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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.1 no.2 Juiz de fora dez. 2008

 

RESENHAS

 

Grupo como construção social: aproximações entre construcionismo social e terapia de grupo

 

 

Fernanda Nogueira Campos*

Centro Universitário do Triângulo, Uberlândia, MG

 

 

Rasera, E. F & Japur, M. (2007). Grupo como construção social: Aproximações entre construcionismo social e terapia de grupo. São Paulo: Vetor.

O Livro "Grupo como Construção Social: aproximações entre construcionismo social e terapia de grupo" de autoria de Emerson Fernando Rasera e Marisa Japur é resultado de uma longa parceria entre os autores, que optaram por incentivar o pensamento filosófico e prático sobre psicoterapia, grupos e psicoterapia de grupo em uma perspectiva da construção social dos mesmos. Escrever criticamente a respeito desta publicação implica tentar escrever juntamente com a mesma, na primeira pessoa do plural, considerando a multiplicidade de vozes que perpassam a nossa leitura e escrita.

No primeiro capítulo, os autores apresentam dois tópicos. O primeiro trata de uma importante e bem sucedida tentativa de definição do que vem a ser construcionismo, sendo que para tal dialogam com os leitores buscando pontos de interseção com outros pensamentos vigentes na literatura científica. De forma ética e simples, tecem críticas ao modelo objetivista de ciência e até à própria necessidade de fixação em conceitos, que contraria a proposta do construcionismo. Retomam as influências da abordagem da construção social advindas da teoria crítica social (Marx, Weber, Scheler e Manheimen), da crítica ideológica (identificando-se com a escola de Frankfurt) e da crítica retórico-literária. Nesta direção, apontam um caminho alternativo ao tradicional científico, um caminho inquieto e em movimento, comprometido com as relações, com as possibilidades das verdades contextualizadas em determinada situação histórico-cultural.

Visto que o construcionismo não implica em estacionar-se num único sentido dado, mas em construir descrições e possibilidades, Rasera e Japur buscam correlacionar os consensos entre posturas de diversos autores, sendo estas: o antiessencialismo, o anti-realismo, a linguagem como forma de ação social e o foco na interação e nas práticas sociais.

No segundo tópico do primeiro capítulo, os autores se embrenham na construção social da pessoa em que se reafirma a linguagem como ação e o foco na interação. Assim, nos vemos levados a destituir-nos de todo e qualquer desejo de contorno individual e de pré-determinação de traços de caráter e personalidade, passando a enxergar o humano para além da essência e das heranças biológico-genéticas. Os autores, neste tópico, trazem imensas contribuições no que concerne à compreensão dos sentidos em uma relação dialógica, ou melhor, discutem em como a significação se dá na interação.

Em seqüência, faz-se explanação importante de se compreender o self como o exercício de narrativas sobre os sujeitos. Neste passo, convida a Psicologia a refletir sobre sua postura como construtora de narrativas sobre os sujeitos e, de forma crítica, a repensar as implicações de suas práticas.

No segundo capítulo, "O construcionismo social no contexto psicoterápico", como o próprio título adianta, os autores organizam com clareza as idéias que amparam a articulação do construcionismo com a psicoterapia, o que nos acresce principalmente no que concerne ao posicionamento do psicoterapeuta como um não especialista, mas como um co-construtor, possibilitador de conversas, focalizador de potencialidades, ativo na interação dialógica e na criação de novas realidades.

O capítulo se segue de quatro tópicos: os três primeiros apresentam contribuições de outros autores que podem ou não ser denominados construcionistas; no último tópico, Rasera e Japur, articulando as teorias apresentadas, investem em uma reflexão final sobre uma possibilidade de psicoterapia de orientação construcionista. White e Epston, terapeutas familiares, são trazidos com leveza e profundidade de forma a contribuir não só para a compreensão das narrativas normatizadas dos nossos clientes e das possíveis re-construções das mesmas, mas também para a atuação de qualquer psicoterapeuta que pretende pensar no processo psicoterápico e nos momentos adequados de inserção de práticas que potencializam as transformações. O segundo tópico traz contribuições de Tom Andersen sobre os diálogos múltiplos, internos e externos que ocorrem em uma sessão, propondo a reflexão e ainda uma equipe reflexiva dentro do contexto psicoterápico, cuja proposta viria a minorar problemas interpretativos hierárquicos e unidirecionais que ocorrem, e muito, na relação terapeuta e cliente (ou clientes). No terceiro tópico, os autores revisitam a psicoterapia de Harlene Anderson, leitura simplesmente indispensável para profissionais estudiosos da hermenêutica filosófica e que pretendem exercê-la em psicoterapia. A complexidade da relação e o nível de coresponsabilização terapeuta-cliente são amplamente debatidos, o que respalda a assunção por parte do terapeuta de um posicionamento de multiplicidade, de abertura para se construir na relação com o cliente. Finalizando o segundo capítulo, os autores realizam uma revisão do arcabouço teórico-prático apresentado e tomam em consideração os possíveis entraves de se tomar algum modelo ou proposta como corretos e prescritivos. Esta reflexão faz parte de uma postura necessária para a construção social lembrando o caráter crítico e contextualizado do construcionismo, por isso abordam os aspectos limitantes das teorias apresentadas nos tópicos anteriores que ainda apresentam uma tendência à manutenção da individualização no processo terapêutico.

No terceiro capítulo, "Terapia de grupo como construção social", os autores questionam, propõem e constroem uma terapia de grupo condizente com o construcionismo. A priori, no tópico "Aproximações construcionistas no campo da prática grupal", tem-se clareza da escassa e embrionária literatura científica a respeito de construcionismo e terapia de grupo. Num segundo momento, os autores buscam novas aproximações, com terapias narrativas e retomam as posturas teóricas apresentadas no segundo capítulo. O que enxergamos é uma amarração teórica de interessante formação, pois critica as formas préconcebidas das terapias ao mesmo tempo em que potencializa suas contribuições contextualizandoas no campo da terapia grupal. É dada uma atenção específica para a definição de grupo, afim de não transferir práticas e saberes anteriores para um novo contexto sem a prévia descrição do mesmo. Para tal, os autores propõem o tópico "Por uma visão relacional da terapia de grupo" em que o primeiro autor do livro, Emerson Rasera, apresenta sua experiência como terapeuta e pesquisador junto a um grupo de apoio fechado, de curta duração, para pessoas portadoras de HIV em uma ONG/AIDS de Ribeirão Preto. Com seu relato minucioso, apresentando os objetivos e a formação do grupo, bem como sua maneira peculiar de fazê-lo, percebemos a coerência com uma possível visão de grupo terapêutico amparada no construcionismo, surgindo assim um exemplo original de terapia de grupo por esta perspectiva.

Esta proposta avança desde então até o último capítulo, como veremos no capítulo quatro "Construindo pessoas", em que se discute profundamente a preparação e composição do grupo por meio de conversas iniciais. Nestas se fazem as negociações entre terapeuta e cliente e se constrói a idéia de grupo e a participação futura de cada participante. O autor nos conta um trajeto, não uma receita, não propõe um jeito único de se manejar esta importante etapa da terapia grupal, no entanto, ao descrever o processo vivenciado nos permite visualizar e nos preparar para um posicionamento a favor da co-construção de grupos em nossas próprias vivências profissionais. O mesmo capítulo aborda a criação de uma realidade relacional entre terapeuta e participante(p.141) por meio de processos muito bem detalhados de coresponsabilização entre as partes, contrato, e construção de homogeneidade entre os participantes. O papel do terapeuta como coresponsável, co-criador, e como construído em cada grupo e para cada grupo é explicitado neste capítulo, cuja exemplificação gera uma interação leitor-livro-autor-história que incentiva o leitor a uma prática engajada em terapia grupal, de suma relevância em tempos pós-coloniais, tempos em que estamos revendo todas as verdades legitimadas por poderes hegemônicos.

O autor principal segue, no quarto capítulo, com o desenvolvimento dos sentidos construídos dentro do grupo de apoio a pessoas portadoras de HIV especialmente no que diz respeito à construção conjunta do problema/mudança. Para tal, transcreve e analisa o processo conversacional entre os participantes focando especialmente no participante Pedro, que descreve-se como não tomando o medicamento prescrito, o que fica nitidamente significado pelo grupo como um problema. A implicação dos participantes com a auto-descrição de Pedro é transparente nas conversas, que vão se desenrolando em jogos de significações e re-descrições, de forma que a mudança na auto-descrição de Pedro também faz emergir a rede identitária construída no e pelo grupo. O autor principal faz ainda uma reflexão crítica, uma análise justa, sobre a cristalização de significados historicamente construídos sobre doença, remédio, AIDS e convenções, e nos deixa uma questão que nos levou a uma reflexão: se estamos presos a significações cristalizadas a respeito das relações entre medicação-HIV, psicologia-comportamento e emoção, como trabalharemos neste referencial com grupos de pessoas em situação de sofrimento psíquico grave?

Não se tratando da proposta deste livro, nos propomos a dialogar juntos e retomamos o caminho traçado para o objetivo desta resenha.

No capitulo cinco, "O grupo como construção social: mantendo as conversações", os autores retomam a proposta do livro e enfatizam o seu caráter dialógico ao invés de prescritivo ou formatador de modelos. Alcançam assim, o objetivo de explicitar o caráter discursivo da definição de grupo, ou seja, mostrando como a linguagem em seu caráter performático serve para construir o grupo, ao invés de descrevê-lo como um objeto já existente(Rasera & Japur, 2006, p.204).

Os autores tecem ainda questões pertinentes e reflexivas sobre a prática terapêutica, sua ética, limitações, institucionalização e reducionismo do saber-prático terapêutico. Em conseqüência, arriscam respostas ou alternativas com a mesma força e coerência com a qual perguntam.

A dimensão ética abordada em relação à atenção a pessoas portadoras de HIV é ressaltada neste fechamento do livro, visto que busca uma redescrição dos sentidos não apenas da soropositividade (HIV), mas das pessoas que estando vivas são descritas como a caminho da morte enquanto, ironicamente, se pensarmos, estão no caminho em que está o resto da humanidade. Ou seja, este capítulo sinaliza vida e novos discursos para a mesma.

O livro conta também com anexos que podem valer a quem busca entender ainda mais o diálogo estabelecido no grupo terapêutico em que se deu a pesquisa do autor principal, com as falas delimitadas por temas e pela seqüência das narrativas.

Finalizando, podemos dizer que a obra científica "Grupo como construção social" é relevante ao pesquisador que prima por uma ciência comprometida com o contexto social, político e cultural visando a emancipação humana em contracorrente às realidades construídas por lógicas opressoras. Mostra ainda ser possível ampliar as relações de horizontalidade na relação terapeutacliente, o que está em consonância com a visão pós-moderna de valorização dos saberes e práticas não-hegemônicos, como diria Santos (2006) um movimento contra o desperdício das experiências do mundo.

O livro que resenhamos, em suma, é uma notável contribuição científica para profissionais e pesquisadores que trabalham com grupos e pessoas. Será ainda necessário um convite para um diálogo com esta obra?

 

Referências

Rasera, E. F & Japur, M. (2007). Grupo como construção social: aproximações entre construcionismo social e terapia de grupo. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Santos, B.S. (2006). A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Lisboa: afrontamento.         [ Links ]

 

 

* Endereço eletrônico para correspondência: fnocam@netsite.com.br

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