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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.2 Juiz de fora dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Mulheres em situação de violência doméstica: vitimização e coping

 

Women in domestic violence situation: vitimization and coping

 

 

Lila Maria Gadoni-Costa1; Débora Dalbosco Dell'Aglio

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

A violência doméstica, entendida como todo tipo de violência praticada no âmbito privado por pessoas que convivam ou se relacionem afetivamente com a vítima, é um tema atual, que vem sendo amplamente debatido e investigado nas mais diferentes áreas do conhecimento. Trata-se de um fenômeno de alta prevalência, considerado como um problema de saúde pública e de violação de direitos humanos. Este artigo apresenta uma revisão teórica sobre essa temática, enfocando mecanismos que visam minimizar a situação de vitimização, tais como políticas públicas e delegacias especializadas. Apresenta também uma breve revisão sobre estratégias de coping utilizadas pelas mulheres para lidar com a situação de violência. Discute-se a necessidade de pesquisas que possam contribuir na compreensão do conceito e ampliar o entendimento do processo desenvolvido pelas mulheres em situação de violência doméstica.

Palavras-chave: Violência doméstica, Violência Familiar, Políticas Públicas, Coping


ABSTRACT

Domestic violence, understood as all forms of violence practiced in private sphere by persons who live together or are connected emotionally with the victim, is a current subject, which has been widely discussed and investigated in the different areas of knowledge. This is a issue of high prevalence, considered a public health problem and a violation of human rights. This article presents a theoretical review on this topic, focusing on mechanisms aimed at minimizing the situation of victimization, such as public policies and specialized police stations. Also presents a brief overview of coping strategies of women facing violence. It discusses the need for research that may help in understanding the concept and broaden the understanding of the process developed by women in domestic violence situation.

Keywords: Domestic Violence, Family Violence, Public Policies, Coping


 

 

A violência doméstica é uma questão complexa e multifacetada que vem sendo tratada pela literatura especializada sob diferentes perspectivas. Trata-se de um tema atual, considerado, por suas proporções, como um problema de saúde pública e uma das formas mais generalizadas de violação dos direitos humanos (Silva, Coelho & Caponi, 2007). Por sua complexidade, a temática vem despertando a atenção de pesquisadores de diversas áreas, tais como Psicologia, Direito, Serviço Social, Enfermagem, entre outras, e políticas públicas vêm sendo implementadas por todo o mundo, no sentido de prevenir e erradicar o fenômeno (Sagot, 2007; Schraiber et al., 2007).

Os maus tratos sofridos pela mulher geram perdas significativas em sua saúde física e mental, bem como nas relações sociais, que deixam de funcionar como rede de apoio (Monteiro & Souza, 2007). É um fenômeno que independente de idade ou contexto social e ocorre em diferentes culturas. Por sua magnitude, ainda não é bem dimensionado no Brasil. São vários os fatores que dificultam estimativas mais precisas, entre eles o fato de ser um problema só reconhecido recentemente, além de apresentar diferentes definições utilizadas pelos pesquisadores da área (Rovinski, 2004).

A violência contra a mulher, praticada no âmbito privado, é ainda considerada por muitos como um ato isolado e não um problema social. Saffioti (1999) se contrapõe a essa idéia salientando que o fato da violência ocorrer no interior do domicílio não nega sua natureza pública. Estudos realizados na América Latina estimam que apenas 15 a 25% das situações de violência intrafamiliar são denunciadas (Sagot, 2007). Essa subnotificação contribui para a invisibilidade do fenômeno, reforçada por vários fatores, entre os quais a percepção de que a violência é um ato legítimo, a idéia de que a mulher deve se responsabilizar como provocadora e a falta de serviços e respostas sociais percebidas como positivas pelas mulheres para ajudá-las nessas situações (Sagot, 2007). A mesma autora aponta que as idéias predominantes do imaginário coletivo sobre o fenômeno da violência contra a mulher dificultam respostas sociais adequadas e eficazes. Somente com políticas e ações coordenadas entre Estado e sociedade civil será possível articular soluções para o problema em toda sua complexidade, considerando a prevenção, registro, atenção e garantia dos direitos das mulheres vítimas.

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU, 2006), a eliminação da violência contra a mulher, que teve na década de 1980 o incremento do ativismo contra o fenômeno e consequentemente, maior visibilidade, continua sendo um dos mais graves desafios da atualidade. As várias denúncias e manifestações coletivas ocorridas em vários países, nas décadas de 1980 e 1990, desencadearam, conforme Grossi, Almeida e Tavares (2007), um processo que tornou pública a violência contra a mulher. Strey (2000) salienta que, historicamente, as mulheres vêm enfrentando a desigualdade, embora nunca tenham se submetido por completo. Submissão e resistência sempre fizeram parte de suas vidas.

Para por fim aos atos desse tipo de violência e de desigualdade, é preciso que os conhecimentos e instrumentos elaborados na última década, com o objetivo de prevenção e eliminação do fenômeno, sejam utilizados de maneira mais sistemática e eficaz (ONU, 2006).

 

Definições conceituais

A violência contra a mulher é conhecida também por várias outras definições, entre elas, violência de gênero, violência doméstica e violência conjugal. Rovinski (2004) salienta que a dificuldade de definição conceitual pode prejudicar os dados de pesquisas sobre incidência e prevalência do fenômeno e também dificultar as intervenções propostas, sendo esse fato uma preocupação da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Segundo estudo da ONU (2006), "violência contra a mulher" é todo ato de violência praticado por motivos de gênero, dirigido contra uma mulher. O termo "mulher" abarca todas as pessoas do sexo feminino de qualquer idade, incluídas as crianças e adolescentes. No Dicionário da Violência contra a Mulher (Coletivo Feminista, 2008), a expressão "violência contra a mulher" refere-se à violação dos direitos humanos das mulheres e consiste no uso da força física, psicológica ou intelectual para submetê-la, tolher sua liberdade e impedir a manifestação de seus desejos através de ameaças ou agressões. Para Grossi, Almeida e Tavares (2007), a violência pode ocorrer em nível macro (as violências estruturais da sociedade) ou em nível micro (violências interpessoais). É tudo o que destrói, fere ou agride uma pessoa, prejudicando seu bem-estar social e individual.

"Violência de gênero" é definida como a violência sofrida pelas mulheres, sem distinção de raça, classe social, idade ou religião, em que o sexo feminino é subordinado por um sistema social (Coletivo Feminista, 2008). Monteiro e Souza (2007) apontam que as relações entre um casal devem ser pensadas como relações de gênero, ou seja, uma criação social de papéis próprios de homens e mulheres. Para Rovinski (2004), a noção de gênero já pressupõe uma relação de poder imposta culturalmente a homens e mulheres. "Violência doméstica" é a que ocorre no âmbito privado, perpetrada por um membro da família que conviva ou tenha relacionamento afetivo com a vítima (Coletivo Feminista, 2008).

Segundo Koller (2000), apesar das diversas definições de violência, existe uma linha de base comum a todo ato violento: são as ações ou omissões que interferem de forma negativa no desenvolvimento pleno de um indivíduo. A autora refere que "a violência ocorre em relações interpessoais assimétricas e hierárquicas, em que há uma desigualdade e/ou uma relação de subordinação" (p. 33). Dessa forma, pode-se verificar conforme apontam Santos e Izumino (2005), que os conceitos encontrados na literatura (violência contra a mulher, violência de gênero, violência conjugal ou violência doméstica) acabam sendo utilizados como sinônimos e remetem a uma situação de violência, via de regra, dirigida a uma mulher, apesar das diferenças teóricas que possam embasar essas definições.

Políticas públicas

A violência contra a mulher tornou-se alvo de mobilização de organismos internacionais depois de 1975, ocasião em que a ONU realizou o primeiro Dia Internacional da Mulher. Mas somente em 1993, a Comissão de Direitos Humanos da ONU incluiu capítulo sobre denúncia e medidas contra a violência de gênero (Blay, 2003). Nas décadas de 1970 e 1980 houve um fortalecimento do movimento das mulheres contra a violência, ocasião em que se implantaram as primeiras políticas públicas no Brasil. Esse movimento foi fundamental para o processo de mudanças sociais e de legislação (Oliveira & Cavalcanti, 2007).

Em 1979, foi aprovada pela ONU a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que entrou em vigor apenas em 1981 e foi ratificada, com reservas, pelo governo brasileiro em 1984. Em 1994, o Estado Brasileiro retirou as reservas à convenção, ratificando-a plenamente. A CEDAW prevê a eliminação de todos os tipos de discriminação contra a mulher e a igualdade entre mulheres e homens assegurada pelo Estado. Segundo Barsted (2006), a convenção contribuiu para a inclusão na Constituição Federal de 1988, da igualdade de direitos de homens e mulheres na vida pública e privada, além da inclusão de outros direitos individuais e sociais femininos. Em 2003, o novo Código Civil entrou em vigor e incorporou os preceitos da Constituição, reconhecendo a igualdade de direitos para mulheres e homens. Apesar do avanço, a cultura jurídica e o senso comum da sociedade brasileira ainda sofrem grande influência do Código Civil de 1916, devido a sua longa vigência, particularmente no que se refere às desigualdades entre homens e mulheres, onde o homem era detentor de plenos direitos e a mulher colocada em situação de inferioridade legal.

Segundo Oliveira e Cavalcante (2007), "políticas públicas podem ser entendidas como as respostas do Estado às demandas sociais de interesse da coletividade" (p. 44). As autoras apontam que as discriminações prejudicam a democracia no mundo atual e as políticas públicas positivas surgem como ferramenta para corrigir as desigualdades, como as de gênero. A partir das demandas surgidas, em 1985, foi criada no Brasil a primeira delegacia de policia de atendimento à mulher, em São Paulo, e nos anos seguintes, em outros estados.

No ano de 1986, foi implantada, também em São Paulo, a primeira casa de abrigo para mulheres em situação de violência, vinculada à Secretaria de Segurança Pública. Este local surgiu a partir das queixas do movimento de mulheres, que reagiu ao atendimento limitado das delegacias, com o objetivo de dar um atendimento integral às mulheres vítimas (Coletivo Feminista, 2008).

Em 1994, a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) discutiu e reconheceu o direito da mulher de ser livre de todas as formas de discriminação na Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Em 1995, a IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Beiijing, na China, propôs ações com objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz (Monteiro & Souza, 2007).

No dia 7 de agosto de 2006 foi sancionada no Brasil a Lei 11.340/2006, retirando do âmbito dos Juizados Especiais Criminais os delitos que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa lei foi batizada por "Lei Maria da Penha" para homenagear a cearense de mesmo nome, que ficou paralítica após sofrer violência doméstica, praticada pelo marido. Esse homem só foi punido após dezenove anos da ocorrência do crime, em decorrência da militância de grupos de defesa de direitos humanos junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Maria da Penha tornou-se um símbolo e um dos trágicos exemplos da impunidade do agressor e da gravidade da violência contra a mulher no Brasil (Debert & Oliveira, 2007).

A Lei Maria da Penha alterou o tratamento dos crimes de violência contra a mulher no sistema de justiça. A violência doméstica deixou de ser um crime de menor potencial ofensivo, não sendo mais enviada aos Juizados Especiais Criminais. A lei também prevê o pedido de medidas protetivas e afastamento do agressor quando a vítima está em situação de risco; admite prisão em flagrante e pedido de prisão preventiva em casos de desobediência das medidas protetivas; impede a aplicação de pena de cesta básica e volta a exigir a instauração do inquérito policial (Debert & Oliveira, 2007).

Delegacia para a mulher e a denúncia

As discussões de grupos de apoio às mulheres vítimas e a necessidade de encarar a realidade sobre a violência perpetrada no âmbito privado foram determinantes para a criação das delegacias de defesa da mulher, em 1985. Segundo Blay (2003), as mulheres que anteriormente se sentiam constrangidas diante do machismo e da incompreensão nas delegacias em geral, passaram a receber um atendimento diferenciado. Essa mudança na relação de subordinação de gênero configurou-se como o início de uma revolução nos papéis sociais. Para Oliveira e Cavalcanti (2007) consolidar políticas públicas na área de gênero envolve desafios relacionados a vencer resistências internalizadas. São necessárias ações que minimizem essas resistências e que funcionem como correções nas distorções existentes, igualando os direitos entre homens e mulheres. Essas autoras salientam que "as políticas públicas voltadas para as mulheres são as que tendem a universalizar os seus direitos já legalmente instituídos, mas vivenciados por uma minoria privilegiada" (p. 45). As ações educativas e de conscientização são tão importantes como as de implementação das políticas públicas, tanto para quem oferece o serviço como para quem o utiliza.

Atualmente o Brasil conta com mais de 300 delegacias especializadas, em praticamente todos os estados (Debert & Oliveira, 2007). As delegacias têm diversas denominações: Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), Delegacia para a Mulher (DM), Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM). Apesar das diferenças, Debert e Oliveira apontam semelhanças no perfil das usuárias e quanto às representações dos policiais da delegacia sobre seu trabalho e sobre o público atendido. As delegacias dão visibilidade ao fato de que a violência contra a mulher é crime.

Segundo Monteiro e Souza (2007), ao procurar uma delegacia especializada para registrar uma queixa, a mulher encontra-se em um momento singular de decisão, necessitando apoio e compreensão. Nesse momento é importante que ela possa ser acompanhada, pois a decisão de denunciar não significa que ela esteja em condições de sair da situação de violência sem ajuda.

Para Rifiotis (2004), a delegacia especializada no atendimento à mulher é uma polícia judiciária, ou seja, atua como "correia de transmissão" entre o sistema judiciário e a polícia. Esse autor considera que, além das vítimas e agressores, estudos sobre as práticas policiais nas delegacias de defesa da mulher são fundamentais para a compreensão do alcance dos atendimentos e para avaliar estas práticas.

Nem todas as vítimas procuram uma delegacia especializada para registrar ocorrência e, quando o fazem, nem sempre é logo após a primeira agressão. A decisão de denunciar a violência que ocorre no âmbito privado é difícil e requer apoio da rede social (Rifiotis, 2004). As trajetórias para que uma mulher se livre da violência não são lineares, segundo Sagot (2007), "mas complexos processos nos quais as mulheres podem realizar ações aparentemente contraditórias" (p. 48). Pesquisa realizada em diversos países latinoamericanos utiliza o conceito de "rota crítica", entendido como um processo construído a partir das ações e decisões tomadas pela mulher em situação de violência. Para a autora, o início da rota crítica é o rompimento do silêncio e a decisão da revelação de sua situação como vítima. Rifiotis (2004) salienta que é difícil avaliar o tipo de atividade que efetivamente se desenvolve nas delegacias especializadas no atendimento à mulher e sua importância para as usuárias do local, o que certamente vai além de criar condições para a resolução de conflitos conjugais.

Estudos recentes sobre a violência contra a mulher

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada seis mulheres no mundo sofre violência doméstica, sendo que em 60% dos casos, a violência foi perpetrada por marido ou companheiro (OMS, 2005). Estudos sobre a prevalência da violência contra as mulheres em Portugal apontam que uma em cada três mulheres portuguesas é vítima de violência, o que equivale a 33,6% da população feminina (UMAR, 2007). Em estudo recente realizado nos Estados Unidos com vítimas de violência doméstica, Moe (2007) constatou benefícios psicológicos produzidos pela sensação de empoderamento das mulheres, a partir do início dos procedimentos legais contra o agressor.

Sobre o perfil das mulheres que procuram as delegacias especializadas, estudo de Debert e Oliveira (2007) destaca a homogeneidade dessa clientela em diferentes cidades e regiões do Brasil. O perfil é o de uma mulher de classe popular, baixo nível de instrução, predominando ensino fundamental completo ou incompleto, agredida por marido ou companheiro. A idade varia entre 20 e 35 anos, com raros registros de mulheres com mais de 45 anos. No item profissão, o que mais aparece é "do lar" ou "doméstica".

Em estudo sobre homicídio de mulheres, Blay (2003) pesquisou os boletins de ocorrência (BOs) nas delegacias gerais do município de São Paulo. As análises estatísticas da Secretaria de Segurança daquele estado não informam o sexo da vítima, gerando dificuldades sobre o conhecimento dos fatos, além de evidenciar uma visão masculina que dá pouca importância às relações de gênero. A partir da investigação de Blay (2003), foi possível constatar que, das 623 ocorrências com 964 vítimas, 669 eram mulheres, sendo que 90% dos autores, nesses casos, eram homens. O estudo concluiu que ainda persiste uma cultura de subordinação da mulher ao homem "de quem ela é considerada uma inalienável e eterna propriedade" (p. 96), além da dramatização romântica do amor passional veiculada na mídia e em canções populares.

Oliveira e Cavalcanti (2007) realizaram pesquisa na Delegacia Especial de Atendimento a Mulher (DEAM) de Salvador - Bahia, através da qual foi constatada grande diferença entre os números de registros policiais e os procedimentos encaminhados à Justiça, devido à desistência das mulheres. Segundo essas autoras, "a mulher que cala, que desiste, consente porque se encontra sob o domínio de uma violência simbólica mantida pela cultura patriarcal que é alimentada pela ordem social e permitida pelo Estado" (p. 49).

Estudo realizado por Monteiro, Araújo, Nunes, Lustosa e Bezerra (2006) salienta que das denúncias registradas em 2002 nas delegacias especializadas no Piauí, 11,46% dos casos foram à justiça comum e o restante não deu prosseguimento por desistência da vítima. Em 2003 o número aumentou para 31,15%, ou seja, mais mulheres deram continuidade às denúncias. Nas delegacias do nordeste foi constatado que as mulheres registram ocorrência pela primeira vez e depois desistem de dar prosseguimento ao processo. Para os autores, tal comportamento se baseia na crença de que a violência se resolverá na intimidade do lar e na esperança de que tudo volte à normalidade, o que contribui para a manutenção do ciclo da violência.

Segundo resultados de pesquisa realizada no Fórum Central de Campinas (São Paulo), no ano de 2001, foi constatado que 12 distritos policiais daquele município enviaram ocorrências para julgamento no Fórum. Cerca de 65,7% das ameaças e 59,4% dos crimes de lesão corporal foram enviados pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) do município. Esse dado torna a DDM de Campinas a delegacia com maior envio de ocorrências, sendo que a maioria dos casos é relacionada a brigas de bar ou trânsito, mas fruto de uma criminalidade que tem a mulher como vítima principal (Debert & Oliveira, 2007).

Estudo realizado em Cuba por Lozano e Ibarra (2008), com casais moradores da zona rural, apontou situações frequentes de violência psicológica de gênero em que as vítimas e agressores se maltratavam de maneira cíclica, com alternância de papéis, dependendo da interação que se estabelecia. As principais manifestações foram decorrentes de relação possessiva e com tendência ao controle, ofensas, limitação de direitos, ameaças, sobrecarga de papéis e omissão, entre outras. Os comportamentos reforçaram os estereótipos de gênero do homem como detentor do poder, provedor e chefe da família, enquanto à mulher cabe a função reprodutiva e o papel de responsável pelo cuidado com os outros. As crenças compartilhadas pelos casais cubanos acerca de seus papéis, do poder, respeito e educação, legitimam e tornam invisível a violência psicológica expressada.

Segundo UMAR (2007), a problemática da violência doméstica é transversal às classes sociais e não pode ser encerrada em fronteiras territoriais administrativas. As vítimas precisam procurar ajuda fora de casa para proteger-se dos agressores, mesmo que os serviços sejam insuficientes para ajudá-las. Apesar dessa transversalidade, a condição social das vítimas, os valores e as respostas que a sociedade providencia, são fatores determinantes para que possam equacionar estratégias para a saída da vitimação (UMAR, 2007). O apoio social e afetivo, as características de personalidade e a utilização de estratégias de enfrentamento são aspectos que, se ativados diante de situações estressantes, podem ser identificados como sadios e geradores de resultados adequados para que os indivíduos superem condições adversas (Dell'Aglio & Hutz, 2002).

Estratégias de coping

Mulheres vítimas de violência interpessoal utilizam diferentes estratégias para reduzir ou eliminar ameaças a sua segurança física e bem-estar emocional. Estas estratégias de coping, ou enfrentamento, dependem de variáveis individuais e ambientais. De acordo com Lazarus e Folkman (1984), coping refere-se a um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais utilizados para lidar com demandas específicas, avaliadas pelo sujeito como além de seus recursos ou possibilidades. As estratégias utilizadas dependem de recursos materiais, crenças, habilidades e apoio social de cada indivíduo. Esses recursos nem sempre estão disponíveis por restrições internas ou externas (Ravagnani, Domingos & Miyazaki, 2007).

O modelo de coping proposto por Lazarus e Folkman (1984) envolve quatro conceitos principais: (a) coping é um processo ou uma interação que se dá entre o indivíduo e o ambiente; (b) sua função é de administração da situação estressora, ao invés de controle ou domínio da mesma; (c) os processos de coping pressupõem a noção de avaliação, ou seja, como o fenômeno é percebido, interpretado e cognitivamente representado na mente do indivíduo; (d) o processo de coping constitui-se em uma mobilização de esforço, através da qual os indivíduos irão empreender esforços cognitivos e comportamentais para administrar (reduzir, minimizar ou tolerar) as demandas internas ou externas que surgem da sua interação com o ambiente.

O coping é uma resposta que visa criar, manter ou aumentar a percepção de controle pessoal diante de situações estressantes. Depende do repertório individual e de experiências prévias, e pode ser centrado na emoção ou no problema. O coping centrado na emoção busca diminuir a sensação de desconforto emocional e é mais usado em situações percebidas como difíceis de mudar. Já quando centrado no problema, busca realizar mudanças no ambiente e é mais utilizado quando essas possibilidades de mudanças são percebidas. Tanto o coping centrado no problema como o centrado na emoção ocorrem em situações estressantes e influenciam-se mutuamente. A mesma pessoa pode utilizar ambos e as vantagens dependem do contexto (Ravagnani et al., 2007)

No modelo de coping e stress proposto por Lazarus e Folkman (1984), qualquer tentativa de administrar o fator de estresse é considerado coping, independente do sucesso do resultado. O processo de coping não pode ser simplificado, visto que as estratégias de enfrentamento do estresse são utilizadas individualmente, consecutivamente e em combinação. A consistência do coping está ligada à idéia de que lidar com situações de estresse é compatível com traços de personalidade, que se mantêm através do tempo e de situações diversas (Dell'Aglio & Hutz, 2002).

Diferentes categorizações para as estratégias de coping têm sido utilizadas. Entre as citadas por Dell'Aglio e Hutz (2002) encontram-se: ação agressiva; evitação (fugir da situação); distração (adiar a necessidade de lidar com o estressor); busca por apoio social; ação direta (resolver o conflito); inação; aceitação; reavaliação positiva; autocontrole; e expressão emocional. Para Lopez e Little (1996), as estratégias podem ser classificadas em evitação, cooperação social, apoio emocional, agressividade, exploração social e hostilidade.

Löbmann, Greve, Wetzels e Bosold (2003) investigaram coping e violência doméstica contra a mulher e apontaram que vários mecanismos são capazes de amenizar o impacto negativo da vitimização pela violência, ou facilitar a superação dos efeitos posteriores. O processo de coping deve ser cuidadosamente avaliado no contexto em que se apresenta por diversas razões. Pode mediar e moderar as consequências da violência: a intensidade e duração dos resultados não dependem apenas do grau de prejuízo causado pelo perpetrador, mas também das estratégias de coping do indivíduo. Assim, para estes autores, todos os efeitos posteriores avaliados em estudos empíricos, incluindo depressão e medo, além da capacidade para lembrar detalhes da vitimização, serão transformados pelos processos de coping em vários níveis.

Diversas reações e consequências podem ser observadas entre as vítimas de violência, algumas das quais são explicadas pelas estratégias de coping utilizadas, ou pela ausência delas (Löbmann et al., 2003). Através da identificação e fortalecimento de fatores protetivos, a ocorrência da violência e a vitimização podem ser prevenidas. Ao estimular ou exercitar estratégias de coping durante intervenções (discutindo crenças distorcidas e mal-adaptativas, por exemplo) e através do desenvolvimento de um novo repertório dessas estratégias, os efeitos posteriores da vitimização podem ser mais facilmente superados. Dessa forma, de acordo com Löbmann et al. (2003), é crucial que se considere o processo de coping em todos os campos de pesquisa sobre violência contra a mulher. Estudo de Parker e Lee (2007), realizado na Austrália sobre a relação entre estratégias de coping e saúde psicológica de mulheres vítimas de violência, aponta que há evidências de que os efeitos da violência são influenciados por essas estratégias.

Em pesquisa realizada por Meneghel et al. (2003), foi verificado que uma das estratégias de enfrentamento à violência que as participantes do estudo mais utilizavam no cotidiano era o apoio do grupo familiar, geralmente constituído por outras mulheres, como mães, avós, tias ou vizinhas. Outras estratégias apontadas por elas foram: abstinência sexual, recusa em conceder favores sexuais, além da separação e reconstituição da família, embora em diversos casos a situação de violência se repita com outro parceiro.

Na situação de violência doméstica, os parceiros evitam falar sobre os incidentes e tentam enxergálos como episódios isolados. As mulheres reprimem as lembranças e, deliberadamente, evitam a reflexão sobre os incidentes como uma estratégia de coping centrado na emoção (Löbmann et al., 2003). Os homens, via de regra, repudiam sua própria responsabilidade e negam a gravidade de seu comportamento. As mulheres demonstram uma sequência particular de comportamento, percebendo como sua responsabilidade a prevenção de novas explosões de violência. Por conseguinte, evitam determinados assuntos, situações e formas de comportamento, que, segundo seu ponto de vista, teriam potencial para desencadear a violência. Ao longo do tempo, essas reações levam a uma adaptação às atitudes violentas, que passam a ser vistas como "normais".

Arias e Pape (1999) salientam que mulheres que utilizam mais estratégias de copingcentrado na emoção do que centrado no problema, estão mais sujeitas a desenvolver sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático em resposta à situação de violência. Estratégias de coping centrado no problema acarretam necessariamente o aumento de resistência em situação de violência. Segundo Löbmann et al. (2003), mulheres espancadas que tiveram comportamento assertivo em situações de conflito com seus maridos, evidenciaram maior disposição no uso da violência como atitude de defesa, além de maior probabilidade de deixar seus parceiros depois de dois anos (estudo longitudinal) do que as mulheres que não resistiram. Em levantamento representativo realizado na Alemanha, 22% das vítimas de violência doméstica também utilizaram a própria violência como estratégia de defesa (Römkens, 1997).

Segundo Parker e Lee (2007), algumas pesquisas recentes buscaram identificar estratégias de coping associadas a características positivas de vítimas que sobreviveram à violência. O conceito de "força motriz" (agency) foi descrito como central nos métodos que as mulheres utilizam para contraatacar seus parceiros agressores. Entre as estratégias utilizadas para enfrentar o fenômeno, particularmente quando deixar o relacionamento não é uma opção viável, encontram-se: ação direta, autocontrole, distração, reavaliação positiva sobre si mesma e sobre relacionamentos duradouros de forma a minimizar a violência e criar um ambiente seguro para reflexão, definição de limites, planos de vida e busca por redes de apoio social.

 

Considerações finais

A partir desta revisão sobre os conceitos de violência contra a mulher praticada no âmbito privado, as políticas públicas e as formas de enfrentamento da violência, pode-se observar que ainda são necessários esforços conjuntos frente a esse problema de saúde pública. Além das diversas estratégias utilizadas pelas mulheres para lidar com a situação de violência, é necessário que haja uma "política de combate" que opere em rede, conforme aponta Saffioti (1999). Uma rede capacitada, que realmente funcione como uma engrenagem tende a fortalecer as instituições envolvidas no processo e possibilitar que as conquistas recentes no enfrentamento da violência se consolidem. Sem essa engrenagem, corre-se o risco de que a mulher seja revitimizada ao procurar auxílio. Para tanto, o estabelecimento de um diálogo que tenha uma linguagem comum aos diversos campos do saber (e do fazer) é essencial. Essa interlocução envolve a capacitação dos profissionais, a troca de experiência, a prática, a teoria e, acima de tudo, a "escuta" cuidadosa e acurada da mulher em situação de violência.

Dessa forma, considera-se que as pesquisas sobre as estratégias de coping e violência doméstica no Brasil mostram-se necessárias para auxiliar na compreensão do conceito e maior entendimento do processo desenvolvido pelas mulheres, no enfrentamento da violência em suas mais diversas formas. A partir da identificação dessas estratégias, propostas e intervenções mais eficazes poderão ser implementadas junto aos serviços especializados que integram a rede de apoio e às usuárias dos mesmos. Além disso, novos estudos poderão embasar a proposição de políticas públicas mais eficazes e eficientes frente a esta realidade.

 

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Recebido em: 20/06/10
Aceito em: 25/06/10

 

 

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