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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.2 Juiz de fora Dec. 2009

 

ARTIGOS

 

Nise da Silveira, Antonin Artaud e Rubens Corrêa: fronteiras da arte e da saúde mental

 

Nise da Silveira, Antonin Artaud and Rubens Corrêa: borders of art and mental health

 

 

Walter Melo Junior1

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda a importância das obras de Antonin Artaud e de Rubens Correa para que Nise da Silveira pudesse articular duas proposições no campo da saúde mental: uma sobre a organização dos serviços de saúde mental e outra acerca da possibilidade de uma transformação cultural. A primeira proposição diz respeito ao corte epistemológico em relação ao modelo médico, possibilitado pela introdução do conceito de inumeráveis estados do ser, de Antonin Artaud. A segunda proposição se dá a partir das apresentações teatrais desenvolvidas pelo ator Rubens Correa, encenando temas relativos à loucura.

Palavras-chave: Nise da Silveira, Antonin Artaud, Rubens Correa, Saúde Mental, História da Saúde


ABSTRACT

The following article deals with the importance of Antonin Artaud's and Rubens Correa's works so that Nise da Silveira could undertake a double modification in the field of mental health: a change in the organization of mental health services and a cultural transformation. The first change takes place through an epistemological cut in relation to a medical pattern, made possible by the introduction of the concept of countless states of (human) being, by Antonin Artaud. The second change takes place from the theatrical presentations developed by Rubens Correa, showing themes related to madness.

Keywords: Nise da Silveira, Antonin Artaud, Rubens Correa, Mental Health, History of the Health


 

 

A relação da arte com o campo da saúde mental possibilitou que, no Brasil, diversas concepções amplamente divulgadas nos tratados de psiquiatria fossem repensadas, assim como as práticas asilares sofressem profundos abalos. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido por Nise da Silveira apresenta-se como o mais significativo e fecundo exemplo, pois, além de contribuir para a reformulação dos serviços de saúde mental, interferiu também no campo das artes.

Em relação à saúde mental, Nise da Silveira questionou dogmas profundamente arraigados no discurso psiquiátrico. Ao contrário do que diziam os clássicos tratados, para ela o chamado doente mental não estava em um processo degenerativo, no qual perderia gradativamente as funções psíquicas superiores. Os estudos de Nise da Silveira apontam para a permanência do pragmatismo, da inteligência e, principalmente, para a manutenção da capacidade de a pessoa em tratamento em serviços de saúde mental se relacionar de maneira afetiva.

A psiquiatria afetiva de Nise da Silveira pressupõe que, para se criar condições terapêuticas favoráveis, o ambiente deve ser acolhedor e sem qualquer tipo de coação; devem ser oferecidas atividades expressivas, como pintura, modelagem, música e teatro, para se acompanhar o incessante processo de busca pela consciência; e o terapeuta deve se posicionar de modo estável, possibilitando, assim, que o afeto catalise as forças autocurativas da psique. Então, através da liberdade, da atividade e da afetividade, Nise da Silveira pôde criar um novo modelo de tratamento que prescindisse tanto do isolamento gerado nas internações quanto dos métodos agressivos, como eletrochoque, coma insulínico e lobotomia.

No que diz respeito ao campo das artes, o trabalho de Nise da Silveira também se mostrou transformador. Ela proporcionou o encontro de artistas plásticos e críticos de arte como Almir Mavignier, Ivan Serpa, Abraham Palatinik, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa com os freqüentadores dos ateliês da Seção de Terapêutica Ocupacional que dirigiu no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro . Esses encontros contribuíram de maneira direta nas formulações do neoconcretismo no Brasil (Melo, 2005). No cinema, Nise da Silveira produziu, em parceria com o cineasta Leon Hirszman, a trilogia Imagens do Inconsciente, sobre a produção pictórica de Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis (Melo, 2004). Nas artes cênicas, assunto abordado no presente artigo, devemos enfatizar a influência que recebeu de Antonin Artaud e a parceria que estabeleceu com o ator Rubens Correa.

 

O Encontro de Nise da Silveira com Antonin Artaud

A obra de Nise da Silveira encontra-se intimamente vinculada com a produção de Antonin Artaud, poeta e teatrólogo francês que esteve por vários anos internado em hospitais psiquiátricos. Na Carta aos Médicos-Chefes dos Asilos de Loucos, Antonin Artaud faz duras críticas ao modo como os profissionais do campo da psiquiatria tratam os internos dos hospitais psiquiátricos. São contundentes as palavras que profere em relação à pretensa racionalidade dos métodos empregados, sobre a supremacia da força utilizada pela equipe médica e, principalmente, seu discurso acerca dos efeitos devastadores que o eletrochoque lhe causou. De acordo com Nise da Silveira, a carta de Artaud soa como uma chicotada de fios de aço frente a qual nenhum psiquiatra "merecerá escapar com a face ilesa" (Silveira, 1989, p. 12).

Outra contribuição de Artaud para o trabalho desenvolvido por Nise da Silveira, diz respeito à utilização do teatro como um legítimo método terapêutico. Antonin Artaud pretendia fazer um teatro das imagens indestrutíveis. O teatro, de acordo com Artaud, se caracteriza por ser uma cerimônia mágica e, assim, "todos os seus esforços se concentraram na tarefa de atualizar o caráter ritual da encenação em teatro" (Melo, 2009, p. 190). Como exemplo, podemos observar a proposta dramática desenvolvida por Nise da Silveira com Fernando Diniz, um dos freqüentadores das atividades do Museu de Imagens do Inconsciente. Nise da Silveira narrou e Fernando Diniz interpretou de maneira teatral o mito polinésio de Rata, típico do tema do dragão-baleia, monstro marinho que devora o herói. Nas oito sessões de teatro terapêutico, realizadas entre 10 de fevereiro e 7 de abril de 1967, podemos acompanhar como Fernando lida com este núcleo de imagens indestrutíveis (Silveira, 1981).

Além do questionamento da instituição asilar e da proposta teatral acima relatada, Nise da Silveira ficou fascinada com a maneira de Antonin Artaud estabelecer a relação entre a unidade e a multiplicidade que constituem o ser humano. Conta que, folheando livros de arte ao acaso, se deparou com a seguinte frase de Antonin Artaud: O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos. As palavras de Artaud marcaram-na profundamente e, a partir de então, as terríveis ou belas vivências que alteram a lógica do pensamento, desmembram ou metamorfoseiam os corpos, expandem ou retraem a personalidade, modificam as estruturas espaciais e temporais, e interpenetram mundo externo e mundo interno, passaram a ser vistas como uma possibilidade de apresentação do ser; e não, simplesmente, como sintomas que servem para diagnosticar doenças (Silveira, 1989).

Os Inumeráveis Estados do Ser

Nise da Silveira nos aponta as obras de Antonin Artaud sobre o México como o início de um caminho para se tentar compreender a relação entre o uno e o múltiplo. O primeiro texto de Artaud sobre a cultura mexicana surgiu no âmbito do Teatro da Crueldade. A peça A Conquista do México trata da questão de certas culturas tentarem monopolizar desde o mercado comercial até as idéias religiosas, qualificando tudo o que resta como resíduos típicos de uma primitividade. Em seguida, apresenta texto acerca do imperador Montezuma e outro sobre Heliogábalo (Artaud, 1991).

De maneira diversa das tentativas que geralmente faz o ser humano de garantir a unidade através do massacre da diversidade, Artaud nos aponta para o fato de que o Mesmo somente sobrevive numa relação dialética com o Outro: "Quem tem o sentido da unidade tem o sentido da multiplicidade" (Artaud, citado por Silveira, 1989, p. 15). Com esta idéia em mente, Artaud viajou para o México em busca de experiências religiosas. Os rituais em torno dos deuses solares em Sierra Tarahumara (Artaud, 2000) o colocou frente a imagens tenebrosas e fascinantes que lhe indicaram um caminho que vai da multiplicidade (representações de deuses despedaçando o corpo de um homem) até a unidade (imagem solar). Artaud, em seu itinerário psíquico, constela o mito de morte/renascimento tão característico das imagens indestrutíveis.

A partir do encontro de Nise da Silveira com a obra de Antonin Artaud, temos a configuração de uma dualidade: a doença e o estado do ser. As duas concepções são completamente diferentes, tendo bases distintas e possibilitam desdobramentos diversos.

A concepção de doença pressupõe uma normalidade que foi alterada, necessitando de tratamento para restituir a condição anterior ou, como na maioria das patologias, tentar estabilizar o quadro. Está certo que muitas críticas já foram feitas a este modelo, principalmente no campo da saúde mental. O chamado modelo médico não leva em consideração o ser humano em sua totalidade, pois o divide em partes, órgãos, células, herança genética e, na psiquiatria, em transmissores e receptores neuroquímicos. Ao contrário destas concepções, mesmo autores clássicos, como Krafb-Ebing, já assinalavam que a psicopatologia estuda a personalidade do doente (Jung, s/d).

Durante a década de 1960, as rígidas separações estabelecidas entre os conceitos de normal e de patológico sofreram abalos vindos do campo da epistemologia (Canguilhem, 2002) e da história das mentalidades (Foucault, 2004). Psiquiatras do porte de David Cooper, Ronald Laing, Thomas Szass e Franco Basaglia, indignados com as precárias condições de tratamento dos doentes mentais, iniciaram um movimento de cunho internacional com a intenção de modificar os padrões que sustentavam o campo psiquiátrico.

Para substituir a noção de doença mental, Ronald Laing (1974) utilizou o termo metanóia empregado por Jung para designar "uma retomada de posição na vida" (Jung, 1989, p. XVII). Tratarse-ia, portanto, de um processo natural que segue o padrão dos ritos de morte/renascimento. Dessa forma, quando uma pessoa encontra-se com o pensamento fora da lógica racional e trata as idéias imaginárias como se fossem da realidade concreta, estaria tentando uma completa modificação em sua vida. Este conjunto organizado de transformações, metanóia, não poderia, assim, ser considerado como doença, dado que se trataria de um processo transformativo que posicionaria o sujeito de forma completamente diversa frente às relações estabelecidas até então entre as pessoas.

Franco Basaglia, por sua vez, trata o diagnóstico psiquiátrico como um duplo que funcionaria de anteparo entre os terapeutas e as pessoas que procuram ou a quem são impostos os tratamentos. Desta forma, os profissionais da área de saúde mental receberiam um mandato social de tutela que lhes concederia o poder de desumanizar as relações e criar dispositivos de exclusão. O trabalho a ser feito deveria, então, se iniciar com o abandono deste mandato (Basaglia, 1994).

Laing enfatiza a capacidade transformativa do sujeito que necessita ultrapassar difíceis situações emocionais; Basaglia sublinha a possibilidade que se abre a partir do momento em que se abandona o mandato social de tutela, sendo a psiquiatria uma instituição que deve ser negada e, em seguida, reinventada. A proposta de se questionar a ação diagnóstica atinge o cerne da prática psiquiátrica, mesmo com todas as diferenças existentes entre os diversos teóricos. Os questionamentos de Laing e de Basaglia tentam romper com os critérios que estipulam diagnóstico, prognóstico e tratamento, ou seja, tentam romper com o modelo médico.

Nise da Silveira também rompeu com o modelo médico e, para tal, a noção de inumeráveis estados do ser lhe foi fundamental. Nise da Silveira rapidamente percebeu que se encontrava diante de uma imensa tarefa que supõe não só a transformação do campo da saúde mental, mas a completa modificação de toda a sociedade, ou seja, sua tarefa seria possibilitar uma verdadeira transformação cultural. Dessa forma, se valeu das artes, incluindo o teatro, para dialogar com toda a sociedade, fazendo com que o tema da saúde mental fosse de médico, de louco e de todo mundo um pouco (Bezerra, 1994).

O Encontro de Nise da Silveira com Rubens Correa

Em março de 1969, Nise da Silveira organizou um ciclo de estudos sobre o mito de Dioniso, a partir da produção pictórica de Carlos Pertuis, freqüentador dos ateliês do Museu de Imagens do Inconsciente. Como parte do evento, foi feita a leitura da tragédia As Bacantes de Eurípedes, com a participação de funcionários e internos do centro psiquiátrico, como também de atores. Rubens Correa participou como Dioniso (Silveira, 1994).

Nise da Silveira qualificou a leitura de As Bacantes ocorrida no hospital psiquiátrico como "uma experiência incomum" (Silveira, 1994, p. 22). Rubens Correa, por sua vez, disse que foi a platéia mais linda que teve em toda a sua vida dedicada ao teatro: "à medida que íamos lendo, recebíamos sons como se fossem instrumentos: eram gemidos, suspiros, grunhidos, eles sofriam, rejeitavam, riam, viviam... foi uma dádiva de platéia, tão grande, tão completa..." (Correa, citado por Khoury, 2000, p. 216).

Esse, no entanto, não foi o primeiro encontro entre Rubens Correa e Nise da Silveira, a quem ele qualificou como "mulher extraordinária" (Correa, citado por Khoury, 2000, pp. 215-216) e "dama benfeitora da humanidade" (p. 230). Em 1964, Rubens Correa e Ivan de Albuquerque planejaram encenar O Diário de um Louco de Gogol, que narra o processo cotidiano de enlouquecimento de um modesto funcionário público. Com esse espetáculo, pretendiam exemplificar o "desperdício humano" (p. 295), através de um personagem que "era como a imagem de uma pessoa que ia se queimando aos poucos" (p. 295).

Léo Vitor (primo de Nise da Silveira) assistia aos ensaios e sugeriu que os dois procurassem estudar o assunto no Museu de Imagens do Inconsciente.

O encontro de Ivan e Rubens com Nise da Silveira foi arrebatador: o minucioso acompanhamento das séries de imagens do inconsciente, empreendido em meio à precariedade do hospital, fascinou o diretor e o ator, que também ficaram encantados com a envolvente figura da médica.

Ivan e Rubens foram apresentados a um rapaz que, à primeira vista, mantinha a coerência do discurso, até que começou a falar de sua vida, das pessoas que se apoderavam de seu pensamento e noticiavam suas idéias em jornais, revistas e rádio. Rubens Correa ficou fascinado com tudo o que viu.

O Diário de um Louco

Em 1959, Rubens Correa e Ivan de Albuquerque fundaram o Teatro do Rio. A produção teatral da dupla era tão intensa que realizaram, neste momento inicial, a média de três espetáculos por ano. A primeira peça do Teatro do Rio foi um vaudeville de Claude Magnier chamado Oscar. Em seguida foi apresentado um policial, A Ratoeira de Agatha Christie. Depois O Macaco da Vizinha de Joaquim Manuel de Macedo e Processo de Família de Diego Fabri. Todas as peças fracassaram, com exceção de A Ratoeira que alcançou grande sucesso e sempre era remontada quando se necessitava arrecadar dinheiro. A crítica passou a fazer alguns elogios apenas em O Prodígio do Mundo Ocidental de John M. Synge, montada em 1960. O primeiro grande sucesso, no entanto, ocorreu somente em 1963 com A Escada de Jorge Andrade, com a qual Rubens Correa recebeu três prêmios de melhor ator, entre eles o Molière. No ano seguinte, encerrando as atividades do Teatro do Rio, foi apresentado o monólogo O Diário de um Louco.

As dificuldades de apresentar tal espetáculo são evidentes, correndo-se o risco da caricatura. Durante o período de férias, Ivan de Albuquerque tentou adaptar o conto para a linguagem teatral. No entanto, a dramaticidade do possível espetáculo fez com que pensasse em desistir de tal empreitada: "A leitura do conto passava a sensação de se assistir a uma chacina, a um atropelamento" (Albuquerque, 2001, p. 113). Como no final da história o personagem encontrava-se desvairado e com a cabeça raspada, Ivan, na intenção de fazer com que Rubens desistisse da idéia, disse que seria necessário que ele raspasse o cabelo e as sobrancelhas. Rubens, no entanto, não desistiu e a proposta foi levada adiante. Após a visita ao Museu de Imagens do Inconsciente, Ivan de Albuquerque tomou "um gosto real pela montagem de O diário de um louco" (Albuquerque, 2001, p. 114).

O espetáculo fez enorme sucesso em São Paulo, sendo apresentado, posteriormente, no Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro. As pessoas ficavam encantadas: "Ajoelhavam-se aos pés de Rubens, beijavam suas mãos, choravam em seu ombro, enfim, ficavam fora de si" (Albuquerque, 2001, p. 114).

A peça O Diário de um Louco ficou em cartaz, em temporadas esparsas, de 1964 a 1968, salvando a companhia da falência. Rubens Correa considera que esse foi o seu melhor desempenho como ator: "readquiri a chama sagrada com O Diário de um Louco, porque eu estava sozinho no palco e foi um banho espiritual, uma limpeza em mim não só como homem, mas como artista e também como linguagem de ator" (Correa, citado por Khoury, 2000, p. 221).

Rubens Correa herdou de seu pai uma casa na rua Prudente de Morais, em Ipanema, Rio de Janeiro. Durante o período em que O Diário de um Louco permaneceu em cartaz, foi construído, no lugar da casa, o Teatro Ipanema. Para inaugurar o teatro, foi estruturada uma trilogia russa: O Jardim das Cerejeiras de Tchekov, A Mãe de Gorki e O Diário de um Louco de Gogol.

Dessa forma, Rubens Correa e Ivan de Albuquerque fecharam um ciclo de suas vidas, com O Diário de um Louco sendo o último texto que montaram no Teatro do Rio, em 1964, e o primeiro a ser representado no Teatro Ipanema, em 1968.

O Futuro Dura Muito Tempo

Em meio ao grande sucesso de O Diário de um Louco, foi montada no Teatro Ipanema, em 1969, O Assalto de José Vicente. Com essa representação, Rubens Correa recebeu o seu segundo prêmio Molière. Em 1970, outro sucesso: O Arquiteto e o Imperador da Assíria de Fernando Arrabal, atuando em dupla com José Wilker, que recebeu uma série de prêmios, incluindo o Molière. A preparação dessa peça contou com o auxílio de Klaus Vianna no trabalho corporal dos atores, sendo esta uma das marcas registradas dos espetáculos do Teatro Ipanema, desde O Diário de um Louco.

Outra marca fundamental, também a partir de O Diário de um Louco, é o fato de os temas de cunho psicológico passarem a ser de suma importância para Rubens Correa. Podemos notar aí a interferência do trabalho desenvolvido pelo Museu de Imagens do Inconsciente, pois para dirigir atores, elaborar personagens e dar aulas de teatro Rubens Correa começou a utilizar conceitos junguianos.

Em aula inaugural na Casa de Artes de Laranjeiras (CAL), no dia 12 de março de 1984, Rubens Correa disse que o ator está sempre tentando o equilíbrio entre a contínua elaboração técnica e a simplicidade na execução do espetáculo. Sendo essa mais uma característica do grupo do Teatro Ipanema.

Mais uma marca do trabalho de Rubens Correa e Ivan de Albuquerque é que, apesar de terem uma companhia teatral própria, eventualmente aceitavam participar de montagens de outros grupos.

Um espetáculo que uniu todas essas características (minucioso trabalho corporal, tema de cunho psicológico, equilíbrio entre técnica e simplicidade de execução, e se permitir participar de montagens de outros grupos) foi O Futuro Dura Muito Tempo, de 1993, dirigido por Marcio Vianna. A peça é baseada em livro homônimo de Louis Althusser e narra a história desse filósofo (representado por Rubens Correa) que estrangulou sua esposa Hélène (vivida por Vanda Lacerda).

Althusser fazia tratamento psiquiátrico e, por esse motivo, ao invés de ser julgado, passou por uma perícia médica. Durante a perícia, considerouse que, no momento do crime, Althusser estava sem condições de julgar o ato que estava cometendo. Dessa forma, foi considerado inimputável. Como conseqüência, o filósofo foi levado para o manicômio judiciário.

A dramaticidade das cenas iniciais contrasta fortemente com o lirismo do término da peça. No início, temos Althusser dentro de um poço de areia proferindo um longo discurso, enquanto desenterra objetos . Ao seu lado encontram-se diversos manequins deitados. Num dado momento, Althusser retira uma placa onde se lê: Os ausentes, por favor, não incomodem. Trata-se da mais eloqüente frase do espetáculo. O que teria feito o filósofo estrangular sua esposa enquanto lhe fazia massagem no pescoço? O que fez com que a justiça considerasse tais casos encerrados sem a necessidade de julgamento?

Rubens encontra-se sozinho em cena. De repente, por baixo dos manequins, surge Vanda Lacerda, Hélène, retornando de um mundo inerte para dialogar com o marido. A partir de então, são narrados vários acontecimentos da vida do casal, seus encontros e desencontros, as discussões teóricas em instituições acadêmicas, até Hélène morrer na Escola Normal Superior, deitada em sua cama no apartamento da Rua d'Ulm, em Paris.

A cena como foi vivida por Althusser mostra um homem de roupão fazendo massagem na esposa que também se encontra de roupão. Num instante a massagem era feita no pescoço e, num piscar de olhos, a mulher encontra-se com uma ponta de língua entre os dentes. Althusser nunca tinha visto uma pessoa estrangulada, mas sabia o que havia ocorrido, só não sabia como e nem o momento exato. Saiu desesperado, correndo pelo campus universitário. Como era domingo, demorou encontrar alguém que ouvisse seus gritos: "Eu estrangulei Hélène! Eu estrangulei Hélène!" (Althusser, 1992).

Louis Althusser escreveu o livro com a intenção de quebrar com a regra da impronúncia: queria ter sido julgado. Sabia que seu relato não possuía relevância jurídica, mas considerava importante seu pronunciamento para que se colocassem em discussão as leis que estipulam o confinamento no manicômio judiciário. Althusser contou a história a partir de seu ponto de vista e, para tanto, pediu aos amigos que lhe enviassem todos os recortes de jornais que dispusessem sobre ele após o fatídico novembro de 1980.

O drama é evidente, mas a peça termina com Althusser e Hélène juntos, num balanço suspenso no ar. Os dois estão de costas para o público e trocam juras de amor. Por este trabalho, Rubens Correa recebeu, entre outros, o seu terceiro prêmio Molière de melhor ator.

Teatro com Ponto de Exclamação

Entre a apresentação de O Diário de um Louco e de O Futuro Dura Muito Tempo, Rubens Correa, sob direção de Ivan de Albuquerque, encenou a peça Artaud!. A idéia de fazer um espetáculo teatral com textos de Antonin Artaud nasceu em março de 1969, durante o ciclo de estudos sobre Dioniso organizado por Nise da Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente. O compromisso firmado entre Rubens Correa e Nise da Silveira somente foi concretizado em 1986, por ocasião das comemorações dos quarenta anos de terapêutica ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II. Sobre esse período, relembra Rubens Correa: "me lembro que ela [Nise da Silveira], com o dedinho assim apontado carinhosamente e incisiva para mim, disse 'Quero que você faça um espetáculo sobre Artaud!' (...) Ainda perguntei para a minha 'guru': 'A senhora quer que eu dirija?' Ela respondeu: 'Não, quero que você faça!'" (Correa, citado por Khoury, 2000, pp. 229-230).

Para as comemorações estavam previstas uma exposição das obras do Museu de Imagens do Inconsciente no Paço Imperial e a representação de Artaud! por Rubens Correa. Enquanto a exposição foi adiada para o ano seguinte, a peça Artaud! teve estréia nos porões do Teatro Ipanema, onde foi montada uma arquibancada para cerca de oitenta pessoas: "A sensação era de que cada espectador ia visitar um parente louco e este contava tudo o que se passava com ele" (Correa, citado por Khoury, 2000, p. 231).

A extensa obra de Antonin Artaud, composta por peças teatrais, poesias, ensaios, cartas, subjétil e anotações esparsas, foi palmilhada por Ivan e Rubens, sendo auxiliados por Ângela Pêssego durante as pesquisas. Desse minucioso trabalho, surgiu o roteiro da peça, "uma colagem do pensamento de Artaud" (Correa, 1989, p. 43), que contou com uma longa preparação corporal, dirigida por Lourdes Bastos. Cenário e figurino ficaram a cargo de Anísio Medeiros. Os ensaios foram iniciados no Teatro Ipanema e no sítio de Ivan de Albuquerque, chamado Alegria.

Rubens Correa manteve um diário durante o período de ensaios até a quinta apresentação, levando em conta detalhes da montagem - texto, voz, corpo, cenário, figurino, etc -, assim como sonhos que teve neste período. Sua intenção era de "tentar investigar o curioso relacionamento entre o inconsciente do ator e o processo de criação de um personagem e de um espetáculo" (Correa, 1989, p. 44). Para tanto, Rubens apresentou uma série de quatorze sonhos que entremeia os ensaios. Estes sonhos retratam a intensidade de seu envolvimento na preparação do espetáculo:

• numa cidade desconhecida ocorre um encontro com uma mulher também desconhecida que, quando olhada de frente, transforma-se numa amiga de longa data;

• distribuição de diversos tipos de pães para mendigos com os quais dividirá seu novo local de moradia;

• mergulho nas águas que lembram a infância, encontrando peixes-flores que emitem luzes;

• tentativa de colocar em ordem textos de Artaud;

• viagem de táxi com motorista de atitudes bastante desagradáveis;

• cortes de gilete por todo o corpo que, apesar de não doer, solta pequenas gotículas de sangue;

• entrada a cavalo no antigo Teatro do Rio, passando entre a platéia;

• desliga o carro que dirigia, tendo o irmão como carona e, de surpresa, o irmão aponta-lhe um revólver de proporções exageradas e o assalta, então o sonhador salta do carro e, em meio à névoa, se dirige ao mar, mergulhando de roupa;

• passeio tranqüilo de jeep, até que se depara com um touro furioso que investe contra o automóvel e, apesar do perigo, o motorista consegue escapar e segue viagem deixando o touro para trás como uma pequena silhueta;

• num hospício fétido que não possui móveis, onde os corredores ficam cada vez mais estreitos e as paredes mais altas, um homem de baixa estatura persegue-o, imitando os seus gestos, fato que vai se tornando insuportável, até que, na tentativa de fugir, segura uma maçaneta suja de fezes, abre a porta e se fecha num cômodo todo sujo de fezes, no qual passa um riacho imundo em que "lava" as mãos;

• lagartixas na parede de sua casa de infância que, de repente, vomitam as próprias entranhas que inundam toda a casa;

• cobra que se movimenta em sua casa atual, sendo, em seguida, bicada por um passarinho, causando intensas dores na cobra e um sentimento de piedade no sonhador;

• leão lambendo os dedos da mão do sonhador;

• um pequeno cachorro preto faz festa.

Dois dias depois deste último sonho, o espetáculo fez sua estréia no Museu de Imagens do Inconsciente. As imagens viscerais dos sonhos de Rubens, que o aproxima dos mendigos, dos animais e da sujeira, apontam para a intensa transformação simbólica que se manifesta a partir do encontro com Artaud. O mergulho no personagem encontra paralelo no mergulho em si mesmo, daí a intenção de se investigar as produções inconscientes durante o processo de confecção de um espetáculo. Os ensaios se estenderam ao longo de sessenta encontros e, logo no primeiro, Ivan de Albuquerque pediu para Rubens prestar atenção na dualidade razão/emoção, básica na obra de Artaud.

O diretor e sua esposa, Leila Ribeiro, leram os 25 volumes das obras completas de Antonin Artaud, sendo de Leila a cuidadosa tradução dos textos que compõem a peça. Entre cartas, manifestos, poesias, críticas e ensaios, Artaud preenche dois volumes com neologismos. A razão e a pura emoção, a lucidez e a criatividade delirante de Artaud encontram-se presentes: "As pessoas têm tamanha veneração por Artaud, que tudo o que foi escrito pelo gênio virou obra - até mesmo bilhetes do período em que estava preso na Alemanha nazista, nos quais ele havia anotado listas de compras" (Albuquerque, 2001, p. 115).

Diante da pluralidade da obra de Artaud, o trabalho de definição do roteiro se inscreve como uma colagem de textos que se organiza a partir de um árduo trabalho de pesquisa que é lapidado ao longo dos ensaios. Durante o segundo ensaio, por exemplo, ficou decidido que o espetáculo não contaria com o poema Para Terminar com o Julgamento de Deus, ficando, então, para a cena final da peça uma carta de Artaud para Anais Nin. O depoimento da escritora aparece em cena através de áudio na voz de Joana Fomm, que aborda o tema da piedade dos amigos em relação ao sofrimento de Artaud. Mas o poeta enclausurado no hospício pergunta se é a sua pretensa loucura que a amedronta. A comunicação entre os dois, de acordo com Artaud, se faz melhor através do silêncio. Linguagem sincera e direta que remete à pureza da infância na frase final do espetáculo: "Tenho um nome que minha mãe me deu quando eu tinha quatro anos e que as pessoas mais íntimas me chamavam: Nanaqui. Isso também me descreve na minha inocência e no que há de mais puro na minha vida: Nanaqui" (Correa & Albuquerque, 1994, p. 37).

No quarto ensaio, marcado pelo caráter ritualístico de velas e vinho, ficou evidente que o espetáculo não deveria enfatizar "o uso da doença de Artaud" (Correa, 1989, p. 50). No ensaio seguinte foi feita a descoberta da "luminosidade de Artaud" (p. 51), sendo dado, portanto, um importante passo na construção da peça. Nos ensaios são trabalhados os aspectos claros e escuros da obra artaudiana, sendo a peça uma outra obra e não uma imitação grotesca de Artaud. No oitavo ensaio foram experimentadas diversas maneiras de se iniciar o espetáculo. Do caos inicial vai-se construindo a persona e essa construção se assemelha a uma caçada: Ivan de Albuquerque carregou uma velha poltrona e colocou-a em cima de uma mesa de carpinteiro, dirigindo a peça desse local; a impressão de Rubens é de que o diretor "parecia um animal tocaiado" (p. 53).

Fez-se a opção de começar o espetáculo com textos referentes ao teatro, sendo esta a primeira frase: "O verdadeiro teatro sempre me pareceu o exercício de um ato terrível e perigoso" (Correa & Albuquerque, 1994, p. 7). O trabalho exercido pelo ator torna-se perigoso pelo fato de não se caracterizar apenas pela função de interpretação, mas por se dirigir a um público, não como simples entretenimento, "mas a toda a sua existência" (p. 7). Ao se posicionar como ator, Artaud não separava vida e arte, pois a arte é a própria vida ou, no mínimo, aquilo que lhe confere sentido: "Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito. Não concebo uma obra de arte dissociada da vida" (p. 10). Em seu teatro estão presentes os aspectos ritualísticos de morte/renascimento:

Quem sou eu? /De onde venho? /Sou Antonin Artaud /e basta que eu o diga /Como só eu o sei dizer /e imediatamente /hão de ver meu corpo /atual, /voar em pedaços /e se juntar /sob dez mil aspectos /diversos. /Um novo corpo /no qual nunca mais /poderão me esquecer.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, /meu pai, /minha mãe, /e eu mesmo. /Eu represento Antonin Artaud! /Estou sempre morto.

Mas um vivo morto, /Um morto vivo. /Sou um morto /Sempre vivo. /A tragédia em cena já não me basta /Quero transportá-la para minha vida. (p.9)

No décimo nono ensaio já existiam os seguintes objetos cênicos: cadeira, banquinho para os pés e um pano roxo. Foi acrescentado, então, mais um elemento: um bastão-bengala. A partir desses elementos e utilizando os exercícios corporais, Rubens Correa foi se organizando no espaço cênico. Ivan sugeriu que as cenas fossem todas voltadas para o público. A idéia era criar empatia num espetáculo dilacerante. A intensidade das cenas fica evidente, mais uma vez, no vigésimo primeiro ensaio, quando Rubens passou a maior parte do tempo sentado na cadeira de Artaud, "mergulhado numa espécie de concentração negra e pacificada" (Correa, 1989, p. 66). Neste dia Rubens lembrou para Ivan o momento em que, juntamente com Leila, visitaram o cemitério Père Lachaise, em Paris, onde se encontram enterradas pessoas como Alan Kardec e Chopin. De repente, os três se viram frente ao túmulo de Artaud, "simples, de cimento liso, com o nome escrito - e nada mais" (p. 66). A ligação afetiva estava feita, pois Rubens se lembrou de ter acariciado discretamente o túmulo de Antonin Artaud.

No vigésimo sexto ensaio ocorreu o que Rubens Correa denominou como "um pequeno milagre" (Correa, 1989, p. 68). O texto fluiu do início ao fim sem que o ator se prendesse a nenhum tipo de marcação prévia e sem nenhuma censura. O prazer com as palavras de Artaud foi, finalmente, alcançado. No ensaio seguinte ocorreu exatamente o oposto, dando tudo errado. A segurança para a montagem do espetáculo, que por si só já inspira receio, vem, com certeza, da admiração mútua de todos os envolvidos. Como exemplo, podemos citar o respeito enorme que Rubens Correa possuía em relação a Ivan de Albuquerque, assim como ao cenógrafo e figurinista Anísio Medeiros: "estou tranqüilo nesta difícil empresa: duplamente amparado por dois talentos fora de série" (Correa, 1989, p. 72).

O quadragésimo quinto ensaio foi assistido pela professora Lourdes Bastos que sugeriu pequenos cortes no texto. Uma semana depois, no quadragésimo nono ensaio, foram feitos os acertos de luz e de som com o iluminador Eldo e com o sonoplasta Suca. No dia seguinte, Rubens Correa, Ivan de Albuquerque e Anísio Medeiros foram procurar o figurino em lojas de Ipanema. Três dias depois, Joana Fomm gravou a voz de Anais Nin. Dois dias depois, durante o qüinquagésimo terceiro ensaio, a estrutura da peça ficou delineada:

• Teatro;

• Tarot - "O Enforcado foi tomado como o louco por todos" (Correa & Albuquerque, 1994, p. 11);

• Enfeitiçamento - "O mundo sempre foi dividido em 2 (duas) Partes: a dos feiticeiros e a dos enfeitiçados" (p. 13);

• Estado físico - "Para mim somente a dor eterna e a sombra, a noite da alma e não tenho voz para gritar" (p. 16);

• Manicômio - "nada melhor do que um manicômio para incubar carinhosamente a morte"

(p. 17);

• Van Gogh - "não somos todos nós, como o pobre Van Gogh, os suicidados da sociedade?!" (p. 21);

• Nalpas - "Esse alguém encontrou seu nome e se chama Antonin Nalpas, sou eu mesmo, e levo no meu corpo a recordação da vida inteira de Antonin Artaud" (p. 25);

• Depoimento;

• Nanaqui.

No dia 18 de novembro de 1986 foi feito um ensaio aberto ao público. A estréia estava marcada para duas semanas depois. No dia 20 foi a vez do ensaio ser feito para a censura: "esta organização medieval, medíocre, medrosa, velhaca e burra" (Correa, 1989, p. 83). As duas censoras pouco prestaram atenção ao ensaio e se limitaram a restringir a idade, sendo proibido para menores de quatorze anos. A estréia ocorreu no Museu de Imagens do Inconsciente, no dia 1º de dezembro. Depois foram feitas duas apresentações em Aquidauana/MS, cidade de infância de Rubens Correa. Retornando ao Rio de Janeiro, foi feita uma apresentação para convidados, críticos e pessoas amigas. Neste dia Rubens se sentiu mais à vontade do que nunca no papel de Artaud: "foi o dia em que assinei meu nome no trabalho" (p. 90). No dia seguinte mais uma apresentação para convidados e, em seguida, Artaud! passou a aguardar a resposta do público. Essa resposta foi, sem dúvida, muito além do que todos esperavam e Artaud! ficou em apresentação até 1995.

O árduo trabalho de selecionar os textos de Artaud ao longo de 25 volumes e redimensioná-los durante os ensaios possibilitou que o ator vivenciasse o caos e, aos poucos, encontrasse uma forma, mesmo que baseada na multiplicidade e não na unidade. De acordo com Rubens Correa, o processo de criação de um espetáculo, notadamente Artaud!, é como uma "briga de foice entre Apolo e Dionísio" (Correa, 1989, p. 76). A relação destas duas imagens de deuses gregos com o teatro permeia a atenção dada por Nise da Silveira, pautada na experiência de Antonin Artaud, de realizar um trabalho no qual a expressão teatral tanto como método terapêutico quanto para realizar uma transformação cultural deve enfatizar as imagens indestrutíveis.

 

Conclusão

A relação entre as obras de Nise da Silveira, Antonin Artaud e Rubens Correa possibilitou que a médica propusesse mudanças significativas no modo de organizar os serviços de saúde mental e de tratar as pessoas que se encontravam em intenso sofrimento psíquico. Por outro lado, podemos perceber, também, que o tema da loucura foi levado, através da arte, para um debate cultural com toda a sociedade.

O trabalho desenvolvido nessas duas frentes (dentro dos serviços e no debate cultural) caracteriza-se pela interferência mútua. Isso se dá na medida em que, gradativamente, o tratamento deixa de estar centrado na internação. Dessa maneira, são criadas as condições necessárias para se ampliar e intensificar os encontros da arte com o campo da saúde mental através da criação de grupos teatrais, grupos musicais, produção de vídeos, blocos de carnaval, exposições de artes plásticas etc. (Amarante, 2008).

A diversidade cultural passa a incluir, também, a produção de pessoas que, antes, estariam encerradas em hospitais psiquiátricos. Nesse sentido, o trabalho de Nise da Silveira foi fundamental para que ocorressem essas mudanças. A transformação científica e cultural de Nise da Silveira apóia-se na crítica contundente de Antonin Artaud e no poder de Rubens Correa de sensibilizar as pessoas.

Rubens Correa dizia que possuía a loucura dentro de si. A loucura como uma possibilidade humana, um estado do ser. Restituindo a condição humana do louco, Rubens Correa pôde afirmar que, em seus dois monólogos sobre a loucura, O Diário de um Louco e Artaud!, foi quando conseguiu se aproximar mais das pessoas: "Penetrei em suas entranhas e fazia o que bem entendia com o interior delas" (Correa, citado por Khoury, 2000, p. 289). A loucura, assim, encontra-se no interior de todos.

 

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Recebido em: 10/03/10
Aceito em: 13/04/10

 

 

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