recuso, e só então, a acuso. Acuso desde a liberdade de quem se responsabiliza. E toda responsabilidade é solitária. E hoje, todos estamos covardes. Poderosos, e covardes.

Aqui, onde está a primeira ordenação? A quem se responde? Quando a primeira violência? Quando foi a primeira esquiva? De quem? Quando se fechou pela primeira vez os olhos? Que primeira tela enquadra toda esta gente?

Há a tela da televisão – você me viu na tv? -; quem sabe, uma tela de computador, no jogo de matar - aleatoriamente matar -; as telas dos celulares registrando tudo, as fotos, muitas fotos, camisetas com fotos (estão sempre previamente preparadas!? Sinto-me perdida no enigma das camisetas de geração espontânea e imediata que anunciam uma resposta imediata a um fato que eu ainda nem me inteirei... Eu sou muito devagar?); talvez seja o bom serviço de informação prestado pela mídia. Talvez. Não sei. E as telas se desdobram infinitamente... A qual se deve responder? E as telas continuam a se multiplicar, as imagens se embaraçam. Atropelam-se, se misturam. Surgem alguns monstros. E as telas se multiplicam infinitamente.

Infinitamente, ad nauseum, as brutalidades que se praticam. Só a brutalidade tem durado, é permanente, não muda. Tudo é bestial. Estúpido. Perverso. E sem excitação. Ou seja, não há comoção. Selvageria. Nenhuma compaixão. Compartilhar com o que, ou com quem? Tudo é rápido, efêmero, traço. Quem se lembra da bestialidade de ontem? Quem se lembra da criança arrastada por sete quilômetros?

E no mais, um silêncio continuado.

Eu mergulho no silêncio que percebo sob essa camada rasa de ruído tosco. Barulho inútil, tentativa vã de abafar a verdade. Ninguém está se comprometendo por que todo mundo está implicado, e para esboçar alguma palavra verdadeira será preciso reconhecer, e respeitar, o ser violento que se pode ser. Os seres violentos que temos sido. Os cúmplices.

Quem deu o primeiro tapa? Ainda que esta pergunta de alguma forma me interesse, interesso-me muito mais por saber quem vai ser o primeiro a interromper a estupidez a que nos rendemos. Quem vai interromper o processo de autofagia compulsiva generalizada?

Então, eu mudo de canal. Lá está... : “Na Áustria, um homem manteve sob cárcere...”. Eu não disse? É a mesma brutalidade, de todos contra todos.

Alguém quer resistir? Quer compartilhar um sonho? Ou estão todos somente à venda?

PS- Meu sonho não acabou, nem está à venda. Quanto a mim, desligo a televisão. E levo meu filho ao parque para ouvirmos a Orquestra Sinfônica. E o programa de hoje é Mozart. Eu recomendo.

 


* Psiquiatra, psicanalista, escritora. End: Rua Minas Novas, 38, ap. 401, Cruzeiro, BH. CEP: 30310.090. Email: magdacampospinto@uol.com.br

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