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CliniCAPS

versão On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.5 Belo Horizonte ago. 2008

 

ARTIGOS

 

Desafilhiar-se

 

 

Simone F. Gonçalves*

IEC-PUC/Minas

 

 


 

 

Introdução

O caso descrito a seguir foi apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicose da EBP no Instituto Raul Saores – FHEMIG, e nele destacamos três pontos de impasses que dificultam a articulação clínica: a interlocução do discurso da psiquiatria com a psicanálise no campo diagnóstico, a dificuldade de se estabelecer uma direção de tratamento, e por fim uma interface de difícil manejo entre a Instituição acolhedora, o poder jurídico e as demandas sociais.

 

Acolhimento

B, 31 anos, solteira, tem um filho de 05 anos que está com avó materna desde a intervenção do Conselho Tutelar que se deu em julho deste mesmo ano (2004). Informou ser salgadeira e que estava sem trabalhar a um mês. Passou por uma internação no HGV há 10 anos atrás, após ter tido um aborto. Não se tem maiores informações sobre este momento.

Procurou o atendimento por ter perdido um bebê (natimorto SIC) há 20 dias: “espontâneo”... “eu não posso ficar como fiquei há dez anos atrás...” “eu não consigo comer, dormir, é como se tivesse alguém atrás de mim o tempo todo...” “lá perto de onde perdi o meu neném acharam uma menininha viva e não acreditaram em mim, acharam que a menina era minha...”

Relata ainda que após tudo isto sente-se assustada, “as vezes queria acabar com tudo, morrer... as vezes não sei o que estou fazendo...” como? “não é ter a sensação, é ter a certeza que tem alguém atrás de mim .... tão querendo pegar o meu namorado Tiago... as vezes me chamam(refere-se as vozes)... me dá uma coisa ruim dentro de mim...”

B afirma ainda que “dá desmaios” que não ficam bem esclarecidos, que fica sem consciência, sem apresentar perda de controle dos esfíncteres. Relata que parou o controle neurológico há 04 anos, sem prestar maiores esclarecimentos sobre isto.

Após o primeiro atendimento interrogou-se: psicose a esclarecer: paranóia?, epilepsia?

Acolhida como paciente cadastrada, foi agendado retorno para psiquiatra e técnico, medicada com Haloperidol, biperideno, carbamazepina e solicitado avaliação neurológica.

 

Evolução

Bastante irregular e com várias ausências nos atendimentos posteriores, relata melhora da insônia e fala um pouco mais de seu momento: “..estou sozinha, assustada com vontade de acabar com tudo e morrer... sempre tem um carro com homens dentro... é como se quisessem pegar o pai do meu menino... por causa do tráfico... A menininha que acharam pode ter os meus traços, mas não é minha.... tem alguém conversando comigo ... vozes que me incentivam fazer o que não quero.. se for pra morrer é melhor entrar embaixo de um trem que é mais rápido... as vezes é como se fosse um menino conversando comigo... é como se eu voltasse lá na minha infância...”

Se ausenta dos atendimentos por 1 mês. Como não forneceu nenhum contato ou referência familiar, optamos por procurar o Conselho Tutelar para buscarmos maiores informações sobre o caso:

B. chega ao Conselho Tutelar encaminhada pela Casa Benvinda onde esteve com o filho por cerca de 15 dias e com um pedido de avaliação familiar, questionando a condição de B. cuidar da criança. Após entrevistas com B. e também com familiares o Conselho resolveu dar a guarda provisória da criança para a avó materna sob a justificativa de maltratos e conduta inadequada de B. e solicitar acompanhamento psiquiátrico da mesma. Segundo a conselheira B. bate muito, deixa a criança suja, com fome, trancada dentro de casa sozinha, e há relato dos familiares que B. chegou a dar gardenal para que o filho dormisse a noite toda e ela pudesse sair. Tem um processo por seqüestro de uma criança há dez anos atrás. O pai pagou a fiança e B responde em liberdade. Ainda, o último episódio que levou B à casa Benvinda e consequentemente ao Conselho, iniciou-se quando o jornal publicou que foi encontrada uma criança em um lote vago e B. se apresentou como Joana (também o pré-nome de sua mãe) afirmando ser a mãe da criança abandonada, querendo pegá-la na maternidade com a seguinte declaração: apanhou do namorado Tiago com toalha molhada e teve a criança na rua, e este tomou a criança dela e a jogou fora. Ao ser submetida aos exames foi constatado que B. não apresentava nenhum sinal de ter tido um parto e foi encaminhada a Casa Benvinda até esclarecimento da situação. Dada a estranheza dos fatos e a impossibilidade dos relatos, assim como o estado de descuido em que se encontrava o menino, o caso foi encaminhado ao Conselho tutelar.

Após um mês de ausência do serviço, B reaparece francamente deprimida, dizendo escutar vozes mas não tem clareza do que elas dizem nem de onde vem, e explicitando claramente ideação de auto-extermíneo. Foi proposto que ficasse em permanência-dia e B resistiu muito. Frente a pouca informação sobre a paciente, uma dificuldade diagnóstica e ainda uma dimensão clínica ainda incipiente, insistimos na PD e que ela nos fornecesse algum contato familiar o que fez com grande resistência e certa hostilidade. Neste dia, fugiu antes mesmo que pudéssemos articular uma pernoite.

Em entrevista a mãe de B, que procurou o plantão após ser chamada em função da fuga, informou pouco sobre a filha, esta pareceu apresentar um déficit. Dos relatos destacou-se que B. batia na mãe com uma vara sempre que queria mamar ao seio e fez isto até os 9 anos de idade. Agressiva, sempre maltratou o filho. Batia ainda na mãe até 2 anos atrás quando esta colocou um “basta” . Não sabe mais dados e nem informa se a filha toma medicação, apesar de morar no mesmo lote. A mãe continua sentindo medo de B. e afirma que esta sempre conviveu com marginais.

B. retorna espontaneamente um mês após e pede medicação e retorno ao tratamento. É acolhida e de uma forma diferente: sabíamos que não adiantaria nenhuma tentativa de segurá-la no serviço e que teríamos que apostar em um atendimento mais ambulatorial, no dia a dia, negociando lentamente com o que trazia na fala e com o que propunha aceitar em acordos que ela apresentava até onde podíamos ir. Foi garantido a ela um espaço para falar, foi ainda dito a ela que o que dizia era importante e que estávamos dispostos a este tratamento. Demos um lugar então a B., mas ainda sem cálculo nenhum desta aposta. Nesta época começou a trabalhar em uma confecção.

Ela passou a tecer sua história mantendo-se freqüente semanalmente com poucas faltas, as vezes vem acompanhada por um senhor líder comunitário que diz ser “como pai” : “ chorava muito na infância ao ver a mãe chorar... aos treze anos fui abusada por meu cunhado e a mãe não acreditou, comecei a ficar mal .... só chorando... minha mãe sempre foi burra e ignorante, queria mostrar que era melhor que os outros e nunca teve nada a dar aos filhos a não ser fazer comida e limpar... “ o pai saía muito, bebia e a mãe tirava as coisas da gente para dar para ele.... “ não tinha amigos apenas o meu pé de ameixa e de amora que ficava em cima deles o dia todo... Não comia nada, apenas guizadinho de passarinho que as crianças faziam, e também os pombos que criava...”

Demora muito a falar do filho, mas o menciona no seguinte contexto: “ o primeiro namorado foi aos 18 e fiquei amaziada com ele até completar 26 ... meu marido era agressivo e tinha ciúmes até da barriga...lavar, passar e cozinhar para homem ficar na rua e mandar em mim eu não aceito ... sou topetuda ... separei por ele me ameaçar de morte e também meu filho... Com minha mãe ele está protegido do pai... eu odeio minha mãe e não quero ver ela nem meu filho...”

Neste momento clínico a paciente se apresentava bastante deprimida, com um afeto raso, e um certo distanciamento de seus relatos. Na sua fala apresentava algumas ambigüidades como querer cuidar do filho e ao mesmo tempo não querer vê-lo e ainda chorar pelos maltratos que o pai fazia a mãe e ao mesmo tempo odiá-la.

Um outro ponto marcante é quanto interrogada sobre o motivo que dá a guarda provisória do filho a avó: ela responde alegando que o motivo desta transferência da guarda são as constantes ameaças do pai da criança, e que esta última estaria mais protegida com a avó. Estaríamos diante de uma construção delirante? Neste ponto B. é irredutível e apresenta o conteúdo de seu relato com uma certeza inabalável. Por outro lado, jamais se coloca na situação como minimamente responsável, sendo a responsabilidade sempre do outro e seu campo é o da inocência.

Apostou-se, então, em uma paranóia.

O manejo permaneceu o de manter um vínculo frouxo, escuta apoiada em um secretariado, sem inflar a construção (delirante?) por outro lado dar maior ênfase em pontos de sua atividade e história profissional que apontavam um caminho diferenciado do ódio e da agressão. Chegou a dizer que trabalhou com artesanato e que sabia fazer várias coisas. Nos interessamos muito por isto, inclusive tentamos inserí-la no CAC e em cursos externos, enfim, não tivemos sucesso frente as ofertas escassas na época. Chega a trazer uma blusinha de criança que confeccionou com retalhos de tecidos da confecção e presenteia o técnico. Vem mais arrumada, combinando cores, com a expressão mais leve e aparentemente mais feliz.

Em março de 2005 há uma troca de psiquiatra, implicando em nova referência para o caso, e também nova interrogação diagnóstica, em função da ausência de fenômenos produtivos esvaziados pelo uso da medicação. Foi interrogado um transtorno de humor com pólo depressivo sem sintomas psicóticos, mas mantida a medicação psicotrópica.

Diz estar suspeitando de uma gravidez, apresenta vômitos e solicita-se um ? - HCG. Começa a desestabilizar, chorando, sem conseguir se alimentar, vomitando muito, amenorréia há cerca e com o exame negativo por duas vezes seguidas. A barriga cresceu, ela engordou , o exame continuou negativo, mas ela trouxe um cartão de inscrição no pré-natal e um pedido de US. Afirma que foi confirmada uma gravidez de 3 meses; mas que ela “não quer a criança” e quando interrogada pelo psiquiatra sobre o que fazer, afirma que ele está como o ex-marido que lhe propôs o aborto – ele pontua que não disse isto – ( neste momento ele questiona uma projeção e corrobora com o diagnóstico de psicose) mas vai ela diz “que quer ter a criança”. Conta que está namorando, que o pai é presente e que vai ajudá-la.

Outra observação que vale a pena comentar é que apresenta uma certa estagnação do sentido, como quando interrogada sobre o que no momento é ser mãe pra ela, responde fixamente: “tô grávida”. Não desliza em outras significações do que é ser mãe.

Melhora o humor e até pinta o cabelo de laranja, mas inicia questionar a guarda do filho e apresenta uma preocupação excessiva sobre a forma que este está sendo tratado pela avó.

Fomos procurados pela psicóloga do Juizado da Infância e Adolescência para saber uma posição sobre o tratamento de B. a fim de ser anexada ao processo de guarda de seu filho. Propusemos uma reunião para as equipes envolvidas discutirem o caso. Segundo a psicóloga do Juizado a família está cansada das “mentiras crônicas de B. e não quer ajudar, e o menino não quer ficar com a mãe.” Não ocorreu a reunião e o serviço apresentou um laudo que B. se encontrava estável e estabilizada.

B. relata que a médica do pré-natal suspende o haloperidol e B. tem uma alteração: “não estou dando conta... estou deprimida, só chorando... irritada... não durmo direito....” Retornado com a medicação e apresenta melhora. Relata atritos com a ex-mulher do atual companheiro.

Em meados de setembro chega sem a barriga, mancando, fala que perdeu o neném em uma briga com a ex-esposa do companheiro e não quer falar mais sobre isto, pega a medicação e propõe voltar após 20 dias. Não aceita atendimento do técnico.

Foi feito contato com a irmã de B. que informa que está cansada das mentiras crônicas de B e das agressões que dirige ao filho e a mãe: “ela nunca ligou para o menino e não se envolveu apenas em um seqüestro, pelo que sei já foram 3 . Nunca foi casada e ninguém conhece o pai do menino.” B. sempre morou com a mãe. Não tem companheiro fixo atualmente e chega a levar para casa cerca de 4 homens diferentes por semana. Não vi barriga grande...só uma barriga de 3 meses... que as vezes tinha, outras vezes não e ninguém viu... pra quem vai ter filho em outubro... ela tem fixação por menina... eu não vou me meter por ter medo dela.”

B. passa a falar nas consultas que sua mãe maltrata seu filho, que faz ele faltar na escola quando ela tem que ir a igreja, e que está pedindo transferência escolar para levar o filho para Vitória e que isto não vai aceitar. Seqüestrou o filho, sumiu com ele e não disse aos técnicos onde estava, mas vinha ás consultas e foi orientada a procurar o Juizado para resolver este problema com a lei, caso contrário teria que responder por isto; ela o fez. Passou longo período estável apesar de ausências aos atendimentos e conseguiu a guarda do filho que parece bem sob seus cuidados. Sua mãe se mudou de Estado e vendeu a casa, e B. mora sozinha com o menino. Queixou-se de dificuldades para trabalhar e ficar com ele o dia todo e pediu ajuda para conseguir uma vaga na creche e a Assistente Social interviu.

Novo período de ausência (quase três meses), conforme exigência legal, comunicamos ao Juizado suas faltas. Aparece dizendo que estava com a perna machucada, silenciosa, esvaziada afirma tomar a medicação: “consigo a receita...”

Este caso foi comentado por Cristiana Pitella, e suas intervenções encontram-se no artigo a seguir nesta mesma revista. As questões endereçadas ao trabalho de construção clínica se organizaram em torno do estabelecimento do diagnóstico, a direção do tratamento e as parcerias para esta condução.

 

 

* Psicanalista, psicóloga, mestre em psicologia/ estudos psicanalíticos pela UFMG, Membro correspondente da EBP/Seção Minas, Coordenadora do Curso de Especialização em Saúde Mental do IEC-PUC/Minas, Membro da Equipe de Saúde mental do CERSAM/Barreiro/PBH. Endereço: Av do Contorno 4045/605 – Funcionário cep – 30110021. Email: simone.de.goncalves@terra.com.br

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