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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.3 no.1 Juiz de fora jul. 2010

 

ARTIGOS

 

Educação integrada e espaços de aprendizagens: diálogos entre escola e projeto social

 

Integrated education and learning spaces: dialogues between school and social project

 

 

Cássia Beatriz Batista1; Valéria S. Freire de Andrade

Pontifícia Universidade Católica, Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

Projetos socioeducativos comportam experiências educativas de maneira complementar às ações do ensino regular. O presente estudo teórico surge de uma provocação diante da experiência de parceria entre escola pública (educação formal) e projeto social por meio do programa Escola Integrada. Partimos das inquietações observadas nessa experiência educativa para discutirmos a ideia de educação integral que pauta algumas ações educativas. Para subsidiar o debate, recorremos aos campos da psicologia social e da educação numa compreensão articulada das dimensões da cultura, da educação e do processo de aprendizagem em seus múltiplos espaços educativos. Assim, problematizamos algumas concepções educativas envolvidas nas práticas advindas dessas instituições, bem como seus possíveis limites e contribuições para a formação integral de sujeitos.

Palavras-chave: Educação, Escolas, Projetos, Psicologia Social.


ABSTRACT

Socio-educational projects include educational experiences as a complement to the actions of mainstream teaching. This theoretical study arises from a challenge before the partnership experience between public schools (formal education) and social projects, by means of the program called Integrated School. We start from the uneasiness observed in this educational experience so that we can discuss the idea of full education which is the basis of some educational actions. To support this discussion, we turn to the fields of social psychology and education, focusing on an articulate comprehension of the dimensions of the culture, of the education, and of the learning process in its multiple educational spaces. Therefore, we aim to discuss some educational concepts involved in practices stemming from these institutions, as well as their possible limitations and contributions to the full education of individuals.

Key words: Education, Schools, Projects, Social Psychology.


 

 

Iniciativas de organizações não-governamentais vêm crescendo e apresentando expressividade diante das políticas sociais de proteção e atençãoà infância e adolescência de baixa renda ou consideradas em situação de risco social, principalmente na área da educação e do desenvolvimento social. Políticas sociais são respostas que buscam garantir os direitos constitucionais e sabe-se que, no Brasil, essas respostas sociais governamentais foram sendo construídas de uma forma fragmentada diante de um modelo econômico social que minimiza as ações do Estado. Nesse sentido, esses serviços têm sido oferecidos, em grande parte, pelo Terceiro Setor.

Alguns estudos revelam que no Brasil as políticas sociais tornaram-se um conjunto de programas assistencialistas, caracterizando-as como emergenciais e compensatórias de carências, considerando benefícios e serviços como privilégios e caminhando contra a consolidação do direito. Confrontando a ideia do assistencialismo, esses estudos defendem uma perspectiva da política fundamentada na cidadania (Rocha, 2001; Sposati et al., 1999).

Nesse contexto, o processo das reformas educacionais no Brasil não é diferente. De qualquer forma, nota-se que a educação nas políticas sociais é multissetorial, como aponta Brant (2006). A responsabilidade em garantir os direitos das crianças e dos adolescentes vem sendo dividida entre o Estado, a família e a sociedade organizada. Os princípios que orientam o desenvolvimento pleno desses sujeitos estão expressos em leis e normas, mais especificamente na Constituição Brasileira (1988), Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, 1996), além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990).

Como é a relação dos projetos socioeducativos com a escola? Quais as propostas políticopedagógicas adotadas para alcançar o desenvolvimento e a formação integral? Como e quais estratégias e fundamentações orientam essas propostas? As intervenções/ações educativas apresentam concepção de sujeito e de educação coerentes com os métodos adotados? Buscaremos elementos para responder a algumas dessas questões na relação entre educação formal e educação não-formal, refletindo sobre as experiências advindas de um programa municipal de educação e de um projeto social voltado para crianças e adolescentes desenvolvido pelo terceiro setor.

 

Múltiplos Espaços Educativos: educação formal, informal e não-formal

A educação oferecida pelas escolas constitui-se um tipo de educação organizada em sequências determinadas denominada educação formal. Já a educação informal abarca todas as possibilidades educativas na trajetória de vida das pessoas, sendo esse um processo contínuo e não-organizado. A educação não-formal apresenta organização e estrutura diferentes da escola, com flexibilidade em relação à fixação de tempos e espaços e também de conteúdos de aprendizagem, sendo estes negociados e adequados a cada grupo específico (Afonso, 1989).

A educação não-formal nasce na comunidade, na sociedade civil organizada. Não pretende substituir ou suprir a escola, mas, por meio da ação socioeducativa, ampliar os espaços de convivência e o universo cultural dos sujeitos, considerando os cuidados com a saúde, a participação na vida da comunidade e o desenvolvimento de conhecimentos, valores e habilidades construídos no cotidiano, tendo como princípio norteador o desenvolvimento e a formação integral de sujeitos. Essas experiências educativas não-escolares possibilitam vivências lúdicas, esportivas e artísticas, permitindo o acesso a conhecimentos múltiplos e estabelecendo novos espaços socializadores (Cenpec, 2003).

De acordo com Afonso (2001), a disputa por racionalidades políticas e pedagógicas diferentes no campo da educação informal e não-formal requer estudos e reflexões com maior cuidado teóricometodológico que possam, de fato, contribuir na composição e concretização de uma educação pautada na emancipação e na crítica. Dessa forma, o campo configurado pela educação não-formal é atravessado por forças políticas, pedagógicas, político-pedagógicas, que nem sempre formam um campo coerente e harmônico, com metas e propostas convergentes. Na verdade, trata-se de um campo atravessado por concepções e práticas diversas, o que o torna muito mais um campo de conflitos e diversidades. Isso aponta para a necessidade de análise e entendimento dessas forças, uma vez que conflitos e diversidades são potentes motores para reflexão e ação.

É importante ressaltar que o objetivo da educação não-formal não é suprir ou complementar o que a escola deveria realizar (que, por vários motivos, muitas vezes não consegue). A educação não-formal deve coexistir com a escola, porém possui uma maneira diferenciada de trabalho no campo educativo. Para a educação não-formal, a referência da ação está no grupo determinado de trabalho, e não em conteúdos pré-estabelecidos. Já a escola formal tem um papel social de transmitir conteúdos acumulados e adquiridos socialmente e sistematizar os conhecimentos para que a aprendizagem seja efetivada (Garcia, 2001).

Crianças e adolescentes em idade escolar, estudantes ou não, moradores de comunidades economicamente vulneráveis, são o público privilegiado de muitas ações socioeducativas. A situação de risco e vulnerabilidade em que se encontram crianças e adolescentes de periferia nos remete também a problematizar o lugar que as atividades escolares, de lazer, esporte e arte ocupam na vida e cotidiano desses sujeitos. Isto é, são ações pautadas no direito, na cidadania e na busca de desenvolvimento e socialização ou são ações pautadas no controle e na manutenção de uma sociedade desigual? Além disso, é preciso pensar também sobre as condições de desenvolvimento e as concepções de infância e adolescência que sustentam e norteiam ações educativas. Tais concepções podem ser múltiplas, contraditórias, instáveis; enfim, tomam forma na prática e se refletem nos objetivos esperados.

No processo educativo, independente do modelo de educação estabelecido, temos uma relação educativa entre, essencialmente, dois atores sociais: educadores e educandos. Nessa relação, o educador tem um papel fundamental de diálogo, mediação e construção com o grupo de crianças ou adolescentes. Reconhecer esses atores como sujeitos da construção do processo de crescimento e aprendizagem (ao fazer escolhas, responsabilizarse por elas e apropriar-se da produção realizada) é fazer referência a um sujeito sócio-histórico presente nos espaços educativos. Nesse sentido, a aprendizagem é uma relação significativa de descoberta, prazer e construção de saberes. Entretanto, dependendo se o modelo é formal ou não-formal, esse processo envolve diferentes contextos institucionais, políticos, relações de trabalho e de vínculo.

 

Educação Integral, Escola Integrada e Escola de Tempo Integral

Na perspectiva da educação integral e das leis e direitos das crianças e adolescentes, o Cenpec (2003) aponta que as ações complementares à escola são práticas educativas contínuas desenvolvidas em período alternado ao da escola. Ainda assim, quanto mais as ações educativas estiverem articuladas e integradas com a escola, com a família e com a comunidade, melhor a aprendizagem. Aprendemos, na relação, nas trocas e na convivência entre os sujeitos, experiências que envolvem aspectos afetivos, cognitivos e sociais. Assim, a construção de conhecimento é um processo coletivo, participativo e contínuo que ocorre em diversos espaços da vida.

O acesso ao espaço formal de educação é uma conquista social brasileira embora a qualidade da educação venha sendo repensada. As desigualdades, as situações de risco e a vulnerabilidade social influenciam no acesso, na permanência e na aprendizagem oferecidos pelas políticas educacionais que, por sua vez, são impactadas pela globalização e pelas transformações no trabalho, na ciência e no meio ambiente. Diante das desigualdades sociais e da necessidade de redistribuir renda para enfrentamento da pobreza no Brasil contemporâneo, o MEC (Brasil, 2009) defende a necessidade de um projeto de Educação Integral. Dessa forma, o trabalho educativo está envolto pelas questões sociais, políticas e econômicas do país e o desafio da perspectiva de Educação Integral é articular todas essas dimensões para garantir a inclusão educacional e, consequentemente, garantir os direitos sociais e humanos de uma população.

O âmbito educacional, tendo a escola como seu lócus específico, é um espaço privilegiado para práticas de formação e transformação dos sujeitos. É também um motor potente tanto de transformação como de reprodução da estrutura social (Freire, 1983). Assim, o âmbito educacional é um dos espaços mais estudados, questionados e criticados da atualidade, exatamente pelo alto investimento que se tem na educação a partir da época moderna. Nesse sentido, a estrutura escolar vem sendo duramente criticada nas últimas décadas, uma vez que essa instituição tem acompanhado lentamente as demandas e processos sociais da vida dos brasileiros que por ela passam sem que lhes sejam possibilitados ou ampliados caminhos mais emancipatórios no sentido de lhes proporcionar uma vida mais criativa, democrática e menos injusta.

Segundo o MEC (Brasil, 2009), a perspectiva da educação integral, com a ampliação da jornada escolar, tem a capacidade de atribuir sentidos novos aos espaços/territórios e tempos na escola. A título de exemplo, a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED/PBH) instituiu o Programa Escola Integrada, que busca integrar a escola com outros espaços educativos da comunidade, numa proposta intersetorial que coloca a escola como central e catalisadora desse processo múltiplo de aprender. O Programa Escola Integrada2 é um programa de educação municipal implementado em 2007 em cerca de 50 escolas municipais de ensino fundamental (Lei Municipal 8.433, de 31/10/2002). A proposta consiste em ampliar o tempo, as formas e os espaços educativos das crianças e adolescentes de 6 a 14 anos, estreitando a relação destas com sua comunidade, na perspectiva da cidade educadora (Gadotti, Padilha, & Cabezudo, 2004). As atividades envolvem esporte, arte, informática, língua estrangeira e auxílio às tarefas de casa, dentre outras. O objetivo é melhorar a qualidade da aprendizagem e a relação dos alunos com a cidade, ao utilizar espaços públicos e de parceiros, ampliando o ambiente de aprendizagem.

A proposta da Escola Integrada incorpora campos educativos não escolares, o que leva a algumas questões: o aumento de tempo e espaços escolares estaria ligado ao já tão discutido fracasso escolar em uma tentativa de oferecer melhor formação aos alunos? Será que a escola, ao estender seus espaços, ampliando seus ambientes de aprendizagem, incorpora também outras formas e práticas educativas? Ou será que ela escolariza outros espaços e saberes?

Embora a escola tenha se afirmado como um espaço institucional legítimo para a socialização e transmissão do conhecimento construído socialmente a partir da modernidade, é preciso desvelar as intrincadas relações de poder que se estabelecem nela e por meio dela (Bourdieu & Passeron, 1975; Snyders, 1981).

Numa análise crítica sobre as desigualdades sociais engendradas pelo modelo capitalista, Dayrell (1996) destaca a necessidade de refletirmos e repensarmos a função social da instituição escolar e percebê-la como construção social, desenvolvida, no cotidiano, a partir das relações entre os sujeitos. Além disso, se a educação não ocorre apenas entre os muros da escola, é preciso afirmar e legitimar os outros saberes adquiridos fora dela. Assim, é necessário, em suas múltiplas dimensões educativas, conhecermos os diversos projetos educativos, suas relações com o espaço e o tempo, bem como as práticas que se estabelecem dentro das instituições educativas e a partir delas em suas articulações com a comunidade e com a cidade.

Pensando nos espaços educativos e em sua relação com os diversos espaços sociais, consideramos que

o desenvolvimento integral pressupõe o fortalecimento das oportunidades de aprendizado pela convivência social, pela ampliação do repertório cultural, pela aquisição de informações, pelo acesso e uso de tecnologias e pelo incentivo à participação na vida pública nas comunidades em que vivem. Quanto mais articulados forem os espaços educativos disponíveis numa comunidade, maiores serão as chances de alcançar esse objetivo (Cenpec, 2003, p. 12).

No Programa Escola Integrada, a escola amplia sua jornada em outro espaço educativo, como em um projeto social da comunidade local. As propostas pedagógicas se misturam, se sobrepõem e se entrecruzam, sendo preciso interrogar que tipo de projeto de sociedade, de educação e de ser humano está inserido nessa proposta. Em outras palavras, seria esse Programa uma possibilidade de transformação nas práticas educativas, de incorporação de diversas formas de saberes? Ou a escola integrada seria apenas um prolongamento de práticas escolares no tempo e no espaço? Ela possibilitaria outra concepção de ser humano, de aprendiz?

Diante da multiplicidade de interesses e de propostas políticas e pedagógicas diferentes, a participação e a articulação com distintos segmentos da sociedade civil está sendo construída na proposta de integração escolar. Nesse encontro de duas propostas educativas distintas (educação formal e não-formal), as concepções educativas, a metodologia de trabalho e a formação de educadores são pontos de debate que exigem construções cotidianas e negociações entre os atores envolvidos: crianças, adolescentes, educadores, família, escola, projeto social, parceiros institucionais e locais, o poder público e a comunidade.

A proposta de educação integral na interface educação-proteção social baseia-se na intersetorialidade, exigindo articulações com outros setores públicos e da sociedade para a promoção de ações de desenvolvimento social, de cultura, de esporte e lazer, de saúde, ampliando suas funções e responsabilidades. O MEC (Brasil, 2009) ressalta esta questão ao considerar que são ampliadas

as possibilidades de atendimento, cabendo à escola assumir uma abrangência que, para uns, a desfigura e, para outros, a consolida como um espaço realmente democrático. Nesse sentido, a escola pública passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que não eram vistas como tipicamente escolares, mas que, se não estiverem garantidas, podem inviabilizar o trabalho pedagógico (p. 17).

Concordamos que a escola não é o único espaço de aprender e que é dependente de outras condições, setores e políticas. Entretanto, acreditamos que a perspectiva da Educação Integral se fortalece pela noção de rede educativa para implantar outros métodos, estratégias e ações educativas integradas, contextualizadas e multirreferenciadas, para além da centralidade na escola ou da ampliação da jornada escolar. Isto é, uma proposta de escola na perspectiva da educação integral pode partir desse lugar formalizado para reorganizar e articular seu projeto político pedagógico com os demais espaços educativos da cidade numa busca de integração entre projetos sem justaposição ou homogeneização. A respeito disso, cumpre assinalar que

a ampliação da jornada não pode ficar restrita à lógica da divisão em turnos, pois isso pode significar uma diferenciação explícita entre um tempo de escolarização formal, de sala de aula, com todas as dimensões e ordenações pedagógicas, em contraposição a um tempo não instituído, sem compromissos educativos, ou seja, mais voltado à ocupação do que à educação (Brasil, 2009, p. 36).

Assim, destacamos três desafios importantes para a educação integral: (1) as tensões envolvidas na reorganização de conhecimentos, espaços e tempos para a construção de um novo currículo escolar integrado com distintos campos de saberes, territórios e dimensões formadoras dos sujeitos; (2) a formação e a valorização dos educadores e professores no trabalho educativo e suas condições de oferecer uma formação de qualidade; e (3) a constituição de uma rede educativa que pressuponha diálogo e ações articuladas entre comunidade, escola, instituições sociais e políticas públicas.

Apontamos alguns desafios para a educação que demandam diálogos e relação estreita entre projetos sociais e a escola. Novos modelos educativos se sucedem na tentativa de potencializar o lado transformador da educação. Acreditamos que o Programa Escola Integrada seja uma dessas tentativas, e possivelmente um caminho potente para uma transformação tão necessária na educação.

 

Contribuições Psicossociais para a Educação

Algumas concepções de aprendizagem que vêm embasando as práticas escolares são calcadas nas teorias de Jean Piaget e de Lev Vygotsky. Esses autores construíram suas teorias no campo da Psicologia Genética, preocupados com a questão da construção do conhecimento. Suas concepções sobre a aprendizagem são importantes para a discussão nos campos educacional, histórico e cultural. O sujeito do conhecimento é considerado agente de seu processo de aprendizagem, indissociado de seu contexto sociocultural.

A vertente construtivista tem em Piaget seu primeiro representante, que pressupõe uma interação dialética entre sujeito e meio para a aquisição do conhecimento. Para ele, o conhecimento se constrói sucessivamente mediante elaborações de novas estruturas mentais no lugar de um programa inato ou preformado ou de uma experiência única do sujeito com o objeto.

Assistimos também, recentemente, a uma grande difusão das ideias de Vygotsky no âmbito da educação. Isso é interessante, pois o foco desse autor é exatamente a mediação cultural no processo de constituição do sujeito. Vygotsky afirma que o ser humano constitui-se enquanto tal na relação com o outro social. Na instância do aprendizado, ele constrói o conceito de zona de desenvolvimento proximal, que nos dá a exata dimensão do papel do outro social na aquisição do conhecimento. Esse conceito se refere ao espaço existente entre dois níveis: o nível de conhecimento consolidado (relativo ao ciclo de desenvolvimento completado) e o nível de desenvolvimento potencial (que se refere às atividades que a criança realiza ajudada por outra pessoa). Dessa forma, o que uma criança consegue fazer com o auxílio externo, inevitavelmente fará sozinha mais tarde.

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções podem ser chamadas de brotos ou flores dodesenvolvimento, ao invés de frutos do desenvolvimento. (Vygotsky, 1988, p. 48).

Tanto a teoria de Piaget como a de Vygotsky têm sido muito utilizadas como referencial para novas práticas pedagógicas. Atualmente, a difusão de escolas construtivistas interacionistas é enorme, e um grande número de profissionais da área educacional tem aderido a essas práticas.

Ora, concebendo a escola como um lugar não só de informação, mas também de formação do sujeito, e considerando que o conhecimento é adquirido pela mediação social, a escola construtivista dá particular atenção à interação com o outro no âmbito escolar. Dessa forma, as atividades escolares são feitas predominantemente em interação, e a resolução de problemas, inerentes ao convívio de qualquer grupo, ocorre por meio de combinados e de compromissos éticos com o outro. Aqui, o respeito mútuo é fundamental para um bom desenvolvimento da criança e do adolescente. Nessa perspectiva, o trabalho educativo é importante para a construção de uma sociedade menos individualista e mais voltada para as questões coletivas. Entretanto, apesar de já ser uma contribuição valiosa nesse sentido, a escola tem pequeno poder de transformação frente a uma sociedade complexa e multideterminada.

Sass (2000) analisa as contribuições da ciência psicológica no campo da educação, buscando uma perspectiva crítica na relação entre esses saberes a partir da psicologia social. O autor aponta outras produções psicológicas que diferem da forte presença das teorias cognitivas e do desenvolvimento no campo da educação. Aponta autores como John Dewey, George Hebert Mead e Henri Wallon, que evidenciam uma psicologia social dirigida à educação com conhecimentos e práticas sociais específicos. Por outro lado, cita Theodor Adorno, que defende a necessidade de uma ciência da psique na teoria crítica da sociedade, a fim de obtermos uma educação para a emancipação. Esse último autor acredita que a psicologia social, como ciência da psique, pode potencializar a teoria crítica em sua busca de transformações, e não reproduções, e pela garantia da autonomia e igualdade para os sujeitos. Ainda assim, a Escola de Frankfurt não defende uma teoria específica para a educação ou qualquer outro campo, conforme ressalta Sass (2000).

Brevemente, Sass (2000) apresenta outras contribuições possíveis da psicologia social referentes aos estudos sobre as interações grupais e suas influências individuais e coletivas, sobre a interação extraclasse, além do papel das atividades artísticas, culturais, esportivas e científicas para a aprendizagem do indivíduo e dos grupos. Numa perspectiva psicossocial, o autor defende contribuições críticas da psicologia sobre a educação dirigida à formação de sujeitos autônomos. Além disso, ele questiona qual perspectiva psicossocial adotar, à qual teoria (ou teorias) da psicologia social recorrer e aconselha cautela para aceitar ou rejeitar as psicologias sociais e seus diversos objetos de estudo.

Na trilha de um projeto educativo emancipatório, Boaventura Santos (citado por Oliveira, 2006) ressalta a necessidade do desenvolvimento da autonomia intelectual e social dos sujeitos em seus processos de aprendizagem e de socialização. Em sua pedagogia do conflito, o autor defende uma educação para o inconformismo, no qual acredita que aprender conhecimentos conflitantes poderá produzir e potencializar indignação, ampliar as formas de compreensão da realidade e, daí, transformá-la. Além disso, acredita que o conflito cultural é central na formação dos sujeitos e, sendo assim, é preciso criar espaços educativos para o multiculturalismo.

Ainda assim, diante dessa diversidade cultural possibilitada ou valorizada pela ampliação dos espaços educativos, corremos o risco de repetirmos ou cristalizarmos hierarquizações de saberes e de formas de aprender e ser no mundo. Produzimos determinados saberes, conhecimentos e práticas de acordo com os diversos espaços-tempos em que estamos inseridos cotidianamente, nos quais se formam redes sociais ou redes de subjetividades. Dessa forma, os processos educativos, em suas práticas sociais e cognitivas, estão atrelados à formação das redes de subjetividades; logo, é necessário democratizá-los, na perspectiva de Boaventura Santos (citado por Oliveira, 2006).

Santos (citado por Oliveira, 2006) critica o paradigma moderno, que prima pela ordem e pela racionalidade, como forma hegemônica de conhecimento (conhecimento-regulação). Ele denuncia que a relação entre ciência e capitalismo resume os problemas sociais em questões técnicas cientificamente eficazes e neutras. Já o conhecimento emancipação reconhece certo caos e resgata a valorização da solidariedade como formas de saber. Sugere, então, como alternativa, a aplicação edificante da ciência, que ocorre numa realidade concreta, parte de consensos locais, num processo argumentativo, de comunicação e diálogo. Entretanto, nessas negociações, há riscos de silenciamentos, violências e estranhamentos. Esses conceitos de conhecimento-emancipação e de conhecimento-regulação, bem como a aplicação técnica da ciência, iluminam alguns pontos presentes na discussão de educação proposta no presente texto.

Por um olhar psicossocial, nossa intenção é problematizar o Estado em suas políticas educativas, destacando a relação entre cidadania, emancipação e subjetividade, como articulado por Santos (1999). Nesse sentido, perguntamos: a implantação de uma educação de tempo integral busca a formação de sujeitos mais autônomos?

A discussão sobre a função da educação é fundamental para pensarmos quais concepções de aprendizagem, de sujeito e de instituições educativas orientam nossa prática. Também orienta nossas reflexões sobre que formação queremos para os sujeitos, quem é o educador, sua formação e que função buscamos para a educação em seus aspectos políticos, econômicos e sociais.

Em certo sentido, abordagens psicossociais afirmam o sujeito como produtor de conhecimento e reconhecem a importância da construção da autonomia em um processo de construção de conhecimento. O encontro da escola com projetos sociais seria complementar, pacífico e isento de conflitos? Teríamos finalmente encontrado tempo e espaços comuns nos quais poderíamos trabalhar para uma formação ampla, integral e libertadora? Ou estaríamos vivendo uma ampliação das formas de controle e reprodução da cultura dominante, na qual os sujeitos, vivendo uma educação de tempo integral, estariam constantemente sendo moldados e formatados de acordo com as normas sociais vigentes?

 

Educação, Cidadania e Subjetividade: uma educação transformadora

Dentro da concepção de uma política social cidadã, Santos (1999) argumenta que a noção de cidadania exige uma articulação com a subjetividade na medida em que já não se trata apenas de ter acesso a bens e serviços. O exercício dos direitos pressupõe um sujeito que reflita sobre suas crenças, desejos, alianças e projetos. Além disso, na articulação entre cidadania e subjetividade, o autor acrescenta uma terceira dimensão: a emancipação. Isto é, não nos basta supor uma sociedade, na qual os direitos sejam atendidos e onde a participação é intensa. É necessário também que o sentido dessa articulação fortaleça a autonomia, e não relações de dependência.

Pautados por uma visão controladora ou pela visão da cidadania participativa, há na política e nos projetos sociais conhecimentos incorporados sobre o sujeito inserido em sua cultura e em suas relações sociais e institucionais (Batista, 2006). Nesse sentido, dentro do contexto das políticas públicas, se reconhecemos o cidadão como sujeito de direitos e de desejos, reconhecemos também uma relação entre cidadania e subjetividade. É necessário, portanto, introduzir, na concepção e nas metodologias das propostas educativas, as contribuições dos campos de conhecimento que teorizam e instrumentalizam o trabalho com os sujeitos em suas interações, como a psicologia social.

Os programas e projetos sociais instauram espaços educacionais diferenciados, brechas que permitem a hibridação de diversos saberes. São espaços profícuos para a experimentação de novas ações educativas e de efeitos sobre os sujeitos que os habitam. Esse trabalho educativo dever estar comprometido com a educação integral de crianças e adolescentes e poderá contribuir para o exercício da cidadania e para a formação de sujeitos protagonistas.

Acreditamos que um ponto de partida para uma educação transformadora seja primeiramente reconhecer as limitações das práticas escolares em relação a uma sociedade marcada por desigualdades sociais e relações de dominação. Dessa forma, descartamos desde já uma ilusão da possibilidade de existência de uma escola redentora, harmoniosa e a serviço apenas da promoção de uma igualdade social. Por outro lado, não podemos enxergar a escola apenas como um instrumento de manutenção da dominação das classes privilegiadas, desconsiderando-a como palco das lutas de classe. A escola, portanto, não seria redentora nem reprodutora, mas transformadora. Mas como seria essa escola transformadora?

Ora, a escola tem em si todas as contradições e conflitos existentes na sociedade, o que, segundo o materialismo dialético, são as condições, ou melhor, o motor da mudança. Uma escola que se pretende transformadora, comprometida com a luta contra as desigualdades, deve vitalizar e direcionar as forças progressistas existentes em seu seio para garantir à classe popular a aquisição de conceitos e conhecimentos que a instrumentalizem para a participação no processo de transformação social. É, pois, uma escola consciente do seu papel político na luta contra as desigualdades sociais e econômicas. Isso não quer dizer que o seu objeto de conhecimento seja essencialmente as relações político-sociais ou a conscientização social explícita dos alunos por meio somente das disciplinas sociais.

O português, a matemática etc. são áreas de conhecimento de suma importância na instrumentalização da classe dominada para a participação nas mudanças sociais. A preocupação se dá quando estes são tomados apenas como conteúdos em si, neutros, dissociando-os de uma prática social mais ampla. Por isso, a contribuição de um professor será tanto mais eficiente na conscientização social de seus alunos quanto mais ele for capaz de compreender os vínculos de sua prática com a prática social global. Ou seja, qualquer conteúdo ensinado e aprendido nas escolas deve vir articulado com suas condições de produção, pois conhecimentos não são neutros. Assim, as crianças deveriam entender a produção das diversas linguagens, dos diversos dialetos, dos diversos falares presentes na sociedade, e não apenas a linguagem oficial. Isso pode ser feito por meio da coexistência e da legitimação de linguagens usadas pelas classes populares, que estão presentes em diversas manifestações culturais, como o hip-hop, por exemplo. Nesse sentido, a lógica dos projetos sociais, nos quais geralmente são oferecidas oficinas de capoeira e hip-hop, entre outras, acrescenta ao conteúdo escolar outras formas de linguagens que valorizam as diversas formas de expressão presentes entre as crianças e jovens de determinado espaço social.

Gostaríamos de acrescentar que, ao contrário de um modelo positivista que prega a passividade do aluno como condição do aprender e concebe a consciência do sujeito como uma caixa vazia passível de ser enchida por outro, acreditamos no diálogo entre educador e aluno como promotor do conhecimento e, na forma de interação, como possibilitadora do desenvolvimento da consciência social. Esse desenvolvimento transforma professor e aluno simultaneamente, num processo dialético e dialógico. É nesse momento central que a tomada de consciência se transforma, verdadeiramente, em conscientização (Freire, citado por Jorge, 1991).

Ressaltamos, ainda, que em uma escola transformadora a cultura popular não é rejeitada nem substituída pela cultura dominante. As formas culturais dominantes são apresentadas como armas de luta para a participação social e consequente possibilidade de transformação social pelas camadas populares. Daí, a importância e a esperança que depositamos nos projetos que articulam a dimensão escolar com as práticas dos projetos sociais.

 

Considerações Finais

Mesmo levando em consideração todas essas colocações que afirmam a possibilidade de existência de uma escola transformadora, faz-se necessário pensar a possibilidade de ações educativas realizadas em outros espaços. No mundo contemporâneo, a lógica da dissolução das fronteiras adentrou o muro educacional, muitas vezes esfacelando-o e disseminando práticas educativas por todo o tecido social. Esse fato é interessante porque muitas vezes torna-se um potente motor de transformações sociais, até mesmo mais do que a escola.

No entanto, para um desenvolvimento integral dos sujeitos, não basta ampliar o tempo na escola. É preciso qualificar sua ação, seus professores, valorizar seu fazer, construir projetos coletivos com os alunos a partir de seus contextos e dos conteúdos escolares. Com respeito a esses últimos, é necessário revê-los. Quais, quando e por quem esses conteúdos escolares foram definidos? Para quais alunos, com quais intenções, temos um projeto de escola? Assim, é preciso cuidado para não escolarizarmos os mais variados espaços de aprender, bem como ignorar as mudanças necessárias no contexto escolar. Um projeto de educação formal requer um diálogo entre os demais espaços educativos, sem massificá-los, sem homogeneizá-los, sem desrespeitar os diversos processos de socialização.

Nesse sentido, a lógica educativa dos projetos sociais seria muito bem-vinda para se pensar a escola. A lógica mais flexível e mais caótica dos projetos sociais é vital para provocar pequenos tremores nas lógicas tão disciplinares das escolas e para trazer vida em realidades muitas vezes cristalizadas no cotidiano escolar. Essa cristalização por vezes também ocorre nos projetos sociais, com suas grades de horários, conteúdos, planos de aula etc. Em outro sentido, certa “disciplinarização” nos tempos e espaços de aprender dos projetos sociais trazida pela lógica escolar também pode provocar tremores no sentido de se estabelecer os momentos e conteúdos de aprender. Consideramos que não se constrói sem constância de encontros, de espaços, de lugares e de pessoas. Essa organização e esse saber a escola possui.

Enfim, apostamos que esse espaço híbrido (construído no entre projetos sociais e escola) possa se configurar como um espaço profícuo de experimentações e construções de formas mais potentes de aprendizado e de formações subjetivas.

Esse encontro não é trabalho fácil, pois traz um desafio novo, que envolve o encontro de dois campos. Importa encará-lo não como uma luta de forças, como uma competição entre lógica formal e não-formal, com profissionais de um campo procurando impor sua forma de educar. Importa deixar que um espaço seja transformado pelo outro, que as lógicas se interpenetrem, para que um outro espaço seja forjado nesse encontro. Aí, sim, talvez consigamos construir algo de novo na educação.

 

Referências

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Recebido em: 09/11/09
Aceito em: 19/08/10

 

 

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