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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.4 no.1 Juiz de fora jun. 2011

 

ARTIGOS

 

O significado da mesada para pais de crianças e adolescentes1

 

The meaning of allowance for parents of children and adolescents

 

 

Irani Lauer LellisI,2; Celina Maria Colino MagalhãesI; Iani Dias Lauer LeiteII

IUniversidade Federal do Pará, Belém, Brasil
IIUniversidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, Brasil

 

 


RESUMO

A mesada tem se tornado um relevante tema tanto em psicologia do desenvolvimento quanto em psicologia econômica devido às suas repercussões na educação econômica das crianças e no desenvolvimento infantil. Muitos pais têm-na utilizado como instrumento de inserção econômica. No entanto, há escassez de estudos relacionados à psicologia parental no contexto da mesada. Este trabalho objetivou investigar atribuições e significados da mesada para pais brasileiros de baixa e média renda. Formaram-se grupos focais com 31 pais de renda econômica familiar variada em Belém/PA. Os dados foram analisados por meio do Alceste. Os resultados indicaram orientações, punições, regras e vinculações como atributos da mesada e ainda apontaram frequência, regularidade e valor fixo como características que compõem sua definição, permitindo compreender o que os pais estão transmitindo aos filhos. Os resultados abrem possibilidades para desenvolver instrumentos e estratégias eficazes com respeito ao estudo da relação entre o homem e seu mundo econômico.

Palavras-chave: Dinheiro, Socialização Econômica, Psicologia Parental


ABSTRACT

The allowance has become an important issue both in developmental psychology and in economic psychology due to its impact on the economic education of children and on child development. Many parents have used it as an instrument of economic insertion. However, there are few studies related to parental psychology within the context of allowance. This study aimed at investigating functions and meanings of the allowance for low and medium income Brazilian parents. Focus groups were formed with 31 parents from families with varied income in the city of Belém/PA. The data were analyzed by Alceste. The results suggested guidelines, punishments, rules, and obligations as attributes of the allowance, and they also showed frequency, regularity, and fixed amount as characteristics which make up its definition, which allows us to understand what parents are transmitting to their children. The results open up possibilities for the development of effective tools and strategies regarding the study of the relationship between men and their economic world.

Keywords: Money, Economic Socialization, Parental Psychology


 

 

Desde muito cedo, o ser humano relaciona-se com o mundo econômico. De fato, ainda nos primeiros anos de vida, esforça-se por compreender, por meio das atividades do cotidiano, as relações econômicas nas quais está inserido. A fim de compreender esse mundo financeiro, que é um dos pilares na formação do mundo social, o homem constrói modelos explicativos com o objetivo de melhor entender as várias facetas que compõem o seu mundo (Araújo, 2009). Conhecer como a criança abarca a realidade econômica e os conceitos que possui sobre o uso do dinheiro, sua origem e circulação, ajuda no entendimento dos processos mais gerais e complexos (Denegri, 2000).

Apesar de as crianças ainda não terem um entendimento pleno do mundo econômico, elas comportam-se economicamente e influem nas decisões de compra da família. Todavia, os adultos são fortes influenciadores do comportamento econômico das crianças e de sua socialização econômica. Um instrumento mediante o qual os pais têm influenciado a socialização econômica dos filhos chama-se mesada. A criança, desde cedo, entra em contato com o dinheiro, e esse contato pode acontecer de forma indireta, quando as crianças veem os seus pais comprando ou vendendo alguma coisa, e de forma direta, quando os filhos recebem mesada dos seus pais.

A mesada envolve o dinheiro que os pais dão aos filhos, e o dinheiro é a base de todas as ações econômicas. O entendimento do seu significado é um pré-requisito para a compreensão de outros conceitos, como crédito e lucro (Furnham & Argyle, 1998). Assim, o manejo do dinheiro pode ajudar na compreensão dos demais conceitos econômicos. Muitos são os pais que têm utilizado a mesada como instrumento de inserção de seus filhos no mundo econômico.

O foco deste artigo é a mesada. Pretende-se discuti-la a partir do olhar de duas classes de pais brasileiros com aquisições econômicas distintas e também explorar os aspectos que compõem sua definição e as atribuições destinadas a ela. Pretende-se ainda trazer contribuições para a construção teórica na área de socialização econômica mediante o conhecimento de aspectos do pensamento econômico de pais de classes sociais distintas. Tal conhecimento sinaliza a importância de conhecer as atribuições da mesada na formação de crianças e futuros indivíduos mais conscientes da sua realidade e capazes de conquistar melhor desempenho num mundo social cada vez mais complexo e em constante transformação.

 

Pais como agentes de socialização econômica

Os pais influenciam os filhos de maneira marcante, principalmente nas primeiras vivências dos filhos. Essas experiências iniciais podem influenciar as escolhas e preferências adultas (Becker, 1996).

Os pais são os principais agentes de socialização dos filhos. São também os primeiros condutores da criança quando esta adentra o mundo econômico (Furnham, 2001). É nos anos de formação das crianças que a compreensão econômica aumenta e, por meio de recompensas e sanções, os pais vão instalando nos filhos suas crenças sobre economia (Lunt & Furnham, 1996). Para confirmar essa ideia, Furnham and Argyle (1998), em ampla revisão sobre o assunto, citaram a experiência de um clínico que pediu a seus pacientes que falassem sobre as ideias econômicas de seus pais. Algumas ideias relatadas vividamente pelos sujeitos foram:

'Minha mãe disse que apenas pessoas pobres iam para o céu'; 'Meu pai disse que apenas criminosos eram pobres'; 'Meus pais disseram que eu era uma criança popular porque eles eram ricos e tinham uma casa com uma quadra de tênis. Eles me disseram... se alguém estivesse sem dinheiro, estaria sem amigos'; 'Meu pai sempre disse que um homem nunca deveria deixar uma mulher saber que ele tinha dinheiro ou ela encontraria um jeito de mandar o dinheiro para longe dele'; 'Meus pais disseram que havia um segredo para fazer dinheiro, mas ninguém em nossa família sabia como era. Fazer montes de dinheiro era algo que somente outras pessoas eram capazes' (p. 68).

As pessoas que relataram tais dados lembravam com exatidão das frases ditas pelos pais. Segundo Furnham and Argyle (1998), esse é um indicador da influência dos pais sobre a vida econômica dos filhos em anos posteriores. Autores como Goodnow (1988), Miller (1988) e Ribas (2002) têm salientado essa influência e revelado a existência de uma forte relação entre as cognições dos pais e suas práticas em relação à criança.

Cognições e práticas parentais envolvendo a mesada

O termo cognição foi definido por Ribas (2002) como:

[...] um amplo conjunto de produtos (e. g. crenças, valores, estereótipos, expectativas) e processos psicológicos (e. g. atribuição de causalidade, autopercepção, julgamento), relacionado ao desenvolvimento humano, à maternidade e à paternidade (p. 30).

Partindo dessa definição, acrescenta-se o pensamento de Goodnow (1988), segundo o qual a forma como os pais cuidam dos filhos seria consequência de como os pais concebem esses filhos, o seu desenvolvimento e a tarefa de criá-los.

É possível considerar a evidência de uma ligação entre as cognições, práticas parentais e desenvolvimento infantil em vários aspectos que envolvem o desenvolvimento humano (Miller, 1988). A relação entre cognições e práticas, sendo essas últimas entendidas como ações e/ou comportamentos dos pais, apesar de amplamente discutida na literatura, apresenta-se incipiente, em especial quando se discute socialização econômica.

Os primeiros estudos que investigaram a relação entre práticas educacionais concernentes a dinheiro e conhecimento e ao uso do dinheiro por crianças foram desenvolvidos por Marshall and Magruder (1960). Os resultados indicaram que o conhecimento que a criança possui do dinheiro está diretamente relacionado à extensão da experiência que ela vivenciou. Por exemplo: se é uma criança que tem dinheiro para gastar, e ainda se possui oportunidades para ganhar e poupar esse dinheiro, bem como os hábitos e atitudes dos pais quanto ao gasto. Em 1964, Marshall apresentou resultados que mostraram que não existiam diferenças em relação ao conhecimento financeiro das crianças que recebiam mesada das que não recebiam. Portanto, apenas a mesada não seria fator diferencial para a aquisição de conhecimento econômico, havendo outras variáveis envolvidas nesse processo.

Webley and Nyhus (2006) apresentaram resultados que demonstraram o poder do comportamento econômico dos pais sobre o comportamento econômico dos filhos. Esse estudo foi realizado com filhos de 16 a 21 anos e seus pais, e tinha como objetivo central investigar a influência do comportamento parental sobre o comportamento econômico dos filhos e suas orientações futuras. Os resultados apresentaram que o comportamento econômico dos pais, como discutir assuntos financeiros com os filhos, teve um impacto não muito forte, mas claro, sobre o comportamento econômico dos filhos.

Por outro lado, em estudo recente sobre o papel dos pais como influenciadores do comportamento financeiro de universitários, realizado por Norvilitis and MacLean (2010), foram apresentadas evidências do forte impacto das práticas parentais sobre o comportamento econômico, em especial quanto ao uso do cartão de crédito. Participaram do estudo 173 universitários americanos, com idades entre 19 e 26 anos. Os resultados apontaram que o conhecimento financeiro adquirido mediante a orientação dos pais foi fortemente relacionado a baixos níveis de débitos no cartão de crédito. Não foi encontrada relação significativa entre ter pais com problemas relativos a débito e apresentar o mesmo comportamento. Contudo, observou-se que ter pais que evitavam falar sobre finanças foi preditor do uso problemático do cartão de crédito.

Compreende-se, portanto, que, também no âmbito econômico, os pais exercem influência sobre a vida dos filhos. Resgatando-se as ideias de Goodnow (1988), as cognições parentais são ligadas às práticas, e estas são influenciadoras dos comportamentos econômicos dos filhos. Assim, observa-se que os estudos que enfocaram psicologia parental no contexto da socialização econômica são marcados pela presença tanto das cognições quanto das práticas parentais. Algumas vezes, é encontrada congruência entre as cognições e as práticas; em outras ocasiões, é verificada incongruência; e ainda se verifica, noutro momento, que apenas um desses temas é apresentado: ou as cognições, ou as práticas.

Em um estudo clássico envolvendo essa temática, desenvolvido por Feather (1991), há preponderância das cognições sobre as práticas apesar de o autor propor-se a avaliar ambas. Esse pesquisador, ao comparar a motivação de pais e mães para dar dinheiro aos filhos, observou que a motivação materna é mais voltada para as necessidades da criança do que as motivações paternas, e que as crianças mais velhas adquirem direito automático ao dinheiro, enquanto que o ato de dar dinheiro para crianças mais novas está relacionado ao desenvolvimento da independência, sem diferença para os sexos. Apesar de o autor citar algumas práticas parentais, verifica-se uma predominância das cognições sobre as práticas, já que foi destacada a motivação das mães para dar mesada aos filhos.

Em outro estudo, Furnham (2001) encontrou resultados que evidenciaram tanto as cognições quanto as práticas parentais em relação à mesada. O autor investigou os determinantes das atitudes parentais, crenças e valores relativos ao dinheiro e à mesada, isto é: qual o papel dos pais em relação ao dinheiro e à mesada dos filhos? A pesquisa foi realizada com 300 pais britânicos, que responderam a um questionário referente às atitudes e comportamentos de dar mesada. Os resultados indicaram que a maioria dos pais era a favor da mesada, que ela deveria começar por volta dos seis anos de idade e que a quantia dada deveria aumentar linearmente com a idade da criança, sendo reforçado economizar pelo menos parte da mesada. Foi verificada uma relação de proximidade entre a idade da criança e a quantia recebida. Os pais encorajavam os filhos a economizar e a não pedir emprestado. Eles aprovaram o estabelecimento de regras claras em relação à mesada. Houve controvérsias em relação a se o dinheiro dado à criança deveria ser dependente da conclusão das tarefas domésticas, se os produtos comprados com o dinheiro da mesada deveriam ser declarados com antecedência, se exames escolares deveriam ser recompensados, se os adolescentes deveriam ser encorajados a fazer compras para seus pais, se os pais deveriam fazer adiantamento de mesada e se o dinheiro deveria ser retido como castigo.

Os resultados mostraram, ainda, que os pais concordavam com que os filhos deviam dar-lhes satisfação em relação aos gastos da mesada. Esses pais acharam que não deveria existir diferença de quantia dada em relação ao sexo e que as crianças deveriam pagar juros em relação ao dinheiro que tomavam emprestado dos pais. Quase todos os pais concordaram sobre a importância de falar com seus filhos sobre o valor do dinheiro. No entanto, houve discordância em relação à decisão de comentar ou não com as crianças sobre o orçamento familiar. Esse estudo apresentou, de maneira equitativa, cognições e práticas parentais, sem, contudo, vincular de maneira direta as cognições às práticas.

Em estudo anterior, Furnham and Thomas (1984) discutiram a relação entre cognições parentais e regras instituídas por pais quanto à mesada. Os resultados foram analisados, considerando-se as variáveis gênero, idade e classe social dos pais britânicos. As mães foram mais a favor de combinar com antecedência com a criança quais os tipos de itens que poderiam comprar com a mesada do que os pais. As mães também preferiram dar aos filhos mais velhos mesada mensal ao invés de dinheiro semanal e foram a favor de uma revisão anual quanto ao valor da mesada. Pais mais velhos afirmaram que a mesada deveria estar atrelada ao desempenho de tarefas domésticas. Pais jovens tenderam a ver a mesada mais como um arranjo contratual entre o adulto e a criança do que os adultos mais velhos. Adultos de classe média demonstraram ser mais a favor do sistema de mesada e de começar a dá-la para as crianças numa idade mais precoce do que os adultos de classe baixa. Adultos de classe baixa acreditaram que os meninos deveriam receber mais dinheiro do que as meninas. Nessa pesquisa, observou-se congruência entre a apresentação de cognições e a de práticas parentais.

No entanto, verifica-se incongruência entre cognições e práticas parentais também no estudo realizado por Baele and Vlerick (2000). Nele, as práticas parentais divergiram das cognições que os pais possuíam quanto à mesada. Os resultados mostraram que as crianças possuíam conta em banco, mas não tinham participação na alocação do dinheiro. O dinheiro que era depositado na conta provinha do dinheiro dado no aniversário e em outras ocasiões especiais, mesada e outros que os pais depositavam na conta. As mães relataram que a conta foi aberta no nascimento das crianças e que tinha como objetivo poupar para pagar os futuros gastos do filho. Na definição dada pelas mães do que era mesada, estava incluído o aspecto do livre controle do valor recebido. Contudo, foi verificado que as crianças não tinham muita participação na decisão de escolha de como gastar o dinheiro da mesada. Outra questão observada

referiu-se aos critérios adotados pelas mães para a decisão de atender à solicitação de dinheiro dos filhos quando estes já tinham gasto a mesada. Foi verificado que as mães não davam facilmente o dinheiro. A decisão era norteada pelas questões: a. Época do pedido: É uma ocasião especial ou não? b. Necessidade: A criança realmente precisa ou é apenas um brinquedo? c. Preço: É caro ou barato?

Outros fatores relacionados à prática de dar dinheiro aos filhos foram encontrados por Wronski (1999) em um estudo sobre tomadas de decisão de consumo infantil com pais brasileiros de crianças entre sete e 12 anos. As informações foram coletadas mediante entrevistas e foram distribuídas em seis categorias de análise: responsabilidade da criança, frequência da solicitação, motivo da solicitação, relevância da solicitação, comportamento dos pais quanto à solicitação e crenças sobre o consumo. As categorias relevância da solicitação e comportamento dos pais quanto à solicitação somam mais informações quanto a essa questão.

Os pedidos dos filhos foram classificados pelos pais em quatro classes de acordo com o critério da relevância: pedidos de aquisições desnecessárias, pedidos de aquisições pouco necessárias, pedidos de aquisições necessárias e pedidos de aquisições úteis.O comportamento dos pais quanto às solicitações dos filhos foram classificados em quatro tipos: comportamento consumidor contumaz (atendem ao pedido), comportamento consumidor frequente (quase sempre atendem aos pedidos), comportamento consumidor cuidadoso (atendem aos pedidos se a situação financeira é favorável) e comportamento consumidor em efemérides (atendem aos pedidos preferencialmente em datas significativas).

Wronski (1999) observou que a prática dos pais quanto às solicitações dos filhos era geralmente ceder aos pedidos, independentemente da avaliação que faziam acerca da responsabilidade deles e da relevância da solicitação, havendo, dessa forma, uma incongruência entre as cognições e as práticas dos pais. A incongruência era produto da preferência por ceder a ter de conversar sobre dificuldades financeiras e a necessidade de conter despesas. Somada a isso, a autora observou pouca preocupação em explicar aos filhos o significado do consumo e a valorização do dinheiro.

Os resultados dos estudos citados assinalam duas questões: (1) crianças recebem dinheiro, sendo ele proveniente da mesada ou não; e (2) o acesso à experiência de receber dinheiro, junto com outros fatores, promove o conhecimento econômico. Os dois fatores são proporcionados pelos pais, tornando-se relevante estudar as cognições e os comportamentos dos pais quanto ao "dinheiro dos filhos" - a mesada.

 

Definindo a mesada

Mesada é um tema que se enquadra na área de estudos denominada socialização econômica, que por sua vez está vinculada à psicologia econômica. Os estudos em socialização econômica visam a investigar o processo de aprendizado dos conceitos e comportamentos econômicos e as variáveis que interferem no aprendizado (Lewis, Webley, & Furnham, 1995). Pesquisas têm sido desenvolvidas sob o foco da psicologia econômica e da psicologia do desenvolvimento, pois ambas estão interessadas em contribuir para a melhor forma de compreender a relação entre pais e filhos e como estes se relacionam com o mundo.

Em relação ao termo mesada, a literatura não apresenta um consenso quanto à sua definição e ao que ela abarca exatamente. Lassarre (1994) definiu a mesada como o "dinheiro dado pelos pais sem o compromisso de uma contrapartida dos filhos" (p. 1). Nessa definição, não foi incluída a exigência do valor e data fixos. Já Baele and Vlerick (2000) investigaram com o objetivo de descobrir qual o papel da mesada na visão de mães de crianças de seis a 12 anos. Para elas, mesada é

um dinheiro dado regularmente à criança, com valor fixo e data fixa, sobre o qual a criança tem controle e é um dinheiro que pode ser gasto imediatamente ou pode ser poupado para comprar algo muito grande e muito caro (p. 37).

A definição de Baele and Vlerick vincula a definição de mesada à fixação de valores e datas para recebimento. Observam-se dois fatores interrelacionados na definição de mesada: as características da mesada (periodicidade, vinculação) - já comentadas - e os propósitos da mesada.

 

Os propósitos da mesada

Sobre esse fator, a literatura tem apresentado diferentes propósitos expostos pelos pais. O papel educacional da mesada foi destacado por Lassarre (1994), que afirmou que a prática de dar uma mesada aos filhos é sinal de educação econômica dentro da família. Furnham (1999), em seus estudos envolvendo o tema, declarou que os pais usam a mesada como um modo de socializar e educar as crianças, ressaltando em sua pesquisa a visão de Abramovich, Freedman and Pliner (1991), que sugeriram que o recebimento da mesada facilita o desenvolvimento de competência monetária.

O propósito do dinheiro dado aos filhos também foi investigado por Feather (1991), que teve como objetivo descobrir as crenças parentais, valores e práticas referentes ao dinheiro que os pais dão aos filhos. Entrevistou 133 famílias na Austrália. Os resultados demonstraram que o dinheiro dado aos filhos tinha como propósito o treinamento da independência da criança, isto é, o desenvolvimento da responsabilidade, e ainda aspectos relacionados às demandas financeiras dos filhos.

A análise dos aspectos envolvendo a mesada mostra que o assunto percorre caminhos que se estendem da simples forma de dar dinheiro à criança, com quantia e data determinadas, até as práticas dos pais em relação ao dinheiro dado. Autores como Cram and Ng (1999) apontam que as investigações em torno do papel dos pais no desenvolvimento das habilidades, orientações de comportamento, conhecimento e atitudes relacionadas ao mundo econômico são fundamentais no preparo das crianças para que estas participem efetivamente no mundo dos adultos.

Estudos relacionados à psicologia parental no contexto da socialização econômica são escassos, em especial no Brasil, um país com tanta diversidade cultural e econômica. O estudo em questão traz contribuições e abre perspectivas futuras de pesquisa.

 

Método

Participantes

A amostra foi composta por 31 genitores, entre 27 a 53 anos, sendo 13 pais e 18 mães, com filhos entre seis e 16 anos e renda econômica familiar entre R$300,00 e R$10.000,00, exercendo diferentes ocupações profissionais na cidade de Belém/PA. Para a seleção da amostra, foi utilizado o critério localização de moradia dos participantes (moradores de periferias e moradores de bairros nobres), que foram distribuídos em quatro grupos focais. Os participantes foram agrupados (pertencendo aos grupos focais 1, 2, 3 ou 4) segundo a proximidade de moradia entre os participantes. Assim, os grupos foram heterogêneos, pois não se optou por selecioná-los conforme a idade ou o sexo (podendo participar mais homens do que mulheres em cada grupo, e vice-versa, independente da idade). Fizeram parte dos grupos pais de ambos os sexos, diferentes idades, escolaridades, número de filhos, ocupações e renda, sendo dois grupos focais constituídos por participantes de baixa renda que moravam em bairros pobres e dois grupos de participantes com maior renda e de bairros nobres.

Procedimento de coleta de dados e instrumento

A coleta de dados foi realizada no período da noite, iniciando-se às 19h30min, em quatro locais (interior de um bar, salão de recepção de um condomínio e duas salas de estar da residência de dois participantes) cedidos pelos participantes, sendo ambientes privativos. Nessa coleta, foi utilizada uma folha de registro para os dados pessoais dos participantes e um guia de temas para o grupo focal. Os pais foram contatados pelo pesquisador, que, após apresentar-se, estendia o convite, pedindo que eles indicassem algum conhecido da proximidade que possuísse filhos entre seis e 16 anos e tivessem acima de 21 anos. Em seguida, o local e o horário foram acertados. No ato da coleta, foi entregue a cada participante um Termo de Consentimento, no qual se documentava sua disposição voluntária de participação no estudo. O Termo de Consentimento constou do projeto apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará, o qual deu parecer favorável à pesquisa (N. 062/2006-CEP/NMT).

Os quatro grupos focais foram conduzidos por um moderador e um observador e tiveram duração de aproximadamente 60 minutos. As discussões para ambos os grupos foram baseadas em um esquema semiestruturado, explorando o tema mesada. Os participantes expressaram suas opiniões sobre o tema, sendo as perguntas abertas e possibilitando o surgimento de novos questionamentos durante as discussões, que foram gravadas.

Procedimento de análise dos dados

As discussões dos quatro grupos focais foram transcritas e analisadas pelo software Alceste (Reinert, 1990). Em linhas gerais, esse programa informático analisa o corpus (texto transcrito), operando em quatro etapas de análise. 1) Etapa de leitura do texto e de cálculo de dicionário: preparação do corpus, reconhecimento das unidades de contexto inicial (UCI), que correspondem às respostas de cada participante da pesquisa, e separação das unidades de contexto elementares (UCE), que são segmentos que constituem o ambiente da palavra, respeitando-se a aparição no corpus de análise. As palavras são agrupadas em função de suas raízes, fazendo-se uma distinção entre palavras secundárias, como artigos, preposições e conjunções, e palavras fundamentais para a análise, como substantivos, verbos e adjetivos, isto é, termos que definem o ideário do sujeito. 2) Classificação das UCE em função dos seus vocabulários e agregação de acordo com a frequência das formas reduzidas. A partir de matrizes de frequência, o programa cruza as formas reduzidas e as UCE, dando origem à Classificação Hierárquica Descendente. Essa classificação consiste em repartir as UCE em várias classes em função do vocabulário que as compõe, de sorte que seja obtido o maior valor em uma prova matemática de associação interclasses, como o X2. Executa-se o mesmo procedimento com as classes obtidas até que o vocabulário das UCE de todas as classes seja homogêneo. A partir daqui, o Alceste oferece um dendograma, que mostra a distribuição das classes formadas. 3) Descrição das classes de UCE escolhidas. O programa agrupa as classes de acordo com seu conteúdo léxico. Para Reinert (1990), essas classes podem ser interpretadas como noções de mundo ou como quadros perceptivo-cognitivos com certa estabilidade temporal. 4) Cálculos complementares: o programa escolhe as palavras e, por conseguinte, as UCE mais características de cada classe (Ribeiro, 2006).

Resultados e discussão

Os resultados da análise dos quatro grupos focais foram chamados genericamente "cognições parentais quanto à mesada". Esses resultados são mostrados na Figura 1 em forma de dendograma.

 

 

Na Figura 1, é possível observar que a produção discursiva gerou três ramificações, a saber: "processo de utilização da mesada" (ramificação 1), desdobrando-se em duas classes: "atributos da educação econômica" (classe 1) e "motivos para darem dinheiro" (classe 3) - ambasguardam uma relação de proximidade temática entre si -; "história familiar acerca do orçamento" (ramificação 2), que separou dos conteúdos restantes a classe 2, denominada "gastos e controle" - nos relatos formados, aparecem diferentes momentos, dos quais os participantes passam de expectadores a membros ativos do controle orçamentário familiar -; e "definição de mesada" (ramificação 3), que se desdobrou nas classes "conceito de mesada" (classe 4) e "momento de iniciar a mesada" (classe 5), ambas tratam de conteúdos ligados à definição de mesada e qual o momento para iniciar e parar o esquema de mesada.

O presente estudo focaliza o tema definição e atributos da educação econômica mediante a mesada. Serão discutidas aqui, especialmente, as classes 1 e 4 (Figura 2).

 

 

Atributos da educação econômica

A classe 1 é composta por 123 unidades de contexto elementares (UCE), representando 17,32% do total do material analisado no conjunto dos grupos focais. A análise das variáveis descritas permite caracterizá-las como sendo associadas aos grupos de pais de renda média.

O exame das palavras contidas nessa classe e indicadas na Figura 2 demonstra conteúdos relacionados aos atributos da educação econômica mediante o uso da mesada, sendo ressaltada sua importância ao servir como instrumento de ensino e educação financeira dos filhos. A importância de tal ideia pode ser ilustrada a partir das verbalizações seguintes:

A mesada é uma quantia que os pais dão para os filhos aprenderem a administrar o dinheiro. Serve para os filhos entenderem o que é administrar, como gastar o dinheiro e serem mesmo inseridos no mundo do dinheiro e da economia, saberem comprar e saberem o que fazer com o dinheiro. A mesada é a primeira forma de economia que existe na família (mãe, 39 anos, dois filhos, ensino superior, renda R$5.800,00).

Através da mesada e da compra, a criança vai aprendendo a receber o troco certo, vai aprendendo a matemática na prática e vai aprendendo a administrar o dinheiro (pai, 35 anos, três filhos, ensino médio, renda R$500,00).

Como é possível observar nas UCE citadas, tanto os pais de renda alta como os de renda baixa acreditam que a prática de dar mesada pode ajudar os filhos a administrar o dinheiro. A mesada funciona como um instrumento de educação econômica. Como mostram os estudos de alguns autores (Lassarre, 1994; Furnham, 1999; Abramovich, Freedman, & Pliner, 1991), a mesada possui um papel educacional, sendo uma facilitadora do desenvolvimento da competência monetária. Nessa classe em particular, várias UCE apontam para a relação entre a mesada e a administração econômica futura dos filhos. Nas UCE, observa-se que os pais estão preocupados em educar no presente seus filhos, para que no futuro saibam relacionar-se no mundo adulto com responsabilidade. Crença semelhante a essa foi também ressaltada nos estudos de Feather (1991). A UCE a seguir exemplifica a preocupação dos pais em relação à educação presente dos filhos para o sucesso financeiro futuro destes.

O propósito da mesada é a criança desenvolver a responsabilidade, começar a administrar o dinheiro, porque se a pessoa cresce sem saber administrar o que ganha, gasta tudo de uma vez só porque não teve a noção de como administrar nada (mãe, 30 anos, um filho, ensino médio, renda R$1.200,00).

Foi encontrado nessa classe um dos atributos da educação econômica: economia. Saber economizar é um atributo valorizado pelos pais, que acreditam que se os filhos aprenderem a economizar o pouco que recebem, futuramente saberão economizar uma quantia maior.

Outro atributo da educação econômica enfatizado pelos pais ao darem mesada refere-se à orientação. O dinheiro é dado com orientações referentes ao que comprar e como comprar. Os produtos que os filhos poderão comprar com o dinheiro recebido devem estar de acordo com as regras da família, bem como com o seu julgamento.

Em relação a como gastar e quando gastar o dinheiro da mesada é uma questão que nós como pais precisamos orientar os nossos filhos, porque se você dá e não orienta você não está educando... Se a criança for educada sem orientação não se tornará um bom adulto em termos financeiros... O simples fato de dar mesada não é uma educação financeira para a vida, eu tenho que dar a mesada e tenho que orientar como gastar. Precisa haver um diálogo. Os pais precisam perguntar o que os filhos acham que será o melhor... (pai, 41 anos, dois filhos, renda R$4.500,00).

Estudos realizados fora do país, como os de Furnham (2001), demonstram outro atributo da educação econômica: regras claras em relação à mesada. Na UCE a seguir, os pais demonstraram de forma geral o estabelecimento de regras em relação aos itens que os filhos podem ou não comprar. Entretanto, diferentemente dos resultados encontrados por Baele and Vlerick (2000), nos quais os filhos não possuíam muita participação na decisão de escolha de como gastar o dinheiro da mesada. Os pais do presente estudo relataram que seus filhos possuem decisão de escolha dentro das regras que regem cada família. A UCE seguinte exemplifica:

[...] as regras da família devem ser respeitadas por todos da família... A mesada não é para o filho transgredir as regras. Assim como o dinheiro que ganhamos trabalhando não é para fazermos coisas que transgridam as leis sociais e morais. A finalidade da mesada é ensinar os filhos a usarem o dinheiro com sabedoria. Por exemplo, se a minha filha quebrasse uma regra da família como comprar revista pornográfica, eu rasgaria a revista porque minha filha quebrou uma regra básica (mãe, 39 anos, dois filhos, ensino superior, renda R$5.800,00).

A noção de punição é também importante nessa classe e está ligada à quebra de regras estipuladas pela família em relação à utilização da mesada. A punição pode ser considerada mais um atributo da educação econômica familiar. As sanções empregadas pelos pais (como perda da mesada ou diminuição da mesma) funcionam como instrumento de educação. Os estudos de Furnham (2001) apresentaram controvérsias em relação a se o dinheiro deveria ou não ser retido como castigo, de modo diferente do presente estudo, em que os pais concordaram que o dinheiro deva ser retido caso os filhos descumpram as regras familiares.

[...] O meu filho pedia dinheiro para comprar lanche, mas comprava figurinhas de Rebeldes. Então, passei a não dar mais dinheiro para os meus filhos quando me pediam. Eu então proíbo meus filhos de comprar se não cumprirem as regras" (pai, 29 anos, quatro filhos, ensino médio, renda R$430,00).

Foi verificado que o recebimento ou não da mesada, bem como o aumento ou diminuição da mesma, está vinculado à realização de atividades domésticas e escolares, dentre outras. Estudos realizados fora do Brasil também encontraram tal resultado (Furnham 2001; Furnham & Thomas, 1984). A mesada funciona como um estímulo ou instrumento de recompensa pelo cumprimento dos deveres e responsabilidades delegadas pelos pais, reforçando a ideia anterior de que os pais possuem a crença de que a mesada serve também como instrumento de disciplina e consequentemente um instrumento educacional:

Se não fizer as atividades de casa, vai receber o valor mínimo, e, se cumprir com o combinado, receberá o valor máximo da mesada. Agindo dessa forma, acredito que servirá de estímulo para que minha filha atue melhor para receber o valor máximo da mesada (pai, 33 anos, um filho, ensino médio, renda R$3.200,00).

Entretanto, a vinculação da mesada a alguma atividade não foi consenso entre os pais e as opiniões divergiram. Os pais participantes dos estudos de Furnham (2001) também divergiram em relação a se o dinheiro dado à criança deveria ser vinculado a tarefas domésticas e/ou escolares. Para muitos, a noção de vínculo pode servir para a formação de maus hábitos, tornando os filhos dependentes do dinheiro para que cumpram com suas responsabilidades. Talvez, por isso, optem por não atrelá-la a nenhuma atividade, seja ela doméstica ou escolar. Os pais temem que, no futuro, os filhos possam tornar-se dependentes de dinheiro para realizar as responsabilidades, como mostra a UCE seguinte:

Não se deve vincular a mesada a nada. Se fizer isso, minhas filhas podem criar um vício de só fazer alguma coisa se tiverem algo para receberem em troca. Tudo que fizerem será apenas para ganharem dinheiro (mãe, 41 anos, dois filhos, ensino médio, renda R$10.000,00).

Não foram encontradas diferenças em relação às variáveis renda, sexo, idade, escolaridade e número de filhos em se tratando da questão do vínculo. Esses resultados confirmam a existência de variações sociais e culturais acerca do que seria a melhor forma de educar os filhos, fato esse observado em diversos estudos (Lordelo, Fonseca, & Araújo, 2000; Seidl de Moura et al., 2004), que apontam para diferentes crenças parentais concernentes à educação de filhos. Essas diferenças variam de acordo com os contextos culturais e são acompanhadas pela história de vida de cada indivíduo, bem como do meio que o circunda.

 

Conceito de mesada

Os conteúdos da classe 4 referiram-se a aspectos que podem ser usados para se definir a mesada. A maioria dos participantes que produziram léxicos característicos dessa classe são pais com menos de 30 anos de idade, escolaridade fundamental ou média, quatro a seis filhos, na sua maioria homens e com renda familiar de R$500,00 a R$1.000,00. A análise das variáveis descritivas dessa classe permite caracterizá-la como associada aos grupos focais de pais de renda baixa. Essa classe abrange 12,68% do total das UCE, sendo composta por 90 UCE.

As palavras mais importantes dessa classe podem ser vistas na Figura 2 e revelam o que os pais definem ser mesada. O exame das palavras dessa classe demonstra que os pais estabelecem algumas condições para considerar o dinheiro que dão aos filhos uma mesada. O valor - quantidade de dinheiro - que é dado aos filhos é uma forte condição. E evidenciam-se duas questões. A primeira é referente à quantidade do valor (quanto de dinheiro deve ser dado aos filhos para ser considerado mesada) e a segunda refere-se à estabilidade do valor (valor fixo de dinheiro). As UCE demonstraram ainda divergências em se tratando de valor. Alguns pais acham que, para o dinheiro ser considerada mesada, deve existir um valor fixo. Outros discordam.

Precisa existir valor fixo, determinado e alto para ser considerada mesada (mãe, 35 anos, três filhos, ensino médio, renda R$1.300,00).

Eu não acho que para ser considerada mesada deva existir um valor fixo, isto é, só chamar de mesada se for dado acima de cinquenta reais, por exemplo (mãe, 38 anos, quatro filhos, ensino fundamental, renda R$800,00).

Os pais discutem sobre o melhor valor para chamar o dinheiro que dão aos filhos de mesada e divergem quanto a essa questão. Muitos não concordam com que um valor considerado baixo por eles não possa ser chamado de mesada.

A partir de dez reais, já pode ser considerada mesada, porque você tem aquele compromisso de todo fim do mês dar aquele valor fixo (pai, 41 anos, seis filhos, ensino médio, renda R$530,00).

[...] Eu não dou mesada porque dou cinquenta centavos, e isso é muito pouco, não pode ser considerada mesada, um real também não é me sada, nem cinco reais é mesada e nem dez reais é mesada (pai, 53 anos, cinco filhos, ensino fundamental, renda R$400,00).

Apesar de os pais estipularem um valor para que o dinheiro se enquadre na definição de mesada, outra condição para definir o termo pode ser verificada: regularidade, e pode ser constatada pelas palavras "data fixa" e "todo mês", independentemente do valor que é dado. Vários valores são citados nas UCE a seguir. Entretanto, o fator regularidade está em todas elas.

Dois reais é uma baixa mesada, mas se for dado todo mês pode ser considerado mesada (pai, 45 anos, um filho, ensino superior, renda R$5.500,00).

Mas se todo mês eu der dez reais, posso dizer que é uma mesada (pai, 41 anos, seis filhos, ensino médio, renda R$530,00).

Os pais parecem valorizar mais a questão da regularidade com que o dinheiro é dado do que o valor em dinheiro que é disponibilizado para os filhos. Percebe-se ainda a união da noção de regularidade (data fixa) e de valor (valor fixo) na definição de mesada, denominando a terceira condição para que o dinheiro dado pelos pais aos filhos possa ser chamado de mesada.

Se os pais só puderem dar dois reais todo mês pode ser considerada mesada. Se for dada uma quantia fixa, independente do valor, se for dada com certa regularidade, acredito que pode ser considerada mesada (mãe, 44 anos, dois filhos, ensino superior, renda R$6.065,00).

As respostas da maioria dos pais indicam as noções de regularidade e valor do dinheiro como componentes da definição de mesada. Esses componentes divergem da definição proposta por Lassarre (1994), que não inclui a regularidade e o valor fixo de dinheiro em sua definição, considerando a mesada como um dinheiro dado pelos pais aos filhos, mas sem compromisso. Por outro lado, a definição proposta pelos pais do presente estudo assemelha-se à encontrada nos estudos de Baele and Vlerick (2000) e de Leiser and Ganin (1996), que incluem a questão da regularidade (data fixa) e do valor fixo.

Outro conteúdo expresso nas UCE dessa classe refere-se ao aspecto socioeconômico. Os pais se classificam como pobres e chamam de "trocadinho" o dinheiro que dão aos filhos, fazendo uma distinção entre ricos e pobres e chamando de mesada o dinheiro que os ricos dão aos filhos. Fica evidente que os pais de baixa renda sentem-se inferiores aos de renda média, pois, além de se autointitularem pobres, denominam o dinheiro "trocadinho", fazendo referência ao baixo valor. Classificam, então, o dinheiro que dão aos filhos de mesada (quando dado por pais de renda média) e trocadinho (quando dado por pais de baixa renda).

Mesada deve ser uma porcentagem dos pais que são assalariados. Separam uma porcentagem do salário para dar todo mês. O pobre que não é assalariado não dá mesada, dá um trocadinho, pois dão um real, cinco reais (pai, 41 anos, seis filhos, ensino médio, renda R$530,00).

Outra questão relacionada a aspectos socioculturais é evidenciada nas UCE dessa classe, composta por pais de baixa renda e, na sua maioria, de baixa escolaridade. Os pais de renda baixa discutem a mesada em termos de valores e só chamam de mesada o dinheiro que dão aos filhos se o valor dado for igual ou superior a R$50,00. Todavia, ao contrário do que esses pais supõem, os pais de renda média não dão quantias altas aos filhos. E por mais que a regularidade e o valor fixo estejam presentes na definição de mesada dada pelos pais dessa classe, alguns consideram mais importante para a definição a alta quantia dada do que os demais aspectos, como regularidade (data fixa), citados por eles na definição de mesada.

Muitos conteúdos referentes ao tema mesada foram caracterizados pelas UCE dos participantes e, particularmente, direcionados à tarefa dos pais de educar seus filhos, para que, pela prática da mesada, aprendam conceitos econômicos e desenvolvam hábitos produtivos, visando a aprender a administrar os vários aspectos de sua vida adulta.

Mediante este estudo, verificou-se que pais de rendas variadas em muitos assuntos possuem ideias semelhantes quanto à mesada, mas também divergem em outros aspectos já descritos. Pela Tabela 1, é possível visualizar melhor os resultados expostos por meio de uma síntese das principais semelhanças e diferenças entre os grupos de pais de renda média e baixa renda.

 

Conclusão

Ao longo da análise dos dados, observou-se que existem conteúdos relevantes presentes nas respostas de quase todos os pais. Do exposto, infere-se que, do tema mesada, como foco de discussão dos grupos, foram derivados subtemas mais concretos relacionados à educação econômica dos filhos e à própria definição de mesada.

Dentre os principais conteúdos expressos pelos pais, é possível destacar a finalidade da mesada. A mesma pode ser vista em suas atribuições, tais como: orientações, regras, punição e vinculação.

Tais atribuições canalizam para uma mesma finalidade - educação econômica. Os pais acreditam que a mesada tem como finalidade educar os filhos economicamente e utilizam regras, orientações, punições e até a vinculação da mesma a alguma atividade, a fim de alcançar o objetivo final, que é educar os filhos economicamente, para que possam inserir-se no mundo adulto com responsabilidade.

Outro conteúdo expresso pelos pais refere-se à própria definição da mesada. Alguns aspectos que a compõem puderam ser destacados, uma vez que os pais apontaram condições para chamar de mesada o dinheiro que dão aos filhos. Como primeira condição está a regularidade e a frequência, e, ainda, para alguns pais, o valor fixo do dinheiro. Os pais participantes acreditaram que o dinheiro disponibilizado aos filhos só poderia ser chamado de mesada se fosse dado com certa regularidade e frequência, e também com valor fixo.

Os pais divergiram na definição de mesada no quesito valor do dinheiro. Pais de renda média apontaram a regularidade e o valor fixo do dinheiro como fatores necessários para definir a mesada. Já os pais de baixa renda, além desses fatores, destacaram a quantidade do valor em dinheiro. Esses pais ressaltaram que os pais ricos costumam dar muito dinheiro aos filhos e apenas essas quantias altas, dadas com regularidade e valor fixo, é que deveriam ser definidas como mesada. Essa ideia é mais bem compreendida quando vista à luz da realidade financeira dos pais de baixa renda, que vivem em uma situação precária e acreditam que os que possuem uma condição econômica melhor disponibilizam mais dinheiro para os filhos.

Foi encontrado que pais de baixa e média rendas dão aos filhos quantias aproximadas de dinheiro em forma de mesada. Além disso, observou-se em todos os pais a ideia de que o valor da mesada deve variar conforme a maturidade da criança. Portanto, o que está subjacente, mais do que a condição financeira dos pais, é a percepção destes quanto à maturidade dos filhos para administrar o dinheiro. Apesar das divergências relatadas, os pais demonstraram coesão concernente à definição da mesada, podendo esta ser definida como um dinheiro dado pelos pais aos filhos com regularidade (valor fixo) e frequência (todo mês).

Este estudo é de caráter exploratório e os resultados não podem ser generalizados a todos os grupos de pais. Contudo, acredita-se que uma das contribuições da pesquisa foi estudar um tema dentro da socialização econômica sob o foco das cognições parentais. Tal estudo trouxe insumos para ambas as áreas de pesquisa e para pesquisas futuras.

Nesse sentido, novos caminhos são esboçados a partir dos resultados encontrados. Sugerem-se, para outros estudos, delineamentos de pesquisa que envolvam cognições e práticas de pais e filhos, pois tais pesquisas poderão contemplar questões ainda sem resposta como a melhor compreensão do impacto do significado do dinheiro sobre o comportamento econômico dos filhos.

Estudar a mesada, um tema tão específico, implica assumir que o sentido desse fenômeno não decorre apenas das informações transmitidas pelos pais deste estudo, mas resulta das vivências pessoais e do convívio dos indivíduos no meio sociocultural, e que a investigação de termos como a mesada possibilita não apenas compreender, mesmo que parcialmente, a realidade dos pais e do que estão transmitindo aos filhos, mas também a possibilidade de desenvolver instrumentos e estratégias mais eficazes com respeito ao estudo da relação entre o homem e seu mundo econômico.

 

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Recebido em: 11/08/10
Aceito em: 12/05/11

 

 

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