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CliniCAPS

On-line version ISSN 1983-6007

CliniCAPS vol.2 no.5 Belo Horizonte Aug. 2008

 

CONEXÃO CULTURAL

 

As representações imagéticas da loucura e do manicômio no cinema1

 

 

Flávia Fleury*

 

 

No decorrer da história do cinema, diversos diretores se apropriaram de técnicas e narrativas diferenciadas, para tentar expressar não somente os sentimentos e vivências do louco, como também para apontar questões mais amplas como os preconceitos, estereótipos, a exclusão, a violência, enfim, uma série de questões relacionadas aos valores de uma sociedade em relação à loucura e ao próprio sistema na qual estava inserida, criticando ou representando uma determinada ideologia responsável pela imagem acerca da loucura no mundo.

Segundo Telles, GABARD registrou cerca de quatrocentos e cinqüenta filmes que abordam a questão da loucura e da psiquiatria. (TELLES, 2004).

Tomando como referência o cinema do século XX, muitos desses filmes revelam as formas de tratamento destinadas ao louco dentro da instituição manicômio. No entanto, pouquíssima bibliografia foi dedicada a este tema específico. A maioria dos trabalhos aborda a questão da loucura de uma forma mais ampla, o que foi um dos motivos da escrita desse artigo.

O tema da loucura, por ser muito polêmico e objeto de grandes discussões, tem sido amplamente representado nas artes e discutido em várias esferas, no cinema, na ciência, na política, na literatura, na história e principalmente entre os profissionais de saúde mental, que não tem um entendimento unânime no que concerne às formas de tratamento mais adequadas para o louco.

A partir da leitura da “História da Loucura”, de Foucault, compreende-se que a noção de loucura é construída a partir dos valores, relações de poder e ideais da sociedade, que podem se alterar de uma época para outra, assim como de uma sociedade para outra. Portanto, o conceito de loucura é atravessado por uma série de variáveis: ideológica, política, religiosa, social, econômica, que vão interferir na sua representação e na abordagem do louco.

Além da literatura, o cinema, como documento e arquivo de registro, constitui-se enquanto fonte histórica sobre a temática do louco no manicômio, pois retrata as modificações que se deram acerca dessa representação na história, estabelecendo uma relação entre o filme e a realidade da sociedade da qual pertence.

Benoski (2004) lembra que o cinema pode apontar transformações na visão sobre o louco, que podem ser demonstradas a partir da análise de filmes em períodos diferenciados.

“Se considerarmos as diferenças de tratamentos para a loucura mostrada pelos filmes em um espaço de tempo tão curto, o que dizer de uma produção da década de 1930, que considerou a morte como meio de sanar o problema da loucura (lembrar do filme de Frankstein), e um do início do século XXI que aponta o próprio doente como seu médico (uma mente...)? São essas transformações inerentes a nossa sociedade que o cinema se apropria e representa. Não se pode esquecer que são valores, regras, normas do conjunto social, que as produções cinematográficas aprisionam, transformam e apresentam ao espectador. O cinema apresenta através de suas histórias como pensamos o doente mental, como tratamos, e principalmente, como o controlamos.”(BENOSKI, D. 2004, p. 125).

A partir do cinema, podemos também perceber denúncias das irregularidades dentro dos manicômios, assim como os estereótipos do louco, como aquele que é impróprio para o convívio em sociedade, elementos que são retratados através da narrativa cinematográfica, em vários filmes. Diversos autores entendem que a transmissão desses elementos pode influenciar na visão acerca da loucura e do manicômio na sociedade.

Em seu trabalho sobre a doença mental retratada no cinema, Gadelha e Paiva colocam que as mídias audiovisuais têm um papel importante na formação do imaginário social sobre a loucura.

“Partimos do pressuposto que os audiovisuais constroem clichês e estereótipos sobre o louco e a loucura, mas ao mesmo tempo podem se constituir enquanto vetores de informação sobre os transtornos psíquicos, levando a uma visão mais objetiva, racional e sensível sobre a doença mental; esta é uma hipótese que perseguimos ao longo da nossa investigação” (GADELHA; PAIVA, 02).

São notórias as semelhanças da representação do inadaptado como louco no manicômio, retratadas em filmes, como por exemplo, O Estranho no Ninho (One Flew Over the Cucko´s Nest, 1975, EUA) de Milos Forman e Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1972, EUA) de Stanley Kubrick, filmes produzidos no final da guerra do Vietnã, em uma época em que a violência estava sendo questionada em vários setores. Nesta época, a psiquiatria e seus métodos estavam sendo contestados pela antipsiquiatria, movimento que denunciava o tratamento perverso e punitivo fornecido ao louco pela medicina da época.

O Estranho no Ninho, de 1972, baseado no livro homônimo, aborda a história de um ex-presidiário que se encontra em fase de avaliação psiquiátrica, que dá entrada em um manicômio e começa a contestar o tratamento moral, punitivo e perverso, praticado pela enfermeira com os pacientes internados.

O filme de Kubrick ilustra um tratamento baseado em técnicas comportamentais mais próximas de uma “lavagem cerebral”, aplicadas a um criminoso, que é encaminhado a um hospital psiquiátrico, como forma de adaptá-lo ao sistema.

Ambos os filmes levantam a questão da representação do louco como o inepto social, incapaz de seguir as normas sociais e que deve ser excluído da sociedade e adaptado ao sistema, seja através de uma lobotomia no filme de Forman ou da lavagem cerebral feita com o personagem de Kubrick. Com isso, esses diretores, mais que denunciar as atrocidades dos tratamentos aplicados, estavam provocando a sociedade para pensar nos valores e na violência de um sistema.

Assim também temos o brasileiro Bicho de Sete Cabeças (idem, 2000, Brasil), de Laís Bodanzky, que denuncia as irregularidades do manicômio, como o tratamento de eletrochoque dado a um paciente usuário de maconha, apontando o fim punitivo mascarado de terapêutico, como temática do roteiro.

Como esses filmes, muitos outros apresentam o louco como aquele que rompe com os padrões de normalidade de uma sociedade que o exclui por não concordar com seu comportamento transgressor.

Em De Repente no Último Verão, (Suddenly, Last Summer, EUA, 1959), a temática do louco, como aquele que incomoda a família e a sociedade e por esse motivo, objeto de exclusão, se repete. Desta vez, a personagem principal, guarda um segredo, que a impactou a ponto de entrar em crise. O segredo da homossexualidade de um primo, que não poderia ser revelado, aparece como o motivo principal da loucura da personagem, que é internada em um manicômio por sua tia, a fim de preservar a “honra” da família do filho homossexual, que não poderia ser exposto. A lobotomia neste caso é a.solução “encomendada” pela tia para calar o segredo guardado pela protagonista, considerada louca pela família.

O filme Frances (idem, EUA, 1982), também mostra a pressão exercida pela família da protagonista, para que a mesma seja internada em um manicômio e submetida aos efeitos irreversíveis da lobotomia.

Em Bedlam, (idem, EUA, 1946), o diretor de um manicômio em Londres, no ano de 1761, trata os pacientes com crueldade, utilizando-se de suas enfermidades para serem expostos em espetáculos na cidade, para a diversão da classe alta, onde são observados com distância e horror, sendo objetos do riso alheio.

A personagem principal, ao saber disso, tenta mudar esta situação, acabando internada no manicômio pelos médicos, que a qualificam como louca.

Em Paixões que Alucinam (Shock Corridor, EUA, 1968), de Samuel Fuller, o protagonista do filme, a fim de fazer uma matéria para uma revista que poderia lhe conceder um prêmio cobiçado, resolve fingir-se de louco para ser internado e descobrir quem matou um paciente assassinado no mesmo hospital. Após passar pelo tratamento dentro do manicômio e ser maltratado, acaba louco como os outros internos, permanecendo na instituição.

Em A Cova da Serpente (Snake Pitt, EUA, 1948), Olivia de Havilland, que recebeu o Oscar de melhor atriz por este filme, interpreta uma paciente que é internada em um manicômio, onde presencia a violência e os maus tratos vividos pelos outros internos, a quem tenta ajudar. Tanto neste filme como em De Repente no Último Verão, já verificamos a influência da psicanálise através da idéia de “cura pela fala”, pois em ambos os filmes há uma tentativa de fazer com que a paciente se recupere através da fala. No entanto presenciamos a aplicação de eletroconvulsoterapia como uma das terapias mais usadas da época. A lobotomia também aparece como uma solução para os problemas mais graves, geralmente com uma conotação assustadora, desejada pela família, mas clinicamente não indicada para o paciente.

Quando Fala o Coração (Spellbound, EUA, 1945), do mestre Hitckcock, é outro filme que aborda a questão da loucura a partir de uma abordagem influenciada pelas idéias de Freud.

É possível perceber, os valores e ideais da sociedade, a partir da forma que são transmitidos pelo cinema. Analisando esses filmes, pode-se dizer que eles tentaram a partir da narrativa e das técnicas cinematográficas, registrar um certo tipo de denúncia às formas de tratamento do louco.

O cinema representa um pensamento, reproduzindo conceitos que mudam durante o tempo. Constitui-se assim, enquanto arquivo de importância histórica e como fonte de pesquisa do tema da loucura, que se revela de formas diferenciadas, ao longo da história.

“Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente. Neste sentido, pode-se falar de um presentismo na construção histórico-cinematográfica, fenômeno já assinalado por filósofos da história, como Benedetto Croce, e historiadores, como Collingwood, em relação ao discurso histórico”. (NOVA, 12)

Percebemos então, na história do cinema, a evolução do pensamento do homem, as ideologias dominantes que regulam esse pensamento e influenciam o modo de viver da sociedade, assim como os conceitos que confrontam esses modelos. A narrativa cinematográfica é atravessada pelas diretrizes políticas, ideológicas, econômicas, sociais, religiosas, tecnológicas, enfim, históricas, presentes em seu tempo. Portanto, ao analisar um filme, é necessário perceber todo o contexto no qual o filme se insere, os recursos utilizados na narração, além da mensagem que pretende transmitir ao público.

No livro “De Caligari a Hitler: Uma história do Cinema Alemão”, Kracauer, ao estudar os filmes alemães produzidos após a primeira guerra mundial, estabelece uma relação entre a sociedade e o cinema, expondo suas idéias de como a história alemã do pós -guerra influenciou a construção do cinema expressionista e de como a história vivida por uma sociedade pode ser retratada através do cinema.

Kracauer chama atenção para a contribuição dos estudos do cinema para a compreensão do comportamento das massas, dos dispositivos psicológicos, atitudes predominantes e tendências internas de um povo.

“Tenho razões para acreditar que o uso aqui feito dos filmes como um meio de pesquisa pode ser proveitosamente estendido aos estudos sobre o atual comportamento das massas nos Estados Unidos e em outros países. Também acredito que estudos deste tipo podem ajudar na elaboração de filmes - sem falar nos outros meios de comunicação-que irão efetivamente colocar em prática os objetivos culturais das Nações Unidas“ (KRACAUER, 1988, 07).

Mais adiante, ressalta:

“O que os filmes refletem não são tanto credos explícitos, mas dispositivos psicológicos- essas profundas camadas da mentalidade coletiva que se situam mais ou menos abaixo da dimensão da consciência. É claro que revistas populares, e programas de rádio, best-sellers, anúncios, modismos na linguagem e outros produtos sedimentares da vida cultural de um povo também fornecem informações valiosas sobre atitudes predominantes, tendências internas difundidas. Mas o cinema excede a todas essas mídias”. (KRACAUER, 1988, 18)

Antes de chegar a essas conclusões, Kracauer analisou vários filmes alemães, entre eles, o Gabinete do Doutor Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, Alemanha, 1919) , que considerou como sendo o arquétipo de todos os futuros filmes alemães do pós-guerra.

Além de ser reflexo de uma época, o cinema pode se apresentar como uma linguagem metafórica das vivências, do comportamento e do pensamento de um povo, desde o roteiro, até aspectos mais sutis, como a fotografia, a montagem, os movimentos de câmera, o cenário, o figurino, a construção dos personagens.

Pensando em como o cinema pode ser uma fonte de pesquisa para investigação do pensamento de uma sociedade à qual toma como sistema referencial, os inúmeros filmes que abordam a figura do louco dentro do manicômio podem também trazer elementos para se analisar o contexto e o pensamento de uma sociedade.

Chama atenção nos filmes que trabalham com essa temática, que muitos anos antes do surgimento do movimento da luta antimanicomial, militante de uma sociedade sem manicômios, inúmeros filmes retrataram o manicômio de uma forma negativa, criticando-o e denunciando tratamentos perversos e desumanos dados ao louco, revelando também um preconceito da sociedade com pessoas que não se encaixavam nos padrões exigidos de uma época, identificando os inadaptados à figura do louco. E na realidade, os primeiros movimentos de mudança no tratamento do louco, iniciaram no pós-guerra, mas só atingiram a radicalidade da reforma, com o italiano Franco Basaglia, em 1971. Isto aponta que o cinema já antecipava esse questionamento, bem antes de se pensar nas transformações do tratamento do louco. Esta antecipação demonstra como o cinema é importante como fonte histórica de pesquisa, podendo produzir questionamentos, reflexões, constituindo-se enquanto uma arte que tem influência na formação de opinião, podendo preceder transformações significativas na sociedade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GADELHA, Maria Julieta; PAIVA, Cláudio Cardoso de. A Representação da doença Mental no Cinema: Um Estudo de Mídia, Comunicação e Saúde Mental. O Caso Do Bicho de Sete Cabeças. http://www.bocc.ubi.pt/pag/gadelha-julieta-paiva-claudio-representacao-doenca-mental.pdf. Acessado em 15/04/2008.
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PORTER, R. (1991) Uma História Social da Loucura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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TELLES, Sérgio. (2006) O Psicanalista Vai ao Cinema: Artigos e ensaios sobre Psicanálise e Cinema. São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda.

 

FILMOGRAFIA

O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, 1920)
Direção: Robert Wiene

Quando Fala o Coração (Spellbound, EUA, 1945)
Direção: Alfred Hitchcock

Bedlam (idem, EUA, 1946)
Direção: Mark Robson

Na Cova da Serpente (Snake Pit, EUA, 1948)
Direção: Anatole Litvak

De Repente no Último Verão (Suddenly, Last Summer, EUA, 1959)
Direção: Joseph L. Makiewicz

Paixões que Alucinam (Shock Corridor, EUA, 1963)
Direção: Samuel Fuller

Laranja Mecânica (Clockworck Orange, Inglaterra, 1971)
Direção: Stanley Kubrick

Estranho no Ninho (One Flew Over The Cuckoo's Nest, EUA, 1975)
Direção: Milos Forman

Frances (Idem, EUA,1982)
Direção: Graemme Clifford

 

 


* Psicóloga, documentarista. Especialista em Psicanálise e Direito. Especialista em Saúde Mental, com formação em cinema. R. Muzambinho 217/302 Bloco B Anchieta Belo horizonte- MG- CEP: 30310-280. Email: flaviafleury@hotmail.com

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