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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.1 no.1 Juiz de fora June 2008

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

O grupo de reflexão na formação do profissional de saúde: um enfoque construcionista social*

 

The reflexive group in the education of healthcare professionals: a social constructionist approach

 

 

Carla GuanaesI,**; Augustus Tadeu Relo de MattosII

IFaculdade de Medicina de Marília, Marília, SP
IIUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP

 

 


RESUMO

Neste artigo buscamos descrever o uso do Grupo de Reflexão, desenvolvido segundo a abordagem construcionita social, na formação do profissional de saúde para atuação na Atenção Básica. Para tanto, descrevemos alguns processos conversacionais desenvolvidos nos grupos, que permitem a reflexão crítica sobre os sentidos de saúde, doença e cuidado que permeiam as práticas profissionais e que sustentam determinadas posições pessoais. A partir disso, concluímos que esse tipo de metodologia de ensino favorece a integração entre os aspectos teóricos e vivenciais presentes no cotidiano da assistência em saúde, contribuindo com a formação do profissional para atuação na Atenção Básica.

Palavras-chave: construcionismo social; formação profissional; saúde; atenção básica.


ABSTRACT

We aim at describing the use of the Reflexive Group Technique in the education of primary healthcare professionals, based on a social constructionist approach. We describe conversational processes that take place in the group, which allow individuals to develop critical stances on meanings of health, illness and care, that influence their practices and sustain their personal positions. We argue that the Reflexive Group Technique favors the link between theoretical issues and experiences that take place in health assistance, thus contributing to professional education in the context of primary healthcare.

Keywords: social constructionism; medical education; health; primary healthcare.


 

 

A formação em saúde: investindo em um novo perfil profissional

Nas últimas décadas, reflexões sobre a formação do profissional de saúde emergiram, ressaltando a necessidade de se adequar o perfil do egresso às necessidades dos setores onde irão atuar, sobretudo considerando-se os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde). Essa discussão enfatiza, sobretudo, a necessidade de uma formação generalista, crítica e reflexiva, que articule os conhecimentos teóricos e práticos ao desenvolvimento concomitante de habilidades pessoais e de relacionamento humano, favoráveis às práticas de comunicação, liderança, trabalho em equipe e interação com a comunidade. Estas práticas constituem-se fundamentais no atual cenário de saúde brasileiro, que tem a Atenção Básica como estratégia de reorganização do modelo assistencial em saúde.

No campo da educação superior, a promoção de práticas reflexivas como forma de integrar os diferentes tipos de conhecimento envolvidos no processo de formação profissional tem sido valorizada como um recurso útil no desenvolvimento de novas competências e habilidades. Uma discussão acerca dos tipos de saberes que envolvem o processo de formação profissional tem emergido entre teóricos da educação (Schön, 1987; Zabala, 1998) que questionam a prevalência de um modelo educativo centrado no conhecimento teórico-técnico, em detrimento das dimensões práticas e vivenciais que também perpassam o processo de ensinoaprendizagem. Neste debate, o desenvolvimento de habilidades interpessoais e da capacidade para refletir sobre a própria formação, sobre o status do conhecimento científico e sobre as particularidades dos diferentes contextos em que uma dada prática se desenvolve, se destaca como objetivo essencial da formação superior.

Aplicando tais reflexões ao contexto da saúde, vimos que a passagem para uma compreensão biopsicossocial do processo saúde-doença-cuidado tem permitido ampliar a visão sobre a formação profissional, evidenciando não apenas a necessidade de se adquirir conhecimentos teóricos e técnicos interdisciplinares, como também de se criar mecanismos para o profissional se pensar como sujeito implicado no processo de cuidado (Ministério da Saúde, 2006; Ribeiro & Motta, 1999).

No campo específico da Atenção Básica, estas questões assumem relevância ainda maior, uma vez que esse campo valoriza uma compreensão sistêmica e abrangente acerca do processo saúdedoença-cuidado; o trabalho em equipe multiprofissional; e a qualidade da relação entre o profissional de saúde e a comunidade, em diferentes contextos (Souza, 2001).

Neste artigo, buscamos contribuir com a reflexão sobre a formação do profissional de saúde para atuação nesses novos cenários. Para tanto, descrevemos a experiência de uso do Grupo de Reflexão, desenvolvido segundo os pressupostos da abordagem construcionista social, no treinamento de estudantes para atuação na Atenção Básica, assim ilustrando sua fertilidade como metodologia ativa de ensino-aprendizagem.

 

O grupo de reflexão: um enfoque construcionista social

Denominamos Grupo de Reflexão uma metodologia ativa de ensino-aprendizagem na qual o estudante é incentivado a refletir sobre seu conhecimento teórico, técnico, tácito e sobre sua prática profissional em saúde. Esse grupo constitui um espaço conversacional específico para a negociação e tranformação de sentidos sobre saúde, doença e cuidado, a partir das trocas dialógicas entre seus integrantes.

Essa prática guarda semelhanças com outras práticas reflexivas já referidas na literatura e freqüentemente utilizadas na formação médica (Balint, 1988; Cassorla, 1994; Muniz & Chazan, 1992; entre outras), porém difere em seus pressupostos e orientação teórica. Essa diferença implica numa descrição distinta sobre o processo de aprendizagem do grupo, suas formas de manejo e modo de construção do conhecimento.

A prática aqui descrita se sustenta nas contribuições do construcionismo social à compreensão do processo de produção de sentidos (Gergen, 1997; Spink, 1999) e do processo grupal (Guanaes, 2006; Rasera & Japur, 2007). Esse referencial privilegia a investigação da atividade comunicativa humana na qual os sentidos sobre o mundo são construídos (Shotter, 2000). Para os autores construcionistas, os sentidos que informam nossa compreensão sobre o mundo são construções sociais, resultantes de trocas conversacionais entre as pessoas, situadas em um contexto sócio-histórico-cultural específico.

Guanaes (2006) sintetiza como centrais ao pensamento construcionista social as seguintes características: a) a noção de linguagem em uso, isto é, de linguagem como prática social, construtora da realidade e de formas de vida; b) o foco relacional, e não individual na análise da produção de sentidos; c) o foco no momento interativo; e d) a importância do contexto social, histórico e cultural, que delimita as possibilidades de emergência de qualquer significação, e que se revela, nos processos de interação imediata, através dos gêneros de fala, do uso de discursos sociais e das inúmeras vozes presentes nos enunciados dos interlocutores.

Ampliando as noções construcionistas à compreensão do Grupo de Reflexão, este pode ser descrito como um recurso conversacional, em que estudantes e docentes estão engajados em uma ação-conjunta de negociação de sentidos de saúde, doença, cuidado e de si mesmos como profissionais de saúde. Como em outros espaços de produção de sentidos, no Grupo de Reflexão os participantes negociam, conjuntamente, posições e narrativas pessoais / profissionais, em jogos de linguagem que guardam relação tanto com o contexto imediato, como com o contexto social mais amplo em que essa prática discursiva se desenvolve.

Partindo dessas descrições, o objetivo do Grupo de Reflexão é criar um contexto dialógico, no qual a negociação ativa de sentidos possa contribuir com a revisão e reflexão sobre a formação profissional e as ações desenvolvidas, promovendo, conseqüentemente, transformações nas práticas de cuidado em saúde.

 

O grupo de reflexão na formação em saúde: relato de uma experiência

Nesse artigo, descrevemos o uso do Grupo de Reflexão com alunos do 5º ano de um curso de Medicina1 de uma instituição privada do interior do Estado de São Paulo, durante seu Treinamento em Saúde Coletiva. Segundo o projeto pedagógico da instituição, o objetivo geral desse estágio é propiciar conhecimentos teóricos e vivência prática em Saúde Coletiva, com um enfoque de Atenção Primária. Durante dois meses, os estudantes atuam em Unidades de Saúde da Família, desenvolvendo atendimentos clínicos, visitas domiciliárias, grupos de educação popular e ações de prevenção, promoção e vigilância em saúde.

O Grupo de Reflexão aconteceu nesse contexto da formação profissional dos estudantes desse curso. Ao longo do estágio foram realizados de 8 a 9 encontros de grupo, cada um com duração média de duas horas por semana. Participaram dos grupos todos os estudantes escalonados para esse estágio (entre 8 e 12 estudantes por grupo).

Nesses grupos, foram discutidos temas préselecionados, que funcionaram como disparadores da conversa grupal, a saber: Estratégia Saúde da Família; Hipertensão; Saúde da Mulher; Saúde da Criança; Saúde do Idoso; Tuberculose e Hanseníase; Diabetes, DST/AIDS.

Os grupos foram coordenados por uma psicóloga e por um médico de família, que atuaram como facilitadores do processo conversacional, visando construir um espaço dialógico, propício à troca de experiências e à reflexão sobre o exercício profissional. Buscavam promover a qualidade das interações no grupo e o questionamento sobre os sentidos de saúde, doença e cuidado presentes em suas narrativas e suas implicações.

Geralmente, os facilitadores solicitavam que os estudantes relatassem suas experiências de atendimento, preconceitos, dificuldades na relação com a comunidade ou mesmo seus casos de sucesso. A postura dos facilitadores era de escuta, questionamento e curiosidade (Cechin, 1998). Existia também a tentativa de não tomar nenhum comentário como sendo uma questão, dúvida ou problema individual. Ao contrário, buscava-se mostrar como tal sentido poderia ser compreendido no contexto de discursos sociais mais amplos. O objetivo do grupo não era gerar interpretações ou, mesmo, trazer conclusões sobre os temas discutidos, mas sim mostrar a complexidade dos mesmos, sensibilizando os estudantes para os recursos que já tinham disponíveis para lidar com as situações de seu cotidiano. As conversas buscavam, portanto, aproximar os aspectos teóricos às questões vivenciadas na prática nas Unidades de Saúde da Família, fomentando a reflexão, a descoberta de recursos pessoais e o desenvolvimento de novas competências para o exercício da assistência em saúde.

A seguir, descrevemos alguns processos conversacionais observados nos grupos e que justificam nossa opção por utilizar essa metodologia na formação do profissional de saúde. Em cada um desses processos, buscamos ilustrar a relação do estudante e dos facilitadores com os conteúdos discutidos, visando a transformação das práticas de cuidado.

 

Da postura profissional: da teoria à prática do cuidado integral

No contexto da Atenção Básica, a visão do médico generalista, sustentada por uma postura humanista, que visa a compreensão do paciente como um todo e a assistência integral em saúde, coloca-se como uma abordagem alternativa à prática médica tradicional que tem como foco a doença e a cura. Esta mudança de visão valoriza o desenvolvimento de outras habilidades, para além do conhecimento teórico-técnico. Capacidade de trabalho em equipe, manejo de grupo, escuta, relacionamento interpessoal, entre outras, são características freqüentemente valorizadas no profissional que atua na Atenção Básica.

Nos Grupos de Reflexão, muitas vezes, observamos que os estudantes sabiam descrever os princípios da Atenção Básica e a Estratégia Saúde da Família, mas, na prática, tais preceitos pareciam simplificados na máxima "tratar bem o paciente". Em suas narrativas, traziam a idéia de que um bom médico era aquele que, além de conhecer bem a teoria e a técnica para realizar os procedimentos necessários à atenção em saúde, sabiam ouvir bem os pacientes em suas queixas, sendo educado, neutro, atento e respeitoso.

Nas conversações grupais, pudemos refletir com os estudantes sobre a complexidade destas definições, mostrando que estar em relação pressupõe a legitimação do outro em seus próprios conhecimentos e a promoção da autonomia. Do mesmo modo, buscamos desnaturalizar a idéia de neutralidade, traduzida por um dos estudantes na metáfora: "devemos entrar na sala vestindo o jaleco e deixando nosso jeito de ser do lado de fora da sala"2.

O exemplo seguinte ilustra essa reflexão. Apresenta uma interação em que os estudantes discutiam a Estratégia Saúde da Família e, em específico, assistência ao paciente idoso. Defendendo a idéia de que o profissional de saúde precisa dar mais atenção ao paciente, uma estudante relata um de seus atendimentos:

E: Esta semana mesmo, eu atendi uma velhinha que não tinha nada, mas que foi lá no Posto. Fiquei um tempão com ela na sala. Não agüentava mais e ela lá falando... Fiquei lá, mais de uma hora ouvindo a véia! (risos) Ela não tinha nada, só queria falar e eu fiquei lá ouvindo... (faz pose de escuta, demonstrando cansaço). Ouvi, conversei com ela, tudo.... Acho que ela até foi embora mais aliviada.

Esse trecho ilustra como a valorização apenas teórica da prática da escuta pode muitas vezes levar à uma postura de escuta desatenta, desinteressada. No caso, a estudante não se envolvia de fato com a paciente e sua história, mas cumpria o que lhe era teoricamente exigido segundo o discurso da humanização. Ela ficava "uma hora ouvindo a véia" mas se cansava, possivelmente julgando essa prática terapeuticamente irrelevante. Assumir a posição de escuta lhe trazia desconforto, por contrastar com suas expectativas em relação ao papel do médico. Para ela, a paciente "não tinha nada", mas mesmo assim ela deveria ouvi-la. O papel que desempenhava não era, portanto, investido de valor pessoal e profissional. Nota-se, aqui, que a ação da estudante se sustentava no modelo tradicional, embora teoricamente justificasse sua prática como sendo representativa de uma atenção integral, fundamentada nos pressupostos do modelo biopsicossocial de assistência em saúde.

 

Da relação entre linguagem e ação: implicações para o cuidado em saúde

Um outro processo conversacional desenvolvido nos grupos foi a compreensão de que nossas descrições sobre o mundo (sobre os pacientes, suas queixas e dificuldades) criam determinadas realidades. Ilustramos esse processo através de uma conversa desenvolvida no Grupo de Reflexão sobre a abordagem ao paciente idoso.

Respondendo à pergunta de um dos facilitadores (O que é ser idoso?), um estudante definiu: "ser idoso é estar mais perto da morte". Pensando sobre as implicações dessa visão para as práticas de cuidado, o estudante descreveu sua percepção de que muitas vezes os profissionais privilegiam o atendimento de pacientes jovens ou deixam de usar todos os recursos possíveis no cuidado do paciente idoso, por acreditarem que a morte já está próxima.

A concepção construcionista social acerca do papel performático da linguagem (linguagem em uso) enfatiza a relação entre significado e ação. Nesse caso, permite compreender a relação entre o sentido de ser idoso presente na visão do estudante e suas possíveis implicações para as práticas de cuidado. Os sentidos que construímos sobre o mundo ou as pessoas não são inócuos. Eles geram práticas sociais, criam determinadas realidades. Nas palavras de Andersen (1997, p.5), "a linguagem não é inocente".

Partindo dessa compreensão, o cuidado ao paciente idoso passou a ser discutido no grupo através de uma perspectiva reflexiva e pragmática. Primeiramente, os estudantes conversaram sobre como se sentiriam se tais ações fossem tomadas com as pessoas mais velhas de sua própria família (avós, tios, pais, etc). A partir disso, refletiram sobre questões éticas, pensando sobre os riscos de se tomar decisões com base em critérios rígidos (idade) e com base em seu próprio julgamento, sem considerar a pessoa, sua história e autonomia.

Além disso, os facilitadores buscaram com os estudantes explicitar os discursos que circulam em nossa sociedade sobre o ser idoso, ilustrando como estes sustentam, muitas vezes, práticas sociais de descrédito, descaso e descuido. Desconstruindo o discurso hegemônico da velhice como uma fase de vida que envolve apenas perdas e doenças, os estudantes refletiram sobre como tais sentidos influenciam a relação profissional de saúdepaciente, restringindo outras possibilidades de descrição desse mesmo período de vida e orientando as condutas anteriormente criticadas por eles3.

É importante destacar, contudo, que o processo de reflexão, pautado no processo de desconstrução de significados e análise de suas implicações, também pode gerar angústia e questionamento. É o que ilustra o trecho seguinte, que apresenta o questionamento de um estudante aos facilitadores:

Ea: Mas eu fiquei meio perdido agora. Precisava de um fechamento, eu acho (...). Por que não sei mais o que é ser idoso... Meu pai, por exemplo, ele tem 65 anos, mas eu não acho ele idoso. Mas pela classificação ele é. Então, será que ele é?

F1: O que seu pai tem ou faz que te leva a achar que ele não é idoso?

Ea: Ah, ele trabalha ainda, é ativo, não tem este monte de problema que idoso tem.

F2: Idoso sempre tem um monte de problema, então, o que vocês acham?

Eb: Nossa, minha avó tem 83 anos é tá mais animada que eu. Eu boto ela na moto e a gente sai por aí! (risos do grupo). Vocês acham que é brincadeira? Vai lá ver!

Ec: É que o pai da gente não parece que fica velho...(...)

Ea: Tem que mudar a classificação? Porque quem a gente vai chamar de idoso?

F1: Tem que mudar a classificação ou o modo como a gente vê o que é ser idoso?

Esse trecho também ilustra a perspectiva construcionista social que sustenta a postura dos facilitadores no Grupo de Reflexão, orientada pela análise das implicações do uso da linguagem e pela desconstrução de significados reificados. Há, por parte dos facilitadores do grupo, a tentativa de se construir o estudante como sujeito ativo do processo de construção do conhecimento. Entende-se, tal como aponta Grandesso (2000), que para que haja reconstrução de significados é necessário que haja um acontecimento de quebra de sentido, de não encaixe, em que narrativas até então não questionadas passem a ser olhadas com estranhamento.

 

Da revisão dos preconceitos: um olhar sobre a própria posição

Um outro processo conversacional valorizado no Grupo de Reflexão diz respeito à apresentação das histórias pessoais na discussão dos temas. Entendemos que essas histórias trazem para o grupo as posições mais usuais dos estudantes em relação a esses temas, incluindo uma dimensão afetiva que muitas vezes não aparece no relato das experiências profissionais. É o que ilustra o exemplo a seguir.

Tendo como disparador o tema DST/Aids, os estudantes discutem as mudanças no perfil epidemiológico da doença. Há a desconstrução da idéia de grupo de risco e o apontamento de que preconceitos impedem que as práticas de aconselhamento sejam exercidas de maneira adequada pelos profissionais de saúde. Num tom bem humorado, os estudantes contam histórias e dizem de suas dificuldades na abordagem de alguns pacientes. Nesse contexto afetivo e de grande proximidade do grupo, um estudante comenta:

Ea: Mas esse negócio de preconceito é difícil. O Senhor acredita que minha mãe contratou um cozinheiro que é homossexual?

Eb: E o que que tem, Francisco? (risos e comentários paralelos do grupo)

Ea: Ah, imagine se ele tiver lá cozinhando, corta o dedo e cai sangue na comida?

F1: Então vamos pensar... e se acontecer isso? Imagine. O que vai acontecer?

Eb: É nojento, mas não acontece nada! (risos)

F2: Não acontece nada...

A história trazida pelo estudante criou espaço para uma discussão importante, referente aos preconceitos em relação às opções sexuais e, sobretudo, às associações feitas em relação a determinados grupos (homossexuais, profissionais do sexo, drogaditos) e HIV/Aids, a despeito do conhecimento teórico que possuem. Articula-se, também aqui, sentido e ação.

Entendemos que esse tipo de reflexão auxilia também na diminuição da distância entre o profissional de saúde e seu paciente, favorecendo, a partir da revisão das próprias posições, posturas mais acolhedoras e menos avaliativas. Tal como seus pacientes, também apresentam dificuldades para transformar suas concepções e atitudes, tal como o ilustra o trecho anterior.

 

Do diálogo com o paciente: compreendendo a posição do outro

Um outro processo conversacional valorizado no grupo diz respeito à compreensão da dialogia que é parte do processo de comunicação.

No Grupo de Reflexão, os facilitadores buscaram problematizar com os alunos as posturas de orientação desenvolvidas de modo autoritário, a despeito da exploração das posições prévias e a autonomia dos pacientes. Compreendendo que os sentidos orientam nossas ações, os alunos percebiam que mesmo as condutas de seus pacientes que julgavam inadequadas estavam sustentadas em determinada visão de mundo, sendo parte de sua história. Antes de serem confrontadas, estas posições deveriam ser conhecidas e investigadas com base em uma postura de respeito e curiosidade (Cechin, 1998). Esse processo aparece descrito na fala de uma estudante, no último encontro de um grupo:

E: Quando você chegou aqui eu pensei: 'não acredito que mandaram uma psicóloga pra tratar a gente! Que que eles estão pensando? Agora ela vai ficar aqui observando a gente?!' E aí você foi conquistando todo mundo, ajudando a gente a pensar, perguntando como a gente se via no atendimento do posto. Acho que todo mundo agora vê psicólogo diferente. Eu tô indo pro posto de um jeito diferente, sabe? Tá ajudando bastante no nosso trabalho lá. Agora eu vou conversar com o paciente e eu já penso assim - será que é certo falar deste jeito? Como será que ele entendeu o que eu falei? Aí eu tento perguntar primeiro pra ele, sabe? O que você já sabe sobre diabetes? Você já ouviu falar alguma coisa?"

Esse trecho explicita também a dupla perspectiva que orienta o manejo do Grupo de Reflexão: a tentativa de coordenar o grupo a partir de uma postura de não-saber, buscando compreender mais acerca do ponto de vista de cada um dos estudantes e usando perguntas como um modo de intervenção, problematizando sentidos e gerando aberturas para o diálogo (Anderson & Goolishian, 1998); e a tentativa de promover a reflexão sobre as histórias trazidas pelos estudantes, auxiliando-os a construir, também exercitando a postura de não-saber, perguntas para seus pacientes em sua prática clínica.

Desse modo, o exercício conversacional desenvolvido no Grupo de Reflexão torna-se, ele mesmo, um modelo a se aprender - uma prática dialógica passível de ser exercida em outros contextos, transformando outras relações das quais esses estudantes/ profissionais de saúde fazem parte.

 

Considerações finais

O desenvolvimento dos Grupos de Reflexão tem nos sugerido a importância da inclusão de contextos dialógicos de ensino na formação do profissional de saúde, nos quais os estudantes possam refletir criticamente sobre os sentidos de saúde, doença e cuidado que orientam sua prática. Baseados nas contribuições da perspectiva construcionista social, entendemos que estes grupos podem favorecer a emergência de novos vocabulários para ação, através da transformação de sentidos e revisão de descrições pessoais, e auxiliar os estudantes no desenvolvimento de uma postura mais reflexiva e crítica sobre sua formação e prática profissional, sobretudo para atuação condizente com os princípios da Atenção Básica.

Entendemos que no Grupo de Reflexão, narrativas pessoais são desenvolvidas pelos estudantes e, estando circunscritas pelo contexto desta produção discursiva (contexto de ensino), são referentes sobretudo à prática médica e suas vicissitudes. Ao contarem no grupo suas histórias ou as ações desenvolvidas nas unidades de saúde, os estudantes são instigados a refletirem sobre os sentidos de saúde e de doença que permeiam sua prática profissional, assim percebendo o uso que fazem dos mesmos e o modo como estes os constituem também como profissionais de um determinado tipo. Esse tipo de reflexão permite um olhar ampliado sobre sua prática e identidade como profissional de saúde, fundamental na mudança pessoal.

Acreditamos, por fim, que um dos maiores aprendizados desenvolvidos no Grupo de Reflexão diz respeito à compreensão sobre o próprio processo de produção de sentidos, compreensão esta que pode ser levada aos outros contextos relacionais dos quais o estudante/profissional de saúde participa, garantindo uma maior flexibilidade em seus relacionamentos e práticas de cuidado.

 

Referências

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Recebido em 09/05/2008
Aceito em 01/08/2008

 

 

Carla Guanaes é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela USP de Ribeirão Preto. É especialista em Terapia de Família e Casal. É docente da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA).
Augustus Tadeu Relo de Mattos é médico de família e comunidade e mestre em Ciências Médicas (Saúde na Comunidade) pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. É docente da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

 

 

* Os autores agradecem ao Prof. Dr. Marcelo Marcos Piva Demarzo pelo incentivo à realização da prática descrita nesse artigo.
** Endereço eletrônico para correspondência: carlaguanaes@gmail.com
1. Embora o Grupo de Reflexão tenha sido desenvolvido junto a alunos de um curso de Medicina, acreditamos que esse recurso possa ser utilizado em outros cursos da área de saúde que, tal como o curso médico, preconizam a ampliação do modelo assistencial em saúde.
2. As falas aqui citadas resultam de registros cursivos das conversas do grupo, não correspondendo à transcrição literal dos enunciados dos participantes. Visando a não identificação dos participantes do grupo, utilizaremos a letra E, para sinalizar a fala dos estudantes (Ea, Eb, Ec, etc para diferenciar os estudantes numa mesma conversa); e F1 e F2, para indicar as falas dos facilitadores.
3. Essa discussão pode se aplicar a outras temáticas. Como descrevem o paciente idoso ou o paciente com HIV, hanseníase, hipertensão, DST, diabetes, etc, passa a ser uma questão central para se compreender, também, o modo como exercem o cuidado.

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