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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.4 no.2 Juiz de fora dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Arte, artesanato e trabalho: um estudo acerca dos limites do fazer e do criar artesanal1,2

 

Art, handicraft, and work: a study on the limits of making and creating handicraft

 

 

Mara SalgadoI,3; Kety Valéria Simões FranciscattiII

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
IIUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo busca elucidar aspectos da formação cultural ao focalizar o ofício do artesão que constitui a história da cidade de Tiradentes/MG e região e contrapor as imposições do mundo do trabalho à resistência que pode estar presente no processo de criação. Com base em autores da Teoria Crítica da Sociedade, discorre-se sobre o artesanato meio à Indústria Cultural, refletindo se este ainda contém elementos de resistência objetivados na obra artesanal. Como parte do método de investigação, foi realizado o levantamento das condições da produção e da obra artesanal por meio de visitas aos locais de produção e venda dos produtos artesanais, além de análise documental da Corporação de Artesãos de Tiradentes, observações de grupos de artesãos e entrevistas. Considera-se que, sob as especulações do mercado de alta produtividade, a possibilidade de realizar-se pelo fazer artesanal fica empobrecida pela imposição de um ritmo de padronização e banalização de seus produtos.

Palavras-chave: Teoria Crítica da Sociedade, Formação Cultural, Racionalidade Tecnológica, Indústria Cultural, Resistência


ABSTRACT

This article is aimed at elucidating the aspects of cultural formation by focusing on the work of artisans within the context of the history of the city of Tiradentes, MG, and its surrounding region and by contrasting demands from the world of work with the resistance that can exist in the process of creation. Based on the authors of Critical Theory of Society, handicraft is considered in the midst of the Culture Industry, in an attempt to understand whether it still has elements of resistance concretized in the handicraft. As part of the research method we present a survey of the conditions of production and nadicraft through visits to places of production and sale of handicraft products, and analysis of documents from the Corporação de Artesãos de Tiradentes, observing group meetings and interviews. It is considered that, under market speculations of high productivity, the possibility of fulfillment by handicraft becomes impoverished by the imposition of a rate of standardization and trivializations of its products.

Key words: Critical Theory of Society, Cultural formation, Technological rationality, Culture Industry, Resistance


 

 

Somos em geral mais ricos em tudo o que se pode herdar; portanto, também em todas as vantagens do artesanato, em todas as massas do mecânico, mas o que deve ser inato, o talento imediato, pelo qual se distingue o artista, parece ser mais raro em nossa época. E, todavia, eu gostaria de afirmar que ele continua existindo hoje tal como sempre existiu, mas que, como uma planta muito delicada, não encontra nem terreno e clima apropriados nem cuidado.

Johann Wolfgang Von Goethe

O presente artigo discute aspectos da formação cultural ao focalizar o ofício do artesão e contrapor as imposições do mundo do trabalho à resistência que pode estar presente no processo de criação característico de uma obra de arte. Com base em autores da Teoria Crítica da Sociedade - mais especificamente Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse e outros autores fundamentados nessa perspectiva -, discorre-se sobre o artesanato em meio à Indústria Cultural, como expressão da ideologia da sociedade industrial, refletindo se este ainda pode conter elementos de resistência e crítica objetivados na obra artesanal ou se apenas reproduz a lógica do sistema econômico. À luz do referencial teórico que fundamenta a pesquisa aqui relatada, foi possível empreender uma reflexão sobre as possibilidades e impossibilidades de um ofício constituinte da história da cidade de Tiradentes/MG e região.

Nesse sentido, esta investigação4 percorreu trajetórias articuladas no campo teórico e empírico. A sistematização do referencial teórico - os já mencionados autores da Teoria Crítica da Sociedade e autores fundamentados nessa perspectiva (Crochík, Franciscatti, Imbrizi e Zuin) - foi empreendida com a finalidade de subsidiar a análise do processo de formação cultural e das possibilidades de individuação, privilegiando a tensão entre forma e expressão artística frente a racionalidade do mundo do trabalho e a resistência presente no fazer artesanal. Ao mesmo tempo, foram selecionadas e sistematizadas formulações de autores como Johann Wolfgang von Goethe, Ferreira Gullar e Mário de Andrade, por suas contribuições sobre as formas de produção artesanal e sobre a tensão entre a arte e o artesanato; e as considerações históricas de Goethe e Karl Marx sobre o processo de coisificação e de produtividade, uma vez que ainda iluminam a atualidade das contradições presentes no mundo do trabalho - focos investigativos aqui propostos. Vale dizer que são escassas as publicações com tal tensão, em especial sobre arte e artesanato.

Também como parte do método, foi realizado o levantamento das condições de produção da obra artesanal por meio de visitas aos locais de moradia e de trabalho dos artesãos, dos locais de venda dos produtos artesanais, de observações de grupos de artesãos e entrevistas abertas e semidirigidas, bem como a análise documental da Corporação de Artesãos de Tiradentes (CAT) - corporação e cidade exemplares para esse tipo de investigação por serem as primeiras no Brasil a receberem incentivos técnicos e financeiros para a expansão da produção artesanal.

Desse modo, com a articulação e a tensão teórica, temática e empírica entre arte, artesanato e trabalho, buscou-se proporcionar à Psicologia a possibilidade de criticar as condições que dificultam a efetivação de seu objeto - o indivíduo, a realização da diferenciação - de modo que, ao refletir sobre as (im)possibilidades suscitadas em cada fazer, torna-se possível a essa ciência denunciar os impedimentos da fruição da subjetividade, clamar por uma ordem social capaz de fazer sentido à vida humana e não legitimar o estado de coisificação5, marca da obstrução da autonomia do sujeito.

 

Indivíduo e grupo: marcas da pseudoformação

Para Adorno (1959/1986) "[...] a formação do indivíduo nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva. Porém, a cultura tem um duplo caráter: remete à sociedade e medeia esta e a pseudoformação" (p. 176)6. A adoção da cultura como um valor, um fim em si mesma, autentica seu caráter de dominação ao manter a dissociação entre cultura (espírito) e civilização (bens materiais). A cultura não é só espírito, é também bem material. Tudo que o homem produziu e produz é cultura - representação dinâmica da mediação social -, e manter essa dissociação é manter a alienação e a dominação, uma vez que a coloca em condição imutável. Assim, se a sociedade se estrutura na dominação, os homens impedidos de se expressar de acordo com sua autoconsciência estão de antemão deformados.

Sobre o conceito de formação cultural que se emancipou com a burguesia, Adorno (1959/1986) esclarece como este se tornou ideológico ao consolidar o engodo da igualdade e da liberdade entre os homens. Rebaixada pelo próprio ideal purificado, de coisa em si mesma, a ideologia mantém a ilusão de que é oferecido aos homens algo que, na verdade, a realidade lhes recusa. Segundo o autor:

Sem dúvida, na ideia de formação cultural se postula necessariamente a situação de uma humanidade sem status e sem exploração. Quando se degrada na prática dos fins particulares e se rebaixa diante dos que se honram com um trabalho socialmente útil, peca contra si mesma. Não inocenta por sua ingenuidade, e se faz ideologia. Se na ideia da formação ressoam momentos de finalidade, esses deveriam em consequência tornar os indivíduos aptos a se afirmarem como racionais numa sociedade racional, como livres numa sociedade livre; inclusive, de acordo com o modelo liberal, isso seria tanto melhor atingido quanto mais cada um estivesse formado para si mesmo. E quanto menos as circunstâncias sociais, em especial as diferenças econômicas, cumprem esta promessa, tanto mais energeticamente se estará proibido de pensar no sentido e na finalidade da formação cultural. [...] O sonho da formação - a liberdade da imposição dos meios e da estúpida e mesquinha utilidade - se falseia em apologia de um mundo organizado justamente por aquela imposição: no ideal de formação, que a cultura defende de maneira absoluta, destila-se a problemática da cultura (p. 179).

O grupo, por sua vez, em seu papel de mediador social, reproduz o medo instaurado por uma organização social de dominação e a perda da percepção dos sofrimentos causados pela desumanização e mutilações do homem. Para Horkheimer e Adorno (1956/1973), um grupo de trabalho, ao obedecer a um planejamento de cima para baixo, atua "[...] como amortecedores entre o coletivo anônimo e os indivíduos [...]" e, nesse sentido, "quanto mais a ideologia7 insiste na autonomia do grupo, tanto mais os próprios grupos, como instâncias mediadoras entre a totalidade e o indivíduo, são determinados, de fato, pela estrutura da sociedade" (p. 74).

Nesse sentido, o que hoje se manifesta como formação cultural sustenta-se numa pseudoformação socializada, em que o homem com seu espírito alienado não encontra formas nem forças para resistir à dominação (Adorno, 1959/1986). A resistência só é possível com a expressão de sua subjetividade por meio do exercício da fantasia, movimento capaz de denunciar as condições objetivas de renúncia e de autodestruição, bem como de desvelar indícios do que poderia ser diferente.

A ilusória ambiguidade da cultura - inscrita na dissociação histórica entre os bens materiais e os espirituais que, em vez de formar, deforma - remete à separação social colocada entre o trabalho do corpo e o trabalho do espírito, base para pensar a práxis do artesão para além da propaganda de um ofício extraído do espírito (expressão/criatividade), desprovida do esforço corporal acentuado pela excessiva repetição dos movimentos na produção artesanal seriada, como se seu corpo não estivesse acuado pelo ritmo da alta produtividade exigida pelo mercado (Crochík, 1999).

Na tensão entre produtividade e diferenciação está o paradigma das exigências modernas, que se baseia no sistema da produção industrial e finge buscar "o novo", reiterando a falsa promessa da sociedade de realização do indivíduo por meio da diferenciação. Esta, por sua vez, tem servido ultimamente como instrumento para adaptação na atrofia e embrutecimento das capacidades humanas. Com base nas contribuições dos autores frankfurtianos, Imbrizi (2005) ressalta a impossibilidade da diferenciação:

[...] não só em função das condições oferecidas no espaço de trabalho, mas fundamentalmente porque o processo de formação percorrido pelo indivíduo nas várias esferas da socialização está tomado por valores vinculados à racionalidade do equivalente: o homem é formado para igualar-se aos outros; os espaços oferecidos para a participação e discussão de ideias são falsos. [...] Perde-se, então, a oportunidade desses espaços como possibilidades de avanço das relações entre os homens, que sob a ótica da tecnologia, tendem a ser calculados e mensurados segundo critérios de utilidade e lucro (p. 23).

Tal entendimento ilumina as marcas do embrutecimento no fazer artesanal, que também não tem encontrado meios para resistir ao achatamento da subjetividade. Essas marcas se tornam visíveis não só em seus produtos, cada vez mais padronizados, mas também em seus corpos exaustos pelo excesso de trabalho e em suas relações de alta competitividade em busca da sobrevivência.

 

A Indústria Cultural e a obstrução da autoconsciência

Os autores frankfurtianos, Adorno, Marcuse e Horkheimer, buscam na arte fundamentos para potencializar suas obras como crítica da cultura e da práxis aprisionada pelas exigências da sobrevivência. Para Adorno (1970/1988), "a arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua esfera corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente parte na sublimação" (p. 19). Segundo esse autor, quando é permitido a alguns homens se dedicarem a uma atividade de criação artística nesses termos, estes realizam um trabalho em algo que resiste às imposições de uma ordem social, que ainda traz sofrimento em demasia a seus membros. Segundo Franciscatti (2007), formulações como essas indicam como esses autores, em especial Adorno, tomam a arte, em seu valor epistemológico, como historiografia do sofrimento humano. Entretanto, deve-se considerar o rastro de tal elemento de resistência da arte, seu caráter de negatividade àquilo que faz sofrer, diante das condições da sociedade industrial e sua ideologia.

Na década de 1940, Horkheimer e Adorno criaram a expressão Indústria Cultural, para dizer da padronização e do controle obsessivo da ideologia da sociedade industrial sobre todas as instâncias (enfraquecidas) de mediação e ainda, conforme escreveu Imbrizi (2006), sobre os objetos "de uma cultura padronizada, que produzem a sensação de uma falta de significado nas coisas da vida, um sentimento de nulidade no indivíduo" (p. 98). Esse controle ideológico garante ao sistema econômico, fortalecido pela racionalidade tecnológica, o poder absoluto da consciência individual em coesão com os produtos a serem consumidos, que, por sua vez, contêm a mesmice do próprio sistema. A satisfação das necessidades iguais das pessoas passa a ser manipulada pela disseminação de bens padronizados, e o que é difundido é a busca pela satisfação do todo em detrimento da realização da subjetividade, de modo que a sociedade alienada nesse modelo de cultura afirma "[...] a falsa identidade do universal e do particular" (Horkheimer & Adorno, 1947/1985, p. 114).

Adorno (1963/1986) esclarece que, ao cunhar o termo Indústria Cultural, ele e Horkheimer pretendiam ressaltar a diferença entre os produtos de uma sociedade massificada das expressões da cultura de massa ou arte popular 8. Para tal diferenciação, o autor discorre sobre os mecanismos de ilusão adotados pelos meios atuais da técnica, provedora do sistema econômico, que se estrutura para juntar segmentos diferenciados socialmente, igualando-os na constituição e solidificação desse sistema. O que é produzido na conversão do processo técnico como conteúdo dos bens culturais reitera a mistificação das massas, no que se refere ao trabalho alienado, e a forçada união entre os domínios da arte superior e da arte inferior.

As formulações de Horkheimer e Adorno (1947/1985), com base em Marx e com imensa rigorosidade na análise dos diversos aspectos sociais da alienação, contribuem para a compreensão dos mecanismos de controle das massas em favor dos dominantes, para eles, "assim como os dominados sempre levaram mais a sério do que os dominadores a moral que deles recebiam, hoje em dia as massas logradas sucumbem mais facilmente ao mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos deles. Obstinadamente, insistem na ideologia que as escraviza" (p. 125). Nesse sentido, as massas e as artes são rebaixadas, coisificadas pela condição de mercadorias e passam a ser tratadas, planejadas, calculadas e assimiladas como meros fetiches. Nas palavras de Adorno (1963/1986):

A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior, com prejuízo para ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total. Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais ela se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer; ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto (p. 93).

Com base nas características da arte superior e arte inferior levantadas por Adorno, alude-se sobre uma possível relação entre a arte inferior e o artesanato, já que este também é reconhecido como representante da arte popular ou da manifestação da natureza rude.

Neste momento, vale retomar a discussão sobre a distinção entre arte e artesanato postulada com base em Ferreira Gullar e Mário de Andrade. Gullar (1994) indica que a efetiva distinção entre arte e artesanato teve seu início no Renascimento, com a divisão de trabalho entre artistas e artesãos na construção de igrejas medievais. Descrevendo uma relativa independência do artista, que se estabelece tanto no plano econômico quanto estético, afirma que este

[...] distingue-se do artesão que continua a produzir objetos de uso e preso às formas tradicionais. Uma das características do artesanato, em contraposição à arte então nascente, é que esta se caracteriza pela busca de novas formas e estilos, enquanto o artesanato é conservador e repetitivo. Nele, a experiência é passada de pai para filho e não como conhecimento estético, forma estilística, mas como a forma do objeto, ou seja: um copo se faz assim, uma bandeja se faz assim, um cálice se faz assim (p. 8).

Já Mário de Andrade (1938), em O artista e o artesão, indica que

[...] o artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente, mas a técnica da arte não se resume ao artesanato. O artesanato é parte da técnica que se pode ensinar, mas há uma parte da técnica da arte que é, por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista (p. 4).

Contudo, Andrade (1938) ressalta que o objeto artesanal pode ser um testemunho: revelação da relação homem e sociedade. Esse mesmo autor considera que, na tensão entre repetição e criação, existe a possibilidade de o objeto artesanal se revelar: o que desponta de criação em meio à repetição contém a rebeldia e a transgressão da própria repetição.

Todavia, no que tange à aproximação ou à tentativa de retirar qualquer distinção hierárquica entre o artista e o artesão que ainda guarda em seu produto rastros de expressão, pode-se pensar no quanto a afirmação de Adorno (1963/1986) sobre a falsa reconciliação entre as artes (superior e inferior; séria e ligeira; erudita e popular), que culmina no rebaixamento de ambas, também pode ser estendida ao artesanato. Com base nessa argumentação, teme-se não ter sido apenas o artesão que, na transgressão da técnica, aproximouse com seu fazer da expressão artística, como se argumenta em defesa da difusão do artesanato. Ao contrário, talvez não tenha restado ao artista senão vender seu talento à produção artesanal como única forma de resguardar, ainda que precariamente, a fatalidade da expressão frente ao estreitamento da arte e das possibilidades de vida.

Nesse caso, o que se ressalta é o caráter de arte sucumbida pelo artesanato, como já previa Goethe em 1797, num texto que discorre sobre a atividade livre do artista, cada vez mais obstruída pela, desde já, crescente mecanização na produção de objetos artesanais no fim do século XVIII e início do XIX.

Ao contrário, tudo o que o mero artista mecânico produz não possui nunca, nem para ele nem para qualquer outro, tal interesse. A sua milésima obra é como a primeira e existe no fim também mil vezes. Além disso, acrescenta-se a isso que, na época mais recente, as máquinas e a indústria foram aperfeiçoadas até o supremo grau e o mundo inteiro foi inundado, por meio do comércio, com coisas transitórias e belas, delicadas e aprazíveis.

Diante disso, vemos que o único antídoto contra o luxo9, caso ele pudesse e devesse ser balanceado, é a arte verdadeira e o sentimento artístico verdadeiramente suscitado e que, ao contrário, a mecanização altamente desenvolvida, o artesanato refinado e a produção manufaturada preparam a ruína completa da arte (Goethe, 1797/2005, p. 89).

O que Goethe antecipou sobre os incentivos ao aumento da produtividade fundamenta o que os autores frankfurtianos afirmam acerca do rebaixamento das artes no processo de intensificação comercial, em que a pressão exercida sobre os homens e as coisas contribui não somente para manter a barbárie, como para vendê-la como civilização.

Sobre o caráter de fetichismo do qual nem a arte e menos ainda o artesanato estão imunes, pode-se indicar, com base em Marx (1867/1988), como o estado de coisificação se faz fortemente presente também nas relações atuais de produção das atividades que se pretendem criativas. Marx discorre sobre a igualdade dos produtos do trabalho que, ao serem assimilados como mercadorias, estabelecem a falsa igualdade entre os trabalhos humanos. O trabalho humano passa a ter a forma da quantidade de valor de seu produto e, assim, converte a relação entre pessoas - que podem trazer inscrições culturais diferentes - em relações sociais entre produtos, entre coisas. A essa coisificação dos produtos da mão humana, que impele à coisificação do humano, Marx (1867/1988) denomina fetichismo.

Neste ponto, vale ressaltar sobre o caráter de empreendedorismo adquirido pelo fazer artesanal que, ao ser convertido em lucrativo fetiche do mercado, tem em seus produtos o mesmo ritmo do trabalho industrial. Perdem-se, então, as marcas da resistência tanto do "fazer" quanto do "criar". Tal inscrição sobre o fazer artesanal transforma também as relações entre os artesãos: as relações entre humanos passam a ser relações entre coisas, exatamente como descrito por Marx (1867/1988), o que talvez explique o fato de artesãos da mesma comunidade e/ou mesma associação sentirem-se no direito de reproduzirem peças criadas por outro artesão como se realmente fossem suas criações. Afinal, se a relação estabelecida é, entre um produto e outro, a relação entre um artesão e outro perde o sentido de convivência, de respeito, e reafirma a alienação do homem em seu trabalho. Não se trata de desconsiderar o caráter formativo das criações humanas, alimentadas também do que é universal e, portanto, tomadas como modelos, mas, antes, de refletir sobre a atual produção repetitiva e despersonalizada do artesanato.

Essa questão é tratada por Zuin (2006) como a vingança do fetiche, ao mencionar a relação estabelecida entre produto e produtor e produto e receptor; nesse caso, melhor dizer, o consumidor compulsivo dos produtos da Indústria Cultural.

E são os fetiches, como sucedâneos das experiências humanas, que se vingam de seus criadores por meio de uma dinâmica que vicia e que produz um estado semelhante ao da síndrome de abstinência. [...] A exemplo do viciado em drogas, o viciado pelo choque audiovisual sabe, no seu íntimo, que a substância viciadora não tem o efeito redentor desejado, mas mesmo assim seu organismo 'crê' na promessa de felicidade da substância e não para de exigi-la, até por que o mal-estar decorrente de tal contradição é arrefecido pelo prazeroso voyeurismo sadomasoquista [...]. É nessa perspectiva que a dinâmica do vício se confunde com a da crença fundamentalista, pois o 'vício é, por assim dizer, a crença que se alça sobre a base da descrença' (Türcke, 2002, p. 253). A procura desesperada por mais substância viciadora, no caso o contato com estímulos audiovisuais mais potentes, denuncia também o desejo do viciado em querer se livrar do vício, pois ele sente de alguma forma que está sendo ludibriado ao consumir imagens que são sucedâneas do real, mas que são apresentadas com se fossem verdadeiramente tal reais (Zuin, 2006, p. 82: grifo e citação no original).

De modo análogo, pode-se destacar como outra vertente da vingança do mundo do trabalho a negação da expressão que talvez resida no artesanato diferenciado. Em tal negação, defesa ativada por falsa projeção, o elemento de resistência, de alguma forma objetivado no produto artesanal, é ocultado pelo consumidor que teme a familiar lembrança da impossibilidade de resistir. A vingança estaria presente tanto na negação da expressão como também no incentivo e valorização de cópias seriadas.

Esse argumento encontra sustentação nos autores da Teoria Crítica da Sociedade, que ponderam acerca dos efeitos ideológicos sobre as pessoas que, obstruídas da reflexão autoconsciente, respondem ao valor da própria ideologia: a necessidade de consumir incessantemente produtos que reiterem a padronização e a possibilidade de diferenciação.

Quando a Indústria Cultural privilegia um produto pseudoartístico padronizado, calculado tecnicamente para surtir efeitos determinados de modo a serem por todos desejados e repetidos, na forma e na medida adequadas a garantir o poder e o lucro do sistema dominante, gera uma necessidade compulsiva generalizada que afasta o 'não-idêntico' como exótico, indesejado, incômodo ou doente. Tal repetição vem camuflada com outros produtos que, não obstante a variação aparente, repete os mesmos modelos, esquemas ou características impostas, tendendo a manter o público sob controle, cada vez mais massificado, inconsciente e compulsivamente preso à corrente de produção (Reis, 1996, conforme citada por Bertoni, 2001, p. 77: grifo no original).

Adorno (1970/1988) indica que a Indústria Cultural possui uma origem histórica e, portanto, pode desaparecer. Nesse intento, não se deve descansar sobre seus efeitos, tomando-os como absolutos e irrevogáveis. Para o autor, a arte como antítese social da sociedade e trabalho em algo que resiste traz como sua verdade a crítica de uma práxis aprisionada à sobrevivência, guardando vestígios que indiquem a libertação das amarras do sistema (Franciscatti, 2005, 2007).

 

Trabalho, produtividade e rastros da mão humana

As investigações realizadas também se apoiaram na seleção da Corporação de Artesãos de Tiradentes (CAT) por intermédio de seus sócios fundadores e atuais beneficiários, a fim de sistematizar os dados referentes à primeira associação de artesãos da cidade de Tiradentes e região, fruto do primeiro projeto em cidade brasileira para fomento e desenvolvimento do artesanato.

A partir da organização dos documentos da CAT, foi possível privilegiar a seleção para análise dos seguintes documentos: "Projeto Tiradentes - um estudo de alternativas para revitalização de comunidades urbanas e rurais", que originou a criação da CAT em 1981, e o "Projeto CAT".

Com o propósito de criar base compreensiva das relações estabelecidas com o ofício de artesãos e de suas atuais possibilidades formativas, foi elaborado um roteiro semiaberto de perguntas subsidiadas nas observações das reuniões com os artesãos associados à CAT, bem como nas questões levantadas a partir do estudo acerca do tema e das reflexões possíveis com as visitas técnicas aos artesãos em seus locais de trabalho. Foram realizadas cinco entrevistas ao todo, sendo entrevistados quatro artesãos sócios fundadores da CAT e um artesão que atualmente utiliza-se do espaço da Corporação, hoje com sérios problemas organizacionais. As entrevistas foram gravadas com a permissão dos artesãos.

A análise das entrevistas realizadas fundamentou-se na coleta de dados recorrentes, destacados dos relatos dos artesãos, indicativos dos principais aspectos estabelecedores de suas condições sociais e de trabalho. Durante o contato com os artesãos em suas reuniões grupais e/ou nas entrevistas realizadas, iniciou-se o levantamento das condições da produção artesanal em seus aspectos físicos (oficinas e áreas residenciais de trabalho), que foram fotografados (após consentimento dos artesãos), e em seus aspectos psicológicos, por meio dos relatos das entrevistas. Os momentos de contato e de entrevistas com os artesãos foram registrados em diários de campo. Destaca-se que em todo o processo de investigação foi mantido o compromisso ético requerido pela pesquisa de campo.

Apesar de considerar preliminarmente a importância da realização de entrevistas com público consumidor e atravessadores do produto artesanal, tais atividades não foram realizadas e merecem maior atenção. Não obstante, foi possível pensar com base nos aportes teóricos sobre indícios significantes que se articulam às temáticas não investigadas empiricamente. A contemplação temporária a outros produtos da pesquisa explicase pelo entendimento de que as entrevistas realizadas com os artesãos alimentaram substancialmente as reflexões e análises aqui relatadas, e alimentariam muitas outras, pela veracidade que conferem ao objeto eleito. Desse modo, uma tentativa de tensão entre o discurso dos artesãos e aqueles que consomem ou revendem seus produtos despenderia um tempo maior para o justo tratamento do objeto e, portanto, caracterizam-se para possíveis desdobramentos da pesquisa aqui relatada.

Assim, com base na bibliografia selecionada e a partir do estudo específico sobre as formas de produção do artesanato, principalmente por meio do contato com os artesãos e seus produtos, o que desponta é a negação da alienação da força de trabalho, a negação da substituição da máquina pelo homem, dada a tamanha necessidade de produção capaz de suprir somente a mera sobrevivência.

A análise dos documentos da "Corporação de Artesãos de Tiradentes e do Projeto Tiradentes - capacitação profissional e revitalização de cidades de tamanho reduzido, um estudo de alternativas para revitalização de comunidades urbanas e rurais", realizado entre 1979 e 1981, orientou a compreensão sobre o processo de desenvolvimento e fomento do artesanato no Brasil, que teve em suas diretrizes a cidade de Tiradentes como primeira cidade brasileira a receber incentivos à expansão da produção artesanal.

As entrevistas realizadas com os artesãos e o contato em suas reuniões indicam a realidade de uma maioria, dentre os inúmeros tipos de artesãos, que também se mantém à margem de um sistema justo de trabalho, vítima das especulações do mercado.

Vale citar alguns resultados, seguidos de possíveis análises decorrentes das entrevistas com os artesãos, que refletem os aspectos ressaltados durante o presente texto: a melhora da situação econômica e social dos artesãos, após se iniciarem no ofício de artesão, impulsionados pela oportunidade ascendente de trabalho; a satisfação proveniente da habilidade artesanal e da possibilidade de criação, atribuída à adequação ou superação do modelo determinado pelo mercado ou com a valorização e reconhecimento da própria transgressão; o reconhecimento de um período áureo do artesanato e a esperança de uma nova ascensão no mercado; a criação das peças artesanais a partir de uma demanda de mercado; a compra da matéria-prima indicada como principal dificuldade pelos artesãos e a falta de visibilidade de seus produtos, que fica, na maioria das vezes, submetida a uma associação; o privilégio que alguns integrantes das associações obtêm em detrimento de outros, indicado nas entrevistas como uma das características de redes coletivas de trabalho; a inviabilidade das oficinas para produção artesanal, que foi montada pela CAT com regulamento próprio, equipada com máquinas, para serem usadas coletivamente pelos artesãos; os lojistas (intermediários) como a principal fonte de venda dos artesãos; a questão das cópias das peças artesanais; a marginalização dos artesãos; e a idealização dos artesãos de um espaço que não seja exclusivamente para comercialização.

Embora os artesãos tivessem dificuldade de objetivar seus motivos, a compra da matéria-prima parece estar ligada diretamente ao baixo preço final das peças, que não têm seus preços calculados a partir do custo exato de produção e cedem à descapitalização do artesão e à grande concorrência na tentativa de suprir necessidades básicas da sobrevivência.

Já sobre a outra dificuldade citada pelos artesãos, que é a falta de visibilidade de seus produtos, pode-se considerar que esses produtos ficam na maioria das vezes submetidos a uma associação, o que impede o contato direto entre o artesão e o consumidor final e o envolve numa rede coletiva de trabalho, que está, muitas vezes, despreparada para lidar com questões conflitantes do mundo do trabalho em seus aspectos sociais e administrativos. Quando a principal fonte de venda dos artesãos fica restrita aos intermediários (os lojistas), o artesão parece ter sua autonomia limitada, pois a intermediação comercial em busca de maior lucro incentiva a competição entre os artesãos, comprando pelo menor preço e ignorando a qualidade do trabalho. Desse modo, a inviabilidade das oficinas parece ter como principais motivos a falta de motivação dos artesãos para produzirem em espaços coletivos e o medo de intervenção e imitação no processo de produção.

A ocorrência das cópias das peças artesanais indica a corrida pela venda, por meio da massificação dos produtos e a tentativa da falsa diferenciação, num mercado inchado pela alta produtividade artesanal. Outro aspecto sobre as cópias artesanais a ser ressaltado é quanto ao efeito deformador da relação social entre os artesãos, cuja convivência parece permear o ressentimento em relação à cópia de suas peças por outros artesãos. Diferencia-se aqui a apropriação de elementos da cultura, que nesse caso conduziria à experiência formativa, da reprodução em série de cópias fiéis sem nenhuma representação singular circunscrita ao modelo. Tal deformação na relação entre os artesãos revela marcas de ressentimentos provenientes das cópias e seriação dos produtos artesanais. Marcas fortemente evidenciadas no contato com os artesãos entrevistados, que revelam as deformações de um mundo estruturado pela alta competitividade e individualismo.

Outro indício de deformação do fazer artesanal parece estar presente na relação entre o artesão e seu produto, que, sob os efeitos compulsivos da lógica da produtividade, mantém uma relação esgarçada entre si. O artesão submetido à demanda de mercado se ressente com a prisão que sua produção lhe proporciona. Nisso, confere ao produto o caráter vingativo estabelecido na dependência de um fazer repetitivo que lhe garanta a sobrevivência.

A marginalização dos artesãos, que também aparece em algumas entrevistas, remete à desvalorização do trabalho manual e à eventual posição histórica de transgressão de uma ordem social.

Pode-se argumentar que a idealização dos artesãos de um espaço que não seja exclusivamente para a comercialização diz de uma possível aproximação do reconhecimento do engodo da promessa da sociedade de atingir satisfação por meio apenas do acesso a bens materiais que não estejam entrelaçados à satisfação do espírito. Em seus discursos, os artesãos ressaltam a necessidade de cuidados com questões referentes ao sofrimento humano, como vícios, desamparo, desigualdades e injustiças sociais, e que tais questões deveriam ser trabalhadas entre eles em suas oficinas e cooperativas, ou seja, no ambiente de trabalho. Tal apelo indica tanto a vinculação de tais sofrimentos ao mundo do trabalho, como também em que direção a vida poderia ser melhorada: no contato entre os homens, via mudança da racionalidade do mundo do trabalho.

Com base na análise dos documentos referentes à CAT e nos relatos de artesãos entrevistados, pode-se tecer linhas de compreensão dos caminhos do artesanato brasileiro, já que outras políticas públicas foram traçadas apoiadas no mesmo plano de desenvolvimento para o artesanato descrito a seguir.

Em 1979-1981, a cidade de Tiradentes foi escolhida como experiência-piloto para a implantação de um projeto financiado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Plano de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA), intitulado, como mencionado anteriormente, "Projeto Tiradentes - capacitação profissional e revitalização de cidades de tamanho reduzido, um estudo de alternativas para revitalização de comunidades urbanas e rurais".

Tal projeto visava a promover a revitalização de centros urbanos menores como sociedades alternativas à crescente desorganização das regiões metropolitanas, possibilitando a elevação da qualidade de vida e da produtividade dos setores econômicos informais (Max-Neef, 1980). Esse projeto foi desenvolvido a partir de ações de fomento da produção artesanal, apontada como potencialidade do município, em pesquisa intitulada "Pesquisa de Qualidade de Vida", realizada com os moradores da cidade, como parte do método de investigação desse projeto em 1980.

Com o intuito de evitar migrações aos grandes centros urbanos, as atividades do projeto foram delineadas de modo a proporcionar aos habitantes de baixa renda conhecimentos técnicos e, de certa forma, de empreendedorismo sobre seus ofícios tradicionais. Nesse sentido, as ações desenvolvidas pretendiam combinar a capacitação (melhoramento) do artesão com o aumento da produção de seus produtos, aproveitando a capacidade criativa da região (Max-Neef, 1980).

Para a concretização desse projeto, os órgãos financiadores já mencionados disponibilizaram, em 1981, recursos financeiros para a estruturação e funcionamento da CAT, que desde 1984 teve suas atividades restritas à participação em feiras de negócios. Vale citar um trecho da introdução do "Projeto de Regulamento Interno da CAT", para melhor aproximação com o espírito empreendedor da época:

O artesanato, portanto, no Brasil, nunca deixou de ser a indústria do homem, e a produção em massa, anônima e despersonalizada das máquinas movimentando-se nos grandes complexos industriais, se não é ainda apenas um fenômeno epidérmico, dada a significação econômica dos centros industriais do país [...]. Iludimo-nos, com certeza, com o florescimento desordenado e assustador das grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro, caracterizadas por um consumismo desenfreado, e onde, realmente, a produção em série, a estandardização da produção, leva seus habitantes ao que poderíamos chamar de achatamento do bom gosto, nas classes populares, e à sofisticação do mau gosto nas superiores. [...] Uma das explicações da força da sobrevivência do artesanato nas sociedades altamente industrializadas, e de sua continuidade independente das investidas do industrialismo em países em desenvolvimento, como o Brasil, está na sua essência bem definida no Dicionário das Ciências Sociais de Melvin M. Knight: 'O método essencial de produção e manufatura, não só porque produz artigos artisticamente superiores aos fabricados pela máquina, como por ser, em muitos casos, atividades essenciais à produção de bons artigos. Assim como na música, nenhum instrumento supera a voz humana, na Indústria, não há máquina que se compare à mão do homem' (CAT, 1981, p. 2: citação no original).

Envolta por tal clima institucional, a criação da CAT contém, desde sua base, por sua importância política e de grandes investimentos, elementos que ainda influenciam o atual tipo de produção artesanal em Tiradentes e região. Nesse sentido, é importante pensar sobre o fomento da concorrência do artesão com a indústria, desconsiderando que, ao comparar a mão do homem à máquina da indústria, ainda que na busca por uma diferenciação, ao deixar de lado o poderio da racionalidade tecnológica em determinar as faculdades motoras, sensíveis e racionais do homem, abram-se oportunidades para se legitimar a despersonalização do homem e sua adaptação ao modelo industrial. E sob a linha tênue de separação entre proporcionar algo de transformação e reproduzir a ordem de trabalho estabelecida, um setor alternativo de trabalho daquela região começava a ser tomado pela racionalidade tecnológica advinda com o aumento de produção.

O que se discute é a força do ritmo da máquina sobre um fazer que se caracteriza por um outro tempo, que era deslumbrado com outro olhar, distinto do olhar da ordem de consumo, que se avaliava por outro valor, distinto do valor de lucro. E por conter tais características, o artesanato pode ainda proporcionar àqueles que se dedicam a esse ofício outra relação com seu fazer e com seu produto.

Imbrizi (2006) ressalta que "uma das tarefas mais difíceis na sociedade contemporânea é distinguir os objetos da cultura que favorecem o alimento do espírito e a articulação com o coletivo daqueles que reforçam o embotamento do espírito" (p. 98). Nesse sentido, é fácil compreender por que parece "antipático" fazer a crítica ao atual fazer artesanal, que tem seu produto tão em alta entre os consumidores, tão suscitado e beneficiado por projetos sociais e políticas públicas. Por que criticar um ofício que tem diminuído consideravelmente o índice de desempregados e contribuído para o crescimento do trabalho informal? Acontece que, ao tensionar as formas atuais desse fazer, propõe-se pensar como o produto do trabalho do artesão, que trazia em si rastros da mão do homem que o produziu, e nisso, ao menos resquícios da experiência humana, vem sendo achatado pela racionalidade do trabalho excessivo, servindo à dominação e manutenção de uma organização social nociva à vida humana.

 

Considerações finais

Com base nas formulações dos autores frankfurtianos aqui expostas, pode-se dizer que, pela arte, conhecimento objetivado que envolve entre outros aspectos à passagem pela interioridade, é possível vislumbrar o elo embaralhado entre o indivíduo e seu meio social e, desse modo, pelo seu potencial de crítica objetiva à constituição da subjetividade, desvelar os sentidos perdidos, um corpo subjugado a um ritmo extenuante. Nesse entendimento, a arte pode ser vista como expressão da dor, como resistência à renúncia pulsional empreendida com a dominação e, por meio da fruição da fantasia, torna-se o registro revelador das cicatrizes da barbárie - marcas no corpo e no espírito por se viver aquém das condições materiais já alcançadas. A dissimulação dessas cicatrizes paralisa o homem diante das determinações e o impede de reconhecer no tempo dinâmico e histórico a capacidade de transformação da realidade.

Por outro lado, pode-se argumentar que, nos dias atuais, cada vez mais o artesanato vem sendo estandardizado como forma de expressão da arte popular, como representante da cultura local capaz de fortalecer a construção de identidades culturais. A obra artesanal, em seu caráter de reprodução e transgressão, explicita a relação entre o homem e o meio mediante a representação simbólica da cultura e se constitui como registro de transmissão cultural, seja daquilo que a cultura traz de aprisionamento ou do que desponta de resistência ao que faz sofrer.

Desse modo, é no exercício da crítica aos aspectos que caracterizam as relações e as formas de produção do mundo do trabalho, que assume imperativamente todas as instâncias da vida humana, que a ciência psicológica encontra meios de denunciar como as possibilidades de diferenciação do indivíduo vêm sendo logradas pela racionalidade tecnológica. Assim, a reflexão sobre espaços que guardam alguma forma de resistência às imposições sociais de dominação, como a arte e o artesanato, em contraposição com as tendências que os tornam cada vez mais estreitos e subvertidos aos valores da indústria - a produtividade e o lucro -, constitui-se como um importante momento do conhecimento e da intervenção do campo da psicologia crítica.

Dessa maneira, se esta investigação pôde apontar que a potencialidade da atividade artesanal na cidade de Tiradentes foi impulsionada por um programa de expansão e desenvolvimento para o artesanato, o que ocasionou o crescimento econômico da cidade e o fortalecimento do ofício, também indicou que a possibilidade de um fazer que contenha expressão - possível com a transgressão da técnica e da lógica da produtividade - vem sendo diminuída e, ao invés de denunciar os sofrimentos injustificados, tende a submeter-se ao ritmo da máquina.

Nesse contexto, o que se revela é a força da racionalidade do mundo do trabalho sobre um fazer que poderia trazer os rastros da mão do homem e com isso a lembrança de que a vida poderia ser diferente. O mercado, em seu jogo de massificação, impulsiona o consumo e determina a produção, impedindo o aparecimento do que lhe serve de propaganda: a diferenciação. Tendo seu produto como fetiche de mercado, o artesão pode se beneficiar não só da falsa diferenciação, capaz de alavancar o consumo, como também, por meio do mecanismo de defesa, da falsa ideia de que produz um trabalho mágico e especial, que o imuniza da expropriação do mundo do trabalho. Tal discurso aproxima o artesão à lógica de mercado de beneficiamento de marketing.

Percebe-se que atualmente essas peculiaridades conquistadas com o trabalho manual só são possíveis quando o artesão consegue ligar-se à fantasia e realizar o mergulho em sua particularidade. Porém, quando o artesanato deixa de ser um ofício escolhido por condições históricas individuais e passa a ocupar o cenário de um novo empreendimento alternativo, apropriado para sanar o crescente desemprego, sua nova categoria rebaixa aquelas características especiais resguardadas nos rastros de resistência, pois estas parecem ser incompatíveis com as condições de produção e com a desvalorização de seus produtos.

Convertido o ofício do artesão à lógica do trabalho e da racionalidade tecnológica, as condições dadas pela atividade artesanal ficam aquém do que podem proporcionar e, às vezes, impedem o artesão de, até mesmo, sobreviver pelo exercício de seu ofício. Sob as especulações do mercado de alta produtividade, a possibilidade de realizar-se pelo fazer artesanal fica comprometida em meio à falta de contato. Assim, o artesão também não tem encontrado condições para escapar do achatamento da subjetividade.

Imbrizi (2006) discorre sobre a importância de refletir qual o tipo de trabalho possível na sociedade contemporânea e escreve sobre a ingênua dicotomia entre trabalho e arte, em que ao primeiro caberia sacrifícios e sofrimentos das condições objetivas da sociedade capitalista, e à arte, que se aproxima do fazer artesanal por seu possível caráter de resistência, caberiam a liberdade e a autonomia dirigidas para a atividade criativa.

[...] é importante desmitificar essa dicotomia, não só porque existem pessoas "sacrificadas pela arte", mas também porque há 'sujeitos acantonados', que exercem trabalho criativo e buscam articulações com o coletivo, mas não são focalizados pela mídia. Será que o trabalho está ligado em espaços - 'ou poros' - de liberdade e criatividade? (Imbrizi, 2006, p. 102: grifos no original).

Nesse sentido, vale questionar se os artesãos ainda se assemelham aos sujeitos acantonados descritos por Imbrizi (2006), e, por representarem resistência à ordem social estabelecida, suscitam o medo de possíveis mudanças e sofrem ações de reparação do mundo do trabalho, das investidas da indústria, ou melhor, da vingança empreendida em meio às tramas da Indústria Cultural.

Nesse processo, a produção artesanal vem cedendo ao mercado, que parece vingar-se daquele que tenta resistir à ordem da racionalidade tecnológica transformando a sua manifestação de resistência em mercadoria sem valor, reduzida a um fetiche do mercado, exigência que leva o artesão a adequar sua produção à lógica do sistema econômico. Assim, teme-se que o trabalho artesanal esteja gradativamente passando, pelo modo de produção e da determinação do mercado, a um processo mecanicista em que o artesão, destituído de sua subjetividade, torna-se instrumento de trabalho barato.

No entanto, talvez o que se deva ainda considerar como possível resistência no fazer artesanal seja o fato de que os artesãos, mesmo sofrendo os efeitos de expropriação e desumanização do mundo do trabalho, em concorrência direta e absoluta com produtos industriais, como os da indústria chinesa, insistem nesse ofício. Ou melhor, resistem nessa forma de trabalho, que ao menos mantém, ainda que como uma nuvem de ilusão, vestígios de humanidade.

É possível que a promessa da arte em reconciliar o princípio de prazer e o princípio de realidade (Freud, 1911/1974; Marcuse, 1955/1981), que permite ao artista a ida ao mundo da fantasia e o seu retorno de lá, seja o que aproximou o artista e o antigo artesão, separados pela rendição à realidade. O artista, também ligado à alienação, pagando o preço pela resistência na submissão à Indústria Cultural; e o artesão, pagando o preço pela alienação, impossibilitado de resistir. Ambos oprimidos pelas impossibilidades de individuação acenam da arena, impotentes diante da dominação e da renúncia.

Diante disso, pretende-se contribuir para um conhecimento pautado na melhoria das condições da vida humana e advertir para a condição de mediadores sociais, seja no campo científico da pesquisa e intervenção, na esfera de políticas públicas, ou na produção e consumo das peças artesanais; todos responsáveis pela manutenção ou transformação da ordem social de dominação que submete cada vez mais os homens em todas as suas esferas de vida.

 

Referências

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Recebido em: 25/05/11
Aceito em: 05/12/11

 

 

1 Versões preliminares deste artigo foram apresentadas no "XIV Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social - Diálogos em Psicologia Social" - e no "VI Congresso de Produção Científica da Universidade Federal de São João del-Rei - XV Seminário de Iniciação Científica (XV SIC)", ambos em novembro de 2007.
2 Apoio: CNPq, FAPEMIG e UFSJ
3 Contato: marasalagado.ms@gmail.com
4 Como parte da pesquisa "Psicologia e Arte: reflexões acerca da subjetividade obstada" e entrelaçada com estágio curricular na área de pesquisa Psicologia Social, tal investigação foi desenvolvida com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PIBIC/CNPq/UFSJ) entre agosto de 2006 e julho de 2007. Os resultados aqui relatados fundamentaram o projeto de extensão em interface com a pesquisa denominado "Narrativas de Artesãos: documentos da memória mineira", que, também com base nos pressupostos da História Oral, teve como objetivo investigar aspectos da formação cultural presentes no ofício do artesão possíveis de serem observados nas narrativas dos próprios artesãos da região do Campo das Vertentes/MG - realizado com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) entre outubro de 2008 e janeiro de 2011.
5 O conceito de coisificação na análise marxiana é entendido como equivalente ao fetichismo da mercadoria, a produção das coisas sociais e a alienação, que serão discutidos durante o texto com base em Marx e Adorno.
6 As traduções do espanhol deste texto específico, realizadas pelas autoras, foram cotejadas com a tradução publicada em 1996 na Revista Educação & Sociedade.
7 Nesse mesmo livro, Temas básicos da sociologia, esses autores definem ideologia como justificação de desigualdade e de relações de dominação. Destaca-se, neste ponto, que, no texto A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, Horkheimer e Adorno (1947/1985) se referem à Indústria Cultural e aos valores por ela veiculados como a forma por excelência da ideologia da sociedade industrial.
8 Adorno (1963/1986) sugere a necessidade de desmontar possíveis argumentos em defesa do sistema industrial que se utilizem da noção de cultura de massa como algo emergido espontaneamente das próprias massas, o que poderia ser tomado como uma forma contemporânea de arte popular.
9 Goethe (1797/2005) define como luxo não o fato de alguém rico possuir muitas coisas valiosas, mas que tais coisas necessitam ter suas formas transformadas para que alcancem um "prazer instantâneo e alguma reputação diante do outro" (p. 88).