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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.4 no.2 Juiz de fora dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Entre velhos e outros nem tão idosos assim: cuidado de si em tempos de biopoder1

 

Among old men and others not so elderly: self care in times of biopower

 

 

Lázaro Batista da Fonseca2; Kleber Jean Matos Lopes

Universidade Federal do Sergipe, São Cristóvão, Brasil

 

 


RESUMO

A velhice tornou-se em nossos dias alvo de um infindável número de práticas apoiadas no discurso médico da "qualidade de vida" e da "melhor idade". Em contradição aos modos de ascetismo da Antiguidade, essa bioascese instaura para os idosos novos valores com base em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo e modelos ideais de sujeito baseados no desempenho físico, culminando com uma busca desenfreada por melhor forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude etc. Este texto pretende apontar para indícios de como se constituiu esse discurso e de como ele tem regulado práticas direcionadas aos mais velhos. Busca também se deter aos modos de resistência à cultura da boa forma dentro de grupos voltados às práticas bioascéticas.

Palavras-chave: Bioascese, Terceira Idade, Velhice


ABSTRACT

Nowadays old age has become a target for an endless number of practices supported by the medical discourse of "life quality" and "best age". In contradiction with the ascetic ways from the Past, this bioascesis establishes new values for the elderly based on hygienic rules, schemes of time occupation and ideal models of subject based on physical performance, culminating on an unbridled pursuit for better physical shape, more longevity, prolongation of youth, etc. The purpose of this text is to present evidence of how this discourse was established and how it has regulated practices geared towards the elderly. It also intends to present the ways to resist the culture of fitness within groups geared towards bioascetic practices.

Keywords: Bioascesis, Third Age, Seniority


 

 

Longevidade, anticoncepcional, liberação sexual, divórcio e avanços da medicina tornaram obsoleto aquele velho precoce. Mudou tudo, inclusive os termos. Em vez do sexagenário aposentado (alguém recolhido ao seu aposento), expressões mais fiéis, como terceira e quarta idades, indicam uma sequência natural e mais vida pela frente. Há um velho-novo nas ruas (Jornal Folha de São Paulo, 2009). Esse trecho serve de exemplo da concepção de velhice que norteia as políticas e discursos dirigidosàs pessoas mais velhas na atualidade. Ele transparece uma concepção de um velho que se reinventa e tenta manter-se jovem a todo custo. Seja reinserindo-se no mercado de trabalho, seja tentando amenizar os sinais do envelhecimento por meio das plásticas, do silicone e da obsessão pela boa forma e, portanto, mudando a maneira como gostaria de ser reconhecido. Daí, não se falar mais em velhos, termo que assume um viés pejorativo. Outros, como geron, senescente, senectude, senil, terceira idade e melhor idade são os que passam a definir os humanos de idade cronológica avançada.

Denotando a primazia das práticas e políticas apoiadas no discurso médico da "qualidade de vida" e da "melhor idade", a velhice, antes tida como momento de reflexão sobre a vida ou como preparação para a morte, no presente se atualiza na imagem dos velhos como joviais, saudáveis, produtivos e no gozo da vida.

Essa faceta da contemporaneidade também aponta para uma reinvenção dos meios de alcançar a felicidade que o homem admite para si em nossos dias. Ao contrário daquilo que vigorou durante séculos, ela não remete mais a um "bem comum" ou à salvação da alma. Agora, aparece a satisfação das próprias necessidades e vontades, ainda que à custa do esvaziamento das relações afetivas e da desvalorização dos antigos referenciais.

Francisco Ortega (2002, 2003) refere-se a essa busca desenfreada por boa forma como uma bioascese, ou seja, uma busca pela purificação do corpo mediante sua submissão à boa forma e ao ajustamento a regras e padrões higiênicos dos quais não pode fugir e nos quais (e somente neles) se acredita estar a possibilidade de uma existência feliz. Admitindo, então, que as práticas de submissão ao corpo compõem engrenagem principal das políticas dirigidas aos idosos, o objetivo principal deste trabalho consiste em problematizar, a partir do campo da Psicologia, como se dá a constituição dessa velhice que reflete os padrões de comportamento e conduta privilegiados pelo discurso da qualidade de vida e alardeados pela mídia. Para além disso, busca-se não apenas identificar os lugares em que esse modo de constituição do sujeito age mais firmemente, como também onde, inversamente, esse ideal encontra maior resistência.

 

O cuidado de si em tempos de biopoder

Não faz muito tempo, circulava na TV uma propaganda de uma conhecida marca de chinelos, na qual uma senhora aparentando mais de 60 anos dialogava com a neta sobre ser "atrasada" e ser "moderninha". Para a jovem, a idosa era atrasada por não perceber que chinelo de dedo, hoje em dia, é calçado para uso até em restaurante requintado. Eis que surge um galã de telenovela e a conversa ganha outros ares. Referindo-se ao ator como "moço bonito", a avó sugere que a neta olhe para o rapaz. A jovem recusa e afirma que casar com famoso complica a vida. A avó, então, retruca: "Quem falou em casamento? Estou falando de sexo, boba. Como você é atrasada!" A propaganda foi retirada do ar. Puseram outra em que a mesma idosa justifica o fim do anúncio por discordâncias do público com o conteúdo da mensagem. Por outro lado, muitos gostaram e disponibilizaram a propaganda na internet.

Esse episódio aponta para duas constatações interessantes. A primeira delas, a de que o discurso contemporâneo sobre os mais velhos tenta romper com a concepção de velhice a que estávamos historicamente acostumados para pôr em seu lugar avós e avôs moderninhos, como na propaganda. Em segundo lugar, percebe-se que esse novo-velho ainda não conseguiu tornar-se hegemônico, convivendo lado a lado com a tradicional imagem do velho sábio e experiente, ainda que isso soe como negativo. Daí parecer interessante discutir como se constituiu uma ideia de as pessoas idosas romperem com o modo histórico como eram vistos para se reconfigurarem, tornando-se "moderninhos", buscando espaços ou situações em que esse novo velho ainda não se afirmou, ou seja, territórios nos quais o velho parece ainda não ter se transformado em idoso.

Foi no século XVIII que as sociedades ocidentais tornaram-se alvo de um discurso médico que passou a regular as práticas e laços sociais, buscando fazer as pessoas viverem cada vez mais, como condição primordial ao desenvolvimento, já que a morte ou doença comprometem o poder do Estado (Foucault, 1993). Num primeiro momento, isso implica construir espaços onde a produção massiva de subjetividade possa operar mais fortemente. Seria aí que um adestramento dos corpos, por meio do controle do tempo e do espaço, dos castigos normalizadores e da individualização, possibilitaria pensar no controle e eficiência totais.

É da fábrica que falamos. É ela o espaço ordenado e escrutinado, no qual a produção da riqueza passa a coincidir com a fabricação de corpos "dóceis" (Foucault, 1995). Lá, os corpos se transformam, tendo as políticas disciplinares como um vetor de sua mudança ou uma espécie de parâmetro que garante a própria transformação. Essa disciplina organiza a produção do corpo produtivo e este enxerga na obediência às normas a oportunidade de garantir seu próprio desenvolvimento. Algum tempo depois, esse mesmo esquema é transmutado para as outras instituições que se modernizavam, como o exército, as escolas e os hospitais, que passam também a atuar como dispositivos disciplinares, requerendo-se dos corpos uma obediência máxima à função que desempenhavam. Estabelece-se para cada corpo um lugar e uma lógica de movimentos específicos, de modo que a cada um cabem atribuições e atitudes preestabelecidas (Machado, 1978).

Mas qual relação haveria entre biopoder e disciplina, poderíamos nos perguntar? Bem, Foucault (2005) afirma o biopoder como emergindo acoplado a esse processo de disciplinamento dos corpos; não como seu substituto, mas, num dado momento, concomitante a ele, constituindo uma nova modalidade de tecnologia de subjetivação que não anula a anterior. Para ele, esse seria um dos possíveis aspectos, se quiséssemos "caracterizar" este biopoder: sua intrincada relação com a disciplina. Além dela, poderíamos apontar outros mais.

Por exemplo, o fato de que, em sua gênese, esse outro poder surge interessado em dar conta das motivações a partir das quais a vida entra em risco. Por isso, ele vai se estabelecer primeiramente se asseverando do conjunto de processos, como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa da reprodução, a fecundidade etc. Ou seja, surge o interesse no levantamento estatístico das causas de adoecimento ou morte das pessoas. Aliás, a estatística torna-se uma ciência assim denominada a partir da relação que estabelece com esse interesse do Estado sobre os números da vida (Foucault, 2005).

Essa afirmação aponta para outros dois aspectos básicos do biopoder. Em primeiro lugar, ele se desenvolve como tecnologia de poder se interessando por um cuidado com a manutenção da vida, em franca oposição ao poder soberano, cujo determinante jurídico-político asseverava o poder de morte. A segunda pressuposição é uma questão imprescindível ao biopoder: ele se faz agir em todo o corpo social "de cima a baixo". Ele se constitui como uma política voltada para a vida, mas não a vida individual, o "corpo-indivíduo". Sua ação pauta-se no recobrimento da população em toda a sua extensão (Foucault, 2005).

Acontece que, enquanto o regime disciplinar interessa-se pelo controle por meio do adestramento da motilidade e do psiquismo e o faz individualizando - pondo sobre controle por meio do rigor das rotinas ou pela vigilância constante, segundo o modelo do panoptismo, o regime biopolítico será de uma envergadura segundo a qual não mais pode ser remetido a alguém em especial, por exemplo, ao soberano ou a um guarda responsável pela vigilância. Por isso mesmo ainda mais severo, porque disperso na tessitura social. Daí que, munindo-se dos efeitos de verdade que produzem os discursos e se apoiando num princípio de vigilância que é, então, irrestrito e inominável, ele atua também sobre os sujeitos, que, além de alvos, passam a ser flechas para essa mesma vigilância3. Ou seja, ao afirmar a vigilância sobre os corpos, também apontamos para a vigilância entre os corpos. A partir do momento em que se instaura esse biopoder, guardador de resquícios de uma normalização disciplinadora, o resguardo dessa norma passa à responsabilidade do homem. Uma responsabilidade que seria não apenas sobre si, mas também em ratificar o cumprimento dela nos demais.

Está subjacente nesse projeto uma intimização progressiva da sociedade, com uma crescente decomposição do espaço público, em nome da privatização e intimismo (Ortega, 2003). Como consequência desse processo de individualização, surge uma degradação irreversível dos antigos operadores tradicionais de regulação social - como a família ou a religião, por exemplo -, de modo que o indivíduo não mais os usa como parâmetros para se reconhecer e ser reconhecido.

Segundo afirma Jurandir Freire Costa (2004), desse processo resultam identidades que baseiam suas relações sociais a partir de dois princípios: um, narcisismo, segundo o qual o eu torna-se ponto de partida e chegada de todo cuidado e atenção; o outro, servindo para ratificar o quão bom, belo e justo eu sou. E, também, um hedonismo sustentado na crença da felicidade como satisfação imediata, impedindo o indivíduo da modernidade de firmar compromissos duradouros. Em lugar da experiência, passa a valer apenas o instante, o efêmero, a moda (Costa, 2004).

Nesse sentido Ortega (2003) afirma esse processo como a constituição de uma "subjetividade a-histórica e transcendental, da interioridade e da consciência de si modernas" (p. 62). Enfim, uma bioascese, na qual as formas de vida anteriormente referendadas por valores religiosos, éticos e políticos são descartadas em prol de um cuidado consigo voltado para a longevidade, a saúde e a dita qualidade de vida. Essas outras formas de vida ainda são aceitas, desde que em conformidade com a lei do fitness (Costa, 2004).

Classicamente, as práticas de saúde e dietéticas legitimavam o corpo para a vida pública. Pela ascese, o corpo adquiria uma liberdade sobre si. A prática ascética se direcionava tanto para o cuidado da alma quanto para a atenção ao corpo; e, como práticas de si (Foucault, 2004), tinham funções espirituais ou coletivas, de maneira que o cuidado consigo implicava um cuidado com o outro.

Essa askésis buscava a virtude e visava aos ideais de liberdade, felicidade e justeza de caráter presentes na concepção de democracia e cidadania (Machado, 1999). Mas alcançá-la era, antes de tudo, uma questão política. Daí, a ascese ser um processo de subjetivação. Seu movimento será o de deslocamento de uma subjetividade para outra. A partir de sua prática, o asceta busca alcançar uma subjetividade desejada, para além daquela que experimenta (Ortega, 2003). Para os antigos, o exercício de uma vida virtuosa seria o alcance da liberdade e da felicidade, entendidas como produto do amor pelo mundo e preocupação com o bem comum (Foucault, 2004).

Já com o ideal bioascético, instauram-se critérios de mérito e reconhecimento, valores com base em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo e modelos ideais de sujeito baseados no desempenho físico. Como consequência direta, temos o afastamento do outro. Quando muito, torna-se apenas uma "biossociabilidade" que será reproduzida no plano subjetivo pelas vivências, por meio da busca desenfreada por melhor forma física, longevidade, juventude etc. (Ortega, 2002, 2003).

Se pela ascese o homem adquiria uma autonomia da vontade, nas modernas bioasceses, a vontade não é libertária, mas "ressentida, serva da ciência, da causalidade, da necessidade, que constrange a liberdade de criação e elimina a espontaneidade" (Ortega, 2002, p. 144). Do mesmo modo, se as asceses clássicas visavam ao bem da polis, a bioascese é apolítica, individualista e egotista.

E, mais grave, se nas asceses da Antiguidade as práticas de si eram possibilidade da expansão do sujeito além dos modos de existência prescritos, as práticas de bioascese atuam na uniformização dos modos de existência, na obediência às normas e na ruptura severa e anacrônica do sujeito com o outro: "uma vontade de uniformidade, de adaptação à norma e de constituição de modos de existência conformistas e egoístas, visando à procura da saúde e do corpo perfeito" (Ortega, 2003; p. 63).

Por fim, opõem-se os que se veem impelidos a procurar desesperadamente se encaixar nos modelos ditados pela cultura da boa forma a outros que, de maneira imprevista e desenfreada, figuram como desviantes à norma. Improdutivos, incompetentes, estultos, que ameaçam a sociedade em razão de serem exemplos da fraqueza de vontade e que, em virtude dessa fraqueza, deixam de cumprir com seus deveres de cidadãos responsáveis (Costa, 2004; Ortega, 2002). Segundo os critérios bioascéticos, esses estultos são compelidos a melhorarem sua condição deplorável e, até por isso, responsabilizados por seu fracasso. Nas palavras de Francisco Ortega (2002):

A ideologia da saúde e da perfeição corporal nos faz acreditar que uma saúde pobre deriva exclusivamente de uma falha de caráter, um defeito de personalidade, uma fraqueza individual, uma falta de vontade. 'Não devemos nos enganar pensando que a doença é causada por um inimigo do exterior. Somos responsáveis por nossa doença', nos diz um guru do healthism (Crawford, 1980). Nessa linha de pensamento, os novos estultos, os fracos de vontade, merecem as doenças que contraem, ao se reduzir tudo a um problema de falta de controle, de acrasia. Eles são alvo legítimo de repulsa moral e de ostracismo social. O sofrimento do outro não é reconhecido; é sua culpa, eles são donos de seu destino (p. 73).

Segundo aponta Bruno (2006) está presente aí uma nova faceta do biopoder. A partir do momento em que cada um mantém-se saudável o faz não apenas para se sentir bem, mas porque sua saúde implica a preservação da espécie humana. Ou seja, o biopoder instaura um regime de conduta no qual aqueles estultos pecam não contra si próprios, mas contra a vida da espécie. Por isso, precisam não apenas ser regulados, muitas das vezes a contragosto. É preciso fazer crer que qualquer esforço tem uma finalidade da qual não podemos nos eximir.

No que se refere aos idosos, atribui-se à velhice uma conotação negativa de decrepitude e ao mesmo tempo proclama-se a necessidade de atualização da imagem dos mais velhos como joviais, saudáveis, produtivos, longevos e gozando de vitalidade (Bacelar, 2002; Ortega, 2002). Sob o pretexto de lhes garantir autonomia e sociabilidade, ocorre uma mudança de paradigma: o idoso de hoje deve ser tão produtivo quanto o jovem. Busca-se um ideal de envelhecimento em que se passa de velho-dependente para idoso-independente. A aposentadoria, tida antes como remediação, passa à condição de atividade produtiva, com o idoso atuando em sintonia com as bioasceses (Peixoto, 2004).

Para Ortega (2002), um modo de se perceber a atuação das práticas bioascéticas sobre os velhos é atentando para o grande número de grupos de idosos existentes e o tipo de atividade a que se destinam. Esses grupos funcionam como dispositivos bioascéticos destinados a reunir os idosos e prover-lhes a diminuição de sua deficiência. Por outro lado, ele mesmo ressalta que muitos desses grupos podem possuir uma finalidade mais nobre. Corresponderiam a redes sociais, propondo práticas de solidariedade e resistência à ideologia da cultura somática.

Mas apontar para uma velhice que se vê aviltada na contemporaneidade implica pensarmos não apenas em como chegamos a esse atual estado de coisas. A essa reconstrução, devemos aliar outro componente investigativo: o de procurarmos no interior desse mesmo empreendimento trincheiras de resistência a ele. Modos de subversão às imposições bioascéticas que configuram por si um modo novo de relacionamento do idoso com o mundo.

Isso porque, embora possamos afirmar o estabelecimento desse biopoder de maneira veemente, ainda assim não se pode conceber que ele seja hegemônico. Se assim o fosse, cairíamos no erro de desconsiderar a vida como devir. Decerto que as territorializações produzidas pelo biopoder têm força para exaurir grande parte das práticas que vêm de encontro a elas, mas - talvez por isso mesmo - o que vemos é a proliferação de bolsões de resistência a essa lógica impositiva, fazendo-o de seu interior para fora. Como afirma Guattari (1993), trata-se de resistir ao capitalismo globalizado, contaminando-o no seu interior, fazendo-o crer útil para, a partir de sua desatenção, derrubá-lo de seu pedestal.

 

Entre alguns velhos e outros nem tão idosos assim4

"Ficar em casa fazendo o quê? Só chorando?"

Bom, então pensarmos a relação entre velhice ou terceira idade implica problematizar como se chega a uma cisão entre elas e de como operam cada uma à sua maneira. Por um lado, como podemos vislumbrar lampejos bioascéticos em grupos de convivência de idosos e, por outro lado, de tentar captar nesses mesmos grupos outros modos de relação com aquilo que é prescrito ou indicado aos velhos. Ou seja, modos de ação no interior das práticas bioascéticas que, embora atreladas às modulações do discurso médico, a ele resistam na medida em que empreendem e ratificam uma existência para além do aprisionamento enrustido no discurso da somatocracia.

Tratar-se-ia de uma postura ecosófica (Guattari, 1993) do homem em relação ao mundo, denotada numa preocupação que transcende objetivos pessoais e reconhece no contato com o outro a única possibilidade de assegurar a continuação da vida no planeta. Era essa também a preocupação do cidadão ateniense ao reconhecer que participar da vida política da pólis implicava contribuir para a consolidação da democracia. Esse posicionamento político se estabelece no contato profundo e permanente que se firma entre nós e as outras pessoas.

No caso da velhice, é importante que reconheçamos que muitas das ligações afetivas se perdem ou podem tornar-se menos densas. Há, por vezes, por exemplo, um isolamento em relação aos familiares, a morte ou afastamento de amigos e companheiros de longa data etc., de modo que a construção dessa postura ecosófica do velho em relação ao mundo poderia tornar-se ainda mais expressão de uma pujança pela vida. E daí, também, podermos afirmar, nas formas de resistência ao poder bioascético, a premência de outro cuidado, de uma ascese em muito semelhante à dos antigos.

Essa foi uma das constatações decorrentes de nossa inserção no grupo de idosos pesquisado. Muitos deles vinham de bairros distantes, às vezes a pé, a despeito da idade. O acesso ao local das reuniões era por vielas sem asfalto, num horário de sol a pino. Isso, por si só, já poderia servir como apontamento da importância que os idosos atribuíam aos encontros. E em muitos dos relatos a que tivemos acesso, também transparecia essa ideia. Como na fala citada, quando uma senhora, viúva há apenas 15 dias, abre mão de seu luto para voltar à frequentar as reuniões por acreditar que estando nelas afastaria a saudade do esposo falecido e lhe teria recuperada parte da alegria de viver. Mas não se trataria de um processo que requeresse da viúva algum esforço sobre-humano ou qualquer dietética especial.

Não é almejando a melhora de sua condição física, o aumento da flexibilidade de suas articulações, a aparente menor idade ou a protelação da morte, o que levou essa idosa ao encontro semanal apenas. Não que esses determinantes não estivessem ali presentes, mas não compunham a agenda principal para aquela a quem se destinaria. Seu desejo era rever pessoas, estar com elas durante algumas horas, estar convicta que ali sua tristeza poderia ser amainada.

Ou melhor, não esperar nada, mas estar aberta àqueles novos encontros que a tarde proporcionaria. Sentir-se ainda viva por estar com as pessoas, independente de sua (in)disposição para se levantar da cadeira e entrar na roda de dança ou fazer todos os exercícios aeróbicos.

Não podemos afirmar que essa seja a intenção da idosa, mas, teríamos, aí, uma força que resiste àquela campanha bioascética, que se afirma no interior mesmo desse movimento. Melhor dizendo, uma força que sempre existiu naqueles corpos, embora sua manifestação seja vislumbrada de modo muito peculiar (Pelbart, 2008).

"Já perdi minha juventude, então tenho que aproveitar o que resta."

Por outro lado, há que se ressaltar também com que força a ideologia de uma terceira idade ativa e produtiva também entremeia a vida das pessoas idosas, principalmente na fabricação do paradoxo entre uma infantilização do idoso, entendida como a perda de responsabilidades, e, ao mesmo tempo, uma responsabilização-culpa deste mesmo idoso.

Um exemplo disso é a fala citada, trazida por uma idosa de 60 anos. Ao afirmar que já perdeu o melhor de sua vida e só pode aproveitar o que resta, ela aponta para a velhice como a fase final da vida, o fruto que passou do tempo, que não comporta mais obrigações e para o qual resta apenas "brincar", tornar menos sofrível a vida que lhe resta. Por outro lado, aponta também para um velho "moderninho", pouco afeito a compromissos sérios ou duradouros - característico daquele narcisismo e do hedonismo, fundadores da bioascese.

Mas esse velho moderninho tem também de conviver com as exigências dessa modernidade. Se ela diz querê-lo mais ativo, exige para tanto a rotina, nem sempre prazerosa, dos exercícios aeróbicos, da frequência assídua às academias de ginástica, da afirmação do antigo velho como sujeito produtivo etc. Fugir a essa responsabilidade

o faz cair no grupo de inoperantes, não adaptados e fracassados. Mais claramente:

A ideologia da saúde e do corpo perfeito nos leva a contemplar as doenças que retorcem a figura humana como sinônimo de fracasso pessoal. Historicamente, as deficiências estavam ligadas ao crime, ao mal, às aberrações (Foucault, 1999). Os estereótipos atuais contra os gordos, idosos e outras figuras que fogem do padrão do corpo ideal têm o mesmo efeito estigmatizante e excludente. A obsessão pelo corpo bronzeado, malhado, sarado e siliconado faz aumentar o preconceito e dificulta o confronto com o fracasso de não atingir esse ideal, como testemunham anorexias, bulimias, distimias e depressões (Ortega, 2002, p. 65).

"Agora, temos a psicologia com a gente."

Embora não seja o enfoque principal do texto, não deixa de ser oportuno se referir também ao lugar que os saberes especializados, e neles incluímos as práticas psi, podem ocupar tanto na produção de modos de resistência como na reiteração do poder atribuído às disciplinas que geram a gestão da vida na contemporaneidade.

Falamos, em particular, da reafirmação de uma psicologia-especialista, detentora do saber e das explicações das questões individuais e coletivas que perpassam a vida dos velhos, de seus filhos e de vizinhos. Um saber que justificasse uma condição de debilitado ao velho, ao mesmo tempo em que professasse a urgência de uma adesão aos exercícios, à rotina aeróbica, ao controle sobre as taxas de colesterol, da pressão arterial e por aí à fora, segundo prescreve o saber médico.

Demanda, inclusive, dos próprios idosos, que muitas vezes demonstraram uma busca por acolhimento. Entretanto a fala que abre este registro foi proferida pelo professor de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (UFS), entendendo que a chegada dos estudantes e professores ao projeto que ele tocava junto ao grupo de idosos fortalecia e dava credibilidade à sua proposta de trabalho. Situação inusitada que fala da relação que se funda entre produção de saber, das biopolíticas e da intensificação de bioasceses nos discursos de especialidades acadêmicas, que podem estar a serviço da produção de carências na contemporaneidade e para a qual vale lançarmos mão do questionamento a respeito de como o fazer psicologia tem contribuído para sustentar essa carência e que modos de esquiva restam àqueles cuja atividade não se destina a esse fim.

 

Algumas considerações

Do visto, percebe-se que embora ganhe a cada dia mais força, o discurso bioascético é ainda contemporâneo de outro que, no caso da velhice, resiste a ele, produzindo um entendimento para o envelhecimento humano que ultrapassa questões fisiológicas para se ater à constatação de que sermos novos ou velhos não pode excluir o fato de que sejamos antes vivos potentes. Para além disso, essa visão sobre a velhice parece ressaltar uma postura do homem sobre a vida, na qual fique patente o comprometimento que se deve ter com o mundo ao nosso redor, no reconhecimento da singularidade que funda cada um de nós e no atrelamento dessas singularidades às relações sociais pautadas pelo valor a vida e princípios de coletividade. Enfim, outra ascese, diríamos, que se refere a tornar proveitosos espaços de encontros como grupos de idosos.

Ainda assim, é patente que a empreitada firmada pela bioascese faz avançar a cada dia as suas trincheiras, seja por meio da interlocução que faz com as políticas estatais direcionadas ao cuidado com a vida, seja na sua adequação aos discursos de saberes cada vez mais estruturados, responsáveis por organizar estatísticas, produzir verdades e silenciar discursos.

No caso específico do grupo de idosos referido neste trabalho, ainda que o trabalho se orientasse para uma intensificação da performance corporal - personificada na figura do professor de Educação Física por meio dos exercícios e alongamentos que compunham o ritual do grupo - para muitos daqueles sobre quem tais práticas incidiam, não havia uma predileção por essa finalidade. Antes, ressaltava-se uma busca por um espaço que fosse acolhedor e divertido, havendo aí uma aproximação com as asceses clássicas, naquilo que se refere à existência de uma dimensão político-social fundamental, expresso no amor pelo mundo e na preocupação com o outro.

Claro que tomar o grupo de idosos como grupo de solidariedade pode se assemelhar à busca por cabides nos quais esses mesmos idosos busquem dependurar seus medos (Bauman, 2003). E se assim entendermos, devemos considerar essa rede de solidariedade como mais um dispositivo bioascético, dessa vez direcionada para capturar os velhos estultos e torná-los adaptados. Muitos dos idosos do Lions, inclusive, se referiam ao grupo como sendo a oportunidade de se encontrarem

com pessoas da mesma idade, que gostam das mesmas coisas. Mas essa conjuntura parece imprópria quando consideramos o ponto de vista daqueles para quem estar no grupo era apenas a oportunidade de experienciar vivências, sem que lhes fosse exigido sequer fazer as atividades físicas. Para estes, o estar junto tinha significado muito maior que o apenas reunir-se.

 

Referências

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Recebido em: 05/05/11
Aceito em: 30/11/11

 

 

1 Artigo resultante do Projeto de Pesquisa "Ascese e Bioascese na Terceira Idade", financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)-CNPq/UFS.
2 Contato: lazaro.batista.fonseca@hotmail.com
3 Há de se pensar na disciplina na contemporaneidade como um sistema de vigilância no qual a figura clássica do Panóptico seja substituída pelas câmeras de segurança de prédios, elevadores, praças etc. Ou seja, uma vigilância que exacerba ainda mais sua virtualidade, não sendo encontrada em nenhum lugar específico e em todos os cantos ao mesmo tempo; inclusive, no interior das pessoas: vigiando-nos e policiando-nos mutuamente.
4 As falas apresentadas compõem parte dos diários de campo da pesquisa realizada entre os meses de setembro e dezembro de 2009 junto ao grupo de idosos da entidade filantrópica Lions Club Serigy, na cidade de São Cristóvão (Sergipe). Tais informações podem ser acessadas também no endereço eletrônico http://www.caminhosdepesquisa.blogspot.com.