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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.1 no.2 Juiz de fora dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Experimentações teatro e loucura: por uma outra forma de relação

 

Experiments with theater and madness: for another form of relationship

 

 

Jardel Sander*

Pontifícia Universidade Católica, Belo Horizonte, MG

 

 


RESUMO

O texto relata uma experiência de trabalho teatral com usuários de um serviço de saúde mental. Parte da demonstração da necessidade de um novo modo de relação, tomando o teatro - como expressividade corporal, não-representacional e, sobretudo, não-psicodramático -, como possibilitador de uma nova modalidade relacional. A partir do trabalho realizado com o grupo de teatro dos usuários do serviço, busca-se refletir sobre algumas prudências necessárias (sobretudo os agentes psi) ao adentrar o campo da loucura. De modo semelhante, é mostrado como foi possível uma abertura a uma perspectiva de atuação menos hierarquizada e mais potencializadora. Conclui-se pela necessidade de reinvenção da prática psicológica junto aos usuários, bem como de um envolvimento mais aprofundado por parte dos profissionais.

Palavras-chave: Loucura, Doença Mental, Teatro


ABSTRACT

The text describes a theatrical experience of working with users of a mental health service. It demonstrates the need for a new form of relationship, taking the theater - as body expression, non-representational and, above all, non-psychodramatic - as a means to enable a new modality of relationship. From the work with mental health services users participating in a theater group, it aims at reflecting about some prudence needed (especially of mental health professionals) when entering the mental illness field. In a similar way, it shows how it is possible to achieve a less hierarchical and more empowering perspective of action. It points out the need for reinventing the psychological practice among mental health services users, as well as highlights the necessity of a deeper involvement on the mental health professionals' behalf.

Keywords: Madness, Mental Health, Theater


 

 

Faz-se necessário, inicialmente, um esclarecimento. Pois o texto que segue refere-se a uma prática que já ficou alguns anos para trás. Portanto, este trabalho se aproxima, em certa medida, de uma recordação, como quem olha fotos ou lê cartas de muita estima. Na verdade, talvez esteja mais próximo do que Deleuze e Guattari falam dos blocos de infância: "cristalizações de sistemas de intensidades" (Guattari & Rolnik, 1996). São essas intensidades que se tenta trazer e oferecer ao leitor.

Num primeiro olhar, bastante rápido e objetivo, pode-se dizer que se trata de um relato de uma experiência de teatro com usuários de um serviço de saúde mental (o Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, de Blumenau/SC) que se estendeu por aproximadamente 3 anos. Mas, à medida que se faz uma pausa no olhar, que se é afetado pela profundidade dessa experiência, percebe-se que se trata, no fundo, de uma busca. Essa busca que é uma tentativa de construir uma atuação profissional em Psicologia, de encontrar alegrias ativas neste ofício e no encontro com seres que, de uma maneira ou de outra, nos procuram. Pois bem, essa busca é atravessada de ponta a ponta pela vontade de inventar uma outra forma de relação com os usuários do serviço de saúde mental, produzir uma outra grupalidade, tornar o mundo habitável (para todos que estamos no mesmo barco). Daí que se fale necessariamente de uma experiência sem fim (também sem começo...), daí que se fale do meio. Do meio de um percurso cujas pontas se perdem no infinito da lembrança; de um meio, um modo, uma possibilidade de atuar, de uma prática possível, possibilitada.

 

Nomeação

Quando se convive com usuários de serviços como o CAPS enfrenta-se um problema que diz respeito à denominação desses seres, ou melhor, desse grupo. Hesita-se um pouco em denominálos doentes mentais, chamando-os apenas de doentes, como que produzindo um vazio nessa doença, um vazio ainda não ocupado por um território que possa abrigá-la. Doença sem objeto, doença só. A certeza de que algo vai mal, sem se saber ao certo "onde". Por outro lado, através da proximidade com esses seres, é possível ver a impropriedade de se tratar com "doentes".

Lembro-me, com certa freqüência, das primeiras vezes que vi "os loucos" de carne-eosso, quando comecei a freqüentar um Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), em Florianópolis. Nessa ocasião, já tinha minhas expectativas devidamente desmistificadas para não esperar nada de extraterrestre. Mas, todavia, é sempre algo surpreendente conviver com uma "categoria", algo do mesmo tipo que "Os meninos de rua", "Os marginais", "Os traficantes", também serve para "Os loucos": um jargão de jornal televisivo, que cria sua própria versão - feia e empobrecida - dos "seres imaginários" de Borges. Pois bem, eis que me via frente-a-frente com as categorias encarnadas e, qual surpresa, eram humanos! Inclusive bastante convencionais, comuns, cotidianos. Esse tipo de pessoa que forma o contingente invisível dos ônibus ou calçadas das cidades. E, neste sentido, fui aprendendo a conviver com "pessoas", para longe de qualquer abstração, num corpo-a-corpo, ouvi-las, trocar experiências, fazer coisas juntos etc.

No entanto, algo os diferenciava. E o psicólogo Marcos E. R. Lima - do NAPS de Florianópolis, nessa época - havia chegado a um denominador comum, numa caracterização bastante feliz: usuários de drogas antipsicóticas, no intuito de nomear o grupo que nascia nesse serviço de saúde mental, e que se chamaria GUDA, um grupo destes usuários. Pois o que primeiramente diferencia estas pessoas de outras freqüentadoras dos referidos ônibus e calçadas, são essas substâncias cujo uso são levadas a crer ser indispensável para suas vidas; além disso, há toda uma identificação que sobre elas recai, seja pelos serviços que freqüentam, pelos remédios que tomam, ou pela estranheza que causam.

Mas existe outro modo de se olhar para a questão do uso da medicação e, conseqüentemente, outra forma de caracterizar essas pessoas. Há, sobretudo, esse modo, poderíamos dizer mesmo, impudico, de escavação das vidas, que traça o percurso biográfico (algo como o "histórico da doença", ou mesmo sua etiologia) em que fatos vão se encadeando e sendo significados, de modo que tudo conduz à inexorabilidade da patologia e à necessidade da medicação: um caminho que os profissionais psi conseguem visualizar, em toda sua extensão, em seu galope desvairado rumo à ruptura com a realidade, e o que mais freqüentemente realizam.

No entanto, é necessário encarar diferentemente essas pessoas. Mas isso só se torna possível à medida que criamos um espaço de compartilhamento, de parceria; à medida que nos recusamos a conviver nos termos implicados nas designações de "doente" e de "usuário"; à medida que o próprio convívio pede um outro nome, um nome próprio.

A formação do grupo de teatro foi bastante interessante por permitir a proximidade (que desmonta os reducionismos quanto a esses seres) e por dar um outro status a essas gentes: componentes do grupo de teatro. Ou seja, um passo para fora do território da doença!

Pode-se dizer, portanto, que a idéia de trabalhar com teatro, como uma forma de resgate do corpo, nasceu de um descontentamento em relação às formas com que a Psicologia tem trabalhado com grupos, principalmente quando se trata de psicóticos, no sentido de entidade clínica.

A entrada da Psicologia no território da loucura caracteriza-se, amiúde, por um distanciamento inerente à relação terapêutica, e também por uma dificuldade relacional: afinal quais frutos o profissional da palavra há de colher desses estranhos falantes?

Interpretar a loucura nos termos dos saberes psi é fazê-la falar um diálogo já conhecido, é fazê-la entoar os hinos da/à ciência, é repetir (repedir) que a mesma história seja novamente - às vezes infinitamente - reconstruída. A interpretação psicológica da loucura é uma batalha de forças desiguais, pois imprime um significado (uma positividade) ao sem sentido. A Psicologia, na maioria das vezes, reveste de significado, satura as manifestações com seu próprio discurso.

 

A Potência do Teatro

A fuga para o teatro não deixa de ser uma migração para um campo ainda não saturado de significações psicológicas. Não que inexistam algumas "psicologias" no teatro (ou nos teatros), mas seu conteúdo e extensão são limitados pelo resultado estético a que visam. Existe uma outra meta, que não a cura, a ser atingida, o que possibilita um outro percurso, que não o terapêutico. Mas isto é, a um só tempo, a força e o paradoxo do teatro: não ser terapêutico de origem, mas poder sê-lo de destino. Pois pode-se objetar que o teatro, para bons entendedores, é sim terapêutico em seus efeitos. De todo modo, para o que me interessa, basta dizer que o teatro possibilita um outro universo de práticas e de suas conseqüentes significações. O que me atrai no/ao teatro é sua abertura, sua possibilidade de não ser psicologizado.

Diante do exposto, ficam claros os inconvenientes de um "psicodrama da loucura"1 a este tipo de proposta. Pois o psicodrama, com noções como as de espontaneidade, desempenho de papéis etc, remete-nos a um campo teórico alicerçado no conceito de identidade, sendo que a teoria psicodramática embasa-se na dispersão de pontos identificatórios em todos os espaços da vida, multiplicando, assim, minúsculos territórios interligados.

Só para ficarmos com alguns exemplos, lembremos que Moreno (1997) define espontaneidade como:

A tendência inerente para ser experimentada por um indivíduo como seu próprio estado, autônomo e livre-isto é, livre de influências exteriores e de qualquer influência interna que ele não possa controlar. Para o indivíduo, pelo menos, tem todas as características de uma experiência livremente produzida (p. 132).

Mais adiante, define o que seria o desempenho de papéis:

Consideramos os papéis e as relações entre papéis o desenvolvimento mais significativo em qualquer cultura específica. Ao padrão de relações em torno de um indivíduo, como seu foco, dá-se o nome de seu átomo cultural. Todo o indivíduo, assim como tem um conjunto de amigos e um conjunto de inimigos -um átomo social -também possui uma gama de papéis que se defronta com uma outra gama de contrapapéis. Os aspectos tangíveis do que é conhecido como o "ego" são os papéis em que ele atua. (p.135 - grifo do autor)

O que se percebe é um retorno sobre si mesmo, identificatório e representacional. E, como dessa operação deve surgir o terror de uma suprema inércia, propõe o autor o resgate da espontaneidade2 como a possibilidade de transformação, de movimento.

No entanto, se não pensarmos em termos de identidade (que pressupõe a existência de uma interioridade psíquica, desejante etc., que preexiste ao ato e se manifesta nele); mas sim em produção de subjetividade, não há sentido em permanecermos no terreno representacional. Afinal, esta perspectiva sobre a subjetividade, como produção, de acordo com a elaboração que fazem Deleuze e Guattari (1976) e Guattari e Rolnik (1996), é processual, trazendo consigo justamente a marca da impermanência, do devir. Ou melhor, segundo Guattari e Rolnik (1996), em suas "Notas Descartáveis sobre Alguns Conceitos": "(...) a subjetividade não está sendo encarada aqui, como coisa em si, essência imutável. Existe esta ou aquela subjetividade, dependendo de um agenciamento de enunciação produzi-la ou não." (p.322)

Portanto, dentro desta perspectiva de produção de subjetividade, uma proposta de representação de um ato, ou mesmo de um acontecimento, torna-se absolutamente artificial, pois o que se busca é produção de diferença - mesmo a partir da repetição; diferentemente das práticas identificatórias, cuja "realidade" produzida se conforma a alguma cena originária, selando assim uma inelutável identidade: passado e presente amarrados numa linha causal.

No entanto, uma vez que compreendemos que não existe um objeto a priori, uma cena primeira a ser interpretada, que não há falta, que o "subjetivo" é produzido no acontecimento, nenhuma encenação da vida, na forma de seus diversos "papéis", é aceitável.

Daí ressalta a questão da necessidade prática e de uma coerência teórica: como lidar com o modo disruptivo dos seres enlouquecidos que não em termos de resgate de alguma identidade perdida, ou nunca atingida? Como lidar com o grupo, com seu modo caótico?

Não só o Psicodrama, mas a Psicologia de uma maneira geral, reflete a nossa incapacidade de um encontro com os seres enlouquecidos, de uma forma de relação que parte de uma perspectiva de cura, e faz a partilha entre o que é saudável e o que é doente. Essa dificuldade dos psi é assim abordada por Pelbart (1993), em relação ao trabalho com psicóticos:

Daí nossa impaciência, nosso voluntarismo, nossa hipervalorização do trabalho, do acabamento. Nosso sofrimento e angústia nesses momentos iniciais de um grupo expressivo com psicóticos, por exemplo, quando há uma espécie de suspensão caótica, que se soubermos sustentar não passa de um caos-germe, de uma gestação a partir do informe, do indecidido. (p.36)

Em suma, foi a partir de uma necessidade de fugir do psicologismo, de me abrir para a germinação expressiva dos ditos psicóticos, que aportei no teatro. E, como conseqüência, através de teorias que ressaltam o trabalho corporal do ator, como forma de escapar à prevalência do discurso.

Teatro-corpo

Nesse aspecto, a proposta de teatro de Eugenio Barba foi muito importante, uma vez que existe em sua concepção uma ênfase muito grande na importância do corpo e do trabalho corporal do ator. O corpo é o material com o qual o ator desenvolve sua arte. Mas não só. O teatro de Barba possibilita as bodas entre a mente e o corpo (corpo-e-alma), não em termos de uma representação -como se o corpo representasse um pensamento, por exemplo -, mas na forma de uma inter-relação expressiva, de uma unidade constituída dessa união: "O ator pode começar do físico ou do mental, não importa, desde que na transição de um para outro, uma unidade seja reconstituída" (Barba, 1995, p.55). Essa unidade buscada diz respeito à composição de um "corpoem-vida", que, para esse autor, é o momento em que o "fluxo de energias que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi redirecionado. As tensões que secretamente governam nosso modo normal de estar fisicamente presentes, vêm à tona no ator, tornam-se visíveis, inesperadamente. (ibidem., p.54)"

Esse aspecto que "secretamente" modula a ação do ator, nessa concepção de teatro, não é entendido pela sua importância psicológica ou pela necessidade de resgate deste psíquico como motor da ação -concepção essa, de certa forma, aproximada ao sistema de Stanislavski. Pelo contrário, se envolve as vivências, experiências ou até a psique do ator, não é primeiramente em relação à consciência (consciente x nãoconsciente); mas o que interessa é que esse espaço "secreto"3 é um manancial de energia, energia essa que vitaliza a expressão do ator. Neste sentido: "Estudar a energia do ator, portanto, significa examinar os princípios pelos quais ele pode modelar e educar sua potência muscular e nervosa de acordo com situações nãocotidianas [isto é, no teatro]. (ibidem, p.74)"

O que me interessa aqui expor é menos a técnica de Eugenio Barba e do teatro antropológico, do que propriamente esboçar algumas concepções deste autor que dão sustentação teórica e técnica para uma outra abordagem num trabalho teatral com os seres enlouquecidos. Isto é, através de noções como a de corpo-e-alma, que é possível aproximar ao paralelismo espinosista4, bem como através da ênfase na energia como flu-xo, em que podemos visualizar uma similitude do que Deleuze e Guattari (1995; 1996) falam de intensidades.

Estas noções são importantes na medida em que confluem para o resgate da potência do corpo, pois o paralelismo, contrariamente à dicotomia cartesiana, nega qualquer superioridade do espírito sobre o corpo e vice-versa: "(...) o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez necessa-riamente paixão na alma." (Deleuze, 2002, p.24); e a noção de intensidade desloca, igualmente, a perspectiva moral, conduzindo-nos a pensar os acontecimentos em termos de intensificação, como diferenças de graus de intensidade acionados pelos fluxos - e não em termos maniqueístas, de Bem versus Mal.

Uma tal perspectiva de teatro seria capaz de restituir a possibilidade de um devir teatro aquém de qualquer psicologismo.

Neste sentido, é possível, ainda, anexar à reflexão a força do pensamento de Antonin Artaud, da sua idéia de teatro:

O verdadeiro teatro não traz à luz conteúdos latentes, fazendo a realidade apropriar-se do sonho e do reprimido. O teatro produz realidade, ou seja, é a arte da passagem e do devir, do rompimento das barreiras pela instalação da causalidade lateral e da relação produtiva do Duplo. (Arantes, 1988, p.60)

O teatro como duplo não é da ordem da cópia, mas sim da criação. Ou melhor, nas palavras de Artaud (1993a):

(...) o teatro deve ser considerado como o Duplo não dessa realidade cotidiana e direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, onde os Princípios, como golfinhos, assim que mostram a cabeça apressam-se a voltar à escuridão das águas. (p.43)

Artaud não cessa de sustentar um aspecto obscuro que ao teatro caberia trazer à tona, ou melhor, fazer "vazar abscessos coletivamente", mas não como pretexto interpretativo, como forma de medir o acontecimento cênico a uma realidade originária, como se o teatro fosse representar o real. Porque, afinal, Artaud se ocupa das intensidades, também quer vê-las produzir um real-cênico, um real-expressivo. Esta característica da perspectiva de Artaud sobre o teatro é muito importante: recolher a positividade, ou até mesmo a necessidade, daquilo que nossa cultura varreu para debaixo de seus tapetes, isto é, esse caos, esse Fora, ou mesmo uma certa acepção de inconsciente, que não visa revertê-lo em inteligibilidade, como alimento ao intelecto: "E se nos dirigimos teatralmente ao inconsciente é apenas para lhe arrancar o que ele conseguiu recolher (ou ocultar) da experiência acessível e cotidiana. (ibidem, p.41)"

Tudo se passa como se o terrível habitasse nosso corpo-e-alma como uma pústula, e ao teatro coubesse fazer vazá-la, para recolher (e preservar) sua intensidade própria:

Todas as nossas idéias sobre a vida devem ser retomadas numa época em que nada adere mais à vida. E esta penosa cisão é a causa de as coisas se vingarem, e a poesia que não está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas reaparece de repente, pelo lado mau das coisas; nunca se viram tantos crimes, cuja gratuita estranheza só se explica por nossa impotência para possuir a vida.

Se o teatro é feito para permitir que nossos recalques adquiram vida, uma espécie de poesia atroz expressa-se através dos atos estranhos onde as alterações do fato de viver demonstram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor. (Artaud, 1993a, p.03)

Em suma: Artaud ataca constantemente o que ele chama de "teatro psicológico ocidental", ataca mesmo a cultura ocidental como um todo, e não por questões simplesmente teatrais: é que essa cultura está podre, ela fede. E é nesse sentido que vai a revolta de Artaud em relação ao suicídio de Van Gogh, o "suicidado da sociedade":

Pode falar-se da boa saúde mental de Van Gogh, que durante a vida inteira só assou uma das mãos e, quanto ao resto, não fez mais do que cortar uma vez a orelha esquerda, num mundo que todos os dias come vagina cozida com molho verde ou sexo de recém-nascido flagelado e enraivado, tal qual o apanham quando sai do sexo materno. E não é isto imagem mas um facto quotidianamente repetido e cultivado com abundância por toda a terra. Por isso, tão delirante possa parecer esta afirmação, a vida presente continua na sua velha atmosfera de estupro, anarquia, desordem, delírio, desregramento, loucura crônica, inércia burguesa, anomalia psíquica, pois não foi o homem mas o mundo que se transformou num anormal (...). Por isso uma sociedade com tara inventou a psiquia-tria para se defender das investigações de certas lucidezes superiores cujas faculdades de adivinhação a incomodavam. (Artaud, 1993b, p.17-18)

Esta cultura estabelece uma vida psicológica medíocre, e, como se não bastasse, o teatro ainda a faz representar-se. Portanto, não há mais necessidade de mantê-la, e deve haver, pois, no teatro uma poesia anárquica, que ponha em questão as formas, os significados, que seja herdeira do caos.

 

A Prática: um exemplo

Em julho de 2000, ocorreu o 14º Festival Universitário de Teatro de Blumenau/SC, para o qual foram convidados os participantes do grupo de teatro e outros usuários do CAPS que tivessem interesse. Fomos a algumas apresentações gratuitas, que eram assistidas principalmente por pessoas relacionadas ao mundo artístico. Os usuários estranharam a diversidade de "tipos" que circulavam pelo Teatro Carlos Gomes naquelas tardes. Era uma "fauna", cujos seres exibiam comportamentos e visuais muito diferentes do que os usuários do CAPS estavam acostumados a ver em seres ditos "normais". A ponto de, num determinado momento, em meio a esse zoológico cultural, uma usuária comentar: "Mas esse pessoal é mais louco que a gente."

A dimensão que assumiu um deslocamento como esse, diz respeito a uma forma de abertura, de convívio com outros modos de existência que os usuários do CAPS não têm muito contato. Seu mundo é muito marcado pela polaridade normal X anormal. Não diz respeito somente a um outro espaço que começa a ser freqüentado; está mais próximo de uma abertura a outros territórios, no sentido desenvolvido por Deleuze/Guattari, que pode ser assim conceituado:

(...) a noção de território é entendida aqui num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que dela fazem a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente "em casa". O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (Guattari & Rolnik, 1996, p.323)

Nesse aspecto, podemos falar do deslocamento espaço-cultural como uma possibilidade de des-territorialização, pois é a circunscrição de espaços destinados aos "doentes mentais", ou aos "portadores de transtorno psíquico", ou qualquer outra identificação que venha a ser criada, que reflete essa "subjetivação fechada sobre si mesma". Abrir-se a outros espaços -como exemplificado anteriormente -, por si só, não adianta; é preciso negar, fugir, resistir à alcunha, à identificação. É preciso criar um espaço liso, no sentido em que Deleuze e Guattari falam que o " 'liso' não quer dizer homogêneo; ao contrário, é um espaço amorfo, informal" (Deleuze & Guattari, 1997, p.182 grifo dos autores) para possibilitar a passagem de fluxos. Nesse aspecto, o teatro mostrou-se uma possibilidade e uma potencialidade.

Enfim, pode-se afirmar que a formação de um grupo de teatro, a convivência com o métier, as experimentações com exercícios, encenações apresentações... tudo isso possibilitou que esses seres enlouquecidos se abrissem a outros fluxos, tomassem contato com uma espécie de desterritorialização.

Pois, partindo da argumentação proposta de que as práticas e discursos em saúde mental operam uma disciplinarização desses seres enlouquecidos -no sentido de aproveitamento dos corpos, de reinserção desses seres, mediada pelos serviços de saúde mental, no regime de funcionamento da nossa sociedade (produção) -, não devemos esquecer que as disciplinas são da ordem das relações de poder, e que essas não se dão através de um consenso; é através das lutas, das resistências:

(...) não existe relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem reviravolta eventual; toda relação de poder implica, ao menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que, portanto, elas venham a se sobrepor, a perder a sua especificidade e, por fim, a se confundir. (Foucault, 1984, p.319)5

É possível, pois, entender a lentidão desses corpos-e-almas como uma forma de resistência. Nessa direção vai o questionamento de Pelbart (1993):

A questão seria saber como as propostas alternativas em saúde mental pensam preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho. (p.41)

Ou mesmo, até que ponto, realmente, conseguimos lidar com essa temporalidade, com essa lentidão, com essa inércia? Até que ponto não fazemos mais que promover espaços de temporalidade acelerada, de produção (não de mais-valia, mas de criatividade, de expressão etc.)?

Lembro-me claramente quando, no final de 1999, o grupo subiu ao palco da Fundação de Cultura de Blumenau para se apresentar. Eu estava contracenando com André6, o público cochichando, comentando a apresentação anterior. Isso me incomodava, além do nervosismo da apresentação, e me lembrava da conversa que tivera com André minutos antes de iniciar a apresentação, em que ele, no auge de sua ansiedade, disse que não se apresentaria. Eu lhe disse: "Tu tá nervoso. Tu vai ver que, quando isso passar, a gente vai rir juntos de tudo isso." Me referia a depois do espetáculo.

Mas, uma vez no palco, no meio da cena, e em meio a uma platéia inquieta, percebi que André sorria, divertia-se. Nesse instante, ele era o senhor de um tempo, de um momento de intensa alegria, que se compunha comigo, com o cenário, com o público, mas que não tinha nada a ver com cada uma dessas partículas: era um arranjo muito particular, que conseguia potencializar o conjunto. Alguma coisa passavase ali, mas era num outro tempo, que fazia os relógios escorrerem, tal qual uma pintura de Dali, e gotejarem seus minutos, suas horas...

Para finalizar, caberia retomar uma proposição de Deleuze e Guattari (1992): é somente quando se "introduz a produção no desejo e, inversamente, o desejo na produção" (p.28) que se sai do teatro familiar, pois somente quando o desejo se liga ao material, à produção, à invenção que ele pode parar de repetir. E cabe a nós não pedir sempre de novo (re-pedir, re-petir) que nos falem de sua dor, de seu labirinto, numa mescla de sadismo e misericórdia. Não somos iguais, mas também nem por isso somos melhores. Existe algo que se processa no encontro com, no interstício: devir. Mas para isso é necessária outra forma de relação, de estar junto.

Cabe a nós estabelecer "uma relação que não seria legal, nem contratual, nem institucional", mas sim um "remar juntos" (Deleuze, 19--). É preciso mesmo que o próprio "terapeuta" se ligue às suas oficinas não pelo dever de seu ofício, mas pela vontade de suas "entranhas".

 

Referências

Arantes, U.C. (1988) Artaud: Teatro e cultura. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,         [ Links ].

Artaud, A. (1993a) O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Artaud, A. (1993b) Van Gogh, o Suicidado da Sociedade. Lisboa: Hiena.         [ Links ]

Barba, E. (1995) A Arte Secreta do Ator. Campinas. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Deleuze, G. (2002) Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Deleuze, G. (1985) Pensamento Nômade. In: Por que Nietzsche? Rio de Janeiro: Achiamé         [ Links ].

Deleuze, G. & Guattari, F. (1992) Entrevista sobre O Anti-Édipo. In: Deleuze, G. Conversações. São Paulo: Ed.34.         [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F. (1997) Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Ed. 34. (Coleção TRANS).         [ Links ]

Deleuze, G. (1996) Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Ed. 34. (Coleção TRANS).         [ Links ]

Deleuze, G. (1995) Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34. (Coleção TRANS).         [ Links ]

Deleuze, G. (1976) O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago. (O que pensam da psicanálise; 1)         [ Links ]

Foucault, M. (1984) Deux essais sur le sujet et le pouvoir. In: Dreyfus, H. & Rabinow, P. M. Foucault: Un parcours philosophique. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Guattari, F. & Rolnik, S. (1996) Micropolítica: Cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Moreno, J.L. (1997) Psicodrama. 7.ed. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Pelbart, P.P. (1993) A Nau do Tempo Rei: Sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago. (Série Logoteca)         [ Links ]

 

 

Recebido em: 04/03/09
Aceito em: 15/05/09

 

 

* Endereço eletrônico para correspondência: jardelss@gmail.com
1 Sobre esse tema, cf. Fonseca Filho, J.S. (1980) Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Ágora.
2 Inclusive, a etapa anterior do trabalho de Moreno, e que originou posteriormente o psicodrama, foi o chamado "teatro da espontaneidade", no início da década de 1920. Cf. Moreno, J.L. (1984) O Teatro da Espontaneidade. São Paulo: Summus.
3 Vale lembrar que o título do citado livro de Barba é A Arte Secreta do Ator.
4 Quero ressaltar que as aproximações que seguem não se encontram na obra de Eugenio Barba, sendo da responsabilidade do autor deste artigo.
6 Nome fictício.

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