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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.4 no.2 Juiz de fora dez. 2011

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Acompanhamento do primeiro ano de trabalho de pessoas com deficiência em uma instituição pública

 

Follow-up of the first year of work of people with disabilities in an public institution

 

 

Maria Nivalda de Carvalho-Freitas1; Janayna de Cássia Coelho Suzano; Maristela Ferro Nepomuceno

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo da experiência relatada foi acompanhar o processo de adaptação de pessoas com deficiência (PcDs) em seu primeiro ano de trabalho, buscando identificar dificuldades, facilidades e estratégias de adaptação construídas. Utilizou-se como referencial para a condução dos trabalhos os pressupostos de grupo operativo de Pichón-Rivière. Verifica-se que as PcDs iniciam suas relações de forma mais vigilante, atentando para possíveis indícios de desqualificação e discriminação. No entanto, na medida em que se sentem acolhidas pelo grupo e pela instituição, explicitam suas dificuldades, pedem ajuda e se comprometem nas relações.

Palavras-chave: Pessoas com Deficiência, Inclusão, Fenômenos Grupais


ABSTRACT

The objective of the reported experience was to follow the adaptation process of people with disabilities (PWD) in their first year of work, searching to identify difficulties, easy aspects, and strategies of adaptation built. Pichón-Rivière's operative group presuppositions were used as reference for the conduction of the works. It can be seen that PWD begin their relations in a more cautious manner, considering possible indications of disqualification and prejudice. However, insofar as they feel welcomed by the group and by the institution, they express their difficulties, ask for help, and compromise in their relationships.

Keywords: People with Disabilities, Inclusion, Group Phenomenon


 

 

A contratação de pessoas com deficiência (PcDs) por organizações públicas e privadas tem sido objeto de pesquisas porque coloca a realidade de trabalho frente a um novo desafio: trabalhar com pessoas que historicamente estiveram excluídas dos meios de produção (Tanaka & Manzini, 2005; Carvalho-Freitas & Marques, 2009). Se, por um lado, tem havido relato de experiências bem-sucedidas no processo de inserção de PcDs no mundo do trabalho (Daufemback, 2009; Vitor, 2011), por outro, têm sido constatadas inúmeras resistências no processo de inserção de PcDs em empregos competitivos (Ribeiro & Carneiro, 2009; Nascimento, Damasceno, & Assis, 2011). Os estudos contemplando a percepção das próprias PcDs têm identificado, de uma forma geral, a satisfação dessas pessoas em fazer parte do mundo do trabalho, aliada à insatisfação com as dificuldades que elas encontram para o desenvolvimento de suas carreiras nas organizações (Almeida, Carvalho-Freitas, & Marques, 2009; Carvalho-Freitas, 2009), além de dificuldades nas relações cotidianas de trabalho (Nohara, Acevedo, & Fiammetti, 2009; Siqueira & Oliveira-Simões, 2009).

Frente a esse cenário, o objetivo do trabalho realizado foi acompanhar o processo de adaptação de pessoas com deficiência em seu primeiro ano de trabalho, buscando identificar dificuldades, facilidades e estratégias de adaptação construídas. Uma possível contribuição do compartilhamento dessa experiência é a construção de uma práxis que possa auxiliar no processo de adaptação inicial de PcDs no trabalho. O processo de adaptação inicial no trabalho será entendido na perspectiva da socialização organizacional como o "processo de integração do indivíduo com a organização no exercício de determinado cargo" (Borges & Albuquerque, 2004, p. 333), sendo o primeiro ano de trabalho considerado o período mais crítico no processo de socialização das pessoas.

 

Referencial teórico

Considerando que o processo de integração na organização é um processo de adaptação e mudança, adotou-se a perspectiva teórica de Pichón-Rivière (1988) para a análise e compreensão da experiência grupal de acompanhamento realizada durante o primeiro ano de trabalho de cinco PcDs em uma organização pública. Pichón-Rivière (1988) assinala "como situação central do grupo operativo a atitude ante a mudança, que se modifica em termos de incremento ou resolução das ansiedades depressiva ou paranoide, de perda e de ataque, coexistentes e cooperantes em tempo e espaço" (p. 126: grifo do autor).

Segundo Pichón-Rivière (1988), grupo é um conjunto restrito de pessoas que se propõem de forma explícita ou implícita à realização de uma tarefa. São pessoas ligadas por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação interna. Nessa perspectiva, o grupo se articula em torno de uma tarefa, compartilhando tempo e espaço para sua realização. No entanto, ao realizar essa tarefa, diversos fenômenos ocorrem no grupo, tanto decorrentes da história individual de cada um de seus membros, verticalidade, quanto em função da forma como o grupo se organiza para realizar a tarefa, horizontalidade (Pichón-Rivière, 1988).

Com relação aos conflitos, Pichon-Rivière (1988) ressalta que eles precisam ser considerados em duas dimensões: em uma dimensão psicológica e em uma dimensão política. Em sua dimensão psicológica, é considerada a capacidade de os grupos adaptarem-se ativamente à realidade resolvendo ou relevando os conflitos conforme as possibilidades objetivas que se apresentam. Em sua dimensão política, é considerada a capacidade do grupo em questionar seu cotidiano e as determinações históricas naturalizadas pela sociedade.

Nesse sentido, é importante avaliar a dinâmica de cada grupo. Pichón-Rivière (1988) propõe alguns universais para analisar o processo grupal, denominados vetores do cone invertido. São eles: Afiliação: constitui-se em um primeiro grau de identificação do grupo com a tarefa e os demais integrantes do grupo. O integrante se aproxima com certa distância. Pertença: maior nível de identificação dos integrantes tanto com a tarefa quanto com os demais integrantes. Momento em que os integrantes se nomeiam por nós. Cooperação: constitui-se na possibilidade de os integrantes assumirem e desempenharem papéis diferenciados no grupo, possibilitando uma complementaridade na tarefa a ser realizada. Pertinência: é o centramento na tarefa. O não se centrar na tarefa pode ser considerado uma impertinência, fruto de uma impostura ou sabotagem do grupo em relação ao que foi proposto realizar, sendo necessário trabalhar os aspectos implícitos que dificultam a execução da tarefa. Comunicação: possibilidade maior ou menor de compartilhamento de significados, opiniões, formas de ver o mundo etc. Na comunicação, a mensagem é importante, mas também é fundamental a forma como ela é codificada e decodificada e a quem se dirige. Aprendizagem: constitui-se na adaptação ativa do grupo à realidade, isto é, na busca de soluções e alternativas às situações vivenciadas. É o inverso de estereotipia, que consiste na repetição reiterada e persistente de um comportamento a despeito das exigências colocadas pela realidade. Implica criatividade e elaboração de ansiedade. Tele:é o clima grupal, isto é, a disposição positiva ou negativa do grupo para trabalhar a tarefa grupal.

Dentro do processo grupal, a interação do indivíduo com o grupo ocorre de maneira dialética por meio de uma estrutura dinâmica, que Pichón-Rivière (1988) denomina de vínculo. O vínculo se produz progressivamente à medida que se desenvolvem as representações internas de cada integrante e desenvolvem táticas para o desenvolvimento do projeto comum. Assim, é preciso identificar as fantasias - representações subjetivas que são internalizadas a partir das relações estabelecidas, já que, para Pichón-Rivière (1988), a relação é sempre bicorporal e tripessoal, ou seja, acontece entre duas pessoas, mas é mediada pelas expectativas e fantasias que uma pessoa tem em relação à outra (terceiro).

 

Metodologia

A experiência se constituiu na realização de cinco encontros grupais a cada dois meses, tendo se iniciado em março e concluído no início de dezembro do primeiro ano de contratação de cinco PcDs por uma instituição pública, que, em função de concurso realizado e da Lei de Cotas, estava contratando pessoas com deficiência para seu quadro de pessoal. A escolha da organização se deu pelo fato de ela estar introduzindo PcDs em seu quadro de funcionários.

Os encontros foram realizados em uma sala da organização em que trabalhavam, destinadas aos treinamentos, e foram coordenados pela primeira autora do relato de experiência e observados pelas bolsistas da atividade, que, durante a realização dos mesmos, fizeram anotações e, posteriormente, confeccionaram diários de campo. Além disso, contou com a presença da profissional responsável pela área de Recursos Humanos da organização, visando ao acompanhamento dos grupos e à identificação e busca de soluções de problemas de ordem organizacional que pudessem contribuir para facilitar a socialização das PcDs contratadas. As atividades foram escolhidas em função do objetivo do primeiro encontro e das questões trazidas pelo grupo no anterior. A análise de dados foi realizada contemplando o conteúdo das falas dos participantes e o referencial teórico de análise grupal proposto por Pichón-Rivière (1988).

 

Resultados e discussão

As cinco PcDs que participaram dos encontros tinham Ensino Médio completo, quatro com deficiência física, uma delas decorrente de problemas neurológicos, e uma pessoa com deficiência auditiva (sensorial). Eram quatro homens e uma mulher, todos contratados, via concurso público, pela organização. Serão apresentadas as estratégias utilizadas nos cinco encontros realizados, os relatos das falas das PcDs e comparados os elementos trazidos com pesquisas realizadas com PcDs em situações de trabalho.

Primeiro encontro

O primeiro encontro foi de apresentação dos objetivos do trabalho: acompanhá-los no primeiro ano de atividade na instituição e identificar as dificuldades constatadas pelas PcDs, visando a providenciar, por meio da ação das próprias PcDs e da atuação da profissional de Recursos Humanos (RH), as adaptações das condições e práticas de trabalho e garantir uma melhor adaptação das PcDs no trabalho, já que era uma atividade nova para a instituição. A participação seria voluntária. Caso não quisessem participar, não eram obrigadas. Foi pedido que as PcDs que se propuseram a participar que assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Duas PcDs2 participaram desse encontro e concordaram com a realização dos encontros grupais. M., única mulher do grupo, disse que tinha deficiência auditiva, que escutava com dificuldade, sendo necessário as pessoas falarem de frente para ela para que pudesse fazer leitura labial. Sua linguagem não apresentava nenhum problema. Disse que há 12 anos não trabalhava, que tentou o concurso na instituição, mas que nem acreditava mais que pudesse trabalhar. M. participou de todos os cinco encontros de grupo. Estava trabalhando na área de contadoria há 20 dias e sua função, até então, era organizar arquivos e documentos. Um dificultador apontado por M. foi o receio por causa da deficiência. Ela disse que ficava constrangida ao atender a pessoas de outras áreas que não sabiam sobre sua deficiência, pois elas não falavam de frente para ela, dificultando sua compreensão. Assim, muitas vezes, não conseguia dar a informação necessária. M. contou, ainda, que sua mesa era a mais próxima da porta. Por isso, sempre que alguém de outro setor ia até a sua sala, pedia informações para ela. M. falou que gostaria de ficar mais no fundo da sala, para não ter que atender a quem chegasse ao seu setor. M. informou que os colegas de trabalho a compreendiam, mas que os de fora "talvez não".

O JR. possui hemiplegia e trabalhava antes na economia informal, vendendo artesanato com a mãe. É funcionário da área de cultura e turismo. Também estava trabalhando há 20 dias e participou dos cinco encontros. Disse que suas funções eram: atender ao telefone, informar turistas, ajudar na organização de exposições etc. Falou que "faz um pouco de tudo", mas que prefere atender ao público e que gosta muito de conversar com as pessoas.

Os dois relataram estar felizes em ter passado no concurso. Nesse primeiro encontro, observa-se a satisfação das PcDs com o trabalho e algumas questões relacionadas à necessidade de adequação das condições de trabalho e alocação das PcDs para garantir um bom desempenho por parte delas. Os participantes centraram-se na tarefa (pertinência), cooperaram, comunicaram-se sem receios e predominou uma tele bastante positiva durante este encontro, facilitando as apresentações e já trazendo elementos para se pensar na adequação das condições de trabalho para garantir um melhor desempenho no trabalho. A garantia da adequação das condições de trabalho é um pressuposto importante das perspectivas de análise da inserção baseada no modelo social ou na matriz de inclusão das PcDs (Sassaki, 1997; Barnes, Oliver, & Barton, 2002, Carvalho-Freitas, 2009; Carvalho-Freitas, Nepomuceno, Toledo, Suzano, & Almeida, 2010).

Segundo encontro

Duas outras PcDs foram convidadas para participar dos encontros, pois foram contratadas depois da realização do primeiro; então, quatro PcDs participaram.

L. possui mobilidade reduzida e trabalha há um mês no sindicato dos servidores e disse que faz atividades burocráticas, auxiliando as demais pessoas de sua área de trabalho. Faz o curso de Matemática na universidade. A outra pessoa, aqui denominada de F., foi admitida há um mês pela organização. Está trabalhando no atendimento na área de saúde pública. Não tem os antebraços e possui apenas um dedo em cada mão. Conta que trabalhou antes no mercado informal, entregando panfletos nas ruas.

Depois das apresentações, foi realizada uma dinâmica que consistia na realização de painéis com gravuras de revistas que ilustrassem as dificuldades e facilidades que estavam enfrentando nesse início de trabalho na organização. A utilização da dinâmica visava a facilitar a discussão do grupo, inserindo de forma mais lúdica questões relacionadas ao processo de socialização inicial.

Durante a realização da tarefa, as PcDs conversaram bastante, enquanto buscavam as gravuras, indicando a busca de construção de vínculos entre eles. M. representou sua dificuldade por meio da figura de um leão que representava um colega que, segundo ela, havia feito um comentário negativo a seu respeito. Falou da dificuldade de ter que provar que tinha uma deficiência, de as pessoas duvidarem de sua deficiência, de se esquecerem e falar sem olhar para ela, dificultando a comunicação. Diferentemente de buscar manipular a informação sobre a deficiência, escondendo-a ou minimizando-a, para não ser desacreditado pelo outro, conforme explicita Goffman (2008), M. apresenta uma questão diferente, bastante comum entre os surdos ou pessoas com deficiência auditiva: a necessidade de provar que tem uma deficiência3 quando ela não é visível.

As figuras que representavam as dificuldades para F. foram um telefone e um envelope, demonstrando as dificuldades que estava tendo para segurar o telefone com o ombro e para abrir os envelopes sem um instrumento de corte que o auxiliasse, como uma pequena guilhotina. No entanto, fez questão de reafirmar que, se não tivesse jeito de fazer as adequações necessárias, que não tinha problema. "Ah, tá bom. Pode deixar desse jeito mesmo. Eu consigo trabalhar lá, lá não é ruim". Essa estratégia adotada por F. tem sido identificada pela literatura como uma tentativa de compensação, com motivação de gerar uma boa impressão e favorecer sua integração no grupo (Dipboye & Colella, 2005).

Para L., as figuras que representaram as suas dificuldades foram: uma menina se equilibrando numa corda e uma revista. A equilibrista se refere à insegurança que ele sentiu antes de iniciar seu trabalho. L. relatou ser uma pessoa muito insegura. Quanto à revista, ela diz respeito à transmissão de conhecimento, de informações, e L. disse que não tem muito conhecimento sobre a organização em que trabalha. Para JR., as figuras que representavam as dificuldades foram: uma criança chorando e um homem nervoso (esbravejando). Ele disse que são os receios que teve no início do trabalho, pois não conhecia as pessoas com as quais iria trabalhar. Disse que tem buscado se relacionar bem com todas as pessoas e fazer o que lhe pedem.

Para representar as facilidades, M., F. e L. escolheram uma figura de um grupo de pessoas felizes e disseram que representava o sentimento que estavam tendo de fazer parte de um grupo de trabalho. JR. escolheu a figura de uma menina andando tranquila, para, segundo ele, representar a facilidade que estava sentindo agora, com mais segurança para caminhar sem ajuda.

As dificuldades explicitadas pelas PcDs podem ser entendidas como receios frente ao novo (Pichón-Rivière, 1988), que gera ansiedade persecutória, principalmente com receios de não serem aceitas, acentuadas pela questão da deficiência que, em alguns casos, pressupõe a aceitação da deficiência e o crédito ao trabalho deles e, em outros, no caso de M., o reconhecimento da própria existência da deficiência. Para fazer frente a essas dificuldades, as PcDs vão realizando um movimento duplo: de um lado, a explicitação de suas dificuldades e a busca de solução (adequar suas condições de trabalho), buscando uma adaptação ativa à realidade (Pichón-Rivière, 1988), e de outro, a manutenção de estratégias desenvolvidas ao longo da vida: a hipervigilância, isto é, a atenção para qualquer comentário sobre si; e a compensação (Dipboye & Colella, 2005). Além disso, é possível identificar a satisfação em pertencer, isto é, em fazer parte do mundo do trabalho (Carvalho-Freitas, Marques, & Scherer, 2005).

Terceiro encontro

Entraram na sala conversando, se cumprimentaram e se mostraram bastante à vontade. Começam relatando que o tempo está passando depressa demais, que estão gostando do trabalho, a fim de aprender as atividades e ajudando quando outras pessoas saem de férias. Nesse dia, foi feita a apresentação de V. - primeiro encontro do qual participou, e todos se apresentaram para ele.

V. possui deficiência motora, decorrente de um problema neurológico que também compromete sua orientação espacial. Estava trabalhando na Procuradoria Geral há 20 dias. Foi colocado nessa área, pois está cursando Direito na universidade. Relatou que sua função envolve serviços mais burocráticos, como atender ao telefone, dar informações ao público, responder a requisições no computador (ele disse que digita com dois dedos e que a configuração do teclado dificulta a sua digitação) e organizar arquivos (furar papéis para guardá-los em pastas) embora tenha dificuldade na coordenação motora das mãos.

Foi perguntado se as adequações foram feitas no trabalho deles. F. respondeu: "Não mudou quase nada, o que eu disse a respeito da campainha e do computador. A campainha foi modificada e o computador não, não colocaram ele na mesa" (adaptações que havia solicitado à responsável pelo RH). Esta disse que havia solicitado um fone para F. prender na orelha, a fim de não precisar segurar o telefone com o ombro. F. comentou: "Se vier, tudo bem; se não, já acostumei. Não vai haver nenhum transtorno, não. Sem problema". Conforme pode ser visto, as PcDs continuam buscando uma adaptação ativa à realidade, explicitando suas dificuldades, embora tenham uma tendência a negar suas necessidades quando identificam morosidade no processo.

A tarefa solicitada era que desenhassem situações em que se sentiam discriminados no ambiente de trabalho (o desenho foi escolhido, pois era uma atividade que dois dos cinco membros gostavam muito de fazer). Eles se organizam, pedindo que cada um relate uma situação de discriminação, e vão desenhando as situações. As situações em que se sentem discriminados são quando um trabalho que consideravam ser da responsabilidade deles é passado a outros e não justificam, fazendo com se sintam discriminados por não confiarem na capacidade que acreditam possuir. JR. falou: "Com isso, a gente acaba achando que não é capaz".

Um membro do grupo relata que às vezes sente pena de si mesmo, em função das experiências que já vivenciou ao longo da vida, e que "Tenho preconceito comigo mesmo". Os outros membros do grupo lembram a ele de suas potencialidades, do fato de estar cursando faculdade, quando outros desejavam estar no lugar dele e ainda não terem conseguido. Esse movimento do grupo remete à busca de resgate do objeto total, conforme descrito por Bleger (1984) em sua discussão sobre conflitos, em que é necessário resgatar os aspectos positivos e negativos de uma situação para que o conflito seja resolvido ou relevado. Apesar das considerações do grupo, L. passa a ser o alvo central das discussões: decidem que iriam desenhálo e pedem para ele ficar parado para retratá-lo. Foi um momento de muita descontração do grupo. Discutem que frase ficaria boa para demonstrar o que ele estaria pensando. Alguém sugere "Eu não me amo". L. falou: "Aí, você exagerou". Ele afirmou que gostaria que fosse uma frase que demonstrasse uma reclamação perante a vida, pois se considera "reclamão", com baixa autoestima e pessimista. M. disse para pôr no balão: "Puxa vida, trabalho igual burro de carga". L. pensou e escreveu: "Oh vida, oh, azar". Todos riram muito dessa frase - parecia um momento de catarse do grupo. Esse momento do grupo fez lembrar uma passagem de Goffman (2008), que diz assim: "Ademais, os padrões que ele incorporou da sociedade maior tornam-no intimamente suscetível ao que os outros veem como seu defeito, levando-o inevitavelmente, mesmo que em alguns poucos momentos, a concordar que, na verdade, ele ficou abaixo do que realmente deveria ser" (p. 17).

Na apresentação dos desenhos, F. falou que, às vezes, realmente pensa: "Oh, vida" e continuou: "A gente reclama de barriga cheia". M. relatou que, no início, fazia as tarefas rapidamente para fazer muita coisa e "mostrar serviço". Depois que começou a ter dor nos ombros, passou a fazer mais devagar, "porque o serviço não vai acabar, vai estar lá". Neste encontro, foi possível identificar as contradições vivenciadas pelo grupo frente à constatação de uma diferença que os leva a se sentirem em desvantagem, em função da incorporação dos valores sociais; e ao reconhecimento de que a deficiência, embora torne o percurso mais árduo, não tem efetivamente impedido que trabalhem, que estudem e que busquem construir uma vida afetiva.

Quarto encontro

Colocou-se uma música para que relaxassem e imaginassem suas histórias de vida profissional. Em seguida, teriam que contar essa história, ressaltando como chegaram aonde estão e quais os sonhos e projetos para o futuro. Falam de suas experiências anteriores de trabalho e falam dos projetos que têm de serem respeitados, conseguirem autonomia financeira, estudarem, casarem-se, educarem os filhos, projetos comum às pessoas, independente de se ter ou não uma deficiência. Discutem sobre a desconfiança das pessoas em relação à possibilidade de desempenhar adequadamente o trabalho deles. Falam da importância de mostrar que são capazes e todos concordam com o argumento apresentado por F.:

Antes de eu falar que eu não consigo, eu procuro tentar de uma forma ou de outra fazer. Pode ser orgulho, mas só peço ajuda e sinto confiança quando já conheço mesmo. Se não conhecesse, eu tentaria fazer, quase me matar, ao invésde chegar e pedir para me facilitar. Às vezes, eu chego no local e a pessoa fala com os olhos 'Será que vai conseguir?'. Sou muito observador, mas não pergunto qual é a sua curiosidade. Deixo a pessoa perguntar e tirar a curiosidade. Tem gente que tira conclusão precipitada, quando chega e depois fica impressionada.

Embora a não-aceitação de ajuda possa impactar as pessoas, é importante refletir sobre o significado de ser capaz de realizar a tarefa sem ajuda. No argumento apresentado pelo grupo, ser capaz de realizar sozinho uma tarefa está relacionado ao fato de provar sua capacidade. É interessante notar que esse comportamento é comum quando não existe relação de confiança estabelecida e a PcD se sente sub judice, necessitando fazer a defesa de suas possibilidades.

Além dessa questão, trouxeram para esse encontro uma reflexão sobre o impacto da Lei de Cotas: defenderam esse direito, mas explicitaram alguns desdobramentos nas relações e na credibilidade em relação ao mérito de terem conseguido ser aprovados no concurso. JR. disse que tem um amigo que lhe falou: "Você vem aqui, de fora, pega e passa no concurso em 5º lugar, mas passou pelas cotas para PcDs". Ele respondeu: "Mas passei. Pelo menos tô lá dentro". Ele disse ter sentido que seu colega o desqualificou. F. disse que ele responderia: "Ainda bem que existe ela [cota]. Pelo menos eu consegui. Tô trabalhando por mérito meu". Todos concordam e dão outros exemplos de situações vividas.

Essa questão da Lei de Cotas traz para a vivência subjetiva das PcDs (expectativas e fantasias presentes nos vínculos entre PcDs e pessoas sem deficiência) uma questão política: a relação entre direito e privilégio, discutida pelas políticas afirmativas e pelos defensores do modelo social da deficiência (Oliver, 1996), fazendo com que muitas vezes individualizem, tomando como pessoais questões que remetem à distribuição de poder na sociedade.

Quinto encontro

Como disparador para o encontro, foi apresentada uma revisão de como a deficiência foi vista ao longo dos séculos, desde a Grécia antiga até os dias atuais. A partir da apresentação, M. comentou que acredita que ainda vai haver muitas mudanças na forma de ver as PcDs e que "gostaria de viver para ver as mudanças". Ficam reflexivos e falam da importância de considerar o empenho delas e a responsabilidade da sociedade e das organizações de trabalho. Pedem para ler o material utilizado na apresentação e falam da importância de pensarem na questão da deficiência a partir de uma visão histórica, que nunca haviam pensado antes. O clima do grupo nesse momento é muito reflexivo.

É um encontro de despedidas. As PcDs relatam que foi importante para elas esses encontros, que puderam falar de suas dificuldades e buscar resolvê-las junto à instituição.

 

Considerações finais

A experiência apresentada mostra a importância do acompanhamento do processo de socialização de PcDs, na medida em que possibilita a problematização das condições de trabalho dessas pessoas como direito e não como privilégio, promove o estabelecimento do diálogo entre a instituição e as PcDs e minimiza os receios comuns nesse processo. Faz-se necessária a sistematização de acompanhamentos em que as PcDs possam ser ouvidas e que a busca de soluções sejam construídas com elas e não para elas. Além disso, a experiência permitiu identificar que as PcDs iniciaram suas relações de forma mais vigilante, atentando para possíveis indícios de desqualificação e discriminação. No entanto, na medida em que se sentiram acolhidas, explicitaram suas dificuldades, pediram ajuda e se comprometeram com as relações.

Um dos desafios no processo de inserção de PcDs no trabalho é a busca da garantia do direito ao trabalho, com as adequações necessárias a esse fim, buscando romper tanto com uma visão legalista desse processo, que consiste em apenas contratar essas pessoas para cumprir a lei, quanto uma visão assistencialista, desqualificando as potencialidades reais de trabalho dessas pessoas. Por outro lado, também é necessário ficar atento ao movimento das PcDs em negar a necessidade de adequação das condições de trabalho quando percebem que existem dificuldades na instituição. Essa experiência permitiu vislumbrar a importância do desenvolvimento de ações diferenciadas de acompanhamento, visando a garantir a efetiva participação das PcDs no mundo do trabalho.

 

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Recebido em: 15/11/11
Aceito em: 07/12/11

 

 

1 Contato: carvalhofreitas@mgconecta.com.br
2 Apenas essas duas PcDs haviam sido contratadas pela instituição até o momento deste primeiro encontro.
3 As questões da deficiência auditiva e da surdez são objetos de debate importante entre os surdos e entre os estudiosos da área. Veja discussão sobre a cultura surda em Skliar (1997).