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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.4 no.2 Juiz de fora Dec. 2011

 

ARTIGOS

 

Avaliação de famílias ribeirinhas: uma proposta adaptada ao contexto1

 

Riverside families' evaluation: a proposition adapted to the context

 

 

Simone Souza da Costa SilvaI,2,3; Thamyris Maués dos SantosI; Fernando Augusto Ramos PontesI,2; Júlia Bucher MaluschkeII

IUniversidade Federal do Pará; Belém; Brasil
IIUniversidade Católica de Brasília; Brasília; Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar os procedimentos metodológicos de produção das Situações Estruturadas de Investigação (SEI), um instrumento de avaliação familiar adaptado ao contexto ribeirinho amazônico, que utilizou elementos da cultura ribeirinha na construção de tarefas apresentadas às famílias focais. Ademais, serão apresentados alguns dados obtidos com esse instrumento, que revelam o seu poder gerador de informações que fazem sentido no contexto investigado. Atualmente, as pesquisas que pretendem investigar o desenvolvimento humano e as famílias em contexto carecem de instrumentos adaptados ao ambiente de investigação. Nesse sentido, é fundamental que se construam ferramentas que, tendo por base as características contextuais, permitam aos participantes revelar informações válidas.

Palavras-chave: Famílias, Avaliação Familiar, Ribeirinhos, Contexto


ABSTRACT

The objective of this paper is to present the methodological procedures for the production of the Structured Situations of Investigation (SSI), a tool for family evaluation adapted to the Amazon's riverside people's context, which used elements from the riverside people's culture in the construction of tasks presented to focal families. In addition to that, some of the data gathered with this instrument will be presented, revealing its power to generate information which makes sense within the investigated context. Currently, the researches intended to investigate the human development and the families within a context lack instruments adapted to the investigation environment. In this sense, it is essential to build tools which, based on contextual characteristics, allow the participants to reveal valid information.

Keywords: Families, Family Evaluation, Riverside People, Context


 

 

O objetivo deste artigo é expor o processo de produção e adaptação de um instrumento de investigação do funcionamento familiar aplicado especificamente na comunidade ribeirinha do Rio Araraiana, na Ilha do Marajó: as Situações Estruturadas de Investigação (SEI). Foram construídas cinco SEI, porém serão apresentadas apenas duas, pois o propósito deste artigo é revelar o processo de construção contextualizada de um instrumento de pesquisa. Além da descrição do processo de construção das SEI, o presente artigo apresenta alguns dados que revelam o poder do instrumento de gerar informações pertinentes ao contexto.

A avaliação psicológica dos grupos familiares é um processo fundamental para o planejamento de intervenções terapêuticas e para a investigação da dinâmica familiar. Hoje, os instrumentos produzidos por profissionais e investigadores a fim de avaliar tal dinâmica são influenciados por diversos elementos, como as preferências teóricas e as especificidades dos problemas apresentados pelo grupo.

Tanto o posicionamento teórico do pesquisador como os problemas apresentados pela família tornam-se significativos apenas quando inseridos em determinado contexto. Dessa forma, é notória a interferência ambiental nos processos de construção, adaptação e aplicação de instrumentos de avaliação diagnóstica empregados por profissionais e pesquisadores, de modo que "diferentes modelos servem para solucionar diferentes problemas" (Carr, 2000). É fundamental atentar para a natureza cultural dos conceitos utilizados para construir tais instrumentos, uma vez que as definições de ajustamento e de disfunção são muito variáveis, até chegar ao ponto em que o normal em uma cultura pode ser patológico em outra (Féres-Carneiro, 1983).

Atualmente, os métodos de avaliação ajustam-se às condições culturais, às diferentes concepções de estrutura e de dinâmica familiar e às diversas teorias acerca do funcionamento geral das famílias (Féres-Carneiro, 1983). Apesar da diversidade de instrumentos encontrados nessa área, Féres-Carneiro (1983) classifica os métodos de avaliação do funcionamento familiar em três grandes grupos, com base em suas principais características: as técnicas objetivas, que utilizam questionários e/ou jogos; as técnicas subjetivas, que utilizam o desenho, técnicas psicodramáticas e/ou testes projetivos; e as técnicas mistas ou entrevistas estruturadas, considerando a presença simultânea de aspectos objetivos e subjetivos na interpretação dos resultados.

Ainda de acordo com Féres-Carneiro (1983), dentro do grupo de técnicas mistas, os principais clássicos da avaliação diagnóstica em terapia familiar são Minuchin (1974), Watzlawick (1969) e Satir (1967). A tarefa familiar de Minuchin (1974) é composta por seis questões e permite avaliar como os membros da família interagem juntos, assim como o que é dito por cada um. A discussão da família sobre as questões provê informações importantes sobre a estrutura familiar. A entrevista estruturada de Watzlawick (1969) é composta de cinco diretivas e revela os padrões familiares de maneira objetiva, reduzindo o tempo da terapia familiar. Por fim, a primeira entrevista de Satir (1967) é composta de oito tarefas padronizadas, sendo que as cinco primeiras são muito semelhantes à entrevista estruturada de Watzlawick (1969). Esses instrumentos permitem avaliar aspectos familiares subjacentes à interação dos membros do sistema e são úteis tanto no ambiente clínico como na pesquisa de famílias.

Mais recentemente, outros autores também propuseram instrumentos e teorias que avaliam a estrutura e a dinâmica familiar. Em 2000, o periódico norte-americano Journal of Family Therapy publicou uma edição com os cinco instrumentos mais recentes e importantes de diagnóstico do funcionamento familiar. Dentre estes, destacam-se: o Modelo de Sistemas Familiares de Beavers (Beavers & Hampson, 2000), o Modelo Circumplexo (Olson, 2000) e o Modelo McMaster (Miller, Ryan, Keitner, Bishop, & Epstein, 2000).

Beavers and Hampson (2000) consideram uma perspectiva transversal do funcionamento familiar e estabelecem competência e estilo familiar como dimensões que se cruzam. A competência diz respeito às estruturas, às informações obtidas e à flexibilidade diante de situações estressantes. De acordo com os autores, quanto mais flexível e adaptável é o grupo, melhor sua capacidade de negociar e de se relacionar em situações de crise. Já o estilo apresenta-se como uma relação curvilinear do funcionamento, que varia do centrípeto ao centrífugo. A partir dos conceitos produzidos, formam-se nove agrupamentos familiares definidos com base no posicionamento familiar ao longo das dimensões competência e estilo. Para avaliar essas dimensões, Beavers e sua equipe utilizaram as Beavers Interactional Scales, que são a Beavers Interactional Competence Scale e a Beavers Interactional Style Scale (Beavers & Hampson, 1990). Além dessas escalas, existe um Inventário de autoavaliação da família, que posiciona a família na dimensão competência.

Outro importante modelo de avaliação familiar é o Modelo Circumplexo de Olson, Russell and Sprenkle (1983), que propõe como principais aspectos das relações familiares a coesão e a adaptabilidade familiar, inserindo ainda a comunicação como um aspecto integrativo do todo. A coesão está relacionada ao vínculo emocional dos integrantes do grupo familiar e a adaptabilidade é a capacidade de a família flexibilizar sua estrutura de poder e regras diante de situações geradoras de estresse, a fim de manter a estabilidade do sistema. Nesse Modelo, a comunicação atua como uma dimensão de facilitação, fundamental por favorecer o movimento nas outras duas dimensões. Olson (1991) e sua equipe desenvolveram o FACES II e o FACES III, que são instrumentos de autoavaliação, cujo objetivo é averiguar o status de casais e de famílias de acordo com os conceitos produzidos pelo modelo circumplexo.

Por fim, o Modelo McMaster, de Epstein, Bishop and Levin (1978), integra uma teoria multidimensional do funcionamento familiar, instrumentos de avaliação desenvolvidos para analisar esses construtos e um método bem definido de tratamento familiar. No Modelo McMaster, enfatiza-se a clareza dos resultados, com construtos definidos operacionalmente e validação empírica, o que aumenta a precisão e produz evidências para a utilidade dessa abordagem. Os instrumentos utilizados nesse Modelo são o Family Assessment Device (FAD), a McMaster Clinical Rating Scale (MCRS) e a McMaster Structured Interview for Family Functioning. Existem, na literatura, vários estudos que buscam adaptar esses instrumentos a diversas culturas (Shek, 2001; Aarons, McDonald, Connelly, & Newton, 2007; Bihun, Wamboldt, Gavin, & Wamboldt, 2002).

Outro importante instrumento para avaliação familiar produzido mais recentemente é o Family System Test (FAST) (Gehring, 1993). O FAST é um teste cuja finalidade é descrever e analisar a estrutura das relações familiares, por meio da configuração das fronteiras entre os sistemas familiar, fraternal e parental, a partir das variáveis coesão e hierarquia. O material de aplicação do teste é um tabuleiro monocromático dividido em 81 quadrados e 12 figuras que podem ser desmontadas em três partes e que caracterizam os membros do grupo familiar. O participante dispõe os bonecos no tabuleiro, bem como suas respectivas alturas.

No Brasil, apenas na década de 1980 surgiram algumas iniciativas de instrumentos de avaliação que considerassem as características culturais da população brasileira e dos serviços de psicologia clínica encontrados no país. O principal instrumento proposto nesse período foi a Entrevista Familiar Estruturada (EFE) de Féres-Carneiro (1983), composta por tarefas verbais e não-verbais aplicadas à família, cujo objetivo é avaliar a dinâmica familiar do todo, com base na teoria sistêmica. A análise dos resultados da EFE baseia-se nas dimensões de comunicação, regras, papéis, liderança, conflitos, manifestação da agressividade, afeição física, interação conjugal, individualização, integração, autoestima e interação familiar como facilitadora da saúde emocional.

Mais recentemente, no Brasil foi desenvolvido o Familiograma (FG), por Teodoro (2005, 2006) e Teodoro e Käppler (2003). Essa ferramenta permite avaliar o funcionamento da família por meio de explicações matemáticas de conceitos gerados pela análise gráfica de sociogramas. Desse modo, é possível examinar distintos tipos de interações, como comunicação e negatividade, em díades familiares. O FG consiste em cartões individuais nos quais são escritos os nomes de cada pessoa da família, um tabuleiro dividido em cinco pontos que variam de "não corresponde" até "corresponde totalmente" e uma folha de respostas. Os nomes são combinados um a um, formando díades, e o teste dá informações sobre o relacionamento de uma ou mais díades em resposta a frases previamente elaboradas sobre os conceitos em análise.

Esses instrumentos, dentre outros, são utilizados e foram validados considerando as especificidades culturais de determinadas comunidades. Para que possam ser válidos em um grupo cultural distinto, é necessário que passem por um processo de adaptação às características populacionais locais. Assim, mesmo instrumentos aplicados em larga escala em determinada área, como os consultórios psicológicos urbanos, devem ter sua validade e fidedignidade revisadas em comunidades não-urbanas, o que se torna uma necessidade recorrente em um país de dimensões continentais como o Brasil.

Seguindo a perspectiva que almeja contextualizar a prática de pesquisa aos ambientes estudados (Bronfenbrenner, [1979]1994), para avaliar aspectos da estrutura e da dinâmica familiar de uma comunidade ribeirinha da Amazônia (Silva, 2006), tornou-se imprescindível a adaptação dos instrumentos utilizados às peculiaridades locais. Portanto, constitui-se objetivo deste artigo expor o processo de produção e adaptação de um instrumento de investigação do funcionamento familiar aplicado especificamente na comunidade ribeirinha do Rio Araraiana, na Ilha do Marajó: as Situações Estruturadas de Investigação (SEI). Ademais, com vistas a demonstrar o poder de gerar dados coerentes com as características do contexto investigado, serão apresentados alguns dados obtidos com sua aplicação. A seguir, serão expostas as características e peculiaridades da comunidade estudada.

 

Caracterização do contexto

De acordo com Scherer (2004a), a região amazônica é formada por dois grandes tipos de ecossistemas: as áreas inundáveis, compostas pelas terras de várzeas, os igapós e os furos; e as florestas de terra firme, tais como as florestas altas e densas, as baixas, as savanas, os cerrados e os campos naturais. Na terra firme, vivem as populações tradicionais denominadas caboclas e, à margem dos rios do complexo estuário amazônico, as populações ribeirinhas. A convivência nesse ecossistema define o modo de vida de tais grupos.

O cotidiano dos "Povos das Águas" está condicionado ao ciclo da natureza, uma vez que o fenômeno da enchente e da vazante das marés regula sua rotina de tal modo que o mundo do trabalho e das relações obedece ao ciclo sazonal (Scherer, 2004a). As preocupações cotidianas das famílias ribeirinhas são determinadas pelas cheias/vazantes dos rios, pelo sol e pela chuva, pelos dias e pelas noites (Scherer, 2003, 2004b). Em grande parte, o tempo é definido pela natureza e pela cultura dos mitos e das tradições. A crença em diversos seres sobrenaturais, reproduzida no grupo pela história oral (Fraxe, 1998) tem influência sobre as atividades de caça e de pesca ribeirinha (Wagley, 1952).

A literatura define o ribeirinho com base na forma de trabalho essencialmente extrativista e agrícola centrada na produção familiar (Noda, Noda, Pereira, & Martins, 2001). Contudo, de modo mais flexível, as práticas de sobrevivência variam, sendo possível encontrar comunidades essencialmente extrativistas e outras com práticas agrícolas.

As famílias ribeirinhas tradicionais vivem em comunidades compostas por grupos de 20 a 40 casas de madeira construídas em palafitas, mais adequadas ao sistema de cheias dos rios. Essas residências encontram-se dispersas ao longo de rios, igarapés, furos e lagos (Noda et al., 2001).

Das muitas comunidades ribeirinhas amazônicas, a população foco deste trabalho está situada na Ilha do Marajó, Pará. Dezesseis municípios compõem a ilha, sendo que Ponta de Pedras é um dos mais pobres dessa região e apresenta os níveis mais baixos de renda per capita de toda a Ilha (IDH = 0.652. PNUD, 2000).

Sob a administração do município de Ponta de Pedras, existem várias comunidades ribeirinhas, dentre as quais a do Rio Araraiana. Esse rio desemboca na baía do Marajó, cuja foz possui a extensão aproximada de 10,6 milhas marítimas (equivalente a 19,680 km). Não existe transporte sistemático para essa comunidade, sendo o acesso possível somente pela locação de barco. De Belém para a Ponta do Malato, são 32,7 milhas marítimas (equivalente a 68,730 km), sendo que a viagem dura em torno de cinco a seis horas.

No referente ao contato social entre os vizinhos existem 22 residências ao longo do rio, e a distância aproximada entre elas é de 300 m. Embora esse intervalo possa ser considerado pequeno, o fato de os espaços entre as moradias ser caracterizado por áreas de várzea, ou seja, que recebem periodicamente a invasão das marés, torna o deslocamento ao longo desses trechos difícil. Em geral, esses espaços se mantêm alagados na maior parte do ano, o que implica a custosa e perigosa comunicação terrestre entre os moradores. Os intercâmbios sociais entre as casas só podem ser feitos por via fluvial por meio de "casquinhos" ou "montarias" - canoas feitas de troncos de árvore, que transportam no máximo quatro pessoas e que são bastante suscetíveis à maré (Silva, 2006).

Com relação às estratégias de sobrevivência, existe uma clara e forte demarcação a partir do gênero, sendo que os homens geralmente denominam-se extrativistas ou pescadores e grande parte das mulheres se diz dona de casa ou artesã (Baía-Silva, 2006). Não há agricultura e algumas famílias criam galinhas e porcos soltos nos quintais. A renda mensal está muito abaixo dos índices de miséria, sendo que equivalia a 35% do valor do salário mínimo em 2004. A falta de renda suficiente reforça a exclusão social dessa população.

A dificuldade de obter uma renda que lhe permita sobreviver com maior dignidade é observada nas condições de moradia desse grupo de famílias ribeirinhas. No Rio Araraiana, as casas são geralmente pequenas, com média de três compartimentos (sala, quarto e cozinha). Essas residências têm piso de madeira, mas as paredes, algumas vezes, são feitas de outros materiais, como palha trançada ou bucha de miriti, sendo que algumas não possuem paredes externas. O quarto é local de dormir da mãe e das crianças, enquanto o pai dorme na sala ou entrada da casa (Silva, 2006).

Além dos modos de sobrevivência, a dinâmica de morar às margens do rio na Amazônia configura uma característica relevante neste estudo. As famílias ribeirinhas do Araraiana apresentam um isolamento tanto com a cultura mais geral, não existindo nenhum acesso à mídia escrita e pouco ou restrito acesso à mídia televisiva e radiofônica, como também entre os próprios moradores da comunidade. Em termos interacionais, o rio atua como constritor e fonte de contato, uma barreira e ponte ambiental, criando e restringindo as possibilidades de interação. Para Harris (2000), o rio representa a "metonímia do ser ribeirinho", aquilo que ao mesmo tempo cria vínculos e isolamentos entre as pessoas dessas populações.

Assim, a peculiaridade de tais famílias ribeirinhas constitui um aspecto que delineia a relevância deste estudo. Acredita-se que, comparativamente às famílias de comunidades urbanas, os membros familiares dispensem mais tempo na residência - visto ficarem "ilhados" pelo regime das águas -, o que pode consequentemente redundar em uma estrutura familiar tipicamente adaptada a esse modo de vida. Diante de um contexto tão peculiar, é possível que surjam formas bastante específicas de viver cotidianamente, o que torna importante a investigação da dinâmica familiar estabelecida entre esses grupos.

 

Investigando a dinâmica familiar: contextualizando metodologias

O propósito de desenvolver um estudo que descreva as relações familiares e as associe ao cotidiano específico de uma comunidade tão peculiar como a ribeirinha não é uma tarefa fácil em termos metodológicos. Apesar de existirem vários instrumentos de avaliação do funcionamento familiar, estes foram desenvolvidos principalmente para o contexto clínico urbano e, sem a devida adaptação, não constituem recursos adequados ao contexto ribeirinho.

No início da pesquisa, houve tentativas de utilizar os instrumentos propostos na literatura e, desse modo, alguns meses foram gastos com investigações teóricas acerca das técnicas mais apropriadas para avaliar o funcionamento familiar. Concomitantemente, foram realizadas visitas à comunidade sob a inspiração da metodologia de Inserção Ecológica (Ceconello & Koller, 2003), a fim de que os pesquisadores entrassem em contato com as características locais e destas se apropriassem. A inserção ecológica tem como objetivo avaliar os processos de interação das pessoas com o contexto no qual estão se desenvolvendo e surge como alternativa aos estudos psicológicos que enfatizam apenas as características dos indivíduos, sem valorizar o contexto.

O projeto de pesquisa foi enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do hospital universitário Betina Ferro da Universidade Federal do Pará, que aprovou sua execução por meio do Parecer n. 2716/2006. Assim, antes da aplicação dos instrumentos, os participantes (na maioria, analfabetos) ouviram a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido feita pela pesquisadora. Não houve recusa em colaborar com a execução do trabalho. Deve-se enfatizar que os nomes utilizados são fictícios, no intuito de manter íntegra a identidade dos participantes.

A fim de obter uma visão abrangente da comunidade do Rio Araraiana, foram utilizadas estratégias que permitissem apreender aspectos específicos do contexto ribeirinho. Para tanto, formou-se uma equipe de pesquisa, que, sustentada no processo de Construção Coletiva do Conhecimento (Mendes et al., 2008), aplicou um conjunto de instrumentos de coleta de dados, os quais permitiram a construção de um banco de dados a respeito das famílias da comunidade que, ao serem analisadas em conjunto, produziram uma visão ampla sobre o contexto investigado.

Dentre os principais instrumentos utilizados pela equipe de pesquisa, estão o Inventário Sócio-Demográfico (ISD) (Mendes et al., 2008), o Inventário de Rotinas Familiares (IRF) (Silva et al., 2010) e os Diários de Campo (DCs), além das Situações Estruturadas de Investigação (SEI), que serão discutidas mais profundamente no decorrer deste artigo.

Dentre as famílias entrevistadas com o ISD e o IRF, foram selecionadas quatro famílias focais, denominadas Família Focal 1, Família Focal 2, Família Focal 3 e Família Focal 4. A seleção desses grupos foi baseada na maior receptividade que apresentaram aos pesquisadores. Uma vez que o objetivo deste artigo está relacionado à exposição de características metodológicas, não serão apresentadas as especificidades estruturais de cada família individualmente, apenas os elementos que estão relacionados às SEI.

A utilização de instrumentos que priorizavam a linguagem verbal, como os inventários e os diários de campo, evidenciou a dificuldade dos ribeirinhos de compreenderem a linguagem do pesquisador. Durante alguns momentos da coleta de dados, o sentido das falas parecia incompreensível aos participantes da pesquisa. Por exemplo, em uma questão aplicada nos grupos, solicitava-se ao membro da família que expusesse uma semelhança ou uma diferença com determinado membro. Na Família Focal 1, ao ser questionado sobre qual dos filhos seria mais diferente de si, o pai afirma ser sua filha, expondo a cor da pele como o elemento diferenciador. Note-se que não foi utilizada nenhuma palavra de significado desconhecido pelo entrevistado, porém o sentido do termo "diferença" foi compreendido de modo distinto daquele pretendido pelo pesquisador.

Além da dificuldade de compreensão, alguns moradores do local apresentavam também dificuldade de verbalizar suas opiniões. Diante disso, tornou-se imprescindível empregar tecnologias que utilizassem recursos além da linguagem verbal. Assim, foram construídas as Situações Estruturadas de Investigação, inspiradas na literatura e adaptadas ao contexto ribeirinho, de modo a fazer sentido para as pessoas que ali vivem, utilizando elementos cotidianos da população.

Para identificar a aplicabilidade das SEI na produção dos efeitos desejados e de possíveis aperfeiçoamentos no procedimento, foram feitos pilotos com famílias ribeirinhas de perfis semelhantes às estudadas. Desses estudos-piloto foi possível extrair algumas informações relevantes para a execução do trabalho em comunidades ribeirinhas ainda mais isoladas. Essas informações permitiram um procedimento de pesquisa com algumas características peculiares, como a escolha de pequenos blocos de situações que duravam em média 20 minutos e eram aplicadas em momentos diferentes, visto que essa população dispersava a atenção após esse período.

Além do mais, o processo de aplicação de todas as Situações Estruturadas de Investigação foi registrado com uma câmera filmadora. A introdução desse equipamento no espaço doméstico foi realizada com extremo cuidado e gradativamente, uma vez que o contato com os instrumentos tecnológicos não fazia parte do cotidiano daquelas pessoas. Antes da inserção da filmadora, os participantes se aproximaram de uma câmera fotográfica digital, que foi utilizada inicialmente e que permitia a apresentação imediata das imagens às pessoas fotografadas. Posteriormente, tais fotos eram impressas e entregues àqueles que posaram para as fotos. Além da apresentação imediata por meio do equipamento digital, os pesquisadores transportavam um notebook até a comunidade dentro de uma caixa de isopor, o que permitia a exibição em uma tela maior das fotografias aos participantes. Após o estabelecimento de uma relação de confiança e menor estranhamento diante dos recursos tecnológicos, foi introduzida a câmera filmadora.

Considerando o modo de condução, as SEI foram organizadas em duas categorias: situações essencialmente observacionais, nas quais o observador estabelecia uma tarefa e não participava da realização da mesma; e situações de entrevista com observação, em que o observador participava ativamente do diálogo em questão. Tendo por base elementos e dimensões encontrados na literatura nacional e internacional acerca do funcionamento das famílias que serão expostos posteriormente, foram produzidas cinco SEI, a saber: "Solução de problemas", "Situação do miriti", "As fotos", "Semelhanças e diferenças" e "Análise do ciclo de vida". Porém, de tais tarefas, as que passaram por um processo mais nítido de adaptação ao contexto foram a "Solução de problemas" e a "Situação do miriti", que serão expostas detalhadamente a seguir.

 

A solução de problemas

A "Solução de problemas" é uma Situação Estruturada de Investigação que combina entrevista com observação e é composta por três histórias hipotéticas apresentadas às famílias, que envolviam a resolução de problemas práticos. Todas as tarefas de "Solução de problemas" foram inspiradas na Tarefa 1 da Entrevista Familiar Estruturada (EFE) desenvolvida por Terezinha Féres-Carneiro (1983). À semelhança dos objetivos da EFE, essa tarefa visou a revelar como a família funciona em conjunto, a comunicação familiar, os papéis de cada membro, as regras familiares, como a família lida com conflitos caso estes surjam, e os aspectos de fronteira, ao verificar como respeitam a individualidade de cada membro.

Na primeira e na segunda histórias, estava em jogo a ameaça de quebra ou de perda da unidade. Na terceira história, a unidade familiar poderia confrontar-se com as possíveis tendências motivacionais peculiares a cada membro. Pela predisposição de suscitarem conflitos, essas tarefas possibilitaram também a avaliação de subsistemas, alianças e coalizões. As histórias empregadas foram as seguintes:

História hipotética 1: "Todos vocês saíram para viajar para Ponta de Pedras em uma sextafeira à noite. Quando já estavam distante do Araraiana, a baía começa a ficar agitada, a noite fica muito mais escura do que o habitual, começa a chover, um tronco de árvore solto no rio bate e fura o barco. O que vocês fariam?" Na sequência, pede-se para que cada um fale sobre o que faria nessa situação.

Na Família Focal 1, Barros, o pai, é um líder que assume exclusivamente a responsabilidade pelos cuidados e proteção da família, o que pode ser confirmado pela resposta à história hipotética

1:

Na certa, tem colete no barco, né? Aí, eu cuido de colocar coletes nos meninos, preparar uma boia pra gente se salvar, porque o barco já foi a pique, né? Colocar colete nela [na esposa] e em mim, e procurar um abrigo, um socorro para pegar a beirada pra sobreviver, salvar as crianças e que o barco lá ficava porque eu tinha que cuidar deles e de mim.

Na Família Focal 4, que apresenta forte religiosidade ligada à Igreja Evangélica, os membros fizeram referência à força divina como algo que ajudaria a sair da situação difícil. Diante da possibilidade de naufrágio, a filha mais velha, Vanessa, disse: "Eu não ia me desesperar. A mamãe diz que tem que pedir ajuda primeiro lá de cima". Em algumas falas, foi identificado um sentimento de aceitação passiva do sofrimento e uma ênfase à dificuldade, associados à crença em uma figura divina. A resposta de Manoel, o pai, a essa questão foi a seguinte: "Para localizar as pessoas na água, é difícil. É uma situação difícil. O barco tá furado. É uma situação difícil. Principalmente, fora, assim".

Outro aspecto que emergiu das respostas foi a formação de coalizões e a organização dos subsistemas no interior do grupo. Apesar da passividade presente nas respostas de alguns membros da família diante da questão sobre quem ajudaria em caso de naufrágio, César e Velma, os irmãos mais novos, se colocam de modo extremamente ativo ao dizerem que salvariam a mãe e o pai. César atribui uma ordem sequencial em que no primeiro posto estaria a mãe e no segundo o pai.

A segunda hipótese utilizada na aplicação da "Solução de problemas" foi a seguinte:

História hipotética 2: "Chegou a época do Círio de Nazaré4. A família toda viajou para Belém para acompanhar a procissão, sendo que tinha muita gente na procissão, muito barulho, muito tumulto, empurra de um lado, empurra do outro e, nessa confusão, uma das crianças se perdeu. O que vocês fariam?" Na sequência, pede-se para que cada um fale sobre o que faria nessa situação.

Na Família Focal 2, Mariana, a esposa, apresenta uma submissão ao marido, que lidera o grupo à medida que este enfrente dificuldades. Muitas vezes, Mariana age de maneira semelhante às filhas, sendo conduzida na relação pelas decisões de Bragança. Sua resposta à história hipotética 2 foi: "[...] eu acho que eu ia chorar".

De modo semelhante, na Família Focal 3, que é organizada de modo muito tradicional, com a esposa sendo submissa ao marido, ao ser questionada com a história hipotética 2, a mãe respondeu: "Não tenho ideia. Ficava lá mesma, parada... Não sabia pra onde eu ia. Eu ia ficar calada lá". Essa atitude passiva perante um problema a ser enfrentado demonstra o papel da esposa diante das dificuldades e no grupo familiar como um todo.

A seguir, será exposta a terceira história hipotética:

História hipotética 3: "Imaginem que vocês ganharam na loteria e estão com bastante dinheiro, porém vocês só receberão o dinheiro se conseguirem dizer cinco coisas que sejam do desejo de todos comprar. Caso vocês não consigam chegar a um acordo, vocês não receberão o dinheiro. Que coisas vocês escolheriam?" Estimula-se a participação das pessoas e procura-se confrontar as opiniões.

Na Família Focal 1, o lugar marginal no qual Daniele, a esposa, colocava-se pôde ser percebido pelo fato de a moça raramente ter respondido às questões dos pesquisadores quando Barros, seu marido, estava presente. Em geral, Daniele apenas sorria e deixava que Barros falasse por ela. Quando o casal foi perguntado sobre o que fariam caso fossem sorteados na loteria, Barros falou de suas pretensões. Posteriormente, a pesquisadora voltouse para Daniele, que nada verbalizou, sendo que Barros recomeçou a falar de suas aspirações. Pela segunda vez, a pesquisadora insistiu com Daniele, que permaneceu em silêncio, e Barros, respondendo por ela, disse: "Ter uma boa casa, né? Acima de tudo, um terreno". Essa situação explicita mais uma vez a forte hierarquia que Barros exercia no seu grupo familiar.

Na Família Focal 4, a fala do casal Manoel e Sueli referente à resposta a essa questão revelou a preocupação com a moradia e com o bem-estar do grupo como um todo. Manoel disse: "Comprava um terreno... Grandão, que tivesse muito açaizal". Diante dessa fala do esposo, Sueli comentou que a pessoa que tem um terreno com pés de açaí no Rio Araraiana está bem, e complementou, afirmando que: "[...] mandava construir uma casa boa, mandava comprar alguma coisa de valor pra dentro de casa que a gente precisa e não tem condição de comprar". Essas falas representam a liderança que os pais possuem dentro do grupo, expressa na preocupação e responsabilidade com a família.

No entanto, apesar das considerações dos pais que refletiram seu desejo de manter a família unida, feliz e morando no rio, a filha mais nova, Velma, diss: "Comprava uma casa, um terreno e um carro. Ia morar na cidade, morar aqui no sitio!? (risos)". Nessa fala, a filha caçula parece indicar sua motivação para romper não apenas com o desejo dos pais e com o contexto ribeirinho, mas também com o grupo familiar, o que é um elemento característico de baixa coesão familiar.

Da aplicação da tarefa de "Solução de problemas", foram utilizadas eminentemente as respostas verbais dos indivíduos, para tecer as considerações acerca do funcionamento familiar dos grupos ribeirinhos. Entretanto, devido às peculiaridades regionais e à dificuldade de verbalizar de modo fluente suas opiniões pessoais, houve a necessidade de aplicar uma tarefa que pudesse expor características relacionais do grupo familiar de modo não-verbal denominada "Situação do miriti".

 

A situação do miriti

Estruturada de Investigação diferencial perante as outras questões, uma vez que, nesta tarefa, o grupo era instigado a produzir algo de concreto, e não apenas falar de si. Trata-se de uma situação essencialmente observacional e foi baseada na sexta questão da tarefa familiar de Minuchin (1974). A escolha do miriti5 como elemento utilizado nesta SEI deve-se à existência de uma verdadeira cultura em torno desse vegetal: dele, tudo pode ser aproveitado e a maioria dos moradores da comunidade tem habilidade em manipular essa palmeira para a fabricação tanto de utensílios como de brinquedos.

Durante a aplicação da SEI, a pesquisadora reunia a família e dizia que gostaria de ver como a família "trabalha" com o miriti. Em seguida, oferecia um conjunto de palmas de miriti aos membros da família, solicitando que confeccionassem qualquer objeto, fosse um brinquedo, um utensílio doméstico etc. Não ficava estabelecido se essa atividade deveria ser feita em grupo ou individualmente. A intimidade cultural com a tarefa possibilitou o engajamento na atividade e os comportamentos dos participantes foram analisados. Tanto ocorrendo individualmente ou em grupo, a "Situação do miriti" evidenciou aspectos estruturais familiares, como papéis, conflitos, hierarquia e liderança.

Os papéis atribuídos aos membros familiares puderam ser evidenciados, como ocorreu na Família Focal 1, quando o pai Barros, observando que seu filho Odilon colocava um pedaço de miriti na boca, disse: "Solta, se não tu vás ti encher de coceira". O tom de sua fala não era ríspido ou agressivo, mas expressava cuidado e uma real preocupação com Odilon, que se traduziu na forma de conselho, orientação. Nesse contexto, Barros assumiu um papel de líder, orientando uma pessoa que estava sob seus cuidados.

Já que esta tarefa deveria ser realizada por um grupo de pessoas, houve naturalmente a emergência de conflitos, cuja condução e resolução puderam ser analisadas posteriormente. Na Família Focal 2 - um grupo formado pelos pais e mais sete filhos, sendo que apenas o mais velho é do sexo masculino -, em um dado momento, Tatiana, a irmã mais velha, pediu para Carla: "Me dá a faca. A faca, Carla. A faca. Tá surda?" Uma vez que Carla não entregou a faca, Tatiana levantou para pegá-la e disse: "Me dá a faca". Carla respondeu: "Espeia" (querendo dizer espera). Tatiana retrucou: "Me dá", mas Carla continuou cortando o miriti e Tatiana, após esperar alguns segundos, insistiu: "A faca.", e a puxou da mão de Carla, que não quis largá-la e puxou a faca de volta. Observou-se, então, que a forma como essa díade resolveu o conflito foi agressiva e hostil, o que pode atuar como um indicador da relação entre as irmãs.

Por outro lado, a cooperação entre os membros do grupo familiar também foi expressa durante a aplicação desta tarefa. Ainda na Família Focal 2, apesar da pouca identificação com o pai, havia comportamentos cooperativos das filhas e do filho com Bragança, quando Gláucia e Carla, que estavam sentadas próximas ao pai segurando alguns pedaços de miriti, entregaram-nos a ele, que, sem palavras e apenas estendendo as mãos, informou às meninas do que estava precisando.

Por fim, elementos que denotam hierarquia também ficaram evidentes com a aplicação desta tarefa. A estrutura hierárquica pode ser observada no momento em que apenas alguns membros, Bragança, Pedro (o filho mais velho) e Raimunda (a filha mais velha) construíram algum objeto, monopolizando as poucas facas disponíveis ao grupo. O pai e o filho primogênito, que monopolizaram o instrumento, são pessoas que ocupam um lugar de poder na família, e o terceiro membro, que é a irmã mais velha, é uma figura de referência no grupo de meninas. Nota-se, portanto, que, nesse grupo familiar, bem como em outras famílias ribeirinhas da comunidade, a idade e o gênero são fatores que influenciam na distribuição do poder dentro do grupo, sendo que os membros que possuem uma hierarquia mais alta são os mais velhos e do sexo masculino.

A aplicação das Situações Estruturadas de Investigação produziu uma quantidade considerável de dados. Entretanto, dadas as peculiaridades de cada grupo familiar, o arranjo dessas informações de modo interfamiliar mostrou-se arbitrário e prejudicial à real compreensão do funcionamento familiar específico de cada grupo. Dessa forma, optou-se por agrupar as informações de modo intrafamiliar, compreendendo o todo familiar como único e compreensível tão somente em suas características peculiares.

 

Considerações finais

A produção de uma metodologia de investigação adaptada a determinado contexto cultural é um trabalho árduo, mas que se justifica porque permite obter informações válidas sobre determinado ambiente. Com a construção e aplicação das Situações Estruturadas de Investigação, foi possível perceber aspectos do cotidiano das famílias ribeirinhas que não seriam passíveis de serem acessados apenas com instrumentos padronizados internacionalmente.

A reflexão em torno da necessidade de construção e adaptação de instrumentos de pesquisas retoma as considerações de Bronfenbrenner ([1979]1994), que destacou a importância de uma ciência sustentada na vida real das pessoas; daí, ser necessário conhecê-las em seu ambiente natural. Assim, o conhecimento científico é válido na medida em que faz sentido para aqueles que participaram da pesquisa.

Partindo da noção de validade ecológica de Bronfenbrenner ([1979]1994), Cecconello e Koller (2003) propõem o conceito de Inserção Ecológica, que tem como objetivo conhecer profundamente a realidade de determinados grupos, acompanhando tal realidade, a fim de produzir hipóteses e responder às questões de pesquisa do estudo. Com base nessa metodologia, fica evidente a necessidade de o pesquisador estar sempre sensível às características do meio em que está inserido, que, por sua vez, permitirá a obtenção de conhecimentos coerentes com o contexto.

Além de uma postura pessoal flexível diante do ambiente ecológico e de sua bagagem conceitual, o pesquisador precisa ser capaz de articular seu conhecimento teórico com as informações apreendidas por meio de sua inserção ecológica. Essa articulação permitirá a construção e adaptação de instrumentos de coleta a contextos peculiares, como as famílias ribeirinhas da Amazônia aqui descritas.

Essa tarefa requer um exercício de criatividade por parte da equipe de pesquisa, que lhe demanda tempo e esforços pessoais. Contudo, diante da dinâmica acadêmica atual que se caracteriza pela urgência de respostas, pelas pressões das instituições financiadoras e pela necessidade de publicações, há um abandono de pesquisas em contextos que requerem a construção e a adaptação de medidas sensíveis a suas particularidades. Dessa forma, a construção de instrumentos, tais como as SEI, torna-se um empreendimento pouco comum, já que a maioria dos estudos se utiliza de instrumentos padronizados com populações urbanas.

Por fim, o conhecimento gerado a partir do uso de instrumentos adaptados, como as SEI, permite não apenas conhecer ambientes minoritários, como os ribeirinhos, mas também contextos comuns, como os urbanos. Essa ideia sustenta-se na noção de que, tal como considera Bronfenbrenner ([1979]1994), os ambientes mantêm relações de interdependência entre si, formando um todo indissociado. Portanto, conhecer o modo de vida ribeirinho implica apreender, senão na sua totalidade, mas parte do funcionamento do contexto urbano.

Essa interdependência entre contextos pode ser observada, por exemplo, quando se olha para a Amazônia, onde é inegável a influência e miscigenação dos povos que vivem às margens dos rios no cotidiano dos centros urbanos. Portanto, investigando as características locais das famílias ribeirinhas, é possível compreender a maneira como as pessoas que vivem nas cidades comportam-se, tendo em vista sua origem e sua história cultural.

 

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Recebido em: 21/09/10
Aceito em: 07/10/11

 

 

1 Tradicional procissão religiosa que ocorre em Belém do Pará no segundo domingo de outubro, tida como a maior procissão religiosa da América Latina reunindo em torno de um milhão e meio de pessoas nas ruas.
2 O Miriti (Maurita flexuosa L.) é uma das palmeiras mais importantes e abundantes da Amazônia, desempenhando papel relevante no cotidiano das populações da região, porque dela tudo se aproveita. Também denominada de buriti do brejo, predomina nos locais baixos e alagadiços. De seu fruto, é possível extrair o "vinho"; do talo de sua palma, é possível construir brinquedos, os conhecidos "brinquedos de miriti", muito utilizados pelas crianças da região; e também retirar sua tala para fazer o matapi, instrumento para pescar camarões. Seu tronco serve ainda como entreposto entre o rio e a terra firme, uma vez que flutua na água, subindo e descendo conforme a maré.
3 Contato: symonufpa@gmail.com
4 Tradicional procissão religiosa que ocorre em Belém do Pará no segundo domingo de outubro, tida como a maior procissão religiosa da América Latina reunindo em torno de um milhão e meio de pessoas nas ruas.
5 O Miriti (Maurita flexuosa L.) é uma das palmeiras mais importantes e abundantes da Amazônia, desempenhando papel relevante no cotidiano das populações da região, porque dela tudo se aproveita. Também denominada de buriti do brejo, predomina nos locais baixos e alagadiços. De seu fruto, é possível extrair o "vinho"; do talo de sua palma, é possível construir brinquedos, os conhecidos "brinquedos de miriti", muito utilizados pelas crianças da região; e também retirar sua tala para fazer o matapi, instrumento para pescar camarões. Seu tronco serve ainda como entreposto entre o rio e a terra firme, uma vez que flutua na água, subindo e descendo conforme a maré.