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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.2 Juiz de fora dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Encarceramento humano: uma revisão histórica1

 

Human incarceration: a historical review

 

 

Márcia Maria Santos2,I; João Carlos AlchieriI; Adão José Flores FilhoII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil
IISuperintendência dos Serviços Penitenciários-SUSEPE/RS, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

No campo científico, poucos são os estudos empíricos e as contribuições teóricas da Psicologia acerca do campo penitenciário, quando comparada à Psicologia como um todo. A despeito disso, os interessados em produzir conhecimento sobre esse campo precisam atuar como verdadeiros arqueólogos, a fim de obter contribuições teóricas, bem como dados que possibilitem comparações e amparos metodológicos em suas pesquisas. A falta de produção científica também se reflete no campo da Psicologia, enquanto profissão, uma vez que faltam conhecimentos que balizem o saber psicológico nesse contexto. Por isso, o presente artigo traz as principais concepções criminológicas, a fim de auxiliar na construção e no desenvolvimento do conhecimento científico nesse campo.

Palavras-chave: História do Aprisionamento, Concepções Criminológicas


ABSTRACT

In the scientific field, there are few empirical studies and theoretical contributions of Psychology about the penitentiary field, when compared to Psychology as a whole. Concerning that, those interested in producing knowledge about this field need to act as real archeologists, to obtain theoretical contributions, as well as data which make possible methodological comparisons and supports in their researches. The lack of scientific production is also reflected in the Psychology field, as a profession, once lacking knowledge which beacons psychological knowing in this context. Thus, the present article brings the main criminological conceptions to aid in the construction and the development of scientific knowledge in this field.

Keywords: History of Imprisonment, Criminological Conceptions


 

 

A história da violência é a história do Homem. Surge com ele e o acompanha através dos tempos. Lado a lado, caminham as maneiras de lidar com ela. Nos primórdios, a ação era individual, ou seja, o revide era de indivíduo contra o indivíduo. Mais tarde, passou a ser uma reação não só de um indivíduo, mas, também, de seu grupo contra o suposto ofensor. No entanto, a arbitrariedade e a desproporção do revide, bem como o enfraquecimento dos grupos que se confrontavam, deixavam um saldo de mortos considerável, levando a uma crescente necessidade de intervenção por parte da monarquia, surgindo, então, o Código de Hamurábi. Daí em diante, as maneiras de lidar com atos considerados violentos, em suma, de punir, sofreram grandes variações, considerando as idades tradicionais da História Universal - Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. Todavia, é com a Idade Moderna que nasce uma das maiores criações do Homem: o uso do encarceramento como um meio de punição. A proposta do presente artigo está em ofertar, na linearidade histórica expressa, uma sequencia de ações e de reações da sociedade contra o fenômeno criminal, como entendimento de coisas mal vistas e por vezes sem sentido, cujas marcas jamais saíram dos corpos daquellatim lex talionises que no seu interior permaneceram, mesmo que por pouco tempo. A evolução das ideias nas sociedades é lenta e a necessidade de que não se repitam os mesmo equívocos do passado é uma constante preciosa nos tempos modernos, a qual há de se cultivar.

 

Antiguidade

O Código de Hamurábi foi a primeira compilação de leis escritas que se tem conhecimento na História. Foi proposto pelo rei Hamurábi da Babilônia, por volta do ano de 1750 a.C. Seus princípios eram fundamentados na lei de talião (do latim lex talionis: lex= lei e talis= tal, parelho), que é uma "forma de justiça segundo a qual o ofensor deve sofrer o mesmo mal que causou ao ofendido" (Abbagnano, 2000, p. 938).

A lex talionis pode ser considerada um avanço para a época, porque punia apenas aquele que praticava o crime e não toda a sua família, fato comum anteriormente. Também porque começava a estabelecer uma relação causal entre delito e a pena a ser aplicada. Sendo um Código de leis, ela previa penas para diversos delitos, com distinção entre homens livres e escravos. Para os casos de delitos criminais, por exemplo, previa-se a pena de compensação, mas, para o furto calamitoso, as chamas. Também havia a aplicação da pena pela forca, por afogamento ou empalação. Mas, a mutilação era infligida de acordo com a natureza da ofensa e da classe social do acusado (Cipriani, 2005).

Seguindo as trilhas da lex talionis, tem-se a perda de paz. Quem lesa a paz, perde a paz. Essa perda se caracterizava pela expulsão do clã. Uma vez isso acontecendo, a possibilidade de sobreviver era remota como consequência das forças hostis da natureza, da agressão, dos animais, bem como das dificuldades na obtenção de alimentos (Dotti, 1998). Proscrito do clã, a pessoa condenada à perda da paz podia ser morta pelo ofendido, família do ofendido, como por qualquer outra pessoa.

A Grécia Antiga desconheceu a privação de liberdade como sanção penal, mas era possível o encarceramento do devedor até que ele pagasse a dívida ou até a realização do julgamento (Dotti, 1998). Mesmo tendo a prisão o fim de custódia, alguns ensaios já eram produzidos a favor do uso da prisão para o fim de pena. Platão, em As leis, dá exemplo disso. Ele recomendava três tipos de prisões, cada qual com uma função específica. A primeira delas ficaria situada em praça pública e atenderia a maioria dos chamados delinquentes. Sua função seria prevenir outros delitos. A segunda situar-se-ia no lugar de reunião do conselho noturno e receberia o nome de casa de correção ou reformatório. Para lá, seriam enviadas as pessoas as quais inspirassem desequilíbrio ou insensatez. Sua função, corretiva. Por fim, a terceira seria levantada no centro do país, no espaço mais agreste possível. Ali ficariam as "bestas ferozes", não contentes em negar a existência dos deuses. Seu caráter, punitivo (Messuti, 2003).

Para Bitencourt (2001), Platão já assinalava as duas ideias históricas de privação de liberdade existentes até hoje: prisão-custódia e prisão-pena. Das duas, a Antiguidade só conheceu a prisão com finalidade de custódia. Entre os locais usados para custodiar o acusado até a celebração do seu julgamento estavam os calabouços, aposentos, frequentemente, em ruínas ou insalubres de castelos, torres, conventos abandonados e outros edifícios. Tais espaços eram uma espécie de antessala de suplícios e tinha o único fim de deter a pessoa, supostamente, culpada. A expiação daquele que violou as normas de convivência era um sentimento comum na antiguidade.

Outra forma de expiação utilizada pelos gregos era a marcação corporal chamada de estigma. Esse tipo de penalidade ajudava a comunidade a reconhecer, pela marca, um escravo, um criminoso ou um traidor. Revelava alguma coisa de extraordinário ou de mau sobre o status moral do sujeito marcado que estava, ritualmente, poluído e, por conta disso, deveria ser evitado, especialmente, em lugares públicos (Goffman, 1963).

A propósito, marcar o autor do delito, matar, mutilar, torturar, condenar a trabalhos forçados, entre outros, nada mais era do que uma atitude de retribuição do dano produzido à comunidade. A ideia de retribuição é central para a dinâmica funcional da sociedade, porque está atrelada à estrutura de troca, sem a qual a vida social não poderia existir. Nesse sentido, a cada ato um contra-ato. Uma ação positiva resultaria em outra ação positiva como contra-ato. Por analogia, para os atos negativos uma resposta também negativa.

Mas, "como pode o fazer sofrer ser uma reparação?" (Nietzsche, 1991, p. 49). É que o "fazer sofrer da pena não visa a reparar, mas castigar" (Messuti, 2003, p. 21). E quanto mais atroz o castigo, o culpado teria menos possibilidade de ser nocivo e de influenciar outros cidadãos (Carvalho Filho, 2002).

O castigo da exclusão, por exemplo, caracterizado pelo estigma, delimitava o espaço entre o "homem de bem" e aquele que cometia um ato contra o Soberano e/ou comunidade. Embora estes não tivessem nada a ver com o autor do ato, a tolerância dessa presença poderia ser interpretada como uma aceitação. E aceitação não estava muito longe de cumplicidade (Messuti, 2003).

Os romanos, assim como os gregos, tinham no encarceramento apenas o fim de custódia. A pessoa, supostamente, culpada deveria ficar retida em cárcere até o ato do julgamento. Para eles, era inadmissível e ilegítima uma condenação judicial à prisão, quando medida pelo tempo. No entanto, as preocupações dos romanos não estavam ligadas às questões penais, mas, sim, às cíveis. Não é por acaso que foram considerados "gigantes no Direito Civil e pigmeus no Direito Penal" (Carrara, s/d, citado por Bitencourt, 2001, p. 15).

O Direito germânico, por sua vez, tinha, na perda de paz ou na vingança, suas formas de lidar com a criminalidade. Com o tempo, foi assimilando e aplicando, arbitrariamente, a compositio (composições), passando, mais tarde, a incorporá-la na forma de lei. As composições eram possibilidades de compensar a atividade criminosa por meio de oferta de bens (Dotti, 1998).

Idade Média

Na Idade Média, a Igreja era uma das principias instituições de controle das condutas humanas. Tinha influência sobre todos os setores da sociedade, tornando-se muito poderosa. Embora houvesse a predominância do Direito Germânico, o código de Direito Canônico passa a ganhar espaço. Nesse período, as penas mais aplicadas, ainda, eram as composições (Pierangeli, 2004) e as prisões continuavam tendo apenas a finalidade de custódia. Mas, para Melossi e Pavarini (2006), a experiência da prisão como pena já se fazia presente. Isso porque já havia sido instituído, pelo direito penal canônico, a prisão como pena aos clérigos considerados rebeldes. Eclesiásticos que cometiam infrações religiosas eram recolhidos numa ala do próprio mosteiro para que, por meio de penitência e de muita oração, se arrependessem do mal praticado.

A partir do modelo canônico, a prisão como segregação celular passa a ser aplicada ao pecador comum do povo, principalmente, para que ele pudesse se redimir da culpa. Sua finalidade era expiatória e seu caráter sagrado (Carvalho Filho, 2002). E se a justiça divina era o modelo com o qual se podia mediar as sanções, se o sofrimento era considerado como um meio eficaz de expiação e de catarse espiritual como ensinava a religião, não havia mais limite à execução da pena. Por meio dessa crença, eram impostos os sofrimentos mais cruéis com vistas a igualar os horrores da pena eterna (Melossi & Pavarini, 2006).

Mas até o advento da prisão eclesiástica, a Idade Média e Antiga só conheceram o encarceramento como um meio e não como um fim de punição, de tal maneira que a preocupação com o recinto inexistia, os ambientes continuavam, ainda, infectos, matando seus tutelados antes mesmo da hora do julgamento. Dentre tais lugares, estavam a Torre de Londres, a Bastilha de Paris, Los Plomos, lugares lúgubres como o Palácio Ducal de Veneza, que ficou conhecido como a Ponte dos Suspiros (Bitencourt, 2001). Mas, o cenário de encarceramento está prestes a mudar e a dar lugar a uma das mais complexas e poderosas obras criada pelo homem: a prisão com finalidade de pena.

Idade Moderna

Com a transição da Idade Média para a Idade Moderna, o panorama socioeconômico do continente Europeu, especificamente a França dos séculos XVI e XVII, não parecia nada promissor. As guerras e as expedições militares levaram grande parte da riqueza européia, além disso, outras questões como a expansão dos núcleos urbanos e a crise dos sistemas feudais contribuíram para o aumento da pobreza e da miséria do povo.

Na França, em 1525, a passagem do sistema feudal para o pré-capitalismo transformou muito dos ex-camponeses em mendigos, vagabundos, ladrões que, não bastassem as próprias condições de miserabilidade que tinham de dar conta, eram, comumente, ameaçados com o patíbulo. No ano de 1532, muitas dessas pessoas foram obrigadas a trabalhar nos encanamentos para esgotos, acorrentadas duas a duas. Foram expulsas da cidade, em 1554. E, dois anos mais tarde, representavam quase a quarta parte da população. Em 1561, foram condenadas às galés; em 1606, as que estavam em Paris passaram a ser açoitadas em praça pública, marcadas nas costas, cabeças raspadas e expulsas pela segunda vez. Como não podiam estar em lugar algum, vagavam de uma cidade a outra. Espalharam-se por toda Europa, e, pelo quantitativo demasiado, não havia como condená-las à pena de morte. Na Inglaterra, para fazer frente a esses miseráveis, o clero inglês solicitou autorização ao Rei para utilizar o castelo de Bridwell, a fim de recolher todos aqueles que ele conseguisse (Foucault, 2000b).

Concomitante a esses acontecimentos, desenvolvia-se a experiência do mercado de trabalho. Embora a importância da liberdade seja algo inquestionável, naquele momento histórico, a ideia de liberdade trouxe um profundo impacto na vida das pessoas que serviam a realeza e que não tinham livre-arbítrio para tomar decisões, para dar conta das suas próprias vidas. Com o declínio da monarquia, esses homens, expulsos da terra pela dissolução dos laços feudais e pela expropriação violenta, são tirados, abruptamente, de seu modo de viver. Livres, porém sem meios - como instrumentos, conhecimento técnico e capital para gerir a própria vida, necessitam adaptar-se aos novos mecanismos de produção da nascente manufatura.

Enquanto alguns engrossavam o quantitativo de miseráveis, outros eram absorvidos pelo mercado de trabalho, onde se depararam com outra classe socioeconômica: a burguesa. Esta era composta por pessoas descendentes dos servos que, em momento anterior, haviam comprado a própria liberdade de seus reis. Dedicavam-se ao comércio em função da concepção diferenciada e habilidade que tinham para o trabalho, além de conhecimento decorrente das navegações, capital e meio de produção para explorar o atual mercado (Figueiredo & Santi, 1999).

Mudanças econômicas abriam outras possibilidades. Com a dissolução dos laços feudais e o surgimento da classe burguesa, o não mais camponês poderia vislumbrar outras possibilidades de ser e de ter (ou seria de ter para ser?). Como relatam Figueiredo e Santi (1999, p. 43), seu destino, pelo menos teoricamente, passava a depender dele, de sua capacidade, de sua determinação, de sua força de vontade, de sua inteligência e, também, de sua esperteza, de sua arte de vencer, de passar por cima dos concorrentes, de chegar primeiro e de sua sorte. Mas, de que modo o mercado de trabalho se articula com o nascimento da pena de privação de liberdade? Da seguinte maneira, com o mercado de trabalho surge uma categoria de valor simbólico e econômico: o tempo. No mundo moderno, a ideia de tempo passa a ser fundamental para a nova estrutura econômica que vem se formando. Ao adquirir valor econômico, o tempo passa a ser valorizado na vida social moderna, daí poder ser aplicado, também, aos sistemas de organização carcerária que vêm surgindo (Messuti, 2003).

Abrindo um parêntese, ao revisitar o sistema feudal, ainda não havia se historicizado a ideia de trabalho assalariado medido no tempo, a penaretribuição, como troca medida pelo valor, pois, não estava em condições de encontrar na privação do tempo um equivalente para o delito. De modo que o equivalente do dano produzido pelo delito, até esse momento, estava ligado ao que era considerado como um valor para a época, que eram a integridade física, o dinheiro e a perda de status (Melossi & Pavarini, 2006).

Retomando, nesse movimento socio-econômico a questão primordial era a transformação do extrabalhador agrícola, expulso do campo, em operário, ou seja, a sua habilitação aos novos mecanismos de produção. Mas o discurso era em prol de uma reforma para o chamado delinquente, mendigo, bandido e vagabundo, a qual se daria por meio do trabalho e da disciplina. Não foi por acaso que as primeiras casas de segregação, conhecidas como houses of correction ou workhouses, foram criadas na Inglaterra.

Para Melossi e Pavarini (2006), embora fosse preciso fazer frente ao quantitativo de miseráveis sem precedentes, num primeiro momento, a função da houses of correction era de habilitar a massa camponesa a outro tipo de linha de produção do que propriamente servir como um instrumento de controle social. A convicção de que o trabalho e a disciplina eram meios indiscutíveis para a reforma do recluso recebia amparo do penitenciarismo clássico.

Além disso, as casas de correções teriam um papel importante na prevenção, pois inibia o comportamento de vadiagem e ociosidade. Nessas casas, a principal atividade era a têxtil. Seu sucesso foi tanto que, em pouco tempo, surgiram várias delas e em diferentes lugares da Inglaterra. Tinham fundamento legal, onde se definia a sanção para os vagabundos e o alívio para os pobres. Determinouse, inclusive, que houvesse, pelo menos, uma casa de correção por jurisdição. O desenvolvimento e o auge das casas de correções terminaram por estabelecer uma prova evidente sobre as íntimas relações que existiam, ao menos em suas origens, entre a prisão e a utilização da mão de obra do recluso, bem como a conexão com as suas condições de oferta e procura (Bitencourt, 2001).

A Holanda também, no ano de 1596, teve sua própria casa de correção, que ficou conhecida como Rasp-huis. Tinha esse nome porque a atividade predominante desse lugar consistia em raspar, com uma serra de várias lâminas, um tipo de madeira, importada da América do Sul (nosso conhecido pau-brasil) até transformá-la em pó, a qual os tintureiros tiravam o pigmento para tingir os fios (Melossi & Pavarini, 2006). A Rasp-huis tinha a base celular, no entanto, em uma cela coabitavam várias pessoas. O trabalho era realizado na própria cela ou no pátio central. A população predominante de trabalhadores era de ex-camponeses, mas era possível encontrar alguns ex-artesãos. Eram locais tidos como capazes de recuperar o mendigo, desordeiro e autores de pequenos delitos por meio do trabalho. Sob o comando da ética calvinista, o trabalho não tinha a finalidade de lucro e nem a satisfação do sentenciado, muito pelo contrário, deveria trazer o seu tormento e a sua fadiga (Carvalho Filho, 2002) e, nesse sentido, a casa de correção holandesa não foi um lugar destinado à produção, mas um lugar onde se aprendia a disciplina da produção (Melossi & Pavarini, 2006).

Em meio a tudo isso, a sociedade européia já não estava mais aceitando os horrores desenfreados contra o corpo do sentenciado. Era necessário punir sim, mas de outra maneira. Afinal, da perspectiva do povo, o suplício tinha se tornado revoltante; da perspectiva da vítima, vergonhoso (Foucault, 2007). A prisão-pena surge para humanizar o direito. Substituir a barbárie dos castigos corporais em troca do tempo de vida do acusado (Messuti, 2003). Mas, para Bitencourt (2001), as coisas não são bem assim. Esse tipo de análise incorreria no erro de ser profundamente abstrata e partiria de uma perspectiva ahistórica. Existem outras causas que explicariam o surgimento da prisão, dentre as quais: a) a valorização da liberdade a partir do século XVI, e a imposição do racionalismo; b) o surgimento da má consciência que busca converter a publicidade dos castigos pela vergonha; c) as mudanças socioeconômicas na passagem da Idade Média para Moderna que deixavam uma quantidade significativa de pessoas expostas à mendicidade e/ou às práticas de atos delituosos, e como a pena de morte estava em desprestígio, era certo, pois, que outros dispositivos penais fossem buscados; d) e, por fim, a razão econômica, que via no braço do sentenciado uma fonte lucrativa para a exploração econômica.

Embora a motivação econômica apresenta-se mais clara quanto sua influência decisiva na mudança da prisão-custódia para a prisão-pena (Bitencourt, 2001), o fato é que solidifica-se a ideia de que a prisão seria a garantiria de transformação dos indivíduos, por seu caráter regenerativo. Nesse sentido, a privação da liberdade parecia de longe a maneira mais civilizada de todas as penas. Generaliza-se a ideia do uso da prisão para finalidade de cumprimento da pena, onde os suplícios dos corpos são preteridos pelo encarceramento e uma nova forma de punir se instaura. Mas esse novo dispositivo de controle passa a ser instrumento de um Direito gerador de privilégios, que permitia, conforme relata Gould (2003), aos seus juízes o mais desmedido arbítrio, dentre os quais, julgar os homens de acordo com sua condição socioeconômica. Neste cenário, Beccaria, Howard e Bentham, considerados os reformadores das primeiras ideias penais, aparecem para fazer frente à arbitrariedade penal existente, afirmando que a função da pena devia se ajustar estritamente à natureza do crime, e que todos os indivíduos deviam ser plenamente responsáveis pelos seus atos.

Essa primeira concepção criminológica tinha raiz especulativa ou moral, nela o delito estava associado à ideia de livre arbítrio, de uma escolha do indivíduo gerando, portanto, uma responsabilidade de seus atos e ações baseado num discurso de culpa e punição (Ferla, 2005). Dessa forma era importante submeter as pessoas encarceradas a pautas comportamentais ordenadas para que se operasse uma mudança moral e psíquica. Essa mudança corretiva exigia estrita vigilância, cujo modelo mais autêntico foi o panóptico (Zaffaroni, 1991). No panóptico de Bentham a eficácia do poder disciplinar se dava apenas pela suposição do recluso de que estava sendo vigiado. "A potencialidade da vigilância, sua possibilidade apenas, é por si suficiente para que o poder disciplinar se exerça justamente porque com ela uma sujeição real nasce de uma relação fictícia" (Pierangeli, 2004, p. 193).

Os reformadores do direito penal

A consciência não conformista do arbítrio judicial, da desigualdade de classes perante as maneiras de punir, a desumanidade das penas, por meios cruéis, como a fogueira, a roda, o arrastamento, o esquartejamento, o sepultamento em vida (Thomson, 2002), levou a necessidade de modificações e reformas no direito penal da época. Entre os mais entusiastas destas ideias estavam o italiano Cesare Bonessana e os ingleses John Howard e Jeremy Bentham.

Cesare Bonessana, Marques de Beccaria, nasceu em Milão em 15.03.1738 e faleceu em 28.11.1794. A importância de sua obra está na construção de um sistema criminal que substituiria o desumano, impreciso, confuso e abusivo sistema criminal anterior. A justificação para a pena se fundamentaria na ideia de Contrato Social, que pressupõe que haveria um contrato entre indivíduo e soberano (Estado).

Os indivíduos repassariam seus poderes ao soberano em troca de segurança, e por meio disso se justificaria a pena, sob argumentação de que é imposta a um ser livre que violou o pacto. Embora a prisão-pena tenha um sentido punitivo e sancionador, já começa a se insinuar uma finalidade reformadora da pena privativa de liberdade. Para Beccaria já não eram mais possíveis a predominância da sujeira e da fome no ambiente carcerário. Era preciso uma atitude humanitária e compassiva na administração de justiça (Bitencourt, 2001).

A data do seu nascimento é incerta, mas a morte de John Howard aconteceu em Kherson, Criméia, em 20.01.1790 de "febre carcerária", uma espécie de tifo. Howard encabeçou o movimento humanitário da reforma nas prisões. Por muito tempo percorreu os cárceres da Europa relatando, em seguida, os horrores que presenciou (Noronha, 1981). Sua ligação com as causas carcerárias teve início quando ele partiu para Portugal, em 1755, com intuito de ajudar vítimas de um terremoto em Lisboa. No caminho, o barco em que viajava foi aprisionado por um corsário e os passageiros lançados ao calabouço do Castelo de Brest. Acredita-se que foi daí que decidiu por uma vocação filantrópica. Ao retornar à Inglaterra, foi nomeado "Sheriff" do condado de Bedford e passou a se dedicar a reformar as prisões (Dotti, 1998). É a partir de Howard que nasce o penitenciarismo e é, por isso, por muitos considerado o Pai da Ciência Penitenciária (Bitencourt, 2001). Na obra de John Howard, o trabalho mesmo o penoso, aparece como um meio à regeneração moral e como reabilitador. A influência da religiosidade calvinista levou a crer que a religião seria um elemento adequado para instruir e moralizar os condenados. O isolamento seria importante no favorecimento da reflexão e do arrependimento, além disso, tinha um propósito prático de combater a promiscuidade. Os condenados homens deveriam ficar separados das condenadas mulheres; os mais velhos separados dos mais jovens. Foi o primeiro a sugerir critérios para a classificação dos condenados.

Filósofo, economista, jurista e reformista social, o inglês Jeremy Bentham nasceu no ano de 1748 em Houndsditch (Londres) e morreu em 1832. Bentham foi o fundador da doutrina utilitarista e suas ideias exerceram grande influência sobre o desenvolvimento do liberalismo político e econômico da época. O princípio da utilidade pressupõe que existe uma tendência natural do homem guiar suas ações na busca pelo prazer com intuito de evitar a dor. Para criar uma ética que não contrariasse essa tendência, foi necessário articular, racionalmente, essa idéia à noção de bem e de mal. Torna-se importante compreender que a obediência a essas noções conduz o homem à obtenção do prazer. Para Bentham era fundamental a estruturação de leis com a finalidade de adequar o homem ao princípio da utilidade (Cipriani, 2005; Bitencourt, 2001). Arquitetado por Bentham, o panóptico foi o primeiro modelo prisional projetado para o encarceramento com a finalidade de pena. Tratava-se de um prédio circular em torno de uma torre, de onde seria possível ter controle visual do que acontecia na cela de cada preso (Carvalho Filho, 2002). Para Foucault (2007), o dispositivo panóptico organizava unidades espaciais que permitiam ver sem parar e reconhecer imediatamente.

Os aspectos essenciais do utilitarismo podiam assim ser descritos, de maneira sucinta: tentativa de transformar a ética em ciência positiva da conduta humana; substituir a noção de "fim", decorrente da metafísica, em detrimento dos "moveis" que levam o homem a agir. Nesse sentido, o fim de qualquer atividade humana é a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número de pessoas (Abbagnano, 2000). O utilitarismo de Bentham substituiu "a crença e a defesa intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional da felicidade" (Figueiredo, 1996, p. 133). Criou um sistema de controle social, um método de controle do comportamento humano de acordo com o princípio ético que é proporcionado pelo utilitarismo. Acreditava que a principal finalidade da pena era o de prevenção dos delitos. Um delito cometido faz parte do passado, mas o futuro é infinito. De modo que, para ele, a questão não é tanto o ato delituoso passado, mas o futuro que pode afetar a todos. A prevenção era importante porque, mesmo que houvesse algum caso em que não pudesse se minorar o mal provocado, sempre haveria como tirar a vontade de produzir um novo delito. Pois, por mais proveito que se pudesse tirar de um delito, sempre haveria um mal maior como pena (Bitencourt, 2001).

Sua obra, também, sugeria a integração dos grupos de detentos mediante uma classificação prévia que estivesse de acordo com o nível de perversidade de cada um. Acreditava que o trabalho tinha um poder reabilitador, de modo que um trabalho penoso e inútil não facilitaria em nada a vida do recluso quando posto em liberdade. Por acreditar que a função da pena seria o de reabilitar, preocupava-se com um plano de assistência póspenitenciária. Seria imprudente, para ele, mandar um ex-recluso mundo afora depois de dias, meses ou anos, sem custódia e sem nenhum tipo de auxílio.

Primeiras prisões com finalidade de pena

Os primeiros modelos de prisão-pena surgiram nos Estados Unidos da América no século XVIII. Em Walnut Street, Filadélfia, no ano de 1776, foi construído o primeiro modelo de prisão-pena. Ficou conhecido como sistema filadélfico ou solitary confinement. Recebeu a influência dos Quackers e dos cidadãos mais respeitáveis daquela época, como Benjamim Franklin. A característica principal desse sistema era o isolamento na cela 24 horas por dia, a meditação e a oração. Dormiam, alimentavam-se e trabalhavam nas próprias celas sob rigorosa lei do silêncio. O objetivo principal era estimular o remorso, o arrependimento, a meditação e a oração. A principal razão de seu fracasso foi o espantoso crescimento de sua população carcerária. E a principal crítica a ele foi referente à tortura refinada que o isolamento produzia (Carvalho Filho, 2002). No entanto, Melossi e Pavarini (2006) relatam que o fracasso desse sistema não se deu, exclusivamente, pelo clamor humanitário de alguns segmentos da sociedade por humanidade no trato com a população carcerária. Mas, principalmente, pelos reflexos do tipo de trabalho que ali era produzido, que era considerado como antieconômico, que deformava os reclusos e reduzia-lhes a capacidade de trabalho.

O segundo modelo prisão-pena foi construído em Auburn no estado de Nova York, em 1821. Pretendia superar as limitações e os defeitos do Regime Celular. Esse sistema ficou conhecido como auburniano ou silent system. O tratamento ao preso recebeu grande influência do diretor da prisão, capitão Elan Lynds (Bitencourt, 2001). Este era um militar implacável que não acreditava em reforma do recluso. Isso o levou a dirigir a prisão de Auburn num modelo pautado na coerção do preso, voltado apenas para consecução de obediência e disciplina. Seu rigor era tanto que levou os funcionários da prisão a tratar os reclusos com menosprezo e austeridade. A característica principal desse modelo prisional, além do trabalho comum durante o dia, era a regra de silêncio absoluto. Os presos não podiam conversar entre si, apenas com os guardas. Assim como no modelo solitary confinement, seu fracasso esteve muito ligado ao mercado de trabalho. Não por esta categoria estar ligada a uma perspectiva ideológica (geração de lucro para o proprietário) e nem por uma perspectiva pedagógica (um modelo educativo que permitiria a absorção do recluso à força de trabalho depois do cumprimento da pena), mas porque a pressão dos sindicatos contra mão-deobra carcerária foi intensa. O trabalho na prisão representava menos custos, ou significava competição ao trabalho livre. Além disso, o ensino do ofício e da técnica proporcionaria a incorporação do apenado, pós-pena, às fábricas. O que poderia gerar uma desvalorização do oficio aos olhos dos demais trabalhadores (Melossi & Pavarini, 2006).

O surgimento do regime progressivo de cumprimento da pena

É com a adoção do sistema progressivo ou mark system (sistema de vales) que se consolida a pena privativa de liberdade. O regime progressivo de cumprimento da pena teve origem na Inglaterra e foi desenvolvido pelo Capitão Alexander Maconochie por volta do ano de 1840, na ilha de Norfolk, Austrália (Carvalho Filho, 2002). Em poucos dias, a administração empregada por esse homem iria mudar toda a concepção de penitenciária que os presos tinham conhecido até então. Para a ilha de Norfolk eram enviados presos de maior periculosidade que, de um sistema pouco preocupado com as condições humanas, conheceram outro totalmente diferente. Da severidade à benignidade, dos castigos aos prêmios. Maconochie idealizou e implantou o sistema da seguinte maneira: 1ª) isolamento celular diurno e noturno, semelhante ao solitary confinement; 2º) trabalho em comum sob a regra do silêncio, como o sistema silent system; 3º e, por fim, a liberdade condicional, que consistia numa liberdade limitada, com restrições (Bitencourt, 2001). Se o período com restrições passasse e não houvesse nada que determinasse sua anulação, o condenado obtinha sua liberdade definitiva. Nesse sistema, a duração da pena era medida por uma soma de trabalho e de boa conduta imposta ao condenado. Para tanto, era utilizado um sistema de "vales" ou "marcas" para representar os aspectos considerados positivos e uma multa em casos de má conduta. O remanescente da diferença entre o crédito e débito resultaria na pena a ser cumprida. Contabilizava-se a gravidade do delito, o aproveitamento no trabalho e a boa conduta carcerária. Conforme descreve Bitencourt (2001), o sucesso foi tanto que Maconochie foi designado para dirigir outra prisão, mas que não teve o mesmo sucesso por causa dos entraves legais e burocráticos. Tempos mais tarde, o sistema progressivo foi aplicado na Irlanda por Walter Crofton. Este é tido por muitos como o verdadeiro criador do sistema progressivo, embora ele tenha aperfeiçoado o sistema de Maconochie. Ao ser encarregado de inspecionar as prisões irlandesas, Crofton, que já tinha conhecimento sobre o funcionamento do sistema inglês, pensou numa maneira que fosse capaz de preparar o recluso para o regresso à sociedade. Foi então que introduziu, entre a 2ª e 3ª fase de Maconochie, o "período intermediário". Esse período consistia na possibilidade do preso trabalhar fora da prisão, em colônias agrícolas. Nesses locais, extramuros prisionais, o apenado tinha "vantagens" como: poder vestir outras roupas que não apenas o uniforme de preso; não receber castigo corporal; receber parte da remuneração do próprio trabalho; comunicar-se com outras pessoas que não fossem apenas as presas. Foi considerado um sistema com grande repercussão e adotado por inúmeros países. Acredita-se que seu êxito tenha sido em parte pela inteligência e caráter do administrador Crofton.

A história do cárcere no Brasil

No Brasil, o cárcere teve seus contornos delineados no âmago da sociedade escravista brasileira do século XIX. Anteriormente à aplicação de prisão-pena, vigorava um sistema corporal, marcado por punições públicas, por meio de açoites, aplicação da pena de morte pela forca, desterro, as galés e a imposição dos trabalhos forçados dos senhores sobres seus escravos (Roig, 2005). Com o fim da escravidão e o início da República, começa a se formar uma cultura voltada para as questões relacionadas ao modo de punir e com os locais destinados a custodiar os presos. O decreto de 1821, firmado pelo príncipe D. Pedro, já simbolizava uma nova leitura sobre como deveriam ser os lugares para encarcerar (Carvalho Filho, 2002). Como não havia uma arquitetura específica para esse fim, foi necessário adaptar quartéis, ilhas, fortalezas, prisões eclesiásticas e até conventos como instalações prisionais. Mas essas adaptações forçadas e erigidas sob o discurso de humanização da pena não foram suficientes para a garantia de um local adequado para o cumprimento da pena.

As primeiras prisões, no Brasil, fornecem relatos das condições de miséria que viviam os presos naquele momento, da inexistência de uma política de tratamento penal, do descaso com o local de cumprimento da pena e, já nessa época, dos problemas com a superlotação. A prisão de Aljube, ou Cadeia da Relação, como ficou conhecida a partir de 1823, foi considerado o principal estabelecimento penal do século XIX. Situava-se na cidade do Rio de Janeiro e foi criada pelo Bispo Antonio de Guadalupe, por volta do ano de 1735, com o propósito de punir as faltas ou infrações religiosas dos clérigos (Pedroso, 2004). Com o tempo, passou a ser utilizada para fins de prisão comum. Nela, eram mantidos escravos, ladrões, os chamados delinquentes e vagabundos, os condenados a trabalhos forçados, indiciados e mulheres (Roig, 2005). Tratava-se de um espaço projetado para abrigar 20 pessoas, porém chegou a manter 390 presos. Outra cadeia que merece destaque é a Cadeia Velha, situada na capital imperial, que foi criada em 1812. Em 1824, ela ficou conhecida como lugar de infecção e de morte e só em 1841 foi desativada. Em 1824, os castigos bárbaros foram abolidos pelo Império. Em 1830, o Código Criminal do Império determinou os limites das punições e que as cadeias fossem limpas e arejadas, além da separação dos réus de acordo com a natureza do crime. No ano de 1890, surgiu o Código Penal seguido do Código Penal da República de 1940, que introduziu o regime progressivo das penas. E foi no ano de 1984 que surgiu a LEP - Lei de Execução Penal (Guimarães, 2008).

Em conjunto com o desenvolvimento da prisão com finalidade de pena, questões de ordem social e científica, como o fim da escravidão, a estimulação do fluxo imigratório e o debate científico em torno do determinismo biológico e dos sinais anatômicos, influenciariam sobremaneira em aspectos sobre quem estaria mais vulnerável ao encarceramento.

O Brasil entrou no século XX com uma sociedade altamente estratificada, tanto social quanto racialmente. Uma sociedade que, como relata Stepan (2005), embora se considerasse como república liberal, era informalmente governada por uma pequena elite, em sua maioria branca, e na qual menos de 2% da população votavam nas eleições nacionais; uma sociedade em que a maioria das pessoas era negra ou mulata e analfabeta. Mais ou menos 700 mil ex-escravos, em 1888, passaram a ser alvo dos médicos sanitaristas, os quais presumiam que a pobreza dos negros e mulatos era consequência do fato de eles serem anti-higiênicos, sujos, ignorantes e hereditariamente inadequados. Preconceitos de classe e raça que começam a fundir-se, por conseguinte, na linguagem da hereditariedade. A elite educada passa a temer a violência e o perigo representados nos negros e mulatos, a quem retratavam como preguiçosos, indisciplinados, doentes, ébrios e em permanente vagabundagem

Além das questões ligadas ao fim da escravidão, o Brasil sofria os efeitos da abertura do país à imigração em grande escala. A cidade de São Paulo, por exemplo, de uma população de 129.409, em 1893, passou para 240 mil, em 1900. Em 1907, apenas os italianos superavam em número os brasileiros na proporção de dois para um (Stepan, 2005), e em decorrência desse aumento populacional, outros problemas de ordem social começaram a aparecer. Os europeus, que outrora eram percebidos como pessoas culturalmente privilegiadas, não estavam mais sendo vistos com "bons olhos" pela sociedade brasileira, mas como criminosos, vagabundos, desordeiros e subversivos (Ferla, 2005).

A não normalidade desses comportamentos desviantes podia ser creditada, naquele momento, a fatores biológicos, aspectos físicos como, também, morais e comportamentais (Silva, 2005), ideias que foram amplamente difundidas pela Escola Positivista do Direito Penal, a qual tinha na figura do médico italiano Cesare Lombroso seu maior expoente. A teoria de Lombroso não foi uma vaga afirmação do caráter hereditário do crime, mas também uma teoria evolucionista específica, baseada em dados antropométricos. Lombroso sustentava a tese de criminoso nato, nessa perspectiva, a causa do crime poderia ser identificada no próprio criminoso. Para essa afirmação, partiu do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime, valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação). Para comprovar sua hipótese, utilizou-se da confrontação de grupos não criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões do sul da Itália (Andrade, 2000). Mais do que uma agitação do debate acadêmico, a então antropologia criminal foi durante anos "o" tema de discussão nos círculos jurídicos penais. Inspirou numerosas reformas e, até a Primeira Guerra Mundial, foi conteúdo de conferências internacionais quadrianuais com juízes, juristas, funcionários governamentais e cientistas (Gould, 2003).

Os intelectuais brasileiros foram fortemente influenciados pelas concepções liberais européias e pelo pensamento positivista, embora com clara ascensão desta última em relação à primeira. Ferla (2005) relata que a explicação do mundo social, na visão positivista, apoiava-se nas ciências naturais, especificamente, na medicina e biologia. Para os adeptos do pensamento lombrosiano, as concepções decorrentes da escola clássica, ou primeira concepção criminológica, não passavam de teses metafísicas e pré-científicas.

Em consonância com o pensamento positivista estiveram brasileiros como Sebastião Afonso de Leão, de Porto Alegre, em 1897, que escreveu o primeiro relatório, que se tem conhecimento, sobre o trabalho desenvolvido junto aos presos da Oficina de Antropologia Criminal da Casa de Correção; Ulisses Pernambuco, em Recife, na década de 20, que fundou o Instituto de Psicologia e reestruturou o trabalho de Assistência às Psicopatas de Pernambuco; W. Radecki que, em 1923, organizou e dirigiu o Laboratório de Psicopatas do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. E, ainda neste Estado, foi inaugurado, em 1921, o primeiro Manicômio Judiciário do Brasil, o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho. Heitor Carilho, médico psiquiatra, foi o responsável pelo laudo do preso 00001, Febrônio Índio do Brasil, que entrou para história como o primeiro caso de inimputabilidade no país (Ministério da Justiça & Conselho Federal de Psicologia [MJ & CFP], 2007). Embora o seu laudo tenha sido produzido, em sua maioria, considerando o funcionamento psicológico de Febrônio, em determinadas passagens verifica-se registros de dados antropométricos como a avaliação de cinco medidas retiradas de seu crânio: curva anteroposterior, curva bi-auricular, circunferência horizontal, diâmetro antero-posterior e diâmetro transverso máximo. Essas medidas indicavam que Febrônio era um indivíduo do tipo braquicéfalo (Ferla, 2005).

Os pressupostos da concepção criminológica lombrosiana se mantiveram atuantes até a segunda Guerra Mundial, momento em que surge uma terceira concepção criminológica, conhecida como sistêmica. Essa linha de pensamento, como relata Greek (2005), revela-se menos organicista e mais funcionalista e, nela, o crime não poderia ser considerado uma ameaça a sociedade, na verdade, a sociedade precisaria dele, bem como de respostas legais a ele para funcionar corretamente. E se o índice de criminalidade ultrapasse os limites do aceitável para o seu funcionamento, problemas emergentes, como a anomia, deveriam ser investigados. Anomia pode ser definida como um estado onde as normas (expectativas de comportamentos) estão confusas, pouco claras ou não presente. Nesse sentido, o crime, simplesmente, poderia ser um importante indicador de bem-estar de um lugar, e problemas de ordem social teriam a função de movimentar a sociedade em direção a melhores soluções, incentivando assim o progresso, nas ideias de Parsons. Para este, um sistema social poderia ser constituído de partes interdependentes, de peças que contribuiriam para o funcionamento de um sistema e de equilíbrio em movimento, onde o distúrbio induz a contra-reação para a manutenção da homeostase. Perturbações poderiam ser causadas por uma série de fatores, incluindo a criminalidade. Foi Parsons quem introduziu a ideia de tratamento como ressocialização. Ele acreditava que existiria uma socialização que uma vez fracassada daria lugar a condutas desviantes, as quais deveriam ser corrigidas mediante o controle social ressocializador (Zaffaroni, 1991). Essa concepção manteve-se até a década de sessenta, período em que passa a sofrer declínio.

Conhecida como criminologia da reação social, a quarta concepção criminológica acredita que uma conduta não é criminosa em si, muito menos o seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meioambiente. A criminalidade, mais do que isso, se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a definição legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a seleção que etiqueta e estigmatiza o autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas (Andrade, 2000).

Nesta concepção, o encarceramento deve ser pensado considerando os efeitos do cárcere sobre aquele que foi etiquetado e rotulado como criminoso que, em sua maioria, são pessoas pertencentes aos mais baixos estratos sociais. O que sugere que há um processo de seleção de pessoas, dentro da população total, às quais se podem qualificar como criminosos. E não, como pretende o discurso penal oficial, uma incriminação (igualitária) de condutas qualificadas como tais. O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que contra certas ações legalmente definidas como crime. A conduta criminal, nesse sentido, não é condição suficiente para o encarceramento, uma vez que os grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas (Zaffaroni, 1987, e Baratta, 1982, citados por Andrade, 1995). A partir disso, a criminologia da reação social discute a arbitrariedade epistemológica que busca explicar as condutas tipificadas como crime tomando como referência o comportamento de outras pessoas e dos operadores das agências do sistema penal, bem como as conseqüências negativas do estigma para aqueles rotulados como criminosos, deliquentes e desviantes.

 

Conclusão

Ao longo de duzentos anos, quatro concepções criminológicas se formaram, e para cada uma delas, o cárcere assumia uma função. A escola clássica enquanto, primeira concepção criminológica de Beccaria e Bentham, acreditava que o encarceramento se justificaria pela quebra de contrato do indivíduo com o Estado. Para a antropologia criminal de Lombroso, o encarceramento se justificaria como meio de defesa social e era sempre preferido em relação à pena de morte. Um isolamento em lugares bucólicos poderia mitigar a tendência inata à criminalidade e assegurar uma vida útil sob constante supervisão. Mas, em casos de criminalidade incorrigível, o confinamento em colônias penais representaria uma solução mais humana que a pena de morte, sempre e quando o banimento fosse irrevogável, relata Gould (2003). Para a concepção funcionalista, o cárcere seria uma resposta do sistema para o crime e funcionaria no sentido de retomar a estabilidade à sociedade, mantendo assim as coisas em equilíbrio. E, por fim, a atualíssima concepção da reação social onde, como revela Sá (2007), o cárcere será tanto melhor, quanto mais se buscar nele a promoção do encarcerado como cidadão, contribuindo para a superação das barreiras de exclusão e da segregação. Empiricamente, não existe estudo nenhum que comprove a eficácia de qualquer uma das teorias acima mencionadas, considerando as prisões que se tem e com os poucos recursos financeiros e humanos que dispõe. Mas, há estudos, como o de Thompson (2002), Bitencourt (2001), Sá (2007), entre outros, que relatam a inevitável deterioração psicológica daquele que é encarcerado. Efeitos que, para Zaffaroni (1991), não são consequências de características conjunturais de tal ou qual prisão em particular, senão que são os resultados da própria estrutura da prisão e não desaparecerão até que ela seja abolida. E enquanto não for possível se livrar desse equívoco histórico que é a pena de prisão, não se pode, simplesmente, ficar de braços cruzados. Homens e mulheres são condenados à prisão todos os dias e não é possível acreditar que procurar minorar os seus sofrimentos corresponda a legitimar a ideologia do aprimoramento do sistema prisional para continuar com seu uso, com a justificativa de que os infratores vão para as prisões para serem "ressocializados" (Lemgruber, 1999). E é nesse ponto que se provoca a Psicologia a rever seu compromisso social num campo tão pouco explorado por ela. Fato que pode ser comprovado nesse próprio artigo, em que a maior parte das referências teóricas adotadas, não meramente por opção dos autores, foi, em especial, do campo da Sociologia e do Direito.

 

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Recebido em: 07/11/09
Aceito em: 22/12/09

 

 

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