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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.2 Juiz de fora Dec. 2009

 

ARTIGOS

 

Vínculo social, cultura e linguagem: a língua portuguesa nas relações entre Angola e Brasil1

 

Social link, culture and language: the portuguese language in Angolan and Brazilian relationships

 

 

Eurico Josué Ngunga2; Marília Novais da Mata Machado

Faculdade Novos Horizontes, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo explicita o papel da língua portuguesa na construção do vínculo social Angola-Brasil, partindo de uma entrevista transcrita, feita com uma estudante angolana em Belo Horizonte. Supõe-se que a análise de uma microrealidade permite lançar luz sobre um processo coletivo mais amplo. Quer-se ver o vínculo em seu momento instituinte, adotando-se uma perspectiva etnográfica e usando procedimentos de análise do discurso. Quatro passagens da entrevista que falam a respeito da língua portuguesa e de cultura, são analisadas, tentando-se apontar(1) as diferentes determinações históricas, geográficas, econômicas, políticas e sociais que esclarecem pontos obscuros da entrevista e (2) as significações imaginárias (representações, afetos, desejos) relativas ao vínculo, criadas e atuantes na entrevista. A língua surge como um elemento importante na construção do vínculo social, mas apresenta dificuldades concernentes à variante angolana e à brasileira. Essas dificuldades tornam-se maiores por não serem antecipadas.

Palavras-chave: Vínculo Social, Língua, Cultura, Relações Angola-Brasil, Significações Imaginárias Sociais


ABSTRACT

This paper reveals the role of the Portuguese language in the construction of the social link between Angola and Brazil, starting from a transcribed interview with an Angolan student in Belo Horizonte. It is assumed that the analysis of a micro reality allows enlightening a larger collective process. It tries to expose the link in its institutioning moment, adopting an ethnographic perspective and utilizing procedures of discourse analysis. Four passages of the interview dealing with Portuguese language and culture are analyzed trying to point out (1) the different historic, geographic, economic, political and social determinations that permit to clarify obscure parts of the interview and (2) the imaginary meanings (symbolizations, attachments, desires) related to the social link, created and acting in the interview. The language appears as an important element in the construction of the social link, but it presents difficulties concerning the Angolan and Brazilian variants. These difficulties are major because they are not anticipated.

Keywords: Social Link, Language, Culture, Angola-Brazil Relationships, Social Imaginary Meanings


 

 

A análise aqui apresentada fundamenta-se na teoria do vínculo (ou laço) social. Não é adotada a vertente psicanalista lacaniana criada a partir de 1964, com o escrito Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise de Lacan (1990), mas a psicossociológica, representada em especial pela síntese elaborada por Enriquez (1990) em Da horda ao Estado: psicanálise do vínculo social. As duas vertentes articulam as noções de cultura, linguagem e discurso, valem-se dos estudos antropológicos e dos métodos etnográficos e são tributárias da teoria freudiana. Em muitos pontos elas se sobrepõem. A segunda delas, a psicossociológica, é amplamente inspirada também pelo filósofo, economista e psicanalista Castoriadis (1982), cujas formulações sobre linguagem e a noção de instituinte estão incorporadas a este trabalho.

Na impossibilidade de rever essa literatura demasiadamente ampla, é apresentada sucintamente a bibliografia sobre o vínculo social utilizada diretamente na análise aqui relatada, que aborda relações entre Angola e Brasil. Especificamente, são retomadas: (a) a articulação entre língua e cultura elaborada pelo linguista Saussure (1971), no início do séc. XX, inaugurando os estudos estruturalistas nas ciências sociais e humanas; (b) a reelaboração de Castoriadis (1982; 1987), que toma língua e sociedade não como estruturas estanques, mas como coisas em constante transformação; e, finalmente, (c) a recente abordagem à teoria do vínculo social revista em Dosse (2003), que leva a uma abordagem micro-social. Essas três fontes alimentam o artigo.

A primeira delas aponta não apenas a articulação vínculo social/língua/cultura, mas também a necessidade de se ver a questão angolana, objeto da análise aqui realizada, como uma dispersão especial dessa relação. Com efeito, Saussure (1971), em seu conhecido Curso de lingüística geral, aponta o vínculo social como garantia da unidade da língua. Para tanto, propõe a noção de etnismo: "Entendemos por etnismo uma unidade que repousa em relações múltiplas de religião, de civilização, de defesa comum, etc., as quais se podem estabelecer mesmo entre povos de raças diferentes e na ausência de todo vínculo político" (Saussure, 1971, p. 261). Entre etnismo e língua ele vê uma relação de reciprocidade em que "o vínculo social tende a criar a comunidade de língua e imprime talvez ao idioma comum determinados caracteres; inversamente, é a comunidade de língua que constitui, em certa medida, a unidade étnica. Em geral, esta sempre basta para explicar a comunidade lingüística" (Saussure, 1971, p. 261).

Observa-se que a noção de etnismo não teve vida longa, sendo suplantada, hoje, pela de cultura, objeto da antropologia e dos estudos etnográficos. Contudo, a idéia de uma relação de reciprocidade entre língua e cultura está preservada, independente, agora, da questão raça. Mas a articulação teórica proposta por Saussure tem limites claros. Ela deixa de lado, por exemplo, o caso específico de Angola no último terço do séc. XX, em que as línguas étnicas, denominadas línguas nacionais pelo falante nativo, em oposição ao português, imposto como língua oficial, são responsáveis pela situação em que unidades étnicas resistem à comunidade lingüística garantida pelo uso do português.

Em vertente distinta, Castoriadis (1982, 1987) vê o vínculo social como algo mantido, de um lado, por tradições, normas, instituições sociais estabelecidas e reguladas e, de outro, por uma trama de significações sociais imaginárias, contingentes, indeterminadas e em constante mudança, que levam numerosos indivíduos a compartilhar representações, afetos e desejos. As duas dimensões, determinista e imaginária, como ele as denomina, compõem o domínio socialhistórico. Nelas atuam, respectivamente, linguagem e língua, o termo língua sendo fração da noção de linguagem. Nessa, há um código compartilhado (e ele lembra: "não confundir com o 'código' de Saussure, que significa simplesmente 'sistema'"; Castoriadis, 1987, pp. 235-236), permitindo a comunicação oficial e o entendimento na vida cotidiana. Quanto à língua, ela é manifestação do imaginário social, sempre em processo de criação do novo e de transformação da sociedade:

A linguagem já deve conter a possibilidade de engendramento de novos "termos" materiais-abstratos, sob forma de palavras; ela deve possuir uma "produtividade léxica". Mas esse aspecto nos interessa pouco aqui, porque ele concebe a linguagem como código. Um sistema de signos cujos termos e relações são fixos e dados em definitivo, e em correspondência bi-unívoca com um outro sistema, é um código. (...) Mas a linguagem é também língua, na medida em que se refere às significações. (...) A possibilidade de emergência de outras significações é imanente à língua e permanente durante todo o tempo em que a língua é viva. (Castoriadis, 1982, p. 254-255)

A língua encontra-se, pois, para Castoriadis, no momento instituinte do vínculo social, quando surgem novas formas sociais, quando a sociedade questiona sua própria instituição, sua representação do mundo e suas significações sociais imaginárias. É apenas nesse momento que a coletividade e os indivíduos são capazes de assumir sua autonomia. O momento não pode ser apreendido buscando-se unicamente determinações e estruturas, mas requer atenção, também, a transformações, imagens, indeterminações, criação, auto-engendramento, formulação de novas leis, tempo e história.

A noção de vínculo social instituinte é retomada por investigadores contemporâneos que se interessam, de forma particular, por representações cotidianas, simbolizações e, sobretudo, microvínculos entre atores sociais próximos. Como informa o historiador da ciência Dosse (2003), dentro dessa linha, trabalham, entre outros, os antropólogos Callon (1991) e Latour (1991), da teoria ator-rede. Suas pesquisas são levadas a cabo dentro de uma abordagem metodológica etnográfica, com atenção ao discurso enunciado por atores sociais a respeito de suas próprias condutas ou a respeito de objetos cotidianos (alimentos, roupas, lixo, etc.) que passam, agora, a serem vistos na sua associação com a vida social.

Ainda segundo Dosse (2003), opta-se pela análise "de escalas mais restritas para restituir as lógicas em ação na interação, os micromeios de socialidade, a introdução dos objetos no estudo do social, a revisão das grandes divisões tradicionais"(p. 129). E também: "A atenção ao vínculo social, ao que o fundamenta, pode ser encarada diferentemente se esse for concebido como um auto-engendramento mútuo. Ela permite evitar a falsa alternativa entre holismo e individualismo metodológico ou a oposição - que se tornou clássica - entre o social e o indivíduo" (p. 129).

A perspectiva instituinte encontrada nas proposições de Castoriadis (1982) e na pesquisa etnográfica recente é adotada no presente artigo, a fim de detectar o vínculo social em seu momento de formação/construção. Opta-se pela atenção ao microvínculo, no caso, a relação entre três indivíduos: (1) E., 35 anos, mestrando, angolano, negro, morador há 18 anos no Brasil, onde se exilou, em 1991, fugindo da guerra civil em Angola; (2) U., 26 anos, angolana, negra, estudante de administração, morando há cinco anos no Brasil; (3) M., 65 anos, professora, brasileira, branca, residente no país.

E. solicita a M. ajuda não só para formular um primeiro roteiro de pesquisa (Anexo 1) mas também para treiná-lo para realização e análise de entrevista. Para tanto, matricula-se em uma disciplina denominada Vivência em Pesquisa, na qual tem acompanhamento individual da professora. A entrevista que E. realiza com U., em Belo Horizonte, em 2009, é um dos requisitos da disciplina, mas é também parte da coleta de dados de sua dissertação que versa a respeito da influência da cultura brasileira sobre estudantes angolanos em Belo Horizonte. A entrevista é aberta, não-estruturada, mas focada na questão cultural. As perguntas do roteiro servem, sobretudo, para facilitar um início de conversa.

De comum acordo, após algumas leituras da entrevista transcrita e buscando manter a independência entre as atividades de vivência e de dissertação, E. e M. acabam por estabelecer como foco da análise-treino, a relação entre linguagem (e mais especificamente língua), cultura e criação instituinte do vínculo social. Isso ocorre porque, na entrevista, a questão da língua portuguesa, embora objeto apenas da última questão do roteiro, aparece espontaneamente outras duas vezes. Cultura é o principal interesse de E., pois é o objeto de sua dissertação, mas é igualmente tema relacionado à língua e à formação do vínculo social.

A entrevista transcrita de E. com U passa a ser considerada como um caso especial de discurso coconstruído numa situação de pesquisa em que os dois atores interagem. Essa dimensão intersubjetiva ganha relevo na análise aqui apresentada, assim como outros elementos: as interações entre E. e M. que versam, sobretudo, sobre Angola e a história desse país, além das micro-histórias de E. e U., informações que ajudam a esclarecer fragmentos de falas dos dois interlocutores. No pano de fundo desta análise estão aspectos social-históricos (isto é, numa perspectiva castoriadiana, determinações e significações imaginárias sociais), além da perspectiva instituinte e do foco numa microrealidade particular que pode trazer informação relevante para a construção do vínculo Angola/Brasil, ultrapassando, portanto, o caso específico em estudo.

A opção pela análise do discurso demanda (a) a explicitação do contexto ou, mais precisamente, das condições históricas e pessoais de produção do discurso gerado com a entrevista e (b) explicitação do funcionamento da língua nas falas de U. e de E., considerando características morfológicas, sintáxicas, léxicas e semânticas. Para tanto, E. e M. contam com o auxílio do artigo de Torres Di Gregório (2006), de quem tomam emprestado o termo variantes nacionais para designar o português em Angola e no Brasil.

Em resumo, o método utilizado é qualitativo, com características etnográficas, embora a extensão reduzida deste estudo não permita que ele seja classificado como uma etnografia. Mas, à luz dos ensinamentos de Geertz (1989), em seus trabalhos antropológicos hoje clássicos, este trabalho tenta apreender a cultura como uma teia de significados (aqui traduzidos, na terminologia de Castoriadis, 1982, por significações imaginárias sociais), lança mão de interpretações, quer estabelecer relações, tem em U. - a entrevistada - uma informante especial, busca mapear campos, aproximar-se, enfim, da descrição densa (Geertz, 1989). Porém, além de tentar enfrentar "uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas" (Geertz, 1989, p. 7), quer-se também apreender o funcionamento do vínculo social, sua criação, formação, isto é, seu momento instituinte e imaginário.

No que diz respeito ao método, ele também é influenciado pelo analista institucional, psicossociólogo, etnógrafo e micro-sociólogo Lapassade (2005), que também utiliza a noção de instituinte. Ele sugere que se tome, na pesquisa, o vínculo social não como algo objetivo e determinante, mas como um problema aberto e insolúvel. Tomam-se os indivíduos não como produtos de normas sociais, mas como criadores (e questionadores) dessas normas. Essa é uma perspectiva interpretativa em que, num plano micro-social, são consideradas as percepções dos atores sociais no dia-a-dia, focando o "nível 'elementar' da interação social na vida cotidiana", sem, contudo, ignorar "o nível das normas e da ordem macro-social" (Lapassade, 2005, p. 138).

Apresentadas essas opções teóricas e metodológicas, passa-se a uma breve história comparativa de Angola e Brasil. Ela é necessária uma vez que é parte da análise de discurso que exige a consideração simultânea de texto e contexto, o primeiro representado pela entrevista transcrita e o segundo pelas determinações (sociais, históricas, econômicas, políticas, geográficas) e condições de produção do discurso (quem fala, de que lugar e para quem).

 

Angola e Brasil: dispersões históricas

Para compreender muitas das interlocuções entre E. e U., tem-se que voltar à história da colonização portuguesa em Angola, iniciada em 1482, com comércio, missões evangelizadoras e expedições militares3. Aparentemente, difere pouco da brasileira, iniciada poucos anos depois, em 1500. Nas duas colônias, a economia é parasitária, com exploração de recursos minerais e agrícolas.

Porém, os reinos existentes em Angola, no final do séc. XV e início do séc. XVI, opõem-se e resistem à ocupação, enquanto que, diferentemente, no Brasil, as tribos, mais esparsas e nômades, cedem com menos resistência o litoral aos colonizadores. Quatro séculos de guerra e escravização reduzem a população angolana de 18 milhões, em 1450, para oito milhões, em 1850. Enquanto isso, no Brasil, a população aumenta com colonos, mestiços e escravos. A colônia abriga a coroa portuguesa, torna-se por um tempo sede do império, depois país independente e, no final do séc. XIX, republicano.

A Conferência de Berlim, em 1884, divide a África entre as potências coloniais européias. Portugal intensifica a penetração militar e aumenta cada vez mais seus colonos em Angola que, de 10 mil em 1900, são 80 mil em 1950 e 350 mil nas vésperas da independência, em 1974.

Por muitos anos, em Angola, para dominar mais facilmente, Portugal incentiva a divisão tribal e lingüística. Mas, na segunda metade do séc. XX, em data indeterminada, fortalecem-se movimentos de libertação. Em 1956 é criado o MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), reunindo diversas organizações nacionalistas. Ao mesmo tempo, crescem movimentos pacíficos partidários da independência, sempre ignorados pelos portugueses. Em 1961, o MPLA inicia combate mais acirrado, tomando prisões e outros pontos estratégicos, combatendo o colonialismo, o poder internacional, a discriminação racial e o tribalismo. Nessa hora, Portugal impõe ao país a língua única.

Depois do MPLA, são criadas a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), a Flec (Frente de Libertação de Cabinda) e a Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola). Por pouco tempo, os grupos atuam conjuntamente e provocam derrotas portuguesas. Com a independência, proclamada pelo MPLA, em novembro de 1975, depois que os portugueses reconhecem o direito à independência e autodeterminação de suas ex-colônias e retiram suas tropas, os três grupos principais (MPLA, FNLA e Unita) não se conciliam e são pegos pelas disputas da Guerra Fria que opõe a ideologia capitalista à socialista.

Enquanto isso, o Brasil pós 1889 dá os seus primeiros passos na vida republicana e democrática. O país passa pela Revolução de 30 que reduz o poder das oligarquias rurais (1930), vive uma ditadura (1937-1945), retoma o caminho democrático, alia-se, depois da Segunda Guerra Mundial aos países capitalistas e, num golpe de Estado, em 1964, tomba, por 21 anos, numa ditadura militar de direita.

Em Angola, o MPLA vincula-se aos países socialistas e recebe ajuda militar de Cuba, a FNLA recebe o apoio dos Estados Unidos e ajuda militar do Zaire, a Unita o apoio armado da África do Sul, de ex-colonos portugueses e, alguns anos mais tarde, também dos Estados Unidos. O país, governado pelo MLPA, é atacado a norte pelo Zaire e a sul pela África do Sul. Conta, para sua defesa, com o auxílio de 15 mil soldados cubanos. Luanda, a capital, é atacada pelas forças aliadas da FNLA e da Unita. Em 1976, apesar do reconhecimento pela ONU do governo vigente, cresce a luta entre as facções.

É o início da guerra civil que paralisa inicialmente a produção e expulsa os europeus. O governo reage, recupera instalações produtivas, qualifica mão de obra, faz do setor estatal o motor da economia. Mas o próprio MPLA se divide (1977), a África do Sul volta a invadir Angola (1981), na tentativa de instalar um segundo governo chefiado pela Unita, são tentados acordos (1988; 1991), trégua (1990), anistia e pluripartidarismo (1991), eleições (1992) em que o MPLA ganha, mas a Unita, com 40% dos votos, decide reiniciar hostilidades e, novamente, negociações de paz (1993).

O país está com uma dívida externa grande, sofre bloqueio econômico dos Estados Unidos, não consegue crédito internacional. Depende basicamente da extração de petróleo. A assinatura de um acordo de paz (1994) não impede que a guerra continue. Nova anistia (1996) ocorre em meio a uma enorme crise econômica em que Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário Internacional) entram em cena.

Em 1997, a Unita aceita integrar o governo de Unidade Nacional e Reconciliação, mas os soldados desmobilizados não conseguem lugar em suas aldeias de origem, quatro milhões e meio de pessoas estão desalojadas, minas terrestres estão plantadas em diversas partes, há ainda muita insegurança, refugiados internos, combates e mortes. Em 1999, a guerra recomeça.

Os intercâmbios Angola/Brasil se iniciam apenas depois do fim da ditadura no Brasil (1985), da queda do muro de Berlim (1989), símbolo da derrocada comunista/socialista, e do processo de globalização. Depois, os vínculos entre os dois países são intensificados, é selada a paz em Angola, o que ocorre após a morte em combate do líder da Unita (2002), e as relações diplomáticas e comerciais entre Angola e Brasil são estreitadas, incluindo convênios na área da educação superior (2003 e 2007).

A análise e seus resultados

São analisadas quatro passagens da entrevista de E. com U. que se referem explicitamente à língua portuguesa, a seu uso e dificuldades, ou à cultura dos dois países. O que se faz, em cada caso, é uma análise do discurso na qual a passagem é examinada considerando-se o uso da língua e o contexto social-histórico da sua produção. As quatro foram selecionadas a partir do referencial teórico, por meio dos seguintes termos-pivô: português, língua portuguesa e cultura. De acordo com o referencial, a articulação dos conceitos de linguagem e cultura permite apreender o vínculo social em constituição. A consideração do domínio social-histórico, isto é, das instâncias imaginárias e determinísticas, facilita a apreensão desse processo instituinte.

Passagem 1

E. - Qual a etnia angolana que você pertence ou com a qual você se identifica?

U. - É... Eu faço parte da etnia bakongo, que eu sou da província do Uije, que fica ao norte de Angola.

E. - Você fala alguma língua nacional, no caso aqui do Brasil, dialeto?

U. Infelizmente não. Porque por causa da colonização os nossos pais foram proibidos de permite, permite, permite que os filhos falassem os dialetos em casa. Então todos os filhos tinham que falar o português. Então por causa disso eu não falo nenhum dialeto.

E. - Ah... Você sabe dizer por que os pais foram proibidos de ensinar a língua nacional para os seus filhos?

U. - Eu lembro pelo que foi me contado, porque eu era uma criança. Porque, por causa da colonização, antes dela todo mundo falava seus dialetos para além do que o português que alguns falavam. No meio dela, os portugueses sentiram se... Necessidade de impor para ter mais domínio sobre as pessoas, então eles impunham o português e caso alguém falasse o dialeto sofria graves penas, graves conseqüências. Então os pais proibiram os filhos de falar os dialetos e passou a predominar o português.

E. - Então você não fala nada e não entende... Quase nada?

U. ¬ Quase nada. Pouquinhas palavras que eu consigo entender por ouvir os avôs falarem.

E. - Ok. O seu pai fala.

U. - Fala. Meu pai e meus irmãos mais velhos.

E. - Fala. E quando eles estão em casa eles falam?

U. - Raríssima às vezes.

E. - É mais português.

U. - Mais português. Por hábito.

E. - Interessante.

A primeira passagem corresponde ao início da entrevista. Observa-se, com relação ao uso da língua, que E. adota uma característica do português brasileiro, com o qual convive há quase duas décadas, o uso do pronome "você", característico do Brasil. U. também emprega "você", quase que o tempo todo; E. resvala, para o tu, como se vê em outros trechos da entrevista ("existe isso contigo", por exemplo). O uso de "você" pelos dois atesta a apropriação do modo de falar do país hospedeiro, o que, contudo, não garante a ocorrência de uma assimilação real da língua brasileira.

Nessa passagem, E. procura se localizar com relação à entrevistada. Para tanto, sua primeira questão diz respeito à etnia à qual ela pertence. Essa pergunta dificilmente abre uma conversa entre dois brasileiros não índios. Mas, no caso de Angola, as etnias estão vivas e têm localização geográfica precisa, além de língua própria. U. pertence à etnia bakongo e E. pertence à ovimbundo.

O contexto histórico permite compreender as próximas interlocuções entre E. e U. Ele pergunta se ela fala "alguma língua nacional". Novamente, é uma questão que brasileiros, na sua maioria, não entendem, pois, mesmo quando sabem, o que é raro, que há mais de uma centena de dialetos falados no país, entre línguas indígenas e de imigrantes europeus e asiáticos, consideram que o português é a sua única língua oficial e nacional.

Até para U., com quem compartilha a cultura angolana, E. acrescenta "no caso aqui do Brasil, dialeto"4. Para os dois, que são jovens, a imposição de Portugal proibindo o uso de outras línguas que não o português parece coisa antiga. Nota-se que, mais adiante, ele repete "língua nacional". Ela emprega sempre o termo "dialeto". Para ele, as línguas das diversas etnias são as nacionais. Português é a língua do colonizador, da ocupação. Porém é ela que explica (para um leitor da entrevista), com muita dificuldade, numa fala hesitante, como as coisas se passam, lembrando a proibição do uso das línguas próprias às etnias. Por causa disso, ela não fala o "dialeto" de sua etnia, o que lamenta. Quanto a ele, usa diariamente a "língua nacional" kikongo com sua família - pois, depois dele, que chegou ao Brasil como refugiado de guerra, vieram seus pais e irmãos. Como essa língua nacional é parte de sua identidade, ele mal compreende como é a vida sem o uso dela, que lhe permite se comunicar com o pai, os irmãos, os parentes e amigos mais próximos. Resume seu espanto diante do não saber de U. com a palavra "interessante".

Mas, tanto para E. quanto para U., português é a língua do outro, do poder, do usurpador. A ela estão associados sofrimentos, perseguições e imposições. Não é de forma alguma a relação que os brasileiros mantêm com o português.

Passagem 2

E - E quais eram as informações que você tinha do Brasil? Apesar de você já ter falado sobre as novelas, há mais algo a acrescentar sobre as informações que você tinha?

U. - Eu acho que razoáveis, eu sabia que o Brasil era um país de língua portuguesa, também. Que era uma República Federativa, né? Lá em Angola a gente chama República Popular de Angola. Brasil é composto por estados. A gente chama estados, lá são províncias.

E. - Hum hum [tom de afirmação].

U. - A gente tinha essas informações mais ou menos.

E - Hum hum [tom de afirmação].

U - E pouquinho das culturas. Porque como a minha irmã vivia aqui, então a gente teve um pouquinho dessa influência. Ah ... O português como era falado. Alguns termos diferentes, a gente já tinha essas informações. Então foi um pouquinho mais fácil de chegar.

E. - Ok. Ah... Quarta questão. Você pode descrever situações, duas ou três, em que passou por dificuldades especiais para se adaptar ou se integrar?

U. - É meio difícil de se lembrar, mas deixa tentar lembrar de uma aqui.

E. - Hum.

U. - Uma delas acho que foi quando eu entrei para a faculdade. Não! Essa foi à segunda, tem de falar da primeira. Eu precisava fazer um vestibular para conseguir o visto. Ai eu fui me inscrever em uma das faculdades, eu me inscrevi na Newton. Mas para isso eu tinha que ter um pré-vestibular. Aí começou tudo. Eu fui, me inscrevi num prévestibular, eu senti as dificuldades do português. Não muito de adaptação da turma porque a turma em que estava foi muito boa. Eu acho que a cultura, os hábitos eram parecidos, então não tive muito problema com as pessoas em si. Foi mais do português. Entender o método dos professores, o explicar, a didática em si. É... Algumas coisinhas diferentes, por exemplo, na língua portuguesa dissertação eu não sabia o que era, aprendi no pré-vestibular o que era. Então teve alguma complicação para me adaptar quanto a isso. Acho que a segunda situação foi à adaptação com as pessoas que foi diferente. Isso foi na faculdade. Eu comecei primeiro na Newton. Fiz um mês lá e depois eu pedi transferência para a faculdade batista. Então ai eu senti uma certa dificuldade. Porque eu entrei um mês depois das aulas terem começado. E como a gente sabe já tinham os grupinhos formados. (...) Quando eu comecei a participar, a falar na turma, fazer perguntas, apresentar trabalhos ai sim eu acho que as pessoas conseguiram conhecer um pouquinho mais de mim, saber que eu tinha coisas bem semelhantes. Que Angola também falava português, que eu não aprendi aqui. Ai foi mais fácil a integração.

A primeira informação que U. revela ter do Brasil se refere às novelas e a segunda, ao fato de ser "um país de língua portuguesa, também". Evidentemente, o próprio acesso às novelas requer o uso do português e, mais ainda, novelas oferecem um bom treino para compreender a língua oral do brasileiro. Quando U. acrescenta "também" à sua frase, refere-se a Angola, o que a remete à enumeração de outros pontos equivalentes entre os dois países, como a divisão política em estados e províncias e aspectos culturais comuns. Sente conhecer bem o Brasil, por causa da irmã, que veio antes dela. Essas representações e afetos (imaginários) fundamentam o vínculo que se estabelece.

De fato, duas de suas irmãs são estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais, uma no curso de Odontologia e outra no de Ciências Contábeis. Elas chegam como refugiadas ao Brasil, durante a longa guerra civil angolana (1976-2002). Os irmãos mais velhos de U. (eles são 11, no total), no contexto de aliança Angola/países socialistas, estudam na União Soviética. Quando se iniciam os intercâmbios entre Angola e Brasil, E. e as irmãs de U., cada um por sua vez, chegam ao Brasil, onde permanecem com o estatuto de refugiados políticos.

Quando U. chega (2004), ela não é, como as irmãs, uma refugiada e, para permanecer, precisa de um visto de estudante. Para seu espanto, surgelhe uma dificuldade, a língua portuguesa que ela fala: "Aí começou tudo. Eu fui, me inscrevi num pré-vestibular, eu senti as dificuldades do português"; "Eu acho que a cultura, os hábitos eram parecidos, então não tive muito problema com as pessoas em si. Foi mais do português".

Se, por um lado, as diferenças entre o português de Angola e do Brasil dificultam, pois U. não antecipa os obstáculos lingüísticos, de outro lado, a língua é fundamental no processo de adaptação e permite tecer vínculos de amizade: "as pessoas conseguiram conhecer um pouquinho mais de mim, saber que eu tinha coisas bem semelhantes. Que Angola também falava português, que eu não aprendi aqui. Ai foi mais fácil a integração".

Observa-se, finalmente, que essa passagem é atravessada pela história de Angola, tal qual vivida por U. e sua família: a entrevistada conserva, em 2009, data da entrevista, o termo República Popular de Angola, em desuso desde o início da década de 1990.

Passagem 3

U. - Que eu saiba tem uma província que é Cabinda que é muito rígida quanto a isso [normas de namoro]. Quando as pessoas não são da província, consegue-se mudar um pouquinho os costumes, mas dentro dela ainda é muito difícil. Mas na minha província não é assim tão formal. A única coisa que eu acho que não abre mão é do alambamento.

E. - Ah, fala do alambamento.

U. - O famoso alambamento, que é uma cultura que o brasileiro não tem.

E. - Não tem. Fala desse alambamento aí, e exprima isso. O que é esse alambamento?

U. - O alambamento a gente pode dizer que é um dote. Que a família do noivo, do rapaz para oferecer para a família da rapariga, rapariga que é um termo que não deve ser usado, da moça, para pedir ela em casamento. Depois deles se conhecerem, das famílias escolherem, é o famoso noivado, só que o termo nos dialetos lá em Angola é alambamento. Eles preparam algumas coisas. Aqueles trajes africanos que eu falei, que a gente usa para oferecer para as tias da noiva, para a mãe da noiva, preparam ternos para oferecerem para os tios e os pais, e uma coisa que em Angola é muito influente é que a autoridade máxima para uma moça não é o seu pai, mas sim seu tio.

E. - Hum hum [tom de afirmação].

U. - É assim, a pessoa que tem mais autonomia de falar e depois é que vem o pai. São os rituais que são cumpridos oferecendo alguns dotes para a família da noiva. Depois disso, se a família quiser pode fazer o casamento, só depois desse alambamento ela pode morar com o noivo.

E. - Ah, depois do alambamento já pode morar com o noivo?

U. - Já. Em certas tradições sim, em outras tem de ter o casamento depois disso. Casamento religioso e civil.

E. - Então quem decide daí, você falou da autoridade máxima, é do tio não do pai, o tio...

U. - A última palavra é do tio.

E. - A última palavra é do tio, se a sobrinha casa...

U. - ou não. Se o dote é suficiente ou não. [risada da entrevistada]

E. - Ok. Isso é interessante. Muito bem.

Nessa passagem, que se refere a um traço cultural próprio de Angola, é importante analisar o uso da língua. U. fala de costumes angolanos muito diferentes dos brasileiros. Em especial, fala sobre o alambamento, palavra que não aparece nos dicionários brasileiros da língua portuguesa e é apontada por Torres Di Gregório (2006) como "expressão da língua portuguesa em Angola que pertence à linguagem informal".

Porém, é possível que uma descrição densa do alambamento, no molde dos trabalhos etnográficos de Geertz (1989), seja suficiente para entender e interpretar as estruturas sociais e de significações dominantes em Angola, suas genealogias e relações de parentesco. Não é esse, entretanto, o objetivo deste trabalho. U. explica bastante bem o que é o alambamento que, de resto, pode ser visto, com fotos e filmes, na internet, pois o termo é bastante procurado nas máquinas de busca e as entradas sobre ele somam mais de duas mil e quinhentas páginas.

Quando U. o descreve, como por encanto, entra na cultura angolana. Seu português se modifica, ela resvala em palavras que não mais usa no Brasil, repreende-se e se corrige: "a família da rapariga, rapariga que é um termo que não deve ser usado, da moça". Rapariga é palavra que aponta diferença semântica grande entre a variante brasileira e a angolana da língua portuguesa.

Enfim, essa passagem permite apreender a língua viva e seus vínculos com a cultura nativa (em especial com as relações de parentesco e com as vestimentas). Mostra, também, o processo de apropriação da língua e os vestígios de assimilação/vinculação de U. à cultura brasileira, simbolizada pelo uso da variante brasileira do português que predomina, contudo, na passagem.

Passagem 4

E. - A... ai, uma outra questão aqui é como você percebe a língua portuguesa brasileira em relação à angolana? Acho que já falou um pouco, mas seria interessante você falar um pouquinho sobre a questão dos traços da língua brasileira e da língua angolana. Se você percebe alguma coisa ou alguma coisa que você viu na expressão ou na escrita.

U. - Tem alguma parte que a gente sentiu... Eu acho que todo angolano que chegou aqui sentiu um pouquinho de diferença ao escrever, ao falar, ao interpretar. E senti diferença e dificuldade quanto a isso. Em algumas palavras que a gente precisava tirar um c, por exemplo, e colocar outro. O fato lá, que em Angola a gente chama de fato, que aqui no Brasil a gente chama de terno, por exemplo. É... mas o fato para o Brasil, e lá em Angola a gente usa o termo facto com c. Então tem essas diferençazinhas que a gente escreve às vezes, que a professora risca porque não entende o que é. E eu senti de acentuação também. Em uma frase, já tive um problema em prova que a professora fez uma pergunta, que agora eu não lembro qual é, e eu chutei a resposta. E no dia seguinte, quando ela entregou a prova, ela falou "Oh U., você errou aqui. Eu perguntei isso e você respondeu isso". Eu disse: "Professora, você colocou uma frase que tem umas duas orações, uma era continuação da outra. Para minha interpretação você queria a resposta da última parte da frase". Mas para a interpretação da professora ela queria a resposta da primeira parte da frase. Então assim tem umas coisinhas que a gente sente a diferença, mas que ela acabou considerando por ela sabia que eu era estrangeira.

E. - Ah considerou.

U. - Ela considerou. Assim, não deu total, mas deu um pouquinho mais do que ela tinha dado antes.

E. - E daí você teve que assimilar essa forma.

U. - A gente tem de assimilar, senão vai mal em todas as provas. E eu também senti dificuldade em uma coisa, em Angola a gente é muito direto, muito especifico...

E. - Objetivo.

U. - Objetivo. Se você perguntou você quer chá, eu falo sim ou não. E nas provas a gente tinha essas dificuldades. O professor perguntava o que é isso e a gente dava a definição e pronto. Qual a diferença disso para isso? Você colocava a diferença e pronto. Mas eu sentia dificuldade porque aqui no Brasil você não coloca só a diferença, você coloca a definição você coloca a diferença, você argumenta por que. E nas primeiras provas eu tive nota baixa porque eu falava apenas aquilo que me era perguntado. Sem argumentar que lá em Angola a gente tem. O que é isso e isso? Comente. Ai sim a gente comentava. Então é... umas diferençazinhas

E. - Interessante

U. - Na didática dos professores.

Nessa passagem, U. relata problemas específicos pelos quais passou relativos ao uso da língua portuguesa. São questões de morfologia, sintaxe e léxico. Mas o que mais chama a atenção é que sua fala é basicamente brasileira, mantido o sotaque angolano, agradável ao ouvido hospedeiro. Essa contaminação lingüística da variante nacional brasileira sobre a variante angolana é tratada também em Torres Di Gregório (2006). Essa autora lembra que as pesquisas mais recentes mostram diversas particularidades significativas que "aproximam o português falado em Angola do uso oral brasileiro". Mas adverte que o mesmo não ocorre na linguagem escrita. Torres Di Gregório (2006) conclui sua pesquisa afirmando: "na língua escrita, o português angolano distancia-se mais da variante nacional do Brasil, seguindo, preferencialmente, a norma do português europeu".

Da mesma forma que U., E. também esbarra na escrita com seus professores no Brasil. Por exemplo, onde os brasileiros usam o gerúndio (estão trabalhando), os angolanos, como os portugueses, usam o infinitivo (estão a trabalhar). Os brasileiros escrevem preferencialmente "será realizado" e os angolanos "realizar-se-á". Em seu exame de qualificação, U. foi advertido quanto a esses usos. Por causa de eventos semelhantes, Torres Di Gregório (2006) escreve seu texto, que abre com as seguintes palavras: "O ingresso crescente de estudantes angolanos em universidades brasileiras impõe a todos os professores (...) um novo desafio: (re)pensar sobre os laços histórico-culturais e lingüísticos que unem os países lusófonos".

Finalmente, observa-se nessa passagem analisada a percepção de uma diferença (imaginária?) entre a língua direta e objetiva angolana e uma fala cheia de subterfúgios e sugestões sub-reptícias do brasileiro (do mineiro, em especial). Saber ou não se essa diferença percebida e vivida pela entrevistada é real - e possivelmente o é - requer um estudo lingüístico que extrapola as dimensões deste artigo.

 

Conclusões e considerações finais

A análise realizada, de perspectiva social-histórica e lingüística, parte de alguns pressupostos relativos à construção do vínculo social Angola-Brasil (do lado social-histórico a atuação de determinações e a criação de significações imaginárias; do lado lingüístico a importância da língua portuguesa e de suas variantes angolana e brasileira). O processo instituinte de formação do vínculo envolve questões culturais e entrelaçamentos de história individual e coletiva. Na entrevista de E. com U., considerando-se a conceituação teórica que inclui basicamente as noções de domínio social-histórico, linguagem, língua, cultura, vínculo social e processo instituinte, é possível ver que:

a) O vínculo em construção, do ponto de vista social-histórico, veicula, de um lado, significações imaginárias sociais que atuam como crenças ou mitos (passado e cultura comuns, informalidade brasileira, objetividade angolana, etc.) e, de outro lado, determinações (históricas, geográficas, sociais, políticas e econômicas) bastante divergentes, sobretudo quando se coloca em foco o passado colonial dos dois países. Exceção importante, que atua no sentido de uma convergência, é a língua comum (ainda marcada, nos dois casos, por vestígios do tempo de colônia como, por exemplo, o uso do termo "línguas nacionais", na variante angolana, e "você" - facilmente apropriado pelos estudantes angolanos - na variante brasileira).

b) As significações imaginárias sociais positivas, envolvendo afetos e desejos, atuam no sentido de criação do vínculo, pois permitem colocar entre parênteses aspectos inaceitáveis, para um angolano, da cultura brasileira, como os rituais de namoro (em que o "ficar", então em voga, só provoca constrangimentos) e de óbito (em que o ritual brasileiro de enterro parece frio e indiferente, comparado aos rituais angolanos que se estendem por vários dias). De outro lado, levam a supervalorizar aspectos da cultura brasileira, como a informalidade entre professor e aluno.

c) As histórias individuais particulares de E. e de U. revelam e retratam a história recente de Angola; o fato de estarem no Brasil permite ver o atravessamento da história coletiva dos dois países nas suas vidas particulares. E. chega ao Brasil durante a guerra civil angolana, da qual foge inicialmente para a Alemanha; seu visto de exilado no Brasil é obtido depois da queda do muro de Berlim, ou seja, no final da Guerra Fria. Os vínculos diplomáticos entre os dois países só se estreitam no início do séc. XXI, depois do fim da longa guerra civil angolana e com o início de um governo de esquerda no Brasil, que firma convênios educacionais entre Angola e Brasil, permitindo a permanência de U. no país.

d) As histórias individuais de apropriação de nuances da língua do país hospedeiro, como as de E. e de U., assim como a de brasileiros que vivem em Angola, repercutem de um lado e de outro do Atlântico, entrelaçando-se com a história coletiva. Tanto E. como U. preparam suas voltas a Angola. Desde já, imaginam outros intercâmbios com o Brasil. Está-se no território do imaginário radical (Castoriadis, 1982), criador de novos projetos instituintes.

e) A língua portuguesa é um elo privilegiado entre os dois países, mas, às vezes, um elo um tanto ilusório, pois ela prega peças em seus falantes, em especial quando escrita. Uma apropriação dela é possível, mas ainda difícil e quase sempre incompleta. A dificuldade introduzida por ela não é facilmente antecipada.

Além da análise realizada neste artigo, a pesquisa relativa a estudantes angolanos residentes em Belo Horizonte continua. Para sua dissertação de mestrado, E. (Ngunga, 2009) realiza outras entrevistas em que aspectos diferentes do vínculo social são revelados.

 

Referências

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Castoriadis, C. (1982). A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Tradução do original em francês L'institution imaginaire de la société. Paris: Éditions du Seuil, 1975)        [ Links ]

Castoriadis, C. (1987). As encruzilhadas do labirinto 2: Os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Tradução do original em francês Domaines de l'homme/Les carrefours du labyrinthe. II Paris: Éditions du Seuil, 1986)        [ Links ]

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Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. (Tradução do original em inglês The interpretation of cultures. New York: Basic Books, 1975)        [ Links ]

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Ngunga, E. J. (2009). Influências culturais brasileiras em estudantes angolanos residentes em Belo Horizonte-Minas Gerais. Dissertação de mestrado não-publicada, Faculdade Novos Horizontes.         [ Links ]

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Torres Di Gregório, A. M. (2006). Particularidades lingüísticas no português de Angola. Revista Philologus, 34,93-102, Retrieved June 9, 2009, em http://www.filologia.org.br/revista/34/10.htm        [ Links ]

 

 

Recebido em: 19/01/10
Aceito em: 20/02/10

 

 

1 Apoio: Faculdade Novos Horizontes; FAPEMIG.
2 Contato: ejngunga@hotmail.com
3 As informações sobre a história de Angola, em sua maioria, foram obtidas na Enciclopédia do Mundo Contemporâneo (2000).
4 Torres Di Gregório (2006), a respeito do termo "dialeto", lembra que ele evoca a "idéia de dependência (mais unilateral que recíproca) entre o dialeto, modalidade lingüística tida como inferior, e o idioma nacional concebido sempre como a síntese superior" (Cunha, 1985, p. 64).

 

 

Anexo 1

Roteiro de entrevista com os estudantes angolanos em Belo Horizonte

1) Qual é a etnia angolana a que você pertence ou com a qual se identifica?

2) Quais os motivos que levaram você a vir ao Brasil?

3) Quais foram as primeiras impressões que teve ao chegar ao Brasil?

4) Você pode descrever duas ou três situações em que passou dificuldades especiais para se adaptar ou se integrar ao Brasil?

5) Quais são as diferenças culturais que você percebeu entre Brasil e Angola?

6) Como você percebe a língua portuguesa brasileira em relação à angolana?

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