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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.1 no.2 Juiz de fora dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Fenomenologia Naturalizada: o estatuto husserliano e as ciências cognitivas

 

Naturalized phenomenology: the husserlian statute and the cognitive sciences

 

 

Thiago Gomes DeCastro*; William Gomes

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma análise histórica e teórica do projeto de naturalização da fenomenologia. Inicialmente, são retomados conceitos definidores da fenomenologia continental husserliana, como intencionalidade e redução, para demarcar o trajeto da filosofia fenomenológica à investigação empírica. A seguir, são contrastados dois movimentos em prol da naturalização da fenomenologia: a heterofenomenologia e a mente incorporada. A terceira e última parte confronta a neurofenomenologia, recente frente do projeto de naturalização, com críticas correntes acerca do rompimento com o estatuto da fenomenologia husserliana. Os autores concluem que a neurofenomenologia, mesmo se distanciando em alguns aspectos da fenomenologia filosófica, apresenta-se como um instigante campo de exploração e de diálogo entre auto-relatos (dados de primeira pessoa) e observação (dados de terceira pessoa) nas pesquisas em neurocognição.

Palavras-chave: Fenomenologia, Naturalização, Epistemologia, Ciências Cognitivas


ABSTRACT

The present study is a historical and theoretical analysis of the current proposal for a naturalized phenomenology. Initially, it reviews the main concepts of Husserlian continental phenomenology, as intentionality and reduction, to describe the paths between phenomenological philosophy and the empirical investigation. Subsequently, it contrasted two movements supporting the naturalization of phenomenology: the heterophenomenology and the embodied mind. The third and last part of the study confronts the neurophenomenology, a recent front on the naturalizing project, with the current critics about the break-up represented to the Husserlian phenomenology. The authors conclude that the neurophenomenology, even though apart in some aspects of the philosophical phenomenology, presents itself as a rich field for the exploration and dialogue between self-reports (first person data) and observation (third person data) in neurocognition research.

Keywords: Phenomenology, Naturalization, Epistemological Statute, Cognitive Sciences


 

 

Nos últimos vinte anos as ciências cognitivas vêm reunindo esforços para superar a lacuna explanatória que divide as explicações metafóricas sobre a realidade da consciência humana e suas propriedades físico-químicas (Brown, 2008). O aporte da fenomenologia tem alcançado destaque neste cenário renovado para o estudo da cognição (Depraz, Varela & Vermersch, 2006; Lutz & Thompson, 2003; Zahavi, 2004). Tal aproximação consiste, inicialmente, em fortalecer o cruzamento entre relatos de experiência subjetiva e protocolos objetivos de pesquisa (Thompson, 2007). A aproximação tem revelado novos horizontes, mas traz problemas ao estatuto da fenomenologia perante os avanços científicos. Seria a fenomenologia filosófica compatível ou adequada aos interesses da ciência contemporânea? Um projeto de naturalização da fenomenologia é efetivamente necessário? A naturalização não é um pólo oposto à fenomenologia? Caso se possa pensar em uma naturalização da fenomenologia, quais aspectos da teoria seriam enfocados pelos neurocientistas e como poderiam ser de algum benefício às ciências cognitivas? No centro do debate encontra-se um novo projeto cognitivo para o estudo da consciência e as dúvidas se tal projeto tem algum futuro e desdobramentos animadores na pesquisa empírica (Overgaard, 2004; Thompson, 2004).

O presente artigo é uma análise do projeto de naturalização da fenomenologia, tal como defendido pelas ciências cognitivas (Varela, Thompson & Rosch, 1991). Uma das decorrências inevitáveis da inclusão da fenomenologia no campo das ciências é o resgate da filosofia do fenomenólogo Edmund Husserl (1859-1938). O texto está organizado em três partes. A primeira retoma conceitos de intencionalidade e redução para rever o modo como foram utilizados para embasar a pesquisa empírica. A segunda contrasta dois movimentos que têm sustentado um programa de naturalização da fenomenologia: a heterofenomenologia de Dennett (1991) e a mente incorporada de Varela, Thompson, e Rosch (1991). A terceira e última parte confronta a neurofenomenologia com críticas correntes, procurando elucidar os principais pontos polêmicos. Os autores concluem que a neurofenomenologia, mesmo se distanciando em alguns aspectos da tradição husserliana, apresenta-se como uma possibilidade para o diálogo entre auto-relatos (dados de primeira pessoa) e observação (dados de terceira pessoa) nas pesquisas em neurocognição. Traz, assim, novos ares para a tradição fenomenológica neste início de século.

 

Sobre a investigação empírica dos fenômenos

No início do século XX, Husserl procurou consolidar um projeto de ciência rigorosa para as ciências humanas, que reorientaria as bases epistemológicas1 da ciência natural vigente. Buscava, em seu tempo, uma lógica investigativa anterior aos caminhos assumidos pela racionalidade moderna. Se por um lado reconhecia no filósofo francês René Descartes (1596-1650) o mérito pelo privilégio concedido à razão sobre o fazer humano, por outro identificava seu racionalismo puro como o marco teórico instituinte da objetivação da natureza (Husserl, 1901/1985). De acordo como o filósofo, separou-se o homem de suas experiências subjetivas cotidianas, distanciando a reflexividade da constituição essencial do conhecimento humano (Husserl, 1936/2008). Nesse sentido, a tarefa da fenomenologia seria clarificar as condições constitutivas da objetividade (Husserl, 1901/1985), implícitas na relação intencional e dependente entre consciência e fenômenos da consciência.

Sob os termos de uma avaliação da objetividade científica, Husserl demarcou seu percurso na reaproximação entre sujeito e natureza. Fez do conceito de intencionalidade, retomado dos escolásticos por seu professor Franz Brentano (1838-1917), o mote de conexão entre consciência e mundo. Com a consciência intencional, lançou as bases do entendimento perspectivo e indutivo da reflexividade e consciência humana, distanciando-se da consciência criadora, separada do mundo e absoluta, presente em Descartes. A análise da intencionalidade da consciência, como queria Husserl em seu método fenomenológico, deveria contemplar compreensivamente a relação significada e idiossincrática entre sujeito e mundo, revogando o modelo explicativo naturalista externo ao fluxo das vivências intencionais. Por vivências intencionais entende o movimento da consciência em direção à experiência. A partir desse panorama, podemos extrair que a ciência para Husserl deveria estar fundada em um modelo descritivo e esclarecedor, das essências constituintes do aparecimento dos fenômenos à consciência (Husserl, 1913/2006). Esses fenômenos poderiam ter origem no mundo natural ou na memória e imaginação.

O viés objetivista da natureza, amplamente defendido pela ciência positivista, encabeçaria uma distorção da práxis investigativa e um descaminho da civilização européia (Husserl, 1936/2008). A proposta epistemológica de Husserl frente este cenário incluiu a mudança da atitude de investigação científica, a aceitação sem questionamento do mundo da aceitação natural, para a atitude fenomenológica, o questionamento do mundo natural e do próprio questionamento. Revertia-se, assim, a suposição de uma realidade externa e objetiva para a descrição interna e subjetiva dos modos de significação humanos (Holanda, 2003). É importante, contudo, afirmar que a fenomenologia de Husserl não ocupou, em sua fundação, lugar de antítese ao consolidado terreno das ciências naturais (Polkinghorne, 1989). Demarcou um novo território de reflexão sobre as práticas científicas, destacando que os caminhos da investigação deveriam atender primariamente às configurações da experiência, antes de mover-se para suposições hipotéticoespeculativas sobre a realidade.

Por meio de um sistema lógico rigoroso, Husserl propôs um método filosófico específico ao acesso primordial da intencionalidade constituinte da consciência das coisas. A redução fenomenológica é considerada o elemento lógico central desse método, a partir do qual se faz necessário suspender as interferências préjudicativas do mundo para a análise essencial da intencionalidade da consciência (redução eidética), e a identificação dos invariantes intencionais no fluxo de vivências do mundo (redução transcendental). De acordo com Spiegelberg (1994), esses recursos lógicoanalíticos promoveram renovada discussão das relações de conhecimento na filosofia, com fortes repercussões na psicologia do século XX.

O trabalho de Husserl sobre as relações intencionais entre consciência e fenômenos da consciência detivera-se, todavia, à demarcação de uma nova ontologia e a proposição de uma epistemologia para as ciências. Não há no autor uma indicação de métodos para o estudo de eventos observáveis. Sua forte crítica aos psicologismos (Husserl, 1913; 1925; 1931), por exemplo, estruturou-se como projeto teórico de superação das pretensões em objetivar a experiência psíquica. Nos psicologismos, o fundamento da análise do fenômeno humano ocorreria a partir de metabases conceituais e interpretativas previamente definidas por teóricos. Tal característica seria incompatível com a essencialidade irredutível da experiência, sendo necessário, para tal ensejo analítico, a disposição primeira de uma atitude compreensiva das essências dos fenômenos na consciência. Nessa medida, o método fenomenológico filosófico, defendido por Husserl, destinou-se à investigação estrutural não empírica das essências na consciência (psicologia eidética), como fundamento de qualquer forma de psicologia empírica. Não prescreveu, portanto, um trabalho técnico com os dados empíricos (Husserl, 1925/1977).

Através do século XX foram várias as tentativas de unir a inspiração epistemológica e metodológica da fenomenologia de Husserl para a investigação empírica de fenômenos. Embree (1997) discorreu sobre quatro modalidades teóricas derivadas das influências do filósofo alemão: 1) a fenomenologia realista com ênfase na procura de essências universais nos mais variados objetos, como por exemplo, nos estudos de Max Scheler (1874-1928) sobre ética; 2) a fenomenologia constitutiva com a ênfase nos aspectos técnicos do método, em particular, as questões concernentes à suspensão de suposições apriorísticas sobre um determinado fenômeno, como nos trabalhos sobre percepção de Aron Gurwitsch (1900-1973); 3) a fenomenologia existencial, conforme as diferentes concepções de Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961); e 4) a fenomenologia hermenêutica, representada pelos trabalhos sobre interpretação de Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Paul Ricoeur (1913-2005).

Os encaminhamentos teóricos deixados pelos herdeiros da fenomenologia correspondem a alterações significativas no projeto inicial do pensamento de Husserl, em especial a sua filosofia transcendental (Kockelmans, 1994). Dentre outros fatores, pode-se atribuir essa difusão heterogênea à destinação polivalente das reflexões dos teóricos, que se diferenciam segundo seu tempo, projeto e lugar de escrita. Por um lado, Husserl buscou uma ciência rigorosa do pensamento com implicações renovadoras para a epistemologia das ciências. De outro lado, a influência de Husserl fez-se notável na revisão empreendida por seus seguidores nos campos da ontologia, metodologia e ética ao longo do século XX.

Na psicologia foram várias as tentativas de integrar os pressupostos husserlianos à prática científica. Este cruzamento se fez presente, contudo, em diferentes modos de apropriações do pensamento fenomenológico husserliano. Identificamos, em linhas gerais, dois eixos principais de diálogo entre ciência e fenomenologia na psicologia. O primeiro referese à fundamentação da psicologia empíricodescritiva, comprometida com tradições de pesquisa qualitativa e as ciências humanas (Giorgi, 2006). Enquanto no segundo eixo, observa-se uma tentativa de naturalização da fenomenologia, com vistas ao fortalecimento de empiria e a reorientação dos estudos científicos sobre consciência e processos cognitivos (Varela, 1996). A presente análise concentra-se neste segundo eixo, descrevendo o projeto científico contido na proposta da neurofenomenologia, e suas características essenciais.

 

Sobre os caminhos da naturalização

A discussão sobre os possíveis acréscimos da fenomenologia aos estudos contemporâneos sobre a consciência foi, em grande parte, impulsionada pelos trabalhos do filósofo americano Daniel Dennett (1942-). O autor desenvolveu uma filosofia da mente pautada em pesquisas empíricas, nas quais os relatos experenciais de indivíduos deveriam corroborar os achados obtidos por protocolos experimentais. O projeto conhecido por heterofenomenologia, idealizado por Dennett (1991; 2003), buscou alternativas metodológicas pautadas em neutralidade científica, para o refinamento dos procedimentos de coleta empírica. A proposta encaminhada pelo filósofo valia-se dos autorelatos de experiência para auxiliar os experimentadores a aumentar o poder de precisão de seus achados. No entanto, conforme avalia Velmans (2007), tal concepção estaria fundada na descrença sobre propriedades qualitativas da consciência, e no acréscimo empírico fornecido da experiência subjetiva. A heterofenomenologia descartaria, portanto, os relatos como um novo dado a ser analisado pela pesquisa científica. O princípio da neutralidade e a rejeição da qualidade, advogados por Dennett, evitam o reconhecimento das descrições subjetivas da experiência como fontes importantes sobre o processo da consciência.

Esta primeira aproximação à fenomenologia subscreve um projeto específico de naturalização, no qual a incorporação da tradição teórica husserliana se traduz em redução ao lócus objetivo-científico explanatório (Brown, 2008). Na heterofenomenologia de Dennett, os sentimentos subjetivos dos participantes são simples fontes de informação para o alcance da "natureza real" dos processos cognitivos. Não se respeita aí o projeto de refundação científica almejado por Husserl, tampouco seu status de tradição filosófica. De modo distinto, um novo modelo de naturalização vem sendo desenvolvido por cientistas cognitivos (Lutz & Thompson, 2003) com o objetivo de descobrir o elo ausente entre a fenomenologia e as ciências cognitivas. Esses pesquisadores estão reunindo descrições fenomenológicas eidéticas e matemática neurofuncional no mesmo nível formal de análises, no que se tem reconhecido como o projeto da neurofenomenologia. Esperase que tais aproximações possam gerar entendimentos compatíveis e complementares acerca do funcionamento da consciência. Nesse projeto de matematização da fenomenologia estão envolvidos três estágios: 1) o estágio fenomenológico que envolve o exame de dados e a determinação de invariantes descritivas, as recorrências estruturais desses dados; 2) o estágio matemático, que busca formular um modelo dinâmico em relação aos estados cognitivos, e a subseqüente correlação das invariantes estruturais fenomenológicas com as dinâmicas neurais; e 3) ao final, concluindo a naturalização, interpretar as invariantes fenomenológicas via algoritmos matemáticos (Roy, Petitot, Pachoud & Varela, 1999).

As diferenças, inicialmente identificadas como epistemológicas (Noë, 2007), entre ciências naturais e fenomenologia, enfraqueceram do ponto de vista da ciência. Este afrouxamento encontra justificativa e respaldo na crescente preocupação pelo enriquecimento da empiria e o subseqüente fortalecimento do argumento científico. Nesse sentido, tem se buscado a complementaridade entre dados de primeira e terceira pessoa (Thompson & Varela, 2001; Varela, 1996). Por dados de primeira pessoa entende-se o tipo de informação derivada da experiência subjetiva individual posteriormente relatada a um conjunto de indivíduos. Segundo Roy (2003), a validade de um conhecimento de primeira pessoa deve repousar sobre a descrição do acesso a um fenômeno pela perspectiva do indivíduo que o acessou, culminando com o relato livre deste acesso a outros indivíduos. Já por dados de terceira pessoa entende-se aquela informação que vários observadores podem ter acesso simultâneo e preciso (Overgaard, 2001). Os dados de terceira pessoa são construídos sob forma de conceitos ou imagens objetivas, de modo a favorecer uma identidade expressiva, uniforme e isenta de subjetivações.

É, portanto, objetivo das neurociências e das ciências cognitivas o alcance de conhecimentos rigorosos e refinados sobre o funcionamento da consciência, em substituição aos conceitos teórico-explanatórios sobre o processo mental (Depraz et al, 2003). Desse modo, as ciências buscam solucionar uma antiga lacuna explanatória entre o caráter fenomenal da experiência - dados de primeira pessoa - e a natureza física do cérebro/corpo - dados de terceira pessoa. Para Chalmers (1995), essa lacuna pode ser considerada o principal problema das ciências, uma vez que se constitui como separação entre a representação simbólica de uma dada realidade e o conhecimento fundamentado em dados empíricos desta mesma realidade. A neurofenomenologia, idealizada na década de 90, se apresenta como uma das alternativas para solucionar tal lacuna. Dentre seus objetivos, é central a integração das propriedades fenomenais experenciadas e relatadas por indivíduos com propriedades extraídas de comportamentos neurofuncionais investigados pelas ciências naturais (Bayne, 2004).

O biólogo e filósofo chileno Francisco Varela (1946-2001), um dos pioneiros da neurofenomenologia, buscou em Husserl inspiração para a reorientação dos estudos sobre neurociência e neurofisiologia da consciência. Sob o prisma metodológico, o modelo da neurofenomenologia caracteriza-se pelo uso rigoroso e extenso de dados de primeira pessoa, acerca da experiência de um indivíduo, como heurística para descrever e quantificar as neurodinâmicas da consciência (Lutz, 2002). O programa de pesquisa definido por Varela (1996) buscou gerar novos dados de análise, pela incorporação de explorações fenomenológicas refinadas da experiência aos protocolos experimentais de pesquisa neurocientífica da consciência (Lutz &Thomson, 2003).

Para a transição filosófico-empírico, no terreno pragmático das neurociências, Depraz, Varela e Vermersch (2006) apresentaram uma versão renovada de análise fenomenológica, cuja fundamentação se ampara em uma proposta de modificação do estatuto da fenomenologia. Os autores criticam as práticas analíticas pautadas no enfoque hermenêutico tradicional que, em sua execução, estaria comprometida com interpretações livres e a perpetuação da lógica do comentário. No viés questionado pelos autores, a observação dos fenômenos continuaria revestida por bases analíticas pré-judicativas, contrárias à atitude da redução. Como alternativa de contraposição a essa tradição, afirmam a via do estatuto pragmático, em nome de uma exigência exploratória, única capaz de renovar os procedimentos da fenomenologia como método de descrição e de explicação categoriais. Para os pesquisadores a lógica da redução na neurofenomenologia deve ser traduzida em três fases técnicas: 1) uma fase de suspensão pré-judicativa (ruptura com atitude natural), 2) uma fase de conversão da atenção do "exterior" para o "interior", e 3) uma fase de deixar vir, ou de acolhimento da experiência. A tomada de consciência tematizada e gradual de um fenômeno ocorreria, segundo os autores, pela ligação orgânica entre essas três fases.

Para exemplificar, citamos o estudo pioneiro realizado por Lutz e colegas (2002), no qual se pesquisou a percepção visual de estímulos 3D e a experiência subjetiva de indivíduos na resposta aos estímulos. A análise fenomenológica dos relatos dos participantes identificou que o tipo de prontidão ao estímulo (prontidão imediata, prontidão fragmentada, sem prontidão) foi elemento invariável dentro da estrutura expressiva de cada indivíduo. Para a identificação de padrões entre os dados descritivos da experiência e os resultados dos protocolos de eletroencefalograma obtidos no experimento, foram utilizadas indutivamente as categorias definidas na análise fenomenológica. Os resultados da comparação evidenciaram convergência entre os subtipos experenciais de prontidão aos estímulos e o padrão sincrônico neurofuncional dos participantes, o que corrobora a tese da cognição incorporada.

Gallagher (2003), ao discorrer sobre algumas variantes de aplicação do método fenomenológico no contexto das neurociências cognitivas, destacou a neurofenomenologia como uma das frentes principais de análise. Segundo o pesquisador, são três os modelos mais usuais de aplicação. O primeiro seria a neurofenomenologia, em seu trabalho de cruzamento de auto-relatos descritivos com testes de dinâmica neurofuncional (Depraz, Varela, & Vermersch 2003; Lutz & Thompson, 2003; Thompson, 2007). A segunda variante seria a fenomenologia enquanto método qualitativo das ciências humanas. Neste modelo, os relatos de experiência são categorizados em conteúdo e/ou forma e posteriormente interpretados a luz da teoria fenomenológica clássica (Garza, 2007; Giorgi, 2006). No terceiro modelo, chamado de fenomenologia front-loaded, utiliza-se o método fenomenológico como recurso exploratório no início de uma pesquisa para refinar o delineamento da análise (Denzin, 2006; Patton, 2002).

Fundado em março de 2002, o periódico internacional Phenomenology and the Cognitive Sciences, pode ser considerado um dos principais difusores do diálogo entre fenomenologia e ciências cognitivas na última década. A revista é descrita por seus editores como uma tentativa de construir pontes entre a fenomenologia continental (orientada pela tradição de Husserl) e disciplinas científicas que nem sempre estiveram abertas ou atentas às contribuições da fenomenologia para o estudo da cognição e tópicos relacionados (Depraz & Gallagher, 2002). Especialmente inspirado pelas contribuições de Francisco Varela, o jornal discute as intersecções entre fenomenologia, ciências empíricas e filosofia analítica da mente, a partir das propostas de heterofenomenologia (Dennet, 2003) e dos automodelos neurais (Metzinger, 2003), incluindo temas associados.

Thompson (2007) argumenta que as ciências cognitivas vêm paulatinamente se dando conta da incompletude de seus métodos de pesquisa. Até meados da década de 90, o foco metodológico dos estudos sobre o processo cognitivo realizouse via psicometria e protocolos experimentais validados objetivamente. Tal enfoque contribuiu para negligenciar ou distorcer a investigação de temas como afeto, emoção, motivação, consciência e subjetividade. O autor relembra que essas insígnias foram abordadas nas ciências cognitivas, entre as décadas de 50 até meados dos anos 90, como processos mentais explicitados metaforicamente por abstrações conceituais. Com o cognitivismo (dominante entre 1950 e 1980) a metáfora da mente foi o computador digital; para o conexionismo (dominante na década de 80) a mente era entendida como uma rede neural; e para o dinamicismo incorporado (dominante na década de 90) a metáfora da mente foi representada pela tese dos sistemas dinâmicos incorporados ao mundo. Esta terceira concepção foi, inclusive, adicionada ao piloto do projeto neurofenomenológico, quando Varela, Thompson e Rosch (1991) buscaram explicar sua Mente Incorporada pela integração entre teoria dos sistemas dinâmicos e os interesses fenomenológicos na subjetividade humana e na experiência.

Em artigo anterior Thompson (2004) havia apontado a publicação de Mente Incorporada como uma das promotoras da concepção de cognição incorporada nas ciências cognitivas. No entanto, um dos temas fundamentais contidos no texto não foi compreendido e assimilado pelos cognitivistas à época do lançamento. Trata-se da circularidade entre pesquisa científica da mente e as disciplinas fenomenológicas da experiência vivida. De acordo com o autor, a persistência do cognitivismo em rejeitar a habilidade humana de experienciar e confiar na veracidade dessa experiência é o que compõe o argumento crítico do ilusionismo experiencial da heterofenomenologia (Dennett, 1991).

De forma mais consistente o livro "Naturalizing Phenomenology: Issues in contemporary Phenomenology and Cognitive Sciences" (Petitot, Varela, Pachoud & Roy, 1999) lançou bases sólidas à nova abordagem. Segundo os autores, as ciências cognitivas devem voltar-se ao que se pode chamar de dimensão fenomenológica, de onde despontam questões como subjetividade e perspectiva de primeira pessoa. Ao ignorar a relevância dessa dimensão, os cognitivistas estariam desconsiderando um aspecto crucial do fenômeno psicológico (Zahavi, 2004). Sob o olhar crítico dos neurofenomenólogos, a ciência cognitiva estava sendo:

"Uma teoria da mente sem ser uma teoria da consciência. É uma teoria sobre o que se passa em nossas mentes quando elas estão conhecendo sem ser uma teoria sobre como é ser uma mente conhecedora." (Roy et al, 1999, p.7)

O resgate da filosofia de Husserl mostrou-se inevitável neste panorama, uma vez que a demanda pela inclusão da subjetividade e o aspecto experencial tornaram-se prioridade para o estudo da consciência. Como já afirmamos anteriormente, a união da fenomenologia husserliana aos pressupostos cognitivos e neurocientíficos exigiria uma adequação importante à perspectiva explanatória das ciências naturais. Os idealizadores da neurofenomenologia entendem, entretanto, que o anti-naturalismo identificado na literatura de Husserl responde apenas por motivações científicas equivocadas e limitadas do filósofo alemão (Roy et al, 1999). Segundo os autores, uma descrição matemática genuína da consciência experiencial é possível com as novas tecnologias da neurobiologia, e como conseqüência disso os grandes impedimentos para a naturalização da fenomenologia teriam sido removidos.

Todavia, como aponta Zahavi (2004), a oposição de Husserl ao naturalismo não se baseia em motivações científicas, mas fundamentalmente em razões filosóficas que afirmam enfaticamente a subjetividade transcendental em detrimento dos objetivismos positivistas. Nesse sentido, é importante compreender que a teoria da intencionalidade de Husserl buscou antes redefinir a natureza da objetividade consolidada no naturalismo do que apresentar um novo conceito de consciência (Zahavi, 2004). Não se trata, para a fenomenologia, de discutir a consciência empírica e objetiva do mundo, mas antes a apropriação subjetiva - subjetividade transcendental - do mundo. A consciência seria estudada, portanto, como a descrição da estrutura experiencial dos fenômenos e não como uma ocorrência objetivada por conceitos ou metáforas.

 

Direções teóricas ao estatuto husserliano

Neste horizonte de discussões, deve-se ressaltar que a neurofenomenologia é uma tentativa para preencher, criticamente, lacunas epistemológicas e metodológicas nas neurociências. Um exemplo dessa lacuna é o distanciamento entre o funcionamento neurocognitivo e bioquímico e o pensamento emergente enquanto atividade da consciência. Trata-se, em última instância, de uma proposta de enriquecimento da empiria, com vistas a uma compreensão integrada de processos essenciais e complementares.

Uma primeira avaliação da aproximação entre fenomenologia e ciências cognitivas revela algumas regiões de conflito. As ciências cognitivas, ao se apropriarem da fenomenologia, parecem privilegiar ou mesmo restringir o debate teórico ao nível epistemológico. A ênfase recai na construção de procedimentos experimentais e analíticos que favoreçam a coleta e o debate de dados de primeira pessoa. Nessa observação preliminar, não se apresenta uma revisão das lógicas analítico-científicas, como ressaltadas no projeto fenomenológico de Husserl (1901/1985; 1913/2006). Permanecem para a fenomenologia clássica, ante o cenário científico, os percalços do rigor e da neutralidade impostos quanto à validação das fontes de informação de dados. Isto significa que parte importante da preocupação dos cientistas vincula-se à matematização dos relatos fornecidos pelos participantes para a fundamentação adequada das explicações sobre as bases neurais da experiência. Assim, distancia-se novamente a neurofenomenologia do projeto original de Husserl, em que se buscou enfocar a necessidade de um conhecimento pautado na expressividade não categorial da experiência, ao contrário das intervenções convergentes espaço-temporais entre categorias expressivas e neurais.

Thompson (2007), no entanto, responde a críticas de que os debates sobre a neurofenomenologia se restringem as questões epistemológicas, trazendo uma cuidadosa análise ontológica da redução transcendental, um dos aspectos mais áridos e obscuros do pensamento husserliano. Para tanto, retoma os conceitos básicos de intencionalidade e de redução eidética a fim de elucidar os problemas da redução transcendental. A intencionalidade é a célebre correlação entre noese e noema, a saber, os dois limites operacionais da consciência, por envolver o ato de direção a um objeto. A apreciação de um objeto do mundo natural na forma de um fenômeno puro requer a suspensão das crenças de quem o percebe para que o dado possa ser recebido em sua novidade. A esta apreciação qualificada deu-se o nome de redução eidética, do grego eidos ou nous e que quer dizer atividade intelectiva. O ato de perceber, a noese não ocorre no vazio. Ela parte de um Ego que deve ser colocado entre parênteses, uma metáfora matemática utilizada pelo próprio Husserl, para se referir a suspensão e não a negação das crenças. Tem-se, então, a complicação da correlação intencional que passa a ser: [(Ego)noese → noema]. Um outro modo de descrever a mesma operação eidética é utilizar os termos experiência ou pré-reflexão, para a primeira operação entre noese e noema, e reflexão para a segunda operação entre noese e noema. É uma reflexão porque a correlação intencional altera-se fundamentalmente. O Ego está impregnado de propriedades a-priori e, portanto, transcendentais (ausentes) interferindo no noema que agora aparece como fenômeno puro. Tem-se então um (Ego transcendental) noese dirigido a um (Ego noese noema) noema. Essa correlação complexa requeria uma redução transcendental. E o que haveria de ser suspenso em nível transcendental? As interferências da própria subjetividade, do absoluto, do saber puro, do Ego superior subjetivo. Esse parece ter sido o impasse das reduções husserlianas.

Em análise das dificuldades do diálogo entre as ciências empíricas e a fenomenologia pura descrita por Husserl, Noë (2007) avalia que a tradição husserliana concebe a reflexão do sujeito experiencial apartada aos acontecimentos empíricos circundantes à experiência subjetiva. Preocupa-se, assim, excessivamente com o sistema lógico de composição das essências no espírito humano. Tal característica, iminentemente transcendental, levaria a um isolamento epistemológico da fenomenologia de Husserl, quando comparada aos sistemas naturalistas de validação de conhecimento. É como se houvesse uma clara divisão entre a lógica autônoma da constituição da percepção - fenomenologia pura - e o projeto empiricista de análise dos processos e funções cognitivas. Destarte, de um lado encontraríamos o argumento do desvelamento das relações intencionais entre consciência e fenômenos individualizados por esta consciência (fenomenologia husserliana); e de outro, as teses propositivo-explicativas das características invariáveis da natureza da consciência (neurofenomenologia, por exemplo). Por invariante entende-se a estrutura humana, ahistórica, universal do corpo humano e por conseguinte da consciência como expressão dessa corporeidade.

Resgatando a noção husserliana de experiência para as ponderações das ciências cognitivas, Zahavi (2004) relembra que a experiência deve pressupor qualquer tentativa de investigação das relações causais entre natureza e consciência. Ao contrário do que afirma Nöe (2007), a experiência não é tratada por Husserl como autônoma à natureza, desde que seu conceito de lebenswelt (mundo da vida) confere interatividade entre consciência e mundo, e não uma dinâmica de causalidade. Com efeito, o mundo da vida ofereceu um novo horizonte reflexivo às ponderações iniciais do período transcendental de Husserl, e foi, sem dúvida, o mote para o existencialismo que o seguiu. É dessa fase o célebre texto sobre A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental (1936), no qual ele trata da natureza intersubjetiva da consciência.

Para Küng (1975), a evolução do entendimento transcendental de Husserl para a noção enraizada na experiência ocorreu pela ruptura com a influência do pensador francês René Descartes, fundamental no período inicial das Investigações Lógicas (1901/1985). O racionalismo cartesiano, por sua vez, parece ter sido retomado no projeto de naturalização da fenomenologia. Através da noção de mundo da vida, Husserl iniciou tardiamente uma incursão nas interferências contextuais, existenciais e intersubjetivas para a compreensão da relação intencional consciência-mundo. As influências deste período são marcantes nos trabalhos dos filósofos Alfred Schutz (1899-1959) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Em Schutz (1967) a consciência intencional é mediada intrinsecamente pelo contexto social e em Merleau-Ponty (1945/1999) pela corporeidade intersubjetiva.

No entanto, as pistas para desenvolvimentos ontológicos (o que é consciência) e epistemológicos (o que é redução) da teoria de Husserl estão sendo possíveis graças as influências da filosofia existencial que apontou para a concretude do ser-no-mundo que é a corporeidade (Merleau-Ponty,1945/1999). Para Thompson (2007), o existencialismo não enfrentou o problema da transcendência, mas a retirou da subjetividade pura para recolocá-la no mundo. No entanto, argumenta Thompson, serno-mundo é uma forma de transcendência. Estar no mundo implica a correlação de muitas forças atuantes, a maioria das quais desconhecidas e de difícil acesso à consciência. Outros modos de transcendência mencionados por Thompson foram as sensações corporais de dor, as variações de humor, e o automatismo dos hábitos.

Entre as idéias mais férteis apresentadas por Thompson (2007) destaca-se a ampliação da fenomenologia em três dimensões. A primeira é a conhecida fenomenologia estrutural, aquela que trata das relações intencionais entre noese e noema. A segunda é a inclusão na relação intencional de propriedades associadas ao tempo, ao tempo da consciência e à corporeidade. A terceira é o avivamento das condições ecológicas no seu sentido amplo, incluindo o meio ambiente, as redes de interação sociais e as práticas culturais. Na verdade, essas dimensões sempre fizeram parte da tradição fenomenológica, imbricadas na intencionalidade e nos modos de redução.

 

Conclusões

Apesar do grande impacto produzido e a crítica de fenomenólogos conservadores, reconhecem-se os esforços atuais da neurofenomenologia em manter os estudos da consciência na ordem do dia. Contudo, a proposição requer refinamento teórico e pesquisa empírica, para dizer em que sentido ela avança o método fenomenológico e a teorização cognitiva. Segundo Bayne (2004) são várias as diferenças entre a fenomenologia e as ciências cognitivas, demonstrando em suas raízes duas escolas distintas de pensamento. O autor ressalta os altos riscos assumidos pela neurofenomenologia em tentar encerrar a lacuna explanatória objetivosubjetivo na ciência. Atenta para o fato de que, em um projeto similar, a GestaltTheorie falhou com sua tese do Isomorfismo na explicação correlata entre experiência perceptiva e organização neurofuncional. Sobre as possíveis incursões nos erros isomórficos, Brown (2008) avalia que mesmo tentando afastar-se dos reducionismos, como na adequação da lógica fenomenológica às propriedades físico-químicas, resta ainda um árduo trabalho pela frente. Como corresponder, por exemplo, as descrições experienciais intuitivas da fenomenologia com a lógica dedutiva matemática na análise dos protocolos?

As críticas de Brown (2008) são pertinentes, mas trazem dois problemas. O primeiro está no argumento da primazia da coerência de uma tradição teórica sobre o debate entre teorias, tendo em vista o que se quer esclarecer: a relação entre o conteúdo fenomenal da experiência subjetiva e a contrapartida neural. As teorias sobre as atividades intelectivas, em qualquer perspectiva, não existem como coisas em si e, portanto, o fato de se tratar de teorias ou de epistemologias (doxas, opiniões) diferentes não pode ser tomado como uma não dialogicidade. Tal posição nem se justifica pela ciência e nem pela filosofia. O argumento de Brown se fragiliza fortemente ao afirmar que o princípio de isomorfismo da teoria da Gestalt foi um equívoco. Ao contrário, o isomorfismo é um princípio que vem se afirmando fortemente nos últimos anos, desde que não se confunda isomorfismo estrutural, com isomorfismo funcional (Lehar, 2003). A relação entre experiência subjetiva e bases neurais é uma relação entre signos de naturezas distintas. Em termos semióticos (Leach, 1978, DeSouza & Gomes, 2003) a relação pode se estabelecer tanto como um sinal no qual A causa B, onde a informação semiótica e a entidade que a carrega são dois aspectos da mesma coisa, por exemplo, as sensações corporais de dor. No entanto, a relação pode ser na forma de um índice, na qual A indica B, correlacionando a informação neural com o conteúdo associativo, por exemplo, a imaginação.

Depraz e Cosmelli (2004) sugerem que um dos caminhos ensaiados para a confluência entre primeira e terceira pessoa na pesquisa empírica seria a perspectiva de segunda pessoa, na qual um novo paradigma epistêmico emergiria para solucionar a lacuna explicativa. Tal paradigma poderia ser realizado por meio de três caminhos metodológicos: 1) os participantes de uma pesquisa seriam convocados a relatar sua experiência do ponto de vista de um outro indivíduo (descrição baseada em representações imaginárias); 2) o pesquisador observaria a interação comunicativa de indivíduos em um determinado contexto intrinsecamente produtor de sentidos (etnometodologia), 3) um indivíduo voltaria sua atenção para o estado de consciência de um outro indivíduo (empatia). Para Overgaard (2004), entretanto, tais proposições de geração de dados de segunda pessoa são ainda rasas, mascarando a distância evidente entre a experiência subjetiva e os protocolos experimentais objetivos.

O principal problema da proposição de Depraz & Cosmelli (2004) é a negação da intersubjetividade que seria a objetividade comum que permitiria algum tipo de comunicação entre a primeira e a terceira pessoa. Esses autores também parecem desconhecer a convergência experiencial em pesquisa qualitativa como demonstrada pela saturação de dados de primeira pessoa (Strauss & Corvin, 2008).

Exposto o projeto de cruzamento entre fenomenologia, ciências cognitivas e neurociências, cabe indagar se a fenomenologia pura, em sua concepção de anti-naturalismo epistemológico, não entraria em incongruência teórica quando aproximada ao novo projeto das ciências cognitivas. Pelo lado da fenomenologia de Husserl (1965) observamos que o naturalismo corresponde às ciências do mundo espaçotemporal definido, o que implica uma investigação rigorosa e explicativa das entidades interpretadas desse mundo. Ocorre que o filósofo alemão enfatizava a impossibilidade de análise dos modos intencionais e imanentes da consciência pela via matemática espaçotemporal. Tais propriedades deveriam, a seu tempo, ser circunscritas à prática descritiva das essências imanentes da consciência, revelando um distinto projeto de ciência do rigor.

De outra perspectiva, as neurociências cognitivas mostram preocupação considerável no enriquecimento de sua empiria para superação da lacuna explanatória metafórica. Seria esta tentativa de aproximação à fenomenologia uma reação à crise no objetivismo científico, da qual Husserl já discorria? A discussão não parece estar perto de um fim, desde que são vários os interesses envolvidos no projeto de naturalização, sendo o mais importante o avanço na compreensão sustentada das relações entre cognição, emoção e ação. Em outras palavras, como compreender, agir e intervir em um ser humano que é ao mesmo tempo uma unidade e uma diversidade? De qualquer modo, a proposição empírica da neurofenomenologia aplicou um choque na tradicional fenomenologia dos comentários.

 

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Recebido em: 14/11/08
Aceito em: 28/04/09

 

 

* Endereço eletrônico para correspondência: tgomesdecastro@yahoo.com.br
1 A ênfase da análise e reorientação epistemológicas promovidas pela fenomenologia corresponde ao exame, em primeira mão, das fontes e estruturas essenciais requeridas para um conhecimento em geral.

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