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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.3 no.1 Juiz de fora jul. 2010

 

ARTIGOS

 

Corpos e espaços híbridos na Delegacia da mulher em Fortaleza

 

Hybrid bodies and spaces in the women's Police Station in the city of Fortaleza

 

 

Ricardo Pimentel Mello1; Luísa Escher Furtado

Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho originou-se de uma pesquisa sobre violência conjugal e ingestão de bebida alcoólica. Em 2009, realizamos oito visitas à Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza (DDM). Pesquisamos como as pessoas (corpos) que se dirigem a essa Delegacia são posicionadas como se apresentassem "identidades" que delineiam maneiras de viver. Utilizamos observações, anotações, câmera fotográfica e conversas, cartografando a composição dos espaços: como se constituem, a quem são destinados, o porquê. Percebemos que a diversidade é na DDM ordenada na dualidade feminino/masculino. O modo como os corpos são posicionados delimitam fronteiras entre mulheres (quem a Delegacia deve defender) e homens (de quem as mulheres devem ser defendidas). Isso reflete no modo como adereços móveis são ordenados e nas autorizações ou proibições da circulação nos cômodos. Assim, há na DDM ordenação de humanos e não-humanos em posicionamentos heteronormativos. Também, há resistências a isso, mas com menor visibilidade.

Palavras-chave: Corpo, Gênero, Delegacia da Mulher, Heteronormatividade


ABSTRACT

This study has arisen from a research on spousal violence and alcohol drinking. In 2009, we made eight visits to the Women Protection Police Station of Fortaleza (DDM). We studied how the people (bodies) who go to this Police Station are placed as if they presented "identities" which outline their ways of life. We used observations, notes, photography, and talks, mapping the composition of the spaces: how they are constituted, to whom they are destined, and why. We realized that the diversity in the DDM is ordered into the duality female/male. The way in which the bodies are positioned creates borders between women (whom the Police Station must protect) and men (against whom the women should be protected). This reflects in the way that movable ornaments are placed and in the authorizations and prohibitions regarding the circulation in the rooms. Thus, there is, at the DDM, an organization of humans and non-humans in heteronormative positions. There is also a resistance against that, but with less visibility.

Key words: Body, Gender, Women's Police Station, Heteronormativity


 

 

Para utilizar desvios, ou enveredar por ruas paralelas, nada é mais conveniente do que o ensaio. Pode-se iniciar um ensaio indo a qualquer direção, seguros de que, se [...] não der certo, poderemos voltar e começar tudo uma vez mais [...]. Passeios por ruas paralelas ainda mais estreitas, ou desvios mais amplos, também não causam muito dano, pois não esperamos encontrar progresso ao fim de uma estrada reta, onde se anda incansavelmente para frente, e sim através de caminhos sinuosos e improvisados, onde o resultado aparece onde tem que aparecer. E, quando não se tem mais nada a dizer sobre o assunto, seja por enquanto ou para sempre, podese simplesmente deixá-la de lado (Geertz, 2006, p. 14).

Tendo em vista essas palavras de Clifford Geertz, desejamos que nosso texto seja considerado um ensaio. É como se estivéssemos ensaiando uma dança; e, como é comum nos ensaios de dança, dançamos e podemos nos movimentar fora do compasso exigido, podemos nos desviar do ritmo formal. Isso é permitido nos ensaios para que o espetáculo seja belo aos sentidos de uma plateia.

Este trabalho integra uma pesquisa mais ampla, ainda em andamento, sobre as relações que são estabelecidas entre a ingestão de álcool e a violência conjugal. Em função dessa pesquisa, iniciamos nosso trabalho na Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza (DDM) por a considerarmos como um importante local para buscas sobre a temática, como indicam pesquisas anteriores que apontam para isso (Lima & Méllo, 2008; Medrado & Méllo, 2008).

O início da pesquisa previa conhecer o funcionamento da DDM, em especial os caminhos trilhados lá por homens acusados de cometerem violência contra mulheres, para que compreendêssemos a trama que se tecia desde a chegada da denúncia de violência até os encaminhamentos que as profissionais davam para os homens denunciados. Para isso, observamos passos e espaços, anotamos minuciosamente o que considerávamos necessário, fotografamos e conversamos com quem consentia e circulava nesse espaço, para assim montar um cenário. Desde nossa primeira visita, como descreveremos a seguir, logo nos chamou a atenção que a DDM estivesse organizada espacialmente em função de relações de gênero, algo que poderia parecer óbvio, mas, ao mesmo tempo, despertar o interesse para compreender de que forma isso orientava a vida da DDM.

Partimos da premissa que, ao nos referirmos aos espaços da Delegacia, inscrevemos acontecimentos apontando efeitos de poder e buscamos traçar como os corpos são posicionados na DDM em função de regras de ordenação da circulação lá existentes, ou seja, consideramos que não se tratava de uma ordenação ou de balizamentos com o simples intuito de organizar a fluidez das demandas da DDM, mas que esses posicionamentos humanos e não-humanos acontecem em redes de poder, como observou Foucault (2003):

No balizamento das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, dos enquadramentos, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos - históricos é claro - de poder. A descrição espacializante dos fatos de discurso abre para a análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados. (p. 182).

Dessa forma, buscamos mapear a composição dos espaços: como se constituem, a quem eles são destinados e os porquês disso. Na Delegacia, desejávamos que os caminhos que por lá traçávamos nos surpreendessem e permitissem desvios ao desconhecido. Em resumo, a pesquisa que desenvolvemos e que deu início a estes escritos foi marcada inicialmente por um "estudo exploratório" de natureza qualitativa e contextual (Piovesan & Temporini, 1995), realizado na DDM, que apontou para um diagrama que articulava o mapeamento do lugar com procedimentos jurídicos, policiais e sociais, construindo uma geografia que se fez na medida em que delineamos a distribuição e organização no espaço de corpos humanos e não-humanos em função do uso que se fazia deles.

Conforme Jesús Arredondo (2005), um espaço (indeterminado) se transforma em um lugar (determinado) em função de um uso cotidiano. Assim o "imóvel" localizado à rua tal, sob o número tal, no bairro tal, na cidade de Fortaleza, um dia foi uma casa e agora passou a ser uma Delegacia. Podemos ver que essa construção não é tão "imóvel" assim. Por mais que a sua estrutura física tenha sido preservada de algum modo lembrando seu primeiro uso como residência, uma simples identificação em sua fachada lhe insinua e lhe impregna de outro saber-poder. Não é mais uma "casa qualquer" (se é que existe uma casa qualquer) e tornou-se, como indica a identificação, a Delegacia de Defesa da Mulher. O espaço em nossa pesquisa é tratado como "uma categoria para pensar a vida" (p. 91). Uma categoria que tem movimento, diversamente de outra forma de tratar

o espaço como o elemento da binariedade tempo/espaço: o tempo seria a sucessão, o andamento, o processo, ou seja, o elemento com movimento; e o espaço, como lugar delimitado por fronteiras, fixo, imóvel. Em nossas análises, temos a intenção de relacionar essas categorias como imbricadas com os nossos modos de viver ou com seus usos cotidianos.

A Delegacia de Defesa da Mulher funciona 24 horas, todos os dias. Assim, pode ser caracterizada como em "estado de urgência", onde parar significa morrer (Virilio, 1996). Um espaço onde o "tempo não para". Desse modo, ela vive em movimento, com usos bem delimitados (juridicamente, por exemplo). Nela, há corpos que se fazem: delegada, escrivã, agressor, vítima, ambulante etc. Assim, nem o espaço nem os corpos são inertes, pois ambos se constituem em rede.

Consideraremos que o corpo não é meramente um 'natural' que jaz sobre um território, ele é um território; um lugar donde acontecimentos inscritos nele podem ser vistos e ao mesmo tempo é esse território de domesticação e de rebeldia que luta contra seus próprios acontecimentos. (Bentolila, 2005, p. 11).

Os corpos têm movimento, se fazem em movimentos e são movimentos. Corpo, no uso que damos, não é massa onde se moldam músculos e formas de viver, mas se faz com e no movimento. Como nota Guacira Louro (2008): "a gente só se equilibra em movimento..." (p. 11). E esse movimento não acontece determinado por discursos, por relações de poder, acontece em relação a discursos e poderes, pois, como diz Judith Butler (2008), a materialização das normas nunca é completa; o corpo resiste e inscreve fronteiras e permanências, constituindo uma superfície. Assim, os corpos se compõem "com" e "no" espaço de vida cotidiana. Espaços cada vez mais apressados, como diz Virilio (1996). Os corpos fundem-se na velocidade que os constituem: sucessão de imagens, desenhos, sons, ritmos, técnicas, maneiras, códigos de comportamentos, roupas etc. Os corpos perdem e refazem limites; territorializam e desterritorializam conforme se deseja uma determinada composição com e no espaço. A isso, podemos chamar de geografia: mapas que se fazem e se desfazem. Mas não se trata de mapas que são traçados em função de um desenho predeterminado naturalmente, já que território ou espaço podem ter uma noção geográfica; mas são, "em primeiro lugar, uma noção jurídico-política: o que é controlado por certo tipo de poder" (Foucault, 2003, p. 180). Nos espaços, os espaços se constituem e constituem relações de saber e poder. Por isso, seus mapeamentos, como em uma pesquisa exploratória, terminam por traçarem estratégias que configuram determinado saber-poder. No caso de nossa pesquisa, são as disposições de arquiteturas, fotos, cores, móveis, discursos e pessoas, entre outros, que operam algo, tornandose instrumentos que proporcionam determinado movimento, desenho, rede de relações estratégicas de saber-poder. Nessas disposições estratégicas, constituem-se determinadas relações que deixam de ser representações para serem analisadas como diagramas geopolíticos, ou seja, espaços pensados como possíveis de colocarem em movimento determinadas estratégias ou como espaços que colocam em movimento determinada política.

Quanto mais eu caminho, mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber têm de ser analisadas a partir não dos tipos de consciência, das modalidades de percepção ou das formas de ideologias, mas sim das táticas e estratégias de poder. Táticas e estratégias que se desdobram através das implantações, das distribuições, dos recortes, dos controles de territórios, das organizações, de domínios que poderiam bem constituir uma espécie de geopolítica, por onde minhas preocupações iriam ao encontro de seus métodos (Foucault, 2003, p. 188).

Com essas premissas, podemos concluir que a geopolítica dos espaços faz deles acontecimentos cujos elementos não têm uma existência anterior a estes, mas coexistem neles. Assim, um acontecimento se estabelece em conexões, em redes de elementos organizados, vigiados e controlados em função de uma geopolítica.

Os espaços como vida cotidiana compõem um "drama", onde se misturam o trágico e o cômico, um permitindo que o outro aconteça. Sem um, não há o outro. O trabalho cartográfico é traçar mapas, caminhos que articulem elementos que permitem determinada configuração a um acontecimento. Saber e poder configuram espaços inventados historicamente, dando-lhes formas de acontecimentos. Os elementos humanos e nãohumanos, suas funções, suas disposições, estão a serviço de estratégias de disciplinarização da vida, que, por sua vez, também geram resistências.

Buscamos mostrar como os espaços em geral estão constituídos de elementos diversificados caracterizados pelo que Bruno Latour (1994) denomina de "hibridizações" : os quase-humanos e quase-objetos que se formam em rede (Latour,1994)2. Esses híbridos não ocupam exclusivamente nem a posição de humanos, nem a de objetos, deixando de serem classificados rigidamente como "coisa", "natureza" ou "cultura". Com relação à nossa pesquisa, como classificar o espaço na/da Delegacia? Há objetos que são "quase-humanos" na medida em que seus usos se fazem diretamente relacionados a uma classificação de gênero: uma barra de ferro fixada à parede e unicamente utilizada para prender homens, e não mulheres, é um objeto que "tem gênero". Barra, gênero, homens, paredes, algemas, violência, agressor, vítima etc. são elementos que se articulam e formam a DDM. Não são elementos puros, naturais ou que têm vida sem que sejam articulados de determinada forma. Assim, Latour (1994) nos diz: "à prática de purificação [...], convém acrescentar as práticas de mediação [...]" (p. 55). Em rede, os "quase-objetos" mediam práticas de "quase-humanos", e vice-versa.

Temos de ter cuidado com esse processo de mediação para rompermos com posturas que negligenciam os agenciamentos não-humanos. Somos geralmente levados a crer que só os humanos agenciam objetos e, assim, caímos na armadilha da natural supremacia humana que sempre media por meio dos sentidos que damos aos não-humanos. Por exemplo, a cor rosa media "gênero feminino". Desse modo, os objetos ainda dependem dos sentidos dos humanos para terem vida. Permanecemos imersos no repertório moderno de que somos o centro, a razão: "misturamos sem o menor pudor nossos desejos com as coisas, o sentido com o social, o coletivo com as narrativas" (Latour, 1994, p. 87). De um lado, temos o "tudo é retórico, tudo é social, ou tudo é construído" (pelos humanos, claro!). Do outro lado, "temos a natureza, o ambiente, o universo" que até "modificam-se", mas por causa dos humanos. Trata-se de separar aquilo que cotidianamente vive junto.

Confesso que não aguento mais sentir-me eternamente fechado somente na linguagem ou prisioneiro das representações sociais. [...] Estamos cansados do domínio eterno de uma natureza transcendente, que não se pode conhecer, inacessível, exata, e simplesmente verdadeira [...]. Estamos cansados dos jogos da linguagem e do eterno ceticismo da desconstrução dos sentidos. O discurso não é um mundo em si, mas uma população de actantes3 que se misturam tanto às coisas quanto às sociedades [...]. (Latour, 1994, p. 88-89).

Michel Callon (1998), Bruno Latour (1994, 2000), John Law (1992) e outros criaram a noção ator-rede para questionarem os fundamentos das nossas análises. A tentativa foi a de romper com a dualidade humano/não-humano e natureza/sociedade e, ao mesmo tempo, dar vida às nossas análises, que vão além da busca de sentidos escondidos nas ações ou nos objetos, que vão além de uma análise de poder que coloca pessoas como conscientes e outras como usadas. Enfatizamos que relações de saber-poder buscam fazer um diagrama de alianças entre diversos atores que se articulam em redes. Como afirmam Domenèch y Tirado (1998):

[...] os fatores sociais não são suficientes para explicar a dinâmica da sociedade, é preciso recorrer a meios heterogêneos [...], levar em consideração o não-humano [...]. Dito de outro modo, para explicar o social, para entender a dominação, temos que deixar de lado a preocupação exclusiva com as relações sociais e levar em consideração os actantes não humanos (p. 23).

Ao entrarmos na Delegacia, não sabíamos o que ou em que nos enredaríamos. Queríamos pesquisar em redes, tornando-nos ora humanos ou quase-humanos, ora objetos ou quase-objetos. Assim, temos espaço em movimento com corpos também em movimento, na Delegacia em movimento. Com tanto movimento, cuidamos para não ficarmos tontos.

 

A Delegacia e Pesquisadores em Movimento

Entramos e não havia música, mas agora, neste texto, propomo-nos a "entrar" na Delegacia nos enredando nos fluxos de uma:

Nelson entra na roda
Puxa teu par pra dançar
[...]
Zuza, Cláudio, Zeca, Marco Aurélio entrem na
roda
Teté entra na roda
Com tua caixa pra
tocar
(Cacuriá de Dona Teté - Valsa)

O Cacuriá é uma dança típica do Maranhão, que tem um ritmo empolgante, com roupas coloridas4 e nos foi apresentada por uma das participantes de nosso grupo de estudos e pesquisas. Escolhemos essa dança porque faz eco com nosso modo de pesquisar e também com o início de nossa pesquisa, pois estávamos ávidos por chegar à Delegacia e colocar todos os personagens híbridos na roda de dança em nossas observações e análises.

Depois de rodar, como no Cacuriá, por algumas ruas no centro da cidade, enfim encontramos a Delegacia. Estávamos ao mesmo tempo felizes de começar a dança-pesquisa, mas sem sabermos que ritmos encontraríamos para dançar ou sem sabermos que pares encontraríamos para entrar na roda. Por pares, já entendemos os quase-humanos e quase-objetos, os híbridos. Assim como o Cacuriá se faz com as roupas coloridas, toque das caixas, pessoas etc., a Delegacia também se fazia em híbridos os mais diversos.

Histórias diversas se misturam no prédio. A Delegacia está localizada perto da metade de uma pequena rua de apenas uma quadra, sem grande movimento, no centro da cidade de Fortaleza (Figura 1). Este personagem da história da cidade de Fortaleza era obstetra tal como seu pai, o médico João da Rocha Moreira, e lançou a ideia de construção da "Maternidade César Cals": coincidências que hibridizam a rua e a Delegacia com "a mulher" e a maternagem.

 

 

A Delegacia funciona ambientada numa casa de dois andares, com um espaço na frente, que parece ter sido um dia um jardim, mas agora está cimentado. Nas áreas de circulação, a pintura está em branco e outra cor que está entre lilás e róseo, indicando cores que agenciam o feminino. Na sala do Setor Social, há uma parede verde. Nesse espaço, discute-se o destino do casal, e o verde talvez agencie esperança de que algo mude nas relações que mesclam afeto, desejo com violência, tal como diz a assistente social da Delegacia: "Nós não estamos aqui pra juntar, nem pra separar o casal. Estamos aqui pra mudar a situação de violência". É importante ressaltar que, mais do que associações que parecem simplistas entre cartazes, cores e modos de viver, nos interessam não uma análise do conteúdo (significado) inerente aos cartazes, fotos, cores, enfim aos objetos (quase-humanos), mas quais os efeitos deles no movimento da Delegacia. Ou seja, tratar esse material como actantes, lembrando que isso inclui nós, os pesquisadores. Assim, nós também fazemos usos de tudo isso, dando uma formatação.

Em toda a casa, a pintura está desgastada. É como se nunca houvesse tido uma reforma no prédio desde sua transformação de residência para Delegacia. Mas parece existir investimento na decoração com quadros que expõem pinturas de flores e cartazes condenando a violência contra a mulher (Figura 2) e a exploração sexual de crianças e adolescentes (Figuras 3 e 4) em diversos ambientes. Exemplificamos com alguns cartazes.

 

 

 

 

 

 

No prédio, há espaços específicos para mulheres, para homens e alguns para circulação de ambos, como na recepção, onde a circulação de pessoas é grande e franqueada a todos por se tratar do lugar onde se delimitará para onde, quando e com que finalidade corpos femininos e masculinos podem se dirigir. É onde ocorre a triagem da circulação; nesse caso, a seleção tem marcas claras de escolhas de gênero.

Ao lado da recepção (Figura 6), há uma sala de espera exclusiva para mulheres (Figura 7) com ambiente climatizado, sofás, cadeiras, bebedouro, revistas ("Quem acontece", "Época"), televisão e cartazes (principalmente os que condenam a violência contra a mulher). Os cartazes que estão na recepção se referem à violência contra a mulher e são, em sua maioria, produzidos pela Prefeitura de Fortaleza5. Os que ficam no segundo piso tratam da exploração sexual e são fornecidos em geral pelas outras delegacias especializadas da Polícia Civil. A sala de espera, via de regra, é proibida aos homens, que devem ficar do lado de fora do prédio, mas existem situações em que ocorrem exceções. Presenciamos duas delas: uma prisão em flagrante, que descrevemos mais à frente, em que ficaram dois homens: o detido e o policial que o vigiava; e a outra situação foi quando a recepcionista permitiu que o pesquisador lá ficasse, o que chamou a atenção de outro homem, que se apresentou para audiência e que inquiriu sobre os motivos de ter de esperar lá fora, já que havia um homem na sala de espera. A recepcionista, a essa indagação, respondeu com veemência que aquele homem [o pesquisador] era "um rapaz da UFC e estava esperando para falar com a doutora", encerrando a conversa.

 

FIGURA 5

 

 

 

 

 

Do outro lado da recepção, fica a sala do Setor de Ocorrência. Nessa sala, só entram as mulheres que irão registrar o Boletim de Ocorrência (BO) de uma situação de violência sofrida por elas. Não é permitida a entrada de acompanhantes, exceto crianças. Nesse lugar, a policial, logo que recebe a mulher, pergunta: "O que está acontecendo?" A mulher narra sua queixa e, durante o relato ou após, a policial faz outras perguntas que considera importantes, tais como: nome, estado civil, de quem é a casa que a mulher mora, se o "acusado" usa drogas, quantos filhos a mulher tem, quantos são da relação em questão e se já fez outra denúncia. Isso acontece ao lado de uma grande janela que dá para a frente da Delegacia. O movimento nessa sala nos mostra que, apesar de todas as prescrições normativas que envolvem uma delegacia, estas se misturam ao inusitado, mas sempre se buscando manter a matriz de gênero como critério de circulação. Presenciamos uma situação que exemplifica isso.

Durante a pesquisa, aconteceu o fato de uma pessoa interferir no registro do Boletim de Ocorrência pela janela. A princípio, a policial tentou ignorar, mas houve insistência. Do lado de fora, uma acompanhante relatava fatos novos e maior gravidade da violência que sua irmã (que estava realizando o BO) sofria do companheiro. Com a reincidência da interrupção, a policial repreendeu a acompanhante, fechou a janela e ligou o ar-condicionado. Nesse episódio, as fronteiras na Delegacia são borradas e reiteradas. Espaços, autoridades, hierarquias e também individuações se fazem e se desfazem no cotidiano. A fronteira que faz de um corpo um sujeito não é lógica, é arbitrária, e a policial posicionou-se como árbitro, que ora deixou a falta acontecer, ora penalizou a falta.

Voltando à descrição do espaço-movimento, existe um ambiente amplo e quase todo descoberto entre o portão de entrada localizado na rua e a porta da recepção localizada já no hall (porta da casa-delegacia). Nele, há um banco de madeira sem encosto, sob uma pequena cobertura, para onde a recepcionista encaminha os homens que esperam pelas audiências. Antes, havíamos mencionado a situação em que um homem tentou burlar essa regra e foi impedido pela recepcionista. A delegada mencionou que gostaria de ter uma sala para os homens, mas não há esse espaço no prédio. Assim, os homens ficam do lado de fora da casa-delegacia. Alguns conversam entre si e outros ficam sós. Algumas mulheres ficam lá na companhia dos homens; dentre elas, às vezes, a própria companheira que denunciou e que reatou a relação no tempo entre o registro da ocorrência e a primeira audiência na Delegacia. Ou seja, é um espaço prioritariamente designado para homens.Também nesse espaço fora do prédio, entre o portão e a porta de entrada, há uma senhora que vende bolo e café. Quando a pesquisadora foi comprar um pedaço de bolo, com o intuito de observar o lado de fora da Delegacia, um homem, que aguardava sua audiência, iniciou um diálogo sobre o sabor do bolo e disse que a pesquisadora não precisava se preocupar em comer o bolo e engordar (ao falar isso, olhava para o corpo dela,"dos pés até a cabeça"). A pesquisadora respondeu dizendo que ela não tinha essa preocupação estética; porém, incomodada com "aquele olhar" e com a proximidade física que aumentava entre os dois por exclusiva iniciativa do homem, desconversou, elogiando o bolo para a senhora, pagou e se retirou para a sala de espera. De alguma forma, entendeu que aquele era um espaço destinado aos homens e proibido para mulheres desacompanhadas. Durante os dois meses que passamos indo à Delegacia, ela não esteve mais naquele lugar. No andar superior, ficam as salas das delegadas, o Setor Social e o local conhecido como o "cantinho do homem". Este, como pode ser visto na Figura 8, está localizado logo após a escada que dá acesso ao andar superior e é onde homens pegos em flagrante ficam detidos sentados, presos por algemas a uma barra de ferro fixada na parede, já que na Delegacia não há celas. Durante as oito visitas que fizemos à DDM, só por uma vez encontramos um homem detido nesse espaço. Acreditamos que isso só acontece quando não há policial para vigiá-los ou quando a sala de espera está lotada. Esse é sem dúvida o espaço mais marcado pelas relações de gênero, com a única finalidade de receber homens.

 

 

Na Delegacia, só trabalham mulheres. Só encontramos policiais homens durante a pesquisa em casos de prisão em flagrante, mas esses policiais, em geral, eram lotados no "Ronda do Quarteirão"6. A Constituição do Estado do Ceará, no art. 185, parágrafo único, prevê: "O corpo funcional das delegacias especializadas de atendimento à mulher será composto, preferencialmente, por servidores do sexo feminino". Desse modo, parece haver o discurso de que mulheres são mais indicadas para atenderem a outras mulheres e, talvez, também possamos concluir que os homens são mais indicados para deter os homens.

 

Espaços que se Arquitetam em Redes

Em nossas visitas, encontramos diversas mulheres usuárias da Delegacia, mostrando que os bailados são heterogêneos: às vezes, fazem-se apresentando a impropriedade da violência e a emergência de enfrentar o mundo da denúncia que põe à mostra o fim do acordo de uma vida vivida junta, achegada; outras vezes, mostram o quanto é difícil e até impróprio denunciar, especialmente em situações que signifiquem trazer para a tutela do Estado relações consideradas privadas, domésticas, familiares, nas quais a violência nasce e é gerida.

Essa dança de histórias estava repleta de tristezas que eram assim não só por causa da situação de violência, mas pelo reconhecer que um relacionamento pode chegar ao fim. Mas, ao mesmo tempo, havia um tom de resistência triunfante por aquelas mulheres estarem ali "denunciando" seus parceiros. De algum modo, apesar de toda dor, elas enfrentavam um mundo que lhes denotava prazer e crueldade, que lhes embaraçava as certezas, tão peculiares aos contos de fadas, da separação "evidente" entre bem e mal.

Quantos embaraços tivemos oportunidade de ver expostos na Delegacia! Tudo se hibridiza e dá contorno à Delegacia: papéis, telefonemas, lágrimas, sons, imagens, lembranças, moralismos, julgamentos, barra de ferro, bolo, policiais, cartazes, cores, documentos, leis, crianças, mulheres, gênero, violência, pesquisa-dores etc.

Na última visita que fizemos, encontramos um homem detido no fundo da sala de espera. Duas pessoas, um policial e uma policial, o vigiavam. Estavam ainda duas mulheres com duas crianças conversando com todos da sala. A primeira mulher contou que "estava fugida de casa", saiu "só com a roupa do corpo". A outra, sua cunhada, comentou: "Não deveria ter saído. Você perde seus direitos!", ao que a primeira retrucou, explicando que havia ido para a casa da mãe porque o marido a agredia muito. Nesse momento, a conversa foi interrompida pela recepcionista, que chamou a mulher que havia saído de casa, para registrar o Boletim de Ocorrência. A acompanhante continuou conversando com a policial, dizendo que eram comuns essas brigas entre sua cunhada e o marido e que as agressões eram constantes. A policial falou que existe muito homem "sem vergonha" e que existe mulher "mais sem vergonha ainda", ao que a outra complementou: "sem vergonha porque não separa". Aqui, hibridizam-se cunhada, mulher-agredida, homem-agressor, policial, moralismo, denúncia, sala de espera, crianças...

As histórias se embaraçam e a pesquisa se desenrola nesses traçados, buscando disposições e ordenações. Latour (1994) dá pistas que ajudam a compreender que, na construção dos "bailados" na Delegacia, inúmeros "sons e passos" se entrelaçam para compor os acontecimentos: não há distinções absolutas entre objetos, falas, humanos, fotos, sendo todos híbridos. Desse modo, quasehumanos e quase-objetos que circulam na Delegacia enredam-se no processo de posicionamento de corpos que estão a se movimentar; movimento aqui entendido como um bailar: agitar-se, mover-se, oscilar, vacilar, descrever percursos; movimento que se faz em acontecimentos, que, como notamos, hibridizam histórias, vidas, salas, cartazes etc.

José Bleger (2007) escreve que "toda organização tende a ter a mesma estrutura que o problema que deve enfrentar e para o qual foi criada" (p. 116). Não entrando no mérito do aspecto generalizador de sua afirmação, ele nos faz pensar sobre um movimento que nos enredou na Delegacia e que está presente em muitas das narrativas das situações de violência: a rigidez nos posicionamentos de homens e mulheres, os relacionamentos conjugais e a Delegacia da Mulher são ordenados na dualidade feminino/masculino, passividade/atividade, fragilidade/força, virilidade/frigidez. O modo como os corpos são posicionados delimita fronteiras entre mulheres (quem a Delegacia deve defender) e homens (de quem as mulheres devem ser defendidas). Entretanto, a assistente social mencionou que, para a Lei Maria da Penha, a violência "independe de orientação sexual", contando que atendeu a "um casal de mulheres". Isso aparenta ser uma resistência aos posicionamentos heteronormativos dos corpos se considerarmos que, nesse caso, não se perpetuou a noção mulher-vítima versus homem-agressor, nem a noção de que necessariamente as relações conjugais são heterossexuais. No entanto, também é possível que os discursos que circulam sobre esse acontecimento coloquem a mulher que agrediu no lugar do homem e a outra agredida no lugar da mulher sem discutir relações de gênero.

Beatriz Preciado (2008) considera a sexualidade uma tecnologia que opera corpos falantes marcados por diferentes elementos do sistema sexo/gênero, tais como: homem, mulher, homossexual, transexual, heterossexual. A autora aponta que esses elementos são "identidades" sexuais que funcionam como próteses, interrupções, acidentes, fronteiras. Essas fronteiras, esses fluxos, são produzidos diariamente na DDM. Buscamos mostrar que é possível entrelaçar elementos que em nós fazem redes e que devem ser instrumentos de análise, para compreendermos as ações políticas dos humanos sobre si mesmos. Sem dúvida esta pesquisa não foi um ato de observação neutra, nem, exclusivamente, relato de entrevistas, mas "fruto de escolhas políticas e éticas que pautam qualquer pretensão investigativa" (Aragão, Barros, & Oliveira, 2005, p.18).Buscamos nos conectar com a dispersão do que acontece em uma Delegacia da Mulher. Ao que parece, chegamos a um momento pós-virada linguística.É necessário ir além da ênfase em discursos e estarmos atentos às alianças e associações que se fazem por inúmeros actantes, como no caso da violência doméstica: governo brasileiro, movimentos sociais, pesquisadores, técnicos diversos, ativistas feministas, mulheres com seus desejos, provas, homens que têm seu principado ameaçado etc. Tudo isso faz espaços por onde circulamos. A Delegacia da Mulher é um importante espaço, que se constitui também na arquitetura de outros espaços. Neste trabalho, esperamos ter conseguido apresentar e discutir essa produção que não para e nem se esgota nestas linhas.

 

Referências

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Recebido em: 15/06/10
Aceito em: 18/10/10

 

 

1 Contato: ricardo_pm@uol.com.br
2 Ao articular a noção de híbrido, Latour (1994, p. 54) emprega o conceito de "quase-objeto" desenvolvido por Michel Serres.
3 Actante é o agente de uma ação. Na Teoria Ator-Rede, não há distinção se os agentes são humanos ou não-humanos. Não se trata de uma origem de uma ação determinada por um ator, mas por redes, atores em aliança.
4 Uma mostra pode ser encontrada em: http://www.youtube.com/watch?v=DyIcadS_IXk&eurl=http%3A%2F%2Fvalsa%2Ecacuriadedonatete%2Eletrasdemusicas%2Ecom%2Ebr%2F&feature=player_embedded#t=36
5 Em 2005, a Prefeitura lançou o Programa de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, tendo como slogan "Uma Fortaleza Bela e sem Violência é um Direito das Mulheres".
6 O Ronda do Quarteirão pode ser descrito como um segmento da Polícia Militar do Estado do Ceará, que circula na cidade em carros 4x4 de grande visibilidade. O governo do Estado considera esse serviço como de uma polícia comunitária, porque cada grupo de policiais se responsabiliza pela segurança de uma área restrita.