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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.1 no.1 Juiz de fora jun. 2008

 

ARTIGOS

 

O psicólogo na rede pública de saúde: um estudo sobre a formação e a atuação profissional

 

The psychologist in the public healthcare network: professional education and practice

 

 

Ana Cláudia Müller; Ana Cristina Garcia Dias,*

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS

 

 


RESUMO

O presente estudo objetivou pesquisar a formação e a prática profissional dos psicólogos da rede de saúde pública de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com cinco profissionais e estas foram analisadas a partir da análise de conteúdo. Constatou-se que a formação recebida não foi adequada às necessidades do trabalho com saúde pública, estando baseada, principalmente, no modelo clínico individual. Apesar das críticas a esse modelo, não houve uma busca por uma formação que possuísse uma lógica distinta deste modelo. Observou-se também a necessidade de se repensar a formação em Psicologia, integrando academia-serviço-população. Em termos de academia, considera-se imprescindível a criação de metodologias de ensino-aprendizagem participativas, a construção de um pensamento crítico-reflexivo e a revisão dos modelos de atenção. Em termos de profissionais da rede é fundamental que estes se percebam, não só como aqueles que fazem, mas como aqueles que pensam e, nesse sentido, são produtores de novos conhecimentos a serem utilizados na academia.

Palavras-chave: psicologia da saúde; formação profissional; atuação do psicólogo.


ABSTRACT

The aim of this study was to investigate psychologists' training and professional practice at the public health network in the country side of RS. Semi-structured interviews were conducted with five professionals and content analyzed. Results showed that the professional training did not properly prepare the psychologists interviewed to the work at the public health network, since the main focus of training was the clinical model centered at the individual level. Although participants were critical about the traditional psychological practices model, they did not look for additional training with a different approach to mental health care. Based on this results, the authors claim for an urgent and critical evaluation of psychological education, arguing in favor of a better integration of academy, health services and the population. On academic grounds, it is necessary to create learning methodologies that promote students' participation as well the development of critical and reflexive skills that allows a revision of health care models historically employed in psychological interventions. On the other hand, it is important that the professionals think of themselves not just as practitioners, but as reflexive agents that produce new knowledge that can be used in academy.

Keywords: health psychology; professional education; psychological practice.


 

 

Nas últimas décadas, tem se observado algumas contradições importantes entre os conceitos e as práticas desenvolvidos junto às esferas das políticas de saúde e aquelas desenvolvidas no contexto de formação dos profissionais de saúde, mesmo após a constituição do Sistema Único de Saúde através da Lei 8.080 de 1990. De acordo com o artigo 6&º deste documento, o SUS foi incumbido de ordenar a formação de recursos humanos da área da saúde, bem como incrementar o desenvolvimento científico e tecnológico na sua área de atuação (Brasil, 1990).

Na saúde, assistimos, desde 1988, a construção de um sistema único (notadamente público), a descentralização da gestão e/ou dos serviços assistenciais, a criação de espaços de negociação intergestores e de controle social, assim como a busca da universalidade do acesso (Brasil, 1988; Brasil,1990). No entanto, o setor da educação parece não estar conseguindo acompanhar esse movimento de renovação do sistema de saúde e continua formando profissionais da área voltados para um modelo assistencialista e médicohegemônico.

Sordi e Bagnato (1998) observam que apesar da emergência de novos discursos e o delineamento de novas propostas curriculares, o que marca indelevelmente a prática na área da saúde continua sendo uma lógica tecnicista, que põem ênfase no saber e no saber-fazer em detrimento do saber-ser e do reconhecimento do saber do outro.

No campo da Psicologia, esse processo não ocorre de forma distinta, pois esta especialidade, que vem lutando para definir um papel mais amplo na área de intervenção em saúde, continua tendo uma formação acadêmica, bem como, realizando intervenções profissionais restritas à saúde mental e à prática clínica individual como afirmam alguns autores (Carvalho & Yamamoto, 1999; Dimenstein, 2000; Yamamoto, Siqueira & Oliveira, 1997).

Alguns movimentos de mudança no ensino e na qualificação dos profissionais da saúde têm aberto a possibilidade de reverter esse quadro e construir políticas articuladas nesses dois setores - saúde e educação. Assistimos desde a década de 80, movimentos sociais que preconizavam a necessidade de formação de profissionais integrados ao sistema de saúde (8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986) e o reconhecimento das instituições de ensino superior como pólos de formação e capacitação de profissionais, objetivando a reformulação curricular conforme as necessidades da rede pública assistencial em saúde mental (1ª Conferência Nacional de Saúde Mental de 1987). Desde então, algumas ações têm sido executadas visando à reorientação dos cursos do campo da saúde oferecendo cooperação técnica, operacional e financeira para que esses possam fazer um trabalho articulado com a gestão e com os serviços do SUS, bem como focado nas necessidades de saúde da população. Algumas articulações intersetorias têm sido propostas para estreitar a relação saúde-educação, como nos mostra a Portaria 678/06 que institui a Estratégia Nacional de Avaliação, Monitoramento, Supervisão e Apoio Técnico aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros Dispositivos Comunitários da rede pública de saúde mental:

Parágrafo único. A Estratégia objeto deste artigo será desenvolvida por meio do estabelecimento de parceria entre o Ministério da Saúde e instituições de ensino, pesquisa e extensão, com o objetivo de formulação e execução de projetos de pesquisa e produção e de conhecimento para avaliação e aperfeiçoamento dos CAPS e demais serviços da rede pública de saúde mental, focalizando desde a acessibilidade, a organização dos serviços, a gestão, a qualidade da atenção, a efetividade, a formação dos profissionais e a produção de qualidade de vida e cidadania dos usuários envolvidos.
Considerando essa proposta de interlocução entre as áreas da saúde e da educação, a presente pesquisa pretendeu investigar como isso tem se dado na cidade escolhida para a realização da presente pesquisa. Buscamos compreender como está sendo a atuação dos psicólogos na rede de saúde pública do município e a formação por eles recebida. Cabe ressaltar que consideramos esses profissionais agentes importantes para as transformações curriculares preconizadas para a formação em saúde, uma vez que são eles, junto com a academia, que se encontram formando novos profissionais para trabalhar no sistema público de saúde.

 

Método

A abordagem técnica selecionada para a pesquisa caracterizou-se por ser de caráter qualitativo. Na etapa de levantamento de dados, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com uma amostra intencional de cinco psicólogos vinculados a serviços de saúde mental da rede pública de saúde do município em questão. A cidade onde foi aplicada a pesquisa localiza-se na região central do estado do Rio Grande do Sul, tem uma população de cerca de 23.000 habitantese uma economia baseada no setor terciário. Caracteriza-se por ser uma cidade universitária, havendo grande concentração de estudantes na cidade devido ao investimento no sistema educacional de nível médio e superior.

Além de dados demográficos, foram levantadas informações acerca da formação acadêmica dos profissionais, assim como das intervenções que estes realizavam junto às instituições em que atuam.

O número de entrevistas realizadas na pesquisa foi delimitado a partir do critério de saturação dos temas como proposta defendida por Moraes: "Entende-se que a saturação é atingida quando a introdução de novas informações nos produtos da análise já não produz modificações nos resultados anteriormente atingidos" (2003, p. 199).

O referencial utilizado para a análise das informações coletadas foi o de análise de conteúdo, conforme proposto por Bardin (1988). Assim, procurou-se analisar as falas através do desmembramento de sua estrutura, em termos de significados e conteúdos, sendo realizada uma análise categorial, na qual temas semelhantes foram agrupados em uma mesma categoria.

 

Resultados e discussão

A partir da análise das entrevistas, as falas dos entrevistados foram agrupadas em dois eixos temáticos - Formação Profissional e Atuação Profissional, os quais foram subdivididos em categorias de análise.

O eixo Formação Profissional agregou as seguintes categorias: "Graduação: O que o curso de Psicologia ofereceu", "Em busca de novos subsídios para a prática? O pós-graduação." e "A supervisão acadêmica: Formando psicólogos". Neste eixo foram abordadas questões referentes à graduação e pós-graduação dos entrevistados, principalmente no que diz respeito à saúde pública e coletiva, assim como o trabalho com a formação de novos profissionais da área, ou seja, graduandos dos cursos de Psicologia. Os temas referentes às intervenções realizadas nas funções ocupadas no sistema de saúde público, conceitos e teorias adotadas na prática foram abordados no eixo Atuação Profissional, que foi subdividido nas categorias: "Intervenções realizadas na saúde pública" e "Desestímulo dos profissionais".

 

Formação profissional

Graduação: O que o curso de Psicologia ofereceu

Os entrevistados descrevem que a formação recebida em Psicologia esteve embasada principalmente em um modelo clínico de base psicanalítica.

(...) "basicamente a minha formação, ela se dá a partir da psicanálise. Depois de vários anos, de várias leituras da psicanálise, ela é fundamentalmente psicanalítica... tanto é que a minha formação posterior foi como psicanalista lacaniano". (E3).

"Teve duas áreas bem fortes, que vai muito dos professores que o curso tem, né! Tem a área clínica psicanalítica muito forte, né! E tinha uma outra área que era interessante, que tinha uns professores legais, que era a Social, que ficou sendo ... era bem menos. Tinha um destaque, mas bem menos que a clínica". (E2).

Percebe-se que a formação recebida por estes profissionais é aquela que prevalece tradicionalmente nos cursos de Psicologia. Dimenstein (2000) indica que a atual preponderância do modelo clínico na formação e prática profissional do psicólogo é fruto da própria construção histórica da disciplina. A Psicologia historicamente privilegiou, em seu desenvolvimento, orientações teóricas e práticas voltadas para o ajustamento e controle dos indivíduos em função do ambiente social. A autora lembra que a Psicologia inicialmente se inseriu nos cursos de pedagogia e medicina, como uma disciplina capaz de oferecer conhecimentos sobre o comportamento dito normal e anormal. Nesse sentido, ofereceu saberes capazes de auxiliarem no controle da população e dos indivíduos.

O modelo clínico clássico é caracterizado como aquele que privilegia intervenções como o psicodiagnóstico e a terapia individual e/ou grupal; tem suas atividades dirigidas às classes sociais mais abastadas e exercidas em espaços delimitados; possui como foco de ação as questões intraindividuais dos pacientes desconsiderando os fatores históricos e contextuais tal como se observa no modelo médico hegemônico (Bianco, Bastos, Nunes & Silva, 1994). Semelhante ao paradigma médico, esse modelo foi usado pela Psicologia como uma forma de obter reconhecimento e status social.

No que se refere à preponderância de referencial, observa-se que, nas últimas décadas, a Psicanálise foi priorizada nos currículos das faculdades e se estruturou a partir de uma visão individualista dos sujeitos (Dimenstein, 2000). Esse modelo hegemônico de subjetividade considera os indivíduos como seres autônomos, donos de si, independentes e desvinculados de seus determinantes históricos e culturais. A psicanálise embarcou na visão de sujeito presente na ideologia ocidental moderna - individualista. De fato, a psicanálise encontra-se predominantemente trabalhando com a concepção de sujeito psicológico, cuja base é seu desejo inconsciente, onde a subjetividade é considerada singular e mediada exclusivamente pela história pessoal de cada um. Conforme a autora, isso justificaria a prática da psicoterapia individual:

A imagem da Psicanálise ao longo dos anos 60/70 foi associada a movimentos de transformação social, constituindo-se numa estratégia de grande valor político. A ênfase na privatização e nuclearização da família, na responsabilidade individual de cada um dos seus membros, a ênfase nos projetos de ascensão social, na descoberta de si mesmo, na busca da essência e na libertação das repressões, foram algumas destas estratégias que culminou na promoção de uma psicologização do cotidiano e da vida social e num esvaziamento político (p.99).

Contudo, apesar da psicanálise preponderar na formação dos entrevistados, outros referenciais teóricos também foram estudados durante a graduação e, na opinião dos participantes, ofereceram um contraponto para realizar uma reflexão crítica em relação a essa formação clinica recebida. A Psicologia Social e/ou Comunitária foram percebidas como contribuições importantes na graduação, no entanto, ocuparam um papel secundário em relação à Psicologia Clínica.

"No meu curso, tinha, eram dois pontos bem importantes: a Psicologia Clínica tradicional assim anafreudismo e a Psicologia Comunitária baseada em Pichon-Rivière, grupos operativos (...) E a minha formação ela se dá a partir da psicanálise". (E3).

"Então, a minha graduação ela foi eminentemente clínica seja pra que lado for, seja na escola... Eu consegui algumas modificações, a Psicologia Social nos deu uma boa base crítica pra poder reverter um pouco esse pensamento do clínico em todos lugares, eventualmente, eu consegui repensar isso". (E1).

"Em relação ao trabalho em saúde pública, eu considero que a formação é bem precária, né! Como a gente teve algumas disciplinas que tu pode pensar que foram... são afins, que eram mais as Psicologias Sociais, Psicologia Comunitária, dependendo do olhar que tu pegas assim Subjetividade e Clínica, tu consegue fazer uma relação. Mas nada muito específico e, como é que eu vou dizer, tão proporcional, vamos dizer assim, a importância que tem hoje em dia essa questão de, é o campo de saúde pública eu acho, né! É muito menos do que pede hoje em dia para uma formação em saúde pública, a formação que a gente teve. A minha formação foi assim, e eu acredito que a maioria dos cursos de Psicologia também" (E2)

Os entrevistados consideram que algumas disciplinas relacionadas a disciplinas de Psicologia Social e Comunitária ofereceram alguns subsídios para o trabalho com saúde pública. No entanto, os entrevistados reconhecem que essa formação foi bastante precária e não contemplou muito dos temas hoje considerados necessários ao trabalho em saúde na rede pública. Pode-se observar nos depoimentos abaixo, que mesmo que conhecimentos referentes a questões de saúde pública estivessem presentes nos cursos de graduação, esses não eram valorizados. Os entrevistados apontam que esses conhecimentos eram desacreditados e distantes de suas realidades.

"Acho que só hoje, só hoje não, nos últimos tempos se percebe que a falta que existe um pouco dessa compreensão não só na Psicologia Comunitária, mas desses outros dispositivos, lugares... a falta que tem a compreensão do funcionamento da rede, da articulação com os outros espaços, de alguma forma ... acho que até atualmente a situação mudou um pouco, ou tem mudado progressivamente, dessa relação mesmo com outros, com a intersetorialidade, a interdisciplinaridade. Acho que isso se escutava, mas ficava muito distante, se pensava que seria um avanço ir do consultório para o Posto de Saúde, ir para uma escola, ou ir para ... mas era mais uma parte, parece uma extensão do lugar de trabalho, sem uma grande crítica sobre, o que mais além disso, o que implica estar ali ou aqui. Então eu acho que ficou faltando um pouco à compreensão da organização dos serviços de saúde". (E3)

"Mas de qualquer maneira, assim, se a gente for pensar no quesito formal eu tive uma disciplina de Psicologia Comunitária, isso nos primórdios da Psicologia Comunitária, a gente teve Psicologia Social e tal. Mas ela não dava conta dessa intervenção, né! (...) A gente estudou aquelas, como é que chama, das cartas, do SUS... [As Conferências?] As Conferências, estudava aquelas coisas todas assim. Então, todo mundo sabia, mas já se desacreditava naquela época essas coisas". (E1)

Essa dificuldade de apropriação de conhecimentos, diferenciados daqueles referentes ao modelo clinico decorre da forma como foi construída a identidade do psicólogo historicamente. O exercício da atividade clínica, como indicado anteriormente, está vinculado ao status social da profissão e coaduna com uma série de valores presentes na sociedade ocidental. Observe o depoimento abaixo, romper com esse referencial é muito difícil, pois coloca em cheque o fazer do psicólogo e sua identidade profissional.

"Pensando na questão psicanalítica, que é minha formação, não há essa coisa de compreender, por exemplo, usar psicanálise para compreender o movimento social e, a partir disso, poder fazer uma intervenção. A gente não faz. Isso coloca minha cabeça a prêmio. E aqui, que a gente ainda tem muito pouca história em termos de universidade, alguns projetos muitos pontuais, não conseguem fazer esse movimento todo. Até pra garantir um certo respaldo do curso de Psicologia, da idéia social do psicólogo, a gente ainda tem que estar vinculado a um modelo clinico". (E1).

Esse desconhecimento do trabalho e desvalorização da atuação do psicólogo no serviço público estão associados, na concepção de uma das entrevistadas, a recente instituição do Sistema Único de Saúde. Ela considera que a partir da constituição do SUS surgiram novas demandas e novos espaços de intervenção para o psicólogo, que começaram a ser construídos, contudo o desenvolvimento teórico não acompanhou essa prática.

"Eu acho que houveram poucas discussões nesse sentido, acho também assim tem a ver com o fato de SUS ser novo, não tem tantos anos assim. Talvez tenha a ver com isso também, acho que foi uma discussão que não foi tão, tão... não ocorreu. Teve essa prática que me trouxe, que foi importante, mas em termos de teoria mesmo, de disciplinas, acho que não contemplou muito". (E4).

Esse depoimento, bem como outros vistos anteriormente, indicam que alguns desses profissionais, mesmo trabalhando com saúde pública, o fazem desconhecendo documentos importantes à atuação em saúde pública (por exemplo, conferências) e sem buscar uma formação complementar que os habilite a trabalhar na área. Por outro lado, o trabalho em saúde pública encontra-se associado à concepção de fracasso ou falta de êxito no trabalho clinico; ele não é percebido como uma opção; ele pode ser visto como um "bico" (alternativa de sustento, enquanto a clínica não se desenvolve a contento) ou como uma forma de conseguir pacientes para o consultório.

"Que na minha época, isso há 15 anos atrás quando eu comecei minha faculdade assim, só ia pra saúde pública quem era mal sucedido, ou seja, os fracassados que não conseguiam montar consultório, esses iam pra trabalhar em saúde pública, isso era uma... ainda existe hoje isso, um pouco menos". (E3).

"Até porque pra psicologia, pra psicólogos o concurso público tem virado por vezes uma salvação, né! Não é nem por uma opção de formação, mas até por uma questão de garantia de emprego assim." (E1)

Carvalho & Yamamoto (1999) observam que a inserção do psicólogo no setor público de saúde ocorre em um momento no qual o modelo médico-assistencial privatista se encontrava tanto em seu auge, como em seu franco esgotamento. Os psicólogos foram "empurrados" para o trabalho com classes sociais subalternas devido à crise econômica, assim a inserção do psicólogo nos serviços de saúde pública tornou-se uma alternativa de trabalho para classe (Campos, 1983).

Essa forma de inserção do psicólogo no trabalho público até hoje está produzindo efeitos. Em termos de formação, parece que no município de Santa Maria tanto os profissionais que estão na academia, como aqueles que se encontram no serviço público, continuam reproduzindo essa identidade do profissional do psicólogo vinculado a clinica.

Estas representações trazidas pelas falas dos entrevistados são preocupantes, pois se os próprios psicólogos (professores e profissionais da rede) estão representando o trabalho em saúde pública desta forma, como formar uma geração de psicólogos que representem o trabalho deste profissional na saúde pública de maneira diferente? Nesse sentido, a questão da formação do psicólogo parece ser um ciclo vicioso, no qual os profissionais reconhecem que saem despreparados para o trabalho na saúde pública, e uma vez na rede, sem subsídios adequados para o trabalho, não desenvolvem um bom trabalho; o que contribui, por sua vez, para essa imagem desvalorizada do trabalho do psicólogo na saúde pública.

Em busca de novos subsídios para a prática: A pós-graduação

Alguns profissionais reconhecem que a graduação não tem como contemplar a diversidade de possibilidades de atuação do psicólogo. Desta forma, consideram que a mesma deve apresentar as diferentes possibilidades aos acadêmicos que deverão aprofundar em um momento posterior.

"Eu acho que não tem como a graduação contemplar tudo. Eu acho que a gente toma conhecimento, tem contato com diversas teorias, com diversas práticas, né. Com diversas áreas e a gente precisa investir naquilo que nos interessar. Que a graduação não pode contemplar toda essa diversidade de teorias, acho que cada um tem que encontrar dentro daquilo que é apresentado e não é aprofundado, acho que em qualquer curso é assim". (E4).

Observa-se que esses profissionais ao buscar uma formação complementar acabam reproduzindo a lógica da formação estabelecida na graduação. Nesse sentido, os entrevistados buscaram prioritariamente realizar uma especialização na área Clínica, algumas vezes com intercruzamento ou não na área da saúde.

"Especialização em Psicologia Clínica e Institucional. Era uma tentativa deles juntarem essas duas construções tanto social, quanto clinica. Depois disso, eu tenho uma formação ... eu tenho um estágio na Itália, que eu vou falar disso porque é uma coisa importante assim, que foram durante quase 4 meses, a gente ficou conhecendo o sistema de saúde deles, de saúde escolar, que trabalhava com a questão da inclusão". (E1)

"A partir daí eu comecei a priorizar mais a clínica. Fiz uma formação então psicanalítica, trabalho com isso em consultório e estou vinculado à saúde pública desde há 10 anos atrás". (E2) "Eu já iniciei no curso de especialização na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é um curso de especialização em atendimento clínico com ênfase em psicanálise". (E5)

A supervisão acadêmica: Formando psicólogos

Dimenstein (1998) lembra que os profissionais e estudantes de Psicologia têm realizado um transplante de modelos teóricos e operativos oriundos de outras realidades e outros tipos de clientela para o trabalho em Saúde Mental Coletiva. De acordo com a autora, a academia não tem preparado os psicólogos para intervir em espaços territoriais locais que exigem potencial alto de resposta/ação, intervenções pautadas na intersetorialidade, mobilização de parcerias e de táticas específicas. Ela afirma que os cursos devem orientar seus currículos para a formação de profissionais capazes de pensar criticamente sobre os conhecimentos e referenciais teóricos aprendidos, deixando de lado a ingênua visão de que as teorias podem ser aplicadas universalmente e generalizadas para todos os contextos socioculturais.

Como vimos anteriormente, a formação dos entrevistados foi permeada pelo modelo hegemônico da clínica e este continua influenciando os currículos de graduação em Psicologia hoje. Conforme a opinião dos psicólogos entrevistados, que também trabalham com a supervisão de acadêmicos de psicologia, esse modelo continua a ser reproduzido, pois apesar dos acadêmicos atualmente transitarem por outros campos da psicologia, e até escolherem um estágio na rede pública, eles o fazem com a expectativa de poder utilizar um referencial clínico. Procuram em suas supervisões questionar essa visão, pois observam que o conhecimento trazido da academia não é facilmente aplicável ao contexto público. Observam que isso gera muita angústia nos estudantes. De fato, Oliveira et al. (2004) também reconhecem que a escolha pela área de atuação clínica é uma alternativa segura, menos ansiogênica, uma vez que atende às expectativas dos estudantes sobre sua atuação.

"Que é um serviço que a gente tá prestando, a gente é um estagiário, daí tu começa a ter uma visão sobre, começa a te questionar muitas coisas que tu vê na... Se tu tá num modelo clínico, tu sai e tu começa a conviver numa realidade e que aquilo não bate muito, tu começa, gera muita angústia e tu começa a querer ver alternativas pra trocar e poder dar conta disso, na integração com o estágio". (E2)

"Que hoje quando a gente recebe os estagiários aqui no serviço, continua carente, né, continua deficitário. Eles vêm, tem uma certa idéia ou interesse, mas é como se fosse apenas para ampliar a despeito da psicologia clínica. Então eu acho que é todo um trabalho que fica faltando nas graduações -na minha e acredito que também nas demais -de ver a Psicologia como uma área de trabalho que tá envolvida com outras áreas, que a questão mental tá articulada com outros mecanismos de saúde, com outras relações de saber, com outros profissionais". (E3).

"Que o pessoal vem muito com aquela coisa: Eu venho pra atender, né? E se tu deixar, eles vão atender. Eu vejo que essa transição não é tão simples de tu passar de um modelo. Tu tem um modelo de formação, modelo de psicólogo, sabe mais ou menos como é que é, né? Tu começa a te deparar com questões de saúde coletiva, tu começa a romper com algumas coisas, é difícil isso. Eu tento ajudar, que a pessoa pelo menos tente... o meu objetivo com essa estagiária, que eu dou supervisão é que ela comece a se antenar para essas questões, né! Que volte um pouco sua prática, que saiba que tem isso que é interessante de se pensar isso quando tu vai trabalhar, porque o modelo só de tu chegar e atender já não dá conta, né!" (E2).

Observa-se que existe um consenso por parte dos supervisores participantes do estudo quanto à necessidade do modelo de atuação da Psicologia ser repensado, assim como o papel da Psicologia e a atuação do psicólogo no campo da saúde serem redimensionados.

"Acho que só hoje, só hoje não, nos últimos tempos se percebe que a falta que existe um pouco dessa compreensão não só na Psicologia Comunitária, mas desses outros dispositivos, lugares, a falta que tem a compreensão do funcionamento da rede, da articulação com os outros espaços de alguma forma. Acho que, até atualmente, a situação mudou um pouco ou tem mudado progressivamente, dessa relação mesmo com outros, com a intersetorialidade, a interdisciplinaridade". (E3).

A fala dos supervisores locais refere à importância de reiterar a busca de novas alternativas de intervenção, seja devido a necessidades externas de mercado ou inerentes ao campo da Psicologia, que ofereçam novos aportes teórico-metodológicos. No entanto, observa-se que eles não conseguem necessariamente indicar o que eles consideram que seria uma forma diferenciada de atuação do psicólogo no contexto da saúde pública.

Dimenstein (1998) indica que:

Para que isso ocorra é preciso desinstitucionalizar nossos saberes e práticas, nossa formação acadêmica, questionando as formas instituídas que atravessam nossos cursos e que produzem um saber sobre o outro, tomado como verdade absoluta, e que nos servem mais como instrumento de poder e controle social (p.77).

De modo geral, a fala dos entrevistados nos leva a pensar que a formação de psicólogo, atualmente desenvolvida nas universidades da região, não tem contemplado as necessidades desse futuro e importante campo de atuação do psicólogo. Por sua vez, nos questionamos, já que a academia não está oferecendo esses subsídios, podem os acadêmicos encontrar esses conhecimentos profissionais que se encontram trabalhando com saúde oferecem qual a implicação efetiva que esses profissionais estão tendo nessa mudança de paradigma na Psicologia. Que modelos estão sendo oferecidos a esses acadêmicos, futuros profissionais, uma vez que os próprios supervisores reconhecem que se encontram despreparados para a atuação nesse contexto? Observamos nas falas dos entrevistados uma série de contradições, nas quais ora se reproduz o modelo de formação predominantemente clinico psicanalítico, pois ele garante o status e identidade profissional, ora se busca a construção de novas formas de atuação.

 

Atuação profissional

Intervenções realizadas na saúde pública

A inserção da Psicologia no campo da saúde pública no Brasil se deu devido a alguns fatores políticos e sociais presentes entre as décadas de 70 e 90. A decadência do milagre econômico brasileiro provocou um descompasso entre a oferta e a busca de serviços de saúde, tanto em função da redução da procura de pacientes por atendimento particular como pelo aumento do número de profissionais lançados ao mercado de trabalho. Spink (1983) observa que até a década de 80, os serviços de saúde mental eram ofertados por instituições privadas ou profissionais autônomos. Contudo, a falência da economia brasileira provocou uma reformulação nos serviços de saúde, uma vez que a população não tinha mais condições pagar pelo atendimento. Desta forma, surgiu uma pressão para a oferta de serviços de saúde público.

Além disso, Carvalho e Yamamoto (1999) indicam que algumas mudanças propostas por alguns movimentos na área da saúde contribuíram também para a reformulação do campo da saúde mental e para o reconhecimento da necessidade de se ter mais psicólogos nos quadros funcionais dos serviços públicos sanitários. Essas propostas foram especialmente discutidas nas Conferências (Conferência Internacional sobre a Atenção Primária de Saúde de Alma Ata, na VIII Conferência Nacional de Saúde e II Conferência Nacional de Saúde Mental).

Apesar da abertura do campo de trabalho para os psicólogos na rede de saúde, não houve uma ampliação dos referenciais teórico-metodológicos que dessem conta dessa nova realidade profissional; o modelo clínico continuou sustentando grande parte das intervenções em Psicologia da Saúde (Dimenstein, 2000). Vimos que essa realidade, ainda se encontra presente hoje em dia. Todos profissionais entrevistados neste estudo trabalham com atendimento clínico individual nos serviços de saúde, sendo que dois deles restringem suas intervenções apenas a essa modalidade de intervenção psicológica.

"Então é só atendimento individual, minha abordagem é a psicanálise, eu trabalho com a psicanálise. Então, é só do atendimento individual. Seria inviável pelo diagnóstico ter grupos, não teria como, não seria possível". (E4).

"Eu trabalhava como trabalho até hoje com adolescente e adulto (...) Com atendimento clínico, sessão de 30 minutos, um rol de pacientes enorme e se tu me perguntares se existe algum tipo de política pra além do atendimento, pra além do consultório, não existe nenhuma (...) Eu nunca fiz nenhum outro tipo de projeto que não fosse atendimento clínico, na verdade não sei se é um desinteresse da prefeitura ou dos profissionais, entende?" (E1).

O que está acontecendo? Os próprios psicólogos que trabalham na rede reconhecem que o uso desse modelo biomédico não dá conta da realidade cotidiana encontrada nos serviços de saúde, então porque continuam sendo desenvolvidas intervenções apenas clinicas? O primeiro entrevistado considera que pode ser desinteresse dos gestores, ou dos próprios psicólogos que trabalham com saúde; contudo, podemos pensar que esse problema não se situa apenas em termos motivacionais dos agentes da rede, ele abrange aspectos sócio-históricos envolvidos na formação do psicólogo e na identidade profissional. Considera-se que os psicólogos realizam atividades predominantemente clinicas, pois tanto a formação esteve e ainda está voltada para essa atividade, como o status profissional a habilitação nesta área. Além disso, sem conhecer ou construir outras modalidades de intervenção para o trabalho com saúde pública, os psicólogos que se encontram na rede acabam transmitindo possivelmente à mensagem que o trabalho do psicólogo se restringe a atividade clinica; que por sua vez, contempla "a demanda" da população, que conhece apenas essa forma de atividade, que é historicamente disseminada.

Essa realidade, contudo, não é exclusiva dos psicólogos entrevistados, ela é também reproduzida por outros profissionais da saúde, que acabam principalmente, desenvolvendo mais práticas curativas, do que de promoção e prevenção em saúde (Figueiredo & Rodrigues, 2004; Spink, 2003; Yamamoto, Câmara, Silva & Dantas, 2001; Yamamoto, Siqueira & Oliveira, 1997).

Os psicólogos indicam que outras atividades podem ser desenvolvidas por eles, tais como: a supervisão de estudantes de Psicologia, a coordenação de grupos terapêuticos e a gestão do serviço de saúde. Eles consideram que é difícil propor novas formas de intervenção, devido a questões de estrutura, de tempo e demanda de trabalho. No entanto, observamos que alguns desses profissionais se encontram ativamente engajados nessa busca por novas formas de atuação, embora isso não seja muito fácil, pois implica em redimensionar o papel do psicólogo.

"Quando eu cheguei aqui o modelo era clínico, clínico individual para atender crianças. (...) E é ainda, só que hoje em dia a gente tá questionando um pouco isso, tu tem que ter essa abertura, tu tem que estar, tu tem quer ter um modelo e estar sempre aperfeiçoando ele, né! Tem que estar buscando alternativas, né! O que muitas vezes não é fácil, tem que pegar formação extra, tu vai ter que trabalhar toda a equipe pra estar mudando a forma de entender os casos, tu te depara com a administração pública, que muitas vezes não tá a fim disso. Que quer mais que tu atenda. (...) No teu trabalho, tu tem que ter um pouco da... a gente fala assim, que tem autores que falam, tu tem que tentar, tu vai ter que modificar os limites da tua disciplina, da Psicologia no caso. No caso aqui a gente tem que ver como é que é essa Psicologia um pouco com o Serviço Social, como é que dá essa interface, como a gente vai fazer essa relação, tu vai ter o teu papel que tu nunca vai deixar de ter ... mas muitas vezes tu vai ter que ter um jogo de cintura para ver com outras questões, de repente tu tem um modelo mais duro "isso aqui não". (...) trabalho em equipe, tu tem que ter um jogo de cintura enorme para ir lidando com essas questões com outros profissionais, que a tendência é dizer: "Não, o cara tá fazendo errado! Não pode, não pode!" (...) Ir construindo essa forma de trabalho, na parte da gestão que é o papel que eu acabo fazendo aqui como coordenador do serviço". (E4)

Por outro lado, algumas atividades desenvolvidas, não são consideradas ideais, pelos psicólogos. O trabalho em grupo, por exemplo, é menos valorizado, que o clinico e pode ser considerado como um paliativo, uma vez que a clinica se torna inviável, em função da grande demanda. Kliemann e Dias (prelo) observaram que o trabalho em grupo desenvolvido por psicólogos e estagiários de psicologia em uma Unidade Básica de Saúde ocorria mais em função da demanda numérica do que de uma justificativa técnica ou crédito a essa modalidade terapêutica como àquela recomendada a população atendida. A desvalorização do trabalho em grupo na saúde pública é apontada por uma das entrevistadas, embora a mesma considere que essa modalidade de atendimento possa complementar outras formas de atendimento.

"A gente tem uma preocupação muito grande com o paciente, com o atendimento do paciente, e acho que tu não pode ficar preso a números. A gente tem que ter essa preocupação é claro porque depende, o CAPS, por exemplo, é um serviço que se sustenta a partir dos atendimentos, dos procedimentos. (...)A gente tem em mente assim que nenhum tratamento substitui o outro, a gente não pode dizer, porque me parece que tem um discurso recorrente na saúde pública que, por exemplo, o grupo, bom então o grupo abarca um número maior de pessoas, então o grupo tem que ser privilegiado dentro da rede de saúde pública. Não concordo, e acho que não concordamos, eu pessoalmente não concordo, cada abordagem é insubstituível, uma vai complementar a outra e o tratamento mesmo das psicoses se dá no atendimento individual, o grupo tem outra função. Então, é...não, a gente não pode tomar, e pensar que bom, se temos que atender, atender, atender, do ponto de vista meu e isso acaba funcionando aqui".(E5)

Outra dificuldade apontada pelos entrevistados é a construção de uma prática articulada com outras especialidades, onde os campos e saberes se permeiam. Os profissionais reconhecem que trabalhar em equipe é uma competência imprescindível ao trabalho em saúde, contudo indicam que sua formação não os prepara para isso.

"A formação do psicólogo, da gente é ainda muito voltada para o trabalho só de psicólogo, só entre psicólogos, e hoje em dia o que tu encontra nessa área é um trabalho multiprofissional. Então tu vai trabalhar com outras pessoas de outras áreas e isso tudo ... já nessa relação tu já começa a problematizar a tua ética, a tua relação com os usuários do serviço, tua forma de atendimento, porque não é só tu que tá vendo ele, tem outros profissionais". (E2)

Esse distanciamento entre a Psicologia e outras especialidades, parece servir de defesa ao fazer do próprio psicólogo, pois temendo a dissolução dos limites do conhecimento de sua área através desse contato com demais profissionais, prefere recolher-se e trabalhar dentro dos limites mais restritos dos saberes da clínica individual. Veja o que o entrevistado 3 denomina um autoencastelamento das profissões da saúde:

"Então eu acho que é todo um trabalho que fica faltando nas graduações -na minha, e acredito que também nas demais. De ver a Psicologia como uma área de trabalho, que tá envolvida com outras áreas; que a questão mental tá articulada com outros mecanismos de saúde, com outras relações de saber, com outros profissionais (...) eu nem tinha dimensão do que isso era; naquela época a gente já se achava na vanguarda por transcender a fronteira da clínica.(...) E há uma certa resistência assim tanto dos alunos, quanto dos professores, quanto dos próprios profissionais em tentar entender esse auto-encastelamento, não só dos psicólogos, acho que dos dentistas, dos médicos, dos fonos, dos fisio ... de entender a saúde pública, mas ainda dentro de um limite da própria profissão, né. Sem ver as interfaces, os atravessamentos diretos e indiretos". (E3)

Desestímulo dos profissionais

Algumas características do Sistema de Saúde contribuem para a resistência dessa mudança do modelo de atenção, destacando-se dentre elas o sistema de procedimentos referenciados do SUS, que prevê e remunera de maneira diferenciada os procedimentos individuais - no caso, a psicoterapia. Isso acaba gerando um sistema de retroalimentação, no qual os psicólogos fazem o que gostam e o que lhes traz certa segurança, em contrapartida mantém a remuneração por produtividade em bom nível. Além disso, a política de Recursos Humanos do SUS também tem sido desmotivante devido a inúmeros fatores como: a redução do investimento no setor de saúde; o insuficiente incentivo para a formação, capacitação e educação continuada dos trabalhadores em saúde; a falta de integração do aparelho formador com a realidade dos serviços; a heterogeneidade dos planejamentos em recursos humanos nos três níveis do governo; e, a discrepância de remuneração por carga horária (Oliveira et al, 2004).

Contudo não é somente o desestímulo do Estado que faz com que os psicólogos não se envolvam adequadamente com a saúde pública, vimos anteriormente que a formação acadêmica ainda esta calcada em uma identidade profissional predominantemente voltada para a área clínica. Como vimos, parece haver um movimento circular no qual a formação não prepara o psicólogo para trabalhar com saúde, e este por sua vez, despreparado e desmotivado, busca, desenvolver apenas as atividades por eles conhecidas e mesmo consideradas ineficientes frente às demandas do contexto. Assim, as concepções de "fracasso", "ineficiência" e "prostração" continuam associadas ao trabalho em saúde pública.

Observa-se que a maioria dos entrevistados não tinha o trabalho no sistema público como atividade exclusiva, dos 5 entrevistados, 4 exerciam atividades em clínicas ou consultórios particulares. Outros ministravam aulas nos cursos de Psicologia das instituições de ensino superior da cidade. Ter outras funções é uma forma de adquirir o reconhecimento e o estímulo profissional que no emprego público eles não obtêm com tanta intensidade e freqüência?

Freitas (1998) menciona que essa prática predominantemente clínica realizada pelos entrevistados -e, muitas vezes, reforçada pelo sistema de saúde -vai ao encontro dos interesses dos psicólogos que preferem desconsiderar as necessidades da população, a possibilidade de desenvolver um espírito crítico por parte desta e estabelecer relações com outros conhecimentos. Esse autor afirma que os instrumentais, práticas e relações estabelecidas com os pacientes são construídos de acordo com os valores e concepções adotados pelos profissionais:

Em outras palavras, a visão de homem e de mundo, assumidas e vividas pelos profissionais, é que se constitui como aspecto crucial na criação ou determinação das possibilidades sobre o como estudar, pesquisar e/ou intervir, assim como na delimitação e seleção das estratégias de intervenção a serem utilizadas (p. 176).

Percebe-se, então que a mudança do modelo de atenção em saúde não passa somente por um movimento de transformação do sistema de saúde, mas requer uma mudança de valores e paradigmas dos próprios profissionais e de sua classe, como afirma o seguinte entrevistado:

"Quando eu cheguei aqui o modelo era clínico, clínico individual para atender crianças. No começo, eu comecei a trabalhar e tal e era isso que a gente fazia, não tinha algumas questões sobre o atendimento, mas o modelo era aquele, né! E é ainda, só que hoje em dia a gente tá questionando um pouco isso, tu tem que ter essa abertura, tu tem que estar, tu tem que ter um modelo e estar sempre aperfeiçoando ele, né! Tem que estar buscando alternativas, né!" (E2).

Tal como se observou nas entrevistas, Dimenstein (1998) afirma que os psicólogos ainda não têm uma atuação condizente com os princípios do sistema público de saúde e isso provoca certa crise:

As raízes dessa crise em que o psicólogo vive não podem ficar restritas ao tipo de demanda - que se diferencia daquela da clínica privada - e às dificuldades atribuídas à clientela de baixa renda - usuária do setor público -, nem aos problemas relacionados com a estrutura e organização dos serviços, pois apesar de serem elementos importantes na determinação das práticas dos psicólogos, não atingem o cerne da questão. Assim, considera-se que as origens dessa crise devem ser buscadas junto aos aportes teóricos e práticos que fundamentam seus modelos de atuação, na sua identidade e cultura profissionais, nas expectativas que a sociedade tem em relação ao seu papel no campo da saúde, na defasagem entre o modelo de subjetividade e valores culturais de pacientes e profissionais (p. 73-74).

 

Considerações finais

Conforme a análise dos dados apresentada nessa pesquisa, foram levantados alguns questionamentos sobre as prováveis relações entre alguns pontos referentes à formação dos psicólogos, suas práticas e o direcionamento destas para o sistema de saúde público.

Pode-se perceber a existência de um descompasso entre o discurso dos profissionais que assinalam que suas intervenções têm sido embasadas num modelo mais biopsicossocial -e a prática destes, na qual tem sido priorizado o atendimento clínico individual enraizado no paradigma médico hegemônico. A formação dos profissionais influenciou de certa forma sua atuação profissional centrada mais na psicoterapia individual e os entrevistados percebem que essa cultura profissional e psicologizante continua permeando a academia e, conseqüentemente, a imagem que os acadêmicos e a população em geral tem da atuação da Psicologia.

No entanto, a tendência de priorizar o modelo clínico vai além da vida acadêmica e prolonga-se para a vida profissional em virtude de outras razões que não só as mencionadas da formação. Percebe-se que a manutenção dessas práticas é, muitas vezes, uma escolha dos profissionais, que se sentindo imobilizados diante de um sistema de saúde que incentiva a prática da psicoterapia individual -remunerando essa atividade de forma distinta das outras e reconhecendo-a como função mais exclusiva dos psicólogos -acabam não inventando e construindo novas formas de intervir mais condizentes com as necessidades e demandas da população. Os psicólogos optam por seguir as expectativas que se criam em torno de seu trabalho também por implicações pessoais, uma vez que percebem a saúde pública como um campo desvalorizado para a profissão, pois consideram haver no mercado privado um reconhecimento maior de seu trabalho. Com isso, eles mesmos acabam reforçando essa imagem distorcida da intervenção em saúde.

Cabe ainda assinalar um aspecto interessante a ser discutido: embora os psicólogos atuantes na rede falem da necessidade de um novo modelo de saúde, observamos que sua prática é eminentemente clínica. Os entrevistados apontam para necessidade de uma formação diferenciada, contudo, suas falas sugerem que esta deve ser construída somente a partir da universidade. Eles próprios não se colocam enquanto agentes sociais, envolvidos nessa transformação; não percebem que podem tanto realizar questionamentos sistemáticos à academia como também produzir conhecimentos a partir de suas realidades práticas para auxiliar a formação de novos psicólogos.

Observamos que o modelo recebido em sua formação é muito forte e continua a se perpetrar em suas práticas, e na busca por formação em nível de pós-graduação. Vemos que apesar da necessidade da construção e adequação de referenciais da Psicologia, a sua busca por especialização ocorre na área clínica. Acreditamos que diversos fatores levam a isso, tanto fatores históricos relacionados à inserção do psicólogo no campo da saúde pública como a identificação predominantemente da classe profissional de psicólogos com a área clínica. Além disso, o número de formações voltadas à área de saúde pública ainda é pequeno frente às necessidades e demandas da população de profissionais da saúde.

Outro aspecto relacionado a isso é que a formação "específica" para o trabalho em saúde pública encontra-se ou deve encontrar-se calcada sobre uma lógica distinta daquela das especialidades particulares. Se observarmos grande parte das especializações voltadas para o trabalho com saúde, há uma busca por integração das diferentes especialidades. E isso pode acarretar nos psicólogos certa resistência de compartilhar saberes e conhecimentos devido a sua insegurança quanto à definição do seu núcleo de saber. Com isso, os psicólogos temendo o borramento do campo da saúde coletiva com o núcleo de seu conhecimento específico tal como define Campos (2000), preferem enclausurar-se em seus consultórios particulares a estabelecerem interlocuções com profissionais das demais áreas da saúde.

Felizmente, alguns movimentos mencionados pelos entrevistados têm sinalizado para uma mudança gradual em direção ao modelo de atenção integral a saúde, mas ainda com certas resistências internas e externas. De acordo com Vasconcelos (Saldanha, 2004), as classes profissionais constroem identidades, estabelecem padrões de conhecimentos e verdades, bem como repertórios de atividades que lhes asseguram segurança e status social. A mudança desse paradigma causa certa ansiedade e insegurança quanto à identidade profissional construída, expondo-os à fragilidade e às situações de "não saber", trazendo ameaça ao status adquirido e aos interesses econômicos, políticos e institucionais. Logo, a tendência inicial é a de se criar defesas à transformação no modelo de intervenção, tal como se observa no caso desse estudo.

A urgência de mudanças é gritante no campo da Psicologia no que diz respeito à intervenção na saúde pública. No meio acadêmico, é imprescindível a criação de metodologias de ensino-aprendizagem que incentivem a participação dos estudantes, assim como a construção de um pensamento crítico e reflexivo que permita o questionamento e a revisão dos modelos de atenção historicamente utilizados nas intervenções "psis". Além disso, seria muito importante a experiência prática dos acadêmicos em instituições de diferentes níveis de atenção em saúde contribuindo assim com a formação de profissionais com competência geral e capacidade de resolutividade, traços essenciais para a garantia de atenção integral e de qualidade à saúde da população.

Em termos de profissionais da rede é fundamental que estes se percebam, não só como aqueles que fazem, mas como aqueles que pensam e, nesse sentido, são produtores de novos conhecimentos, a serem utilizados na academia. É preciso que essas pessoas que estão constantemente trabalhando e observando as limitações desse modelo clínico-privado contribuam com suas experiências, apontando para novas formas de saber, fazer e ser.

Pensar formação é pensá-la de forma contínua. Nesse sentido, é fundamental que os profissionais atuantes nas universidades e nos serviços de saúde estejam atualizados com os princípios do SUS e orientem suas ações de forma a colocar em prática tais fundamentos, sem engessá-los, mas contextualizados com a realidade dos usuários.

Nesse sentido finalizamos com algumas idéias de Fagundes e Burnham (2005) para a formação em saúde. Estas autoras indicam uma necessidade de reformulação nos currículos que trabalham com um modelo de aprendizagem, no qual sempre deve ocorrer uma precedência dos referenciais teóricos sobre a ação, esta última é compreendida como uma aplicação prática dos conteúdos teóricos recebidos do professor. Essa concepção, além de não dar conta da complexidade dos fenômenos vividos, acaba transformando os "campos de prática" em "receptores passivos" dos conteúdos fragmentados e, muitas vezes, distantes da realidade vivida. Na concepção das autoras é necessário que a lógica da formação seja transformada, oferecendo espaços de cooperação e co-construção dos saberes de maneira integrada entre universidade e comunidade.

 

Referências

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Recebido em 24/07/2007
Aceite final em 01/07/2008

 

 

* Endereço eletrônico para correspondência: cristcris@hotmail.com

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