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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.1 Juiz de fora jun. 2009

 

ARTIGOS

 

Um convite à neurociência cognitiva social

 

An invitation to social cognitive neuroscience

 

 

Vitor Geraldi Haase1; Pedro Pinheiro-Chagas; Érica Alves Arantes

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo visa apresentar uma nova área interdisciplinar de investigação, a neurociência cognitiva social (NCS), introduzindo seus pressupostos, métodos e eventuais contribuições à compreensão científica do comportamento. Em seguida, analisaremos resultados empíricos recentes da NCS, o que nos permitirá refletir sobre a interação entre fatores genéticos (natureza) e experienciais (criação) no desenvolvimento do comportamento humano.

Palavras-chave: Neurociência cognitiva social, Psicologia evolucionista, Desenvolvimento humano


ABSTRACT

The paper presents a new interdisciplinary research field, called social cognitive neuroscience (SCN). Assumptions, methods and possible contributions to the scientific understanding of behavior are presented. Recent empirical results of SCN are analyzed, which will allow a reflection about the interaction between nature and nurture in the development of human behavior.

Keywords: Social cognitive neuroscience, Evolutionary psychology, Human development


 

 

O cognitivismo

Na virada para o século XXI, surgiram várias áreas interdisciplinares de pesquisa, as quais constituem desdobramentos da revolução cognitiva iniciada no final da Década de 1940 (Stillings, Weisler, Chase, Feinstein, Garfield, & Rissland, 2005). O cognitivismo constitui um paradigma filosófico que congrega diversas disciplinas interessadas no estudo do comportamento animal, humano e artificial. O pressuposto fundamental do cognitivismo é de que os sistemas computacionais artificiais constituem um modelo que, apesar de uma metáfora limitada para o funcionamento do cérebro-mente, ao menos se reveste de valor heurístico considerável. Haja vista a proliferação de avanços teóricos, metodológicos e empíricos em diversas disciplinas, os quais contribuíram para estabelecer o cognitivismo como língua franca que congrega disciplinas tão díspares como a biologia evolutiva, neurociências, psicologia, lingüística, antropologia, filosofia, informática, robótica, etc.

As intensas colaborações entre pesquisadores de diversas áreas, na esteira do cognitivismo, favoreceram o surgimento gradual de pelo menos três áreas de pesquisa interessadas nos aspectos sociais do comportamento. Na interface entre psicologia, antropologia e biologia surgiu a psicologia evolucionista, cujo objetivo principal é focalizar o comportamento animal e humano a partir do exame empírico de previsões oriundas da teoria da evolução por seleção natural (Pinker, 2004). A neuroeconomia tem congregado psicólogos, economistas e neurocientistas interessados em investigar os processos de tomada de decisão de animais e humanos, procurando entender por que tais processos muitas vezes se desviam dos pressupostos racional-utilitaristas da teoria econômica clássica. (Glimcher, 2003). Finalmente, a NCS representa uma confluência de interesses teóricos, metodológicos e questões empíricas investigados pela neurociência cognitiva de um lado, e por uma abordagem específica da psicologia social, a cognição social, de outro. (Cacioppo et al., 2007, Lieberman, 2007).

Até o final da Década de 1940, os psicólogos e neurocientistas dispunham de uma série de métodos e conhecimentos empíricos sobre o comportamento e sobre a estrutura e atividade do cérebro, no entanto careciam de um ingrediente funcional essencial que permitisse uma análise mais abrangente e possibilitasse a convergência entre estas áreas (Gardner, 1988). De um lado, a resposta veio do cognitivismo, enquanto que do outro veio a teoria da evolução. Os neurocientistas já conheciam e tinham os métodos para investigar a estrutura anatômica e os padrões de atividade de neurônios do lobo frontal em animais, por exemplo. Mas não possuíam uma idéia muito clara sobre quais eram estas funções e como elas poderiam, eventualmente, ser relacionadas ao que era observado pelos psicólogos no nível comportamental. A resposta do cognitivismo foi que o cérebro-mente processa informação (Gardner, 1988), o que corresponde à chamada teoria do processamento de informação (TPI). A resposta encontrada na teoria da evolução foi que o resultado do processamento de informação, o comportamento, tem funções adaptativas (Pinker, 2004). Os comportamentos podem ser compreendidos como estratégias evolutivamente estáveis para maximizar a aptidão reprodutiva no ambiente ancestral. Estas duas respostas permitiram que a caixa preta do cérebro-mente começasse a ser aberta.

Os pressupostos de que a função do cérebromente é processar informação a serviço da adaptação ou sucesso reprodutivo são certamente questionáveis. Modelos alternativos têm apontado as limitações da abordagem clássica da TPI, sugerindo concepções mais dinâmicas, em que o organismo e o ambiente constituem uma unidade funcional complexa organizada em múltiplos níveis (van Gelder & Port, 1995). O pressuposto adaptacionista também tem seus críticos (Gould & Lewontin, 1979). Por um lado, o processo evolutivo ocorre também devido a mecanismos aleatórios e restrições estruturais e funcionais que são subprodutos de “escolhas" evolutivas prévias, sem que seja possível caracterizar a priori quando um determinado traço comportamental constitui uma adaptação. Por outro, o raciocínio adaptacionista corre o risco de cair em um círculo recursivo tauto-e teleológico.

Do ponto de vista teórico, entretanto, o modelo clássico de processamento de informação permanece como um referencial importante, uma espécie de sparring partner, contra o qual os modelos teóricos alternativos precisam se digladiar. Em última análise, a questão não será resolvida no plano filosófico, e sim no plano empírico. À medida que os resultados vão se acumulando, torna-se paradoxalmente cada vez mais nítido que, apesar de os modelos da TPI serem muito limitados, as concepções alternativas não têm conseguido se disseminar e firmar na comunidade científica. Em parte, a razão para isto pode ser metodológica. As tecnologias atualmente disponíveis permitem investigar mais facilmente as questões de pesquisa formuladas no paradigma cognitivista clássico. Os métodos requeridos pelas abordagens teóricas alternativas exigem tecnologias matemáticas e computacionais que ainda são embrionárias, caras, pouco acessíveis e de escassa utilidade prática.

 

O cognitivismo na neurociência social

O nome neurociência cognitiva social precisa, antes de tudo, ser justificado, uma vez que a profusão de qualificativos poderia ferir os ouvidos mais sensíveis (Banaji, 2006). A inclusão dos termos social e neurociência não necessita de maiores explicações. A questão toda é o que o cognitivo está fazendo entre os dois. A dimensão cognitiva é muito importante porque constitui justamente o elo entre o comportamento social investigado pelos psicólogos sociais e as bases neurobiológicas, investigadas pelos neuropsicólogos (Ochsner & Lieberman, 2001). É o paradigma cognitivista que permite uma aproximação entre as duas tradições de pesquisa e garante a consistência interna da NCS.

A NCS nasceu por volta do ano de 2000 quando pesquisadores das áreas de psicologia social de tradição norte-americana e neurociência cognitiva se congregaram em projetos comuns (Banaji, 2006; Ochsner & Lieberman, 2001). A psicologia social trouxe o conceito de cognição social e os métodos comportamentais para sua investigação, além de uma série de tópicos de pesquisa (Todorov, Harris & Fiske, 2006). Os temas clássicos da psicologia social dizem respeito aos processos psicológicos envolvidos na interação entre os seres humanos, tanto como indivíduos, quanto em grupos.

A cognição social diz respeito ao estudo de como os indivíduos processam, codificam, armazenam, representam e acessam a informação de natureza social referentes ao self e aos outros indivíduos para regular, de forma adaptativa, seu comportamento em sociedade (Cacioppo et al., 2007). A psicologia social tematiza diversos aspectos da vida social, tais como regulação social, rejeição social, formação de impressões, autoconhecimento, inferência sobre os processos mentais alheios, regulação emocional, atitudes, crenças e memórias relativas a grupos sociais, etc. (Banaji, 2006).

Se a psicologia social tem uma tradição de pesquisa que remonta aos primórdios da psicologia, a neurociência cognitiva é uma disciplina jovem. A neurociência cognitiva também é uma área interdisciplinar que nasceu da convergência entre a TPI e a neuropsicologia (Gazzaniga, 2000). Até o final da Década de 1980, cientistas computacionais e psicólogos cognitivistas investiam em um programa de pesquisa denominado funcionalista. O funcionalismo pressupõe que o estudo da cognição pode ser realizado em dois níveis independentes: o nível da computação e algoritmos (software) e o nível da implementação (hardware). Ainda durante os anos 1980, era comum, por exemplo, que neuropsicológos analisassem os padrões de comprometimento de pacientes neurológicos apenas em termos de modelos de processamento de informação, sem fazer referência às correlações entre os déficits funcionais e a estrutura cerebral (Caramazza, 1986). Naquela época, isto fazia sentido, uma vez que o processamento de informação era o referencial teórico que permitia analisar empiricamente o funcionamento da caixa preta, e os métodos que possibilitavam a correlação estrutura-função eram precários. A partir do desenvolvimento das tecnologias de imageamento funcional do cérebro, tornou-se possível correlacionar online representações e processos informacionais com padrões de ativação cerebral, inclusive em indivíduos normais. Nascia, assim, a neurociência cognitiva (Posner & Raichle, 1994).

A área da cognição social e a neurociência cognitiva se complementam de diversas maneiras na NCS. Ambas compartilham o pressuposto metodológico de aditividade ou método da subtração, ao qual a neurociência cognitiva acrescenta o localizacionismo, o qual foi herdado da neuropsicologia do século XIX (Caplan, 1987, Hecaen & Albert, 1978). O método de subtração consiste em submeter o participante a uma tarefa cognitiva A cujo correlato neuroanatômico será registrado por algum aparelho de imageamento cerebral. Após um intervalo, o participante é submetido a uma tarefa cognitiva B. Finalmente as imagens registradas em A são subtraídas das imagens registradas em B, e o pesquisador infere que o resultado da subtração diz respeito às regiões específicas que processam o domínio cognitivo A. Tal método é utilizado porque, quando um indivíduo realiza qualquer tarefa cognitiva, praticamente todo o cérebro é ativado (por exemplo, o córtex visual primário em todas as tarefas que demandam um estímulo visual), além do que a sala experimental é inexoravelmente carregada de variáveis confundidoras, tais como o próprio ruído do aparelho, a temperatura do ambiente, etc. No mesmo sentido, cada indivíduo atribui significados diferentes para as tarefas propostas e existe grande variabilidade anatomofuncional entre sujeitos. Do ponto de vista da neuropsicologia, o objetivo central é fazer inferências sobre a estrutura e função da mente a partir da análise dos padrões de desempenho de pacientes com lesões cerebrais e doenças neuropsiquiátricas em diversos testes e paradigmas experimentais. O método utilizado é a correlação anátomo-clinica, como era realizada tradicionalmente em exames necroscópicos das lesões cerebrais, as quais eram comparadas aos padrões de desempenho clinicamente observados. As técnicas de neuroimagem estrutural ampliaram a aplicabilidade do método, permitindo que as correlações fossem feitas ainda durante a vida dos pacientes.

O localizacionismo se baseia no pressuposto de que as dissociações de desempenho observadas em diferentes lesões ou paradigmas de ativação permitem fazer inferências sobre a organização modular do sistema cerebral-mental (Caplan, 1987, Caramazza, 1986). De um modo geral, os resultados dos estudos obtidos com os métodos de neuroimagem funcional e os dados neuropsicológicos obtidos com pacientes são consistentes (Price, 2000). Uma das principais diferenças é que o localizacionismo sugerido pelos dados de neuroimagem funcional é de natureza mais distribuída (Posner & Raichle, 1994). Os estudos de neuroimagem funcional mostram que cada processo cognitivo analisado é implementado por um padrão de atividade que recruta áreas corticais e subcorticais específicas, porém geograficamente dispersas por amplas porções do tecido cerebral. O método da neuroimagem funcional não permite identificar, entretanto, quais regiões são crucialmente envolvidas com a realização de uma tarefa. Desta forma, Price (2000) sugeriu que as duas abordagens são complementares.

Os benefícios da interação com psicólogos sociais são óbvios para os neurocientistas cognitivistas: eles podem usufruir de uma rica tradição teórica e empírica consolidada em décadas de pesquisa sobre os mais relevantes comportamentos, significativos para a interação social na espécie humana. Mas qual é a importância do localizacionismo e qual o benefício que a psicologia social pode auferir da interação com a neurociência cognitiva, a ponto de justificar o surgimento de uma nova disciplina, a NCS? Para respondermos a esta questão, mencionaremos rapidamente alguns avanços conceituais e empíricos, oportunizados pela NCS.

No decorrer das últimas décadas do século XX, a psicologia tornou-se cada vez mais cognitiva, e a psicologia cognitiva tornou-se progressivamente mais neuropsicológica (Eyseck & Keane, 2005). Uma das principais vantagens da integração com a neuropsicologia e neurociência cognitiva é que estas fornecem critérios biológicos restritivos para a construção de modelos teóricos (Shallice, 1988). Uma das principais deficiências de modelos teóricos derivados da investigação com programas computacionais ou dados do desempenho de indivíduos normais é a ausência de critérios biológicos de plausibilidade. Para que a empreitada da NCS se justifique, entretanto, os métodos de neuroimagem funcional não podem apenas fornecer critérios restritivos na construção de modelos teóricos. Eles precisam também ter valor heurístico, iluminando conceitos e fenômenos antigos a partir de novos ângulos, bem como contribuindo com dados empíricos e conceitos radicalmene novos. Tal é o caso de dois resultados empíricos importantes que serão brevemente discutidos (Gusnard, 2006, Lieberman & Eisenberger, 2006).

A primeira descoberta diz respeito ao chamado estado default ou linha de base da atividade mental (Gusnard, 2006). A utilização do método de subtração exige que entre a realização de uma tarefa e outra, o participante fique parado na máquina, relaxando e aguardando o próximo experimento. Os registros de ressonância magnética funcional (RMf) eram rotineiramente realizados apenas durante a realização das tarefas até que, por acaso, a atenção dos pesquisadores da equipe de Marcus Raichle foi despertada para o fato de que a atividade cerebral nos períodos entre os experimentos se caracterizava por um padrão muito consistente de ativação bilateral nos córtex frontal e parietal mediais e no córtex parietal lateral (Gusnard & Raichle, 2001). As áreas ativadas nestas circunstâncias são bastante superponíveis àquelas ativadas por tarefas em que o indivíduo dirige sua atenção para a monitorização dos próprios estados mentais ou estados mentais alheios (Gallagher, Jack, Roepstorf, & Frith, 2002, vide revisão em Lieberman, 2007). Investigações ulteriores demonstraram que a atividade destas áreas diminui sistematicamente quando o indivíduo focaliza sua atenção em estímulos ou tarefas físicos, localizados no ambiente externo. Lieberman (2007) sistematizou os resultados de dezenas de estudos, demonstrando que o foco nos estados mentais internos, pessoais ou alheios, ativa áreas mediais no lobo frontal e parietal, ao passo que o foco atencional externo, referente a estímulos familiares e que contenham componentes sociais relevantes (Gusnard & Raichle, 2001), ativa áreas na superfície lateral dos hemisférios cerebrais. Foi descoberta, portanto uma relação recíproca entre dois focos atencionais, um interno e outro externo. Quando a atenção é dirigida para os estados mentais, ativam-se as áreas mediais do córtex frontal e parietal. Quando a atenção é dirigida para objetos ou tarefas no ambiente exterior, as áreas mediais são inativadas e o metabolismo aumenta em regiões laterais.

A natureza social do estado default, referenciado no self e no outro, reforça a hipótese de que a atividade cognitiva humana evoluiu a partir de pressões seletivas colocadas pela convivência em grupo (Mithen, 2002). Ou seja, a inteligência é eminentemente cognição social. A descoberta da existência do estado mental default e de sua natureza eminentemente social é um achado inédito, que não havia sido previsto por nenhuma teoria ou dado empírico da psicologia social e que se reveste de um significado enorme para esta disciplina.

O outro resultado importante que gostaríamos de descrever é o da chamada dor social. Tanto na linguagem cotidiana quanto em psicopatologia e psicologia clinica é muito comum que se fale sobre sofrimento psíquico referindo-se ao mesmo como se fosse uma forma de dor (Lieberman & Eisenberger, 2006). Resultados de estudos com neuroimagem funcional sugerem que a expressão dor social tem uma realidade física subjacente, que é mais do que uma metáfora. Eisenberger, Lieberman e Williams (2003) investigaram as áreas cerebrais ativadas por uma experiência de exclusão social. Os participantes recebiam a informação (falsa) de que participariam de um experimento de hyperscanning. Hyperscanning é uma técnica de investigação que está sendo desenvolvida no âmbito da NCS, na qual dois indivíduos interagem por uma rede de computadores e têm seus padrões de atividade cerebral registrados simultaneamente em máquinas de RMf. Na realidade, no estudo de Eisenberger et al., os indivíduos participavam de um jogo virtual de bola com dois parceiros fictícios programados por um computador. Durante a linha de base os parceiros com os quais o participante interagia jogavam a bola para ele em 50% dos ensaios. Na outra fase de registro, os dois jogadores fictícios ficavam jogando a bola apenas entre si, excluindo socialmente o participante da pesquisa. Estudos comportamentais anteriores indicaram que o paradigma é muito eficiente na evocação de fortes sentimentos de rejeição social (Williams, 2007).

O resultado principal da investigação de Eisenberger et al. (2003) foi que, além de eliciar sentimentos com uma valência extremamente negativa, a experiência de rejeição social no jogo de Cyberball ativava regiões no giro do cíngulo dorsal que são superponíveis àquelas recrutadas pela dor crônica em pacientes com câncer, por exemplo. Em um estudo posterior, foi observado fatores genéticos podem moderar a relação entre maior susceptibilidade à rejeição social e conseqüente ativação do giro do cíngulo e traços agressivos de personalidade (Eisenberger, Way, Taylor, Welch & Lieberman, 2007). Os dados deste último estudo sugerem que o comportamento antissocial pode estar relacionado não apenas a uma ausência de empatia pelo sofrimento da vítima, mas também a uma hipersensibilidade à rejeição social. Lieberman (2007) sumariza dezenas de estudos realizados na última década a partir da perspectiva da NCS, discutindo suas implicações teóricas e práticas.

É importante considerar que diversos estudos recentes vêm apontando limitações metodológicas significativas para o raciocínio inferencial proveniente das evidências empíricas utilizando-se medidas de correlação entre estruturas cerebrais e funções cognitivas, através de imageamento cerebral por RMf (Vul, Harris, Winkielman & Pashler, 2009; Kriegeskorte, Simmons, Bellogowan & Baker, 2009). Uma recente metanálise (Vul, Harris, Winkielman & Pashler, 2009) investigou 55 estudos relacionados à NCS, dentre os quais 53% deles cometeram o chamado erro de nãoindependência. Esse erro refere-se à seleção dos voxels a serem correlacionados com medidas comportamentais. Nesses estudos, os pesquisadores obtiveram, para cada sujeito, uma medida comportamental (tarefa), bem como dos sinais BOLD (blood oxygenation level dependent) de vários voxels (pesquenas regiões neuroanatômicas das quais o sinal BOLD é medido). Em seguida, a atividade de cada voxel foi correlacionada com a medida comportamental de interesse para cada sujeito. A partir desse corpo de correlações, os pesquisadores selecionaram apenas aqueles valores que estavam acima de um ponto de corte, arbitrariamente postulado. Por fim, agregaram os sinais da RMf por meio dos voxels selecionados e derivaram uma medida final da correlação entre os sinais BOLD e as mediadas comportamentais de interesse. Resumindo, o índice final de correlação não é independente do critério de seleção das correlações a serem investigadas.

O efeito estatístico desse erro é inflar as correlações, de forma que algumas delas passam a ser artificialmente maiores (por exemplo, r = 0,88) do que o esperado estatisticamente, quando se leva em consideração a própria limitação da acurácia das medidas comportamentais (Vul, Harris, Winkielman & Pashler, 2009). Apesar de frequentes na literatura da NCS, os erros metodológicos nas análises dos dados de RMf vêm cada vez mais sendo apontados, e diversos pesquisadores estão chamando a atenção para a problemática por eles produzida. Inclusive, alguns grupos estão propondo algoritmos metodológicos para evitá-los (Kriegeskorte, Simmons, Bellogowan & Baker, 2009).

 

Considerações Finais

A NCS é uma área de investigação recente. Apesar de ainda enfrentar diversas limitações metodológicas, especialmente do ponto de vista estatístico, a NCS vem contribuindo significativamente para o entendimento da cognição humana, bem como da localização neuroanatômica de estados emocionais de natureza social. É oportuno destacar que os métodos estatísticos não servem apenas para testar hipóteses, de forma que também podem ser entendidos como ferramentas básicas de insights que orientarão o pesquisador em investigações posteriores mais refinadas. No caso da NCS, as correlações entre medidas de comportamento e padrões de ativação cerebral podem ser concebidas como filtros para separar os sinais de ruídos. A confirmação do real significado anatomo-funcional das correlações não será decidia no plano metodológico, mas sim empírico, isto é, por meio de estudos com pacientes neurológicos, com modelos animais, bem como trabalhos com seres humanos que utilizem uma metodologia experimental, causando lesões virtuais e temporárias em sujeitos normais através de estimulação magnética transcraniana.

Temas como julgamento moral (Moll, De Oliveira Souza & Zahn, 2008), tomada de decisão (Glimcher, 2003), comportamentos afetivos (Lieberman & Eisenberger, 2006), vem sendo sistematicamente explorados por pesquisadores da NCS, apontando achados importantes, tanto do ponto de vista teórico, quanto clínico. Espera-se que, num futuro próximo, novas evidências -por exemplo, obtidas nas pesquisas sobre estado default do cérebro - possam trazer maior compreensão de doenças cujo déficit na interação social é pronunciado. E que as informações relacionadas à sobreposição dos sistemas dedicados ao processamento da dor social e física possam auxiliar no tratamento de pacientes portadores de dor crônica.

Do ponto de vista de convergência interteórica das ciências, tal como proposta por Edward O. Wilson (1999), a disciplina NCS apresenta-se como um programa de pesquisa extremamente robusto na investigação do comportamento social humano. A integração de evidências empíricas provindas de diferentes metodologias e paradigmas experimentais, incluindo desde investigações sobre associações entre polimorfismos genéticos e comportamentos até de dados arqueológicos relacionados à organização social no ambiente ancestral, passando por registros de neuroimagem funcional de processos cognitivos normais, propõem uma antropologia filosófica fortemente fundamentada numa perspectiva epigenética do desenvolvimento cognitivo humano.

 

Referências

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Recebido em: 01/04/09
Aceito em: 02/11/09

 

 

1 Endereço eletrônico para correspondência: vghaase@gmail.com

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