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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.4 no.spe Juiz de fora Dec. 2011

 

ARTIGOS

 

A economia solidária: variantes e alguns suportes constitutivos

 

Solidarity economy: variables and some constitutive supports

 

 

Bendito Anselmo OliveiraI,1; Nelson Giordano DelgadoII

IUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei
IIUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Brasil

 

 


RESUMO

Nas reflexões acerca do que se pode adjetivar como o "novo imaginário anticapitalista", pode-se encontrar afirmações nas quais as práticas de economia solidária representam parte importante na estrutura da ponte de transição da resistência à alternativa ao capitalismo, sendo, portanto, um mecanismo fundamental na busca de alternativas de relacionamentos entre o Estado, o mercado e a sociedade. Sob essa perspectiva, a economia solidária pode significar novas formas ou modos de produção e distribuição. De seus suportes fundamentais, o cooperativismo popular pode ser considerado um dos principais. Por estar fundamentado em uma teoria própria de produção e distribuição de bens e serviços, quando exercido sob a forma autogestionária, o cooperativismo popular possui como ponto cardeal principal a emancipação em relação às formas liberais do mercado. Pode resgatar, nesse sentido, várias propostas alternativas de distribuição de poder e renda, representando a gênese do que se pode chamar de economia solidária.

Palavras-chave: Economia Solidária, Cooperativismo Popular, Ação Coletiva, Emancipação


ABSTRACT

In the reflections concerning what might be called the "new anti-capitalist scenario", we can find affirmatives in which the solidarity economy practices represent a very important part in the structure of the transition bridge from resistance to the alternative to capitalism, being, therefore, an essential mechanism in the search for alternatives of relationships among the State, the market, and the society. Under this perspective, the solidarity economy may imply new manners or ways of production and distribution. From its essential supports, popular cooperativism might be considered one of the most important. Due to the fact that it is based on a specific theory of production and distribution of goods and services, when exercised in a self-management way, popular cooperativism has as its main characteristic the emancipation in relation to the liberal forms of market. It may rescue, in this sense, several alternative propositions of distribution of power and income, representing the genesis of what might be called solidarity economy.

Keywords: Solidarity Economy, Popular Cooperativism, Class Action, Emancipation


 

 

Por um longo tempo, sempre que passavam por períodos de crises, parcelas das populações trabalhadoras, empresários e governos, nos mais distintos tipos de Estados, descobriam ou retomavam a busca do exercício do cooperativismo para amenizá-las (Oliveira, 1996).

À medida que tanto os Estados liberais capitalistas como os Estados de economia estatal centralizada optaram por essa busca, o cooperativismo passou a ser qualificado como uma espécie de "alternativa" tanto ao capitalismo como ao socialismo, passando a ser adjetivado como um híbrido que pode combinar o homo economicus, ao qual se refere Adam Smith, com o homo social, ao qual se referiam os teóricos da Escola das Relações Humanas (Maurer Junior, 1966; Pinho, 1965). Isso levou a que o cooperativismo pudesse ser compreendido como uma possível "terceira via", regularmente muito mais aproximada dos mecanismos de mercado, onde impera as relações de troca baseadas na oferta e na procura, e, por isso, bastante criticado pelo movimento sindical.

Essas compreensões colocaram o cooperativismo em um lado oposto do movimento sindical e, exatamente por isso, bastante combatido por este. Com efeito, o cooperativismo passou a ser mais praticado por categorias ou agrupamentos que historicamente eram adversários políticos do movimento sindical e, por sua vez, em função das comparações de bandeiras históricas de luta, exercido, principalmente na América Latina e, sobretudo, no Brasil, como um movimento de apoio ao liberalismo e servindo ao desenvolvimento de várias propostas da chamada economia do desenvolvimento, principalmente aquelas baseadas nas teses da ortodoxia científica capitalista - que tem em David Ricardo seu principal mentor - e, mais recentemente, nas que buscam no "Consenso de Washington" as suas articulações políticas.

Veja-se, portanto, que caminhos o cooperativismo, também, percorreu. Nada mais compreensivo, então, que o cooperativismo possa ser chamado no Brasil de "filho predileto do Estado", como argumenta Bursztyn (1985).

No entanto, numa outra variante, Singer (2002) considera que, ao contrário, o cooperativismo é obra do movimento sindical e das classes trabalhadoras, sustentando seus argumentos por meio de outras questões de referências, entre as muitas experiências espalhadas por todo o mundo, como ressalta Santos (2002), onde o cooperativismo serviu, e serve, para a descoberta de novas formas de organização social e de combate a alguns mecanismos excludentes do mercado autorregulável.

Trata-se, portanto, de um debate ainda inacabado e que permite inserções que associem relações entre cooperativismo e economia solidária, tendo como foco processos autogestionários.

Evidentemente, a construção de uma reflexão desse tipo não pode surgir como o sol radiante. Há que ser vinculada a reflexões que incorporem o mínimo de resgate histórico e que estejam vinculadas aos processos de luta dos trabalhadores e da sociedade por uma melhor forma de viver.

Uma forma de vinculação possível é considerar algumas associações em que o desenvolvimento conceitual dos novos movimentos sociais e seu confronto com o desenho estrutural do chamado modelo clássico ou velhos movimentos (ver, por exemplo, Cohen & Arato, 2000; Touraine, 1999) podem estar possibilitando o florescimento, em certa medida, e também conceitual de novas formas de organização social que podem significar a estrutura de um elenco de movimentos emancipatórios e estar se aglutinando, intencionalmente ou não, para seguirem o ponto cardeal que Quijano (2002) chama de "novo imaginário anticapitalista", sobretudo quando se trata de movimentos que buscam formas alternativas econômicas de sobrevivência.

Um exemplo dessas novas formas de organização pode ser o cooperativismo popular, no qual o exercício de processos autogestionários é emancipatório em relação à forma capitalista de organização econômica.

Com certeza, o sucesso demanda uma nova engenharia de ação coletiva, de formas de representação, de ação mediadora, de definição de interesses, mas, sobretudo, demanda a combinação com outras formas de cooperação, para que assim possam ajudar a plasmar melhor o que se convenciona denominar de economia solidária.

Este artigo tentará fazer uma contribuição reflexiva sobre essas questões, buscando colaborar, principalmente, com a tentativa de descobertas de elos conceituais entre o cooperativismo popular e a economia solidária, mais concretamente tentando associar aquele como sendo a gênese desta.

Para o alcance desses objetivos, o artigo apresentará no item seguinte algumas observações acerca da origem e evolução do movimento cooperativista. Em seguida, será apresentado o debate sobre economia solidária e, no último item, serão apresentadas experiências que justificam o cooperativismo popular como sendo um apropriado instrumento para o exercício da economia solidária.

 

O cooperativismo

Uma reflexão mais aprofundada sobre o cooperativismo requer, necessariamente, um olhar cuidadoso sobre a história das classes e dos movimentos sociais (Thompson, 1997; Santos, 1981; Bourdieu, 1989; Marx, 1983; Trotsky, 1979). Seria necessário, portanto, apresentar o debate sobre os conceitos de classe e de movimentos sociais.

Como o objetivo deste artigo não se apoia nessas reflexões, é importante o registro dessa preocupação, precisamente por considerar que, dentre as lutas travadas pelos assalariados e seus aliados agindo em conjunto, ou seja, como classe ou como movimento social, essas reflexões são fundamentais para argumentar que o cooperativismo pode ser definido como uma espécie de instrumento que pode ser utilizado, do ponto de vista da tentativa de transformar os modos de produção, por exemplo, como um mecanismo da luta de classes, mesmo considerando que, na maioria das vezes, esteja desplugado de qualquer teoria de poder.

Em mínima instância, o cooperativismo pode ser instrumento para a luta de determinados grupos sociais pelo redesenho de padrões culturais, sobretudo aqueles que se referem a determinados hábitos relacionados com os mecanismos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços.

No prefácio do livro A doutrina cooperativa nos regimes capitalistas e socialistas (1965) da profa. Diva Benevides Pinho, Paul Hugon afirma:

A doutrina cooperativa encontrou sua forma sistemática no fim do século XIX. Todavia, desde o início daquele século, um vasto movimento de ideias e realizações já o preparava. Esse movimento, inspirado no associativismo, apresentara-se como reação profundamente humana contra os abusos da concorrência do capitalismo industrial liberal da época. Suas origens foram concretizadas nas múltiplas realizações de New Harmony de Owen, das Unions Shops de William King, dos Falanstérios de Fourier, de Considérant, de Michel Derrion e - a partir de 1832 - também dos saint-simonianos. Desde o começo, o ideal cooperativista consistiu essencialmente na organização de um meio social e economicamente harmonioso no qual o antagonismo de interesses individuais fosse substituído pela colaboração e pela associação (p. 11).

O cooperativismo pode ser praticado em vários setores, mas com atenção especial para os da produção, consumo e crédito.

Para Pinho (1965), as cooperativas de produção "podem ser entendidas, em sentido amplo, como associações que se destinam a eliminar o patrão, suprimir o salariado e dar ao trabalhador, agrícola ou industrial, a posse dos instrumentos de produção e o direito de disposição integral ao produto de seu trabalho" (p. 10).

As de consumo,

são, em sentido amplo, associações que visam a eliminar o intermediário das trocas e abolir o lucro. Reúnem consumidores para proporcionarlhes, pela ação conjugada, os bens e serviços necessários à satisfação de suas necessidades pessoais e domésticas, em condições mais vantajosas de preços e qualidade (p. 15).

As de crédito

são, em sentido amplo, associações que visam a eliminar o intermediário, obtendo para seus sócios, que são ao mesmo tempo sacadores e sacados, as vantagens do auxílio mútuo e da gestão direta. Dentre as finalidades econômicas, destacam-se o fomento ao crédito e a concessão de empréstimos a juros baixos (p. 16).

Ainda existem as mistas, que "são aquelas que se dedicam a atividades compreendidas no âmbito de, pelo menos, duas das categorias anteriormente citadas" (p. 17).

Segundo Pinho (1965), a doutrina cooperativista surgiu basicamente em oposição e em consequência das práticas da doutrina liberal individualista, que teve sua origem a partir da Revolução Industrial. Seu desenvolvimento demonstrou que o cooperativismo também foi utilizado como forma de oposição às economias

planificadas pelo Estado, caracterizando, assim, o que Oliveira (1996) afirma tratar-se, em sua versão utilitarista, como um híbrido, que tanto serve para afirmar ou negar determinada ordem. Há ainda quem, como Maurer Junior (1966), considere a doutrina cooperativista como uma doutrina humanitarista e que, portanto, nega, ao mesmo tempo, o liberalismo e o socialismo, tratando-se, portanto, de uma suposta terceira via.

Charles Gide, citado por Pinho (1965), afirma que

a doutrina cooperativista coloca em primeiro lugar a pessoa humana, através do 'self-help' (ajuda-te a ti mesmo) e da associação democrática (ajudemo-nos uns aos outros), corrigir os males da sociedade capitalista e prestar serviços dignos.

A associação permitirá ao consumidor eliminar o comerciante intermediário das trocas e tornar-se, em seguida, o produtor dos bens necessários à satisfação de suas necessidades. Assim será, aos poucos, criado um meio de cooperação no qual não haverá conflitos, porque o proprietário e o usuário serão uma só pessoa. E as lutas desaparecerão por falta de combatentes (pp. 26-27).

Os socialistas utópicos, por exemplo: Proudhon, Buchez, Louis Blanc, Saint-Simon, Fourier e Robert Owen, cujas ideias e práticas deram bases para o exercício do cooperativismo, influenciaram, também, os chamados "Pioneiros de Rochdale" (artesãos que residiam no distrito de Lancashire na Inglaterra, que criaram em 1843 uma cooperativa de consumo). Durante o processo de criação dessa cooperativa, seus fundadores estabeleceram o que, a partir dali, passou a ser chamado dos "Princípios de Rochdale" e que servem de pontos cardeais ao cooperativismo até os dias de hoje. Esses princípios são: adesão livre, gestão democrática, juros módicos ao capital, retorno proporcional às operações, transações em dinheiro, neutralidade política e religiosa e desenvolvimento do ensino. Pode-se observar que a corrente rochdeliana representa a maior parte dos cooperativistas no mundo inteiro. No entanto, várias outras correntes se despontam, como a do cooperativismo de classes, que teve, segundo Maurer Junior (1966), sua origem no Brasil e como fundadores, sobretudo, a classe patronal que criava cooperativas de trabalhadores para que estas lhes servissem, driblando, assim, a legislação trabalhista.

Por outra variante de compreensão, pode-se perceber que os princípios do cooperativismo possuem relação com os princípios fundamentais da cooperação, compreendida como uma possibilidade de eliminação das diferenças entre as pessoas, conforme argumentam Borgadus (1964 e 1964), Marx (1983) e Lenin (1980). Nesses termos, pode-se estar dando fundamentos ao que pode ser chamado de cooperativismo popular, como o que é sugerido em Guimarães (1999a).

O surgimento do cooperativismo como campo de exercício da cooperação, força a compreensão de suas células básicas, as cooperativas, como organizações autogestionárias, conforme argumentam Singer (2002) e Lauschner (1982). Ao se considerarem essas dinâmicas, pode-se vislumbrar a possibilidade da instalação do que Maurer Junior (1966) chama de "ordem cooperativa", ou o que Pinho (1977) chama de "economia cooperativa", ou o que Robert Owen chamou, de acordo com Thompson (1997), de "nova visão de sociedade". Ou ainda - considerando o desenvolvimento dos movimentos sociais e do sindicalismo, no que diz respeito a tentativas de redistribuição de renda e poder e na expectativa de geração de emprego e renda - como a "descoberta de novos instrumentos alternativos ao capitalismo globalizado" (Santos, 2002).

Reportando-se às origens do cooperativismo, Singer (2002) afirma que a Revolução Industrial e a Revolução Francesa impulsionaram a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida. Essas lutas eram também influenciadas pelas propostas de pensadores da época. Um desses pensadores apontados por Singer (2002) foi Robert Owen, que, já em 1817, sugeriu, mas não foi atendido, ao governo britânico um plano, baseado em organizações cooperativas, para minorar a pobreza da época. Fruto dessas sugestões e da necessidade que vários setores da sociedade tinham, para enfrentar a pobreza e as formas de exploração, foram criadas algumas organizações cooperativas: London Co-opertive Society (1821), Comunidade de Orbiston (1826), Associação de Troca de Brinton (1827) e London Co-operative Bazar (1829). Essas experiências, somadas a tantas outras espalhadas pelo mundo, forçaram a criação do Grand National Moral Union de Owen, possivelmente a primeira central sindical do mundo, segundo Engels (conforme citado por Singer, 2002):

"Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais, que surgiram na Inglaterra estão ligados ao nome de Owen [...] Ele presidiu o primeiro congresso em que 'trade unions' [sindicatos] de toda a Inglaterra se uniram numa única grande central sindical" (p. 29).

Essa organização foi sucedida pela Grand National Consolidated Trades Union (1833-1834). A partir daí, como afirma Cole (conforme citado por Singer, 2002):

Tornou-se comum que grevistas, em ramos que podiam ser operados sem muita máquina, em vez de cruzarem os braços, se lançassem em competição com seus empregadores à base de planos de produção cooperativa [...] Muitas das sociedades cooperativas que foram fundadas no fim dos anos 20 e começo dos anos 30 [do século XIX] eram dessa espécie, organizadas ou de greves ou diretamente de grupos locais de sindicalistas, que haviam sofrido rebaixa de salário ou falta de emprego. Algumas dessas cooperativas foram definitivamente patrocinadas por sindicatos; outras foram criadas com a ajuda de sociedades beneficentes cujos membros proviam do mesmo ofício. Em outros casos, trabalhadores simplesmente se uniam sem qualquer patrocínio formal e iniciavam sociedades por conta própria (p. 29).

Nesse cenário, nasceu o cooperativismo e seu surgimento se confunde com as lutas dos trabalhadores e da sociedade, à época, contra os mecanismos de exploração e exclusão que o capitalismo proporcionava desde o advento da Revolução Industrial. O seu surgimento, também, traz consigo o registro de que se trata de um fenômeno que, em sua origem, representava aspirações de pessoas pobres. Destarte, pode-se afirmar tratar-se de um movimento de origem popular.

Sendo compreendido dessa forma, o cooperativismo pode representar, em grande medida, um importante sustentáculo à possibilidade de uma alternativa organização econômica. No entanto, é importante considerar que isso só deverá ocorrer se ele estiver plugado a ações de luta política e econômica dos grupos aos quais esteja servindo.

 

O cooperativismo popular

O resgate histórico do cooperativismo e a sua aplicação nos dias atuais remete ao debate sobre suas formas. Não se considera, para efeito deste artigo, a prática cooperativa que não esteja vinculada ao exercício: 1) em termos econômicos, dos princípios fundamentais da cooperação (Marx, 1983; Borgadus, 1964a); 2) em termos administrativos, de práticas de definição de interesses que considerem os princípios da autogestão (Faria, 1985; Carvalho, 1983); e 3) em termos políticos, de práticas de ação coletiva e relacionamentos com mediadores que considerem a prática da democracia representativa combinada com a democracia participativa dentro das arenas onde serão travadas as alianças para lutas por emancipação e transformação social e cultural (Santos, 2002).

É fundamental ressaltar que os conceitos são apropriados por diferentes setores da sociedade, segundo finalidades de transformação social ou de manutenção da ordem, como já foi anunciado anteriormente no artigo.

Considera-se, nesse sentido, um tipo de cooperativismo que rompe com o conceito geral que a ele foi atribuído desde quando os socialistas utópicos foram "sepultados" - principalmente após o lançamento do "Manifesto Comunista" (em 1848, por Marx e Engels), quando a luta contra o capitalismo passou a ser compreendida, pela maioria dos socialistas e comunistas, prioritariamente com a aplicação de um processo de ruptura violenta que visava inicialmente à tomada do Estado. Assim, a utilização do cooperativismo passou a ser vista como conciliadora ou reformista, principalmente quando os liberais da época, como Stuart Mill, elogiavam a proposta cooperativista como sendo uma forma de poder reunir o que tinha de bom no capitalismo e no socialismo (Mill, 2001).

O advento do século XX trouxe a condição de experimentação do socialismo por intermédio da Revolução de 1917, que deu origem à URSS. Trouxe, também, o surgimento do capitalismo globalizado. E, por outro lado, trouxe, no decorrer do século, a "falência" da proposta de economia planificada centrada nas mãos do Estado e os resultados devastadores da globalização capitalista.

É importante relatar também o surgimento de novas formas de organização dos movimentos sociais e sindical que, dentre outros feitos, forçaram a retomada do debate sobre a utilização do cooperativismo como forma de apresentar alternativas ao desemprego e à miséria causados, sobretudo, pelo capitalismo globalizado, numa espécie de reedição da luta pela instalação de organizações cooperativas tal como aconteceu no século XIX, evidentemente que considerados todos os avanços nas formas de lutas. Retoma-se, então, o debate sobre cooperativismo e transformação social.

Isso remete à pergunta que não quer calar: de que cooperativismo se está falando?

Claramente, existem, pelo menos três grandes correntes de compreensão do cooperativismo: 1ª) representa um fim em si - defendida pela maioria dos integrantes do sistema liderado internacionalmente pela Aliança Internacional Cooperativista2; 2ª) é um instrumento para reforçar os princípios liberais - representada por líderes cooperativistas das chamadas cooperativas agropecuárias brasileiras, por exemplo; e 3ª) é um instrumento para negar a ordem liberal e servir como fundamento para a construção de fontes alternativas ao capitalismo.

A essa última variante, aproxima-se o chamado cooperativismo popular, regido pelos princípios fundamentais da cooperação, pela prática da autogestão e pela busca da composição de alianças estratégicas contra a exploração capitalista e a exclusão social, articulados a movimentos de luta pelo exercício fundamental da cidadania. Essa perspectiva analítica alerta para a luta contra os fundamentos liberais "ricardianos", sobretudo o que defende a tese das vantagens competitivas como forma de organização mundial do trabalho.

Esse cooperativismo é estruturado sob organizações cooperativas que se definam com o que se pode chamar de "sindooperativas", ou seja, aquelas organizações cooperativas que, ao mesmo tempo, agem como cooperativa e sindicato; portanto, revertem a tese da neutralidade política, transformando-se num instrumento de luta política e econômica que incorpora tentáculos que o transformam em uma espécie de contrapoder cooperativo (Oliveira, 1996; Alencar, 1993) e de instrumento de luta por alternativas ao capitalismo globalizado (Santos, 2002).

Esse cooperativismo popular aliado a várias experiências mundiais de solidariedade e de buscas de alternativas ao capitalismo - por exemplo, as práticas de desenvolvimento alternativo - pode representar possibilidades concretas focadas em um "novo imaginário anticapitalista", ao que se refere Quijano (2002).

Um cooperativismo construído com essas características e respeitando as suas experiências históricas, poderá, talvez, dar sustentação a possíveis teses de reorganização econômica que objetivem novas estratégias de produção e distribuição de bens e serviços por parte dos trabalhadores. Nessa visão, o cooperativismo popular compreende a gênese de uma articulação maior, que no Brasil convenciona-se chamar de "economia solidária"3.

 

Economia solidária

As reflexões apresentadas nos itens anteriores apresentam um paralelo entre as lutas dos trabalhadores e o surgimento do cooperativismo, notadamente o cooperativismo popular, precisamente para elaborar um desenho de trilha compreensiva que o indique como sendo um dos principais elementos constitutivos da chamada economia solidária. A preocupação central se deve ao fato de que a reflexão pela ótica do cooperativismo permite compreender melhor as mais variadas formas de expressão de alternativas buscadas pela população, sobretudo a de baixa renda, para conquista de melhoria de vida e minimização da pobreza.

Essa escolha permite examinar antigos e novos debates acerca do relacionamento das organizações populares com o Estado, com o mercado e com a sociedade, examinar qual o tipo de democracia que nelas pode ser exercida e observar se elas possuem, ou não, condições efetivas de agirem em redes de produção e distribuição. Isso é possível, pois o cooperativismo possui teoria própria; ou seja, tratase de um modelo de organização econômica e social que, se não representa uma via independente entre o liberalismo e o socialismo, representa, em grande medida, um forte instrumento de organização social do trabalho.

Uma reflexão feita por esse caminho permite, fundamentalmente, pensar-se em uma elaboração conceitual mais consistente sobre o que se convenciona chamar de economia solidária. Certamente, a elaboração desse conceito sob as perspectivas apontadas ainda tem muito caminho a percorrer.

Para efeito deste artigo, que, longe de esgotar o debate, objetiva contribuir com suas reflexões, é importante apresentar três questões básicas norteadoras a) do que se está falando?, b) de onde surgiu? e c) como se manifesta?

Desse modo, é importante considerar que, diferentemente da "economia social", que na Europa pode ser considerada como práticas filantrópicas vinculadas ao chamado terceiro setor, a economia solidária, no Brasil, é compreendida de outra forma. Singer (2002) a compreende como

outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto, exige mecanismos estatais de redistribuição solidária de renda. Em outras palavras, mesmo que toda atividade econômica fosse organizada em empreendimentos solidários, sempre haveria a necessidade de um poder público com a missão de captar parte dos ganhos acima do considerado socialmente necessário para redistribuir esta receita entre os que ganham abaixo do nível considerado como indispensável. Uma alternativa frequentemente aventada para cumprir essa função é a renda cidadã, uma renda básica igual, entregue a todo e qualquer cidadão pelo Estado, que levantaria o fundo para esta renda mediante um imposto de renda progressivo (p. 10).

Como se trata de um conceito em construção, essa definição apresentada por Singer (2002) tem provocado vários debates, como se pode perceber em Mance (2000)4, que apresenta, às teses de Singer, pelo menos nove questionamentos: 1) pode provocar aumento de desigualdades; 2) ação dos governos como condição necessária ao seu sucesso; 3) questão da solidariedade com as empresas capitalistas; 4) provocação da competição solidária; 5) solidariedade dos pobres em si; 6) proteção externa no período de aprendizagem; 7) moeda própria para reserva de mercado; 8) competição, qualidade e custos; e 9) prestígio e patrocínio externo. Com essas críticas, Mance (2000), sugere que se almeje o que ele denomina de colaboração solidária, que significa

um trabalho de consumo compartilhado, cujo vínculo recíproco entre as pessoas advém, primeiramente, de um sentido moral de corresponsabilidade pelo bem viver de todos e de cada um em particular, buscando ampliar-se no máximo possível o exercício completo da liberdade pessoal e pública (pp. 178-179).

Para viabilizar sua tese, Mance (2000) propõe a criação de redes de colaboração solidária, totalmente independentes do apoio do Estado e de entidades representativas, tanto de trabalhadores como do setor privado.

Os debates apresentados sugerem exatamente a busca de respostas para a primeira das questões básicas sobre a economia solidária: do que se está falando?

Quanto à segunda, que questiona de onde surgiu a economia solidária, pode-se considerar, conforme defende Singer (2002), que

a economia solidária não é criação intelectual de alguém, embora os grandes autores socialistas denominados utópicos da primeira metade do século XIX (Owen, Fourier, Buchez, Proudhon etc.) tenham dado contribuições decisivas ao seu desenvolvimento, a economia solidária é uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo. Como tal, ela não poderia preceder o capitalismo industrial, mas o acompanha como uma sombra, em toda a sua evolução (p. 13).

Das contribuições intelectuais e práticas, há que se destacar as de Robert Owen, principalmente as contidas no plano por ele elaborado e sugerido ao governo britânico em 1817, para o qual

os fundos de combate aos pobres, cujo número estava se multiplicando, em vez de serem meramente distribuídos, fossem invertidos na compra de terras e constituição de Aldeias Cooperativas, em cada uma das quais viveriam cerca de 1.200 pessoas trabalhando na terra e em indústrias, produzindo, assim, a sua própria subsistência. Os excedentes de produção poderiam ser trocados entre Aldeias (Singer, 2002, p. 25).

Os fundamentos de Owen foram rejeitados pelo governo britânico e ele resolveu radicalizar a sua proposta. Segundo Cole (conforme citado por Singer, 2002): "Quanto mais Owen explicava o seu 'plano', mais evidente se tornava que o que ele propunha não era simplesmente baratear o sustento dos pobres, mas uma mudança completa no sistema social e uma abolição da empresa lucrativa capitalista" (p. 26).

A tese de Owen era coletivista. Por isso, foi fortemente aceita pelas correntes que criaram as primeiras cooperativas, tanto os rochdalianos, a partir do consumo, em 1844, como os classistas, ligados ao movimento sindical, que criaram as primeiras cooperativas de produção e serviços, por exemplo: London Co-operative Society (1824), Comunidade de Orbinston (1826) e Bringhton Cooperative Trading Association (1827), além dos políticos, que ajudaram a criar as primeiras cooperativas de crédito, como os alemães Hermann Schulze-Delitzch, no setor urbano, e Friedrich Wilhelm Raiffeisen, no setor rural, por volta de 1850-1852.

Outras contribuições nas quais a economia solidária se apoia são as feitas por Charles Fourier e as de Saint-Simon, correntes menos coletivistas, mas não menos importantes para a influência na criação das cooperativas.

Destarte, de acordo com Singer e Souza (2000) e Singer (2002), a origem da economia solidária coincide com as lutas dos trabalhadores na criação de cooperativas, como já apontado na discussão sobre cooperativismo popular no item anterior.

Especialmente, Singer e Souza (2000) afirmam que

a economia solidária surge como modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho. A economia solidária casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição (da produção simples de mercadorias) com o princípio da socialização destes meios (do capitalismo). Sob o capitalismo, os meios de produção são socializados na medida em que o progresso técnico cria sistemas que só podem ser operados por grande número de pessoas, agindo coordenadamente, ou seja, cooperando entre si. Isso se dá não somente nas fábricas, mas também nas redes de transporte, comunicação, de suprimento de energia, de água, de vendas no varejo etc. (p. 13).

A terceira questão básica, como se manifesta a economia solidária, parece ser a que representa a centralidade do debate. À medida que se toma como ponto cardeal o questionamento sobre qual a unidade básica de sustentação da economia solidária, ajuda-se a plasmar melhor a reflexão teórico-empírica sobre qual o tipo de organização deve ser considerado como gênese da economia solidária.

Nesse sentido, pode-se brevemente apresentar que a síntese desse debate no Brasil, campo geopolítico que delimita as reflexões deste artigo, se resume a pelo menos duas grandes variantes.

A primeira, sugerida por Singer e Souza (2000), que, considerando o surgimento e a evolução da economia solidária a partir da luta dos trabalhadores na criação de cooperativas, afirmam que se trata de um

modo solidário de produção e distribuição que à primeira vista parece um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias. Mas, na realidade, ele constitui uma síntese que supera ambos. A unidade típica da economia solidária é a cooperativa de produção, cujos princípios organizativos são: posse coletiva dos meios de produção pelas pessoas que as utilizam para produzir; gestão democrática da empresa ou por participação direta (quando o número de cooperados não é demasiado) ou por representação; repartição da receita líquida entre os cooperadores por critérios aprovados após discussões e negociações entre todos; destinação do excedente anual (denominados 'sobras') também por critérios acertados entre todos os cooperadores. A cota básica de capital de cada cooperador não é remunerada, somas adicionais emprestadas à cooperativa proporcionam a menor taxa de juros do mercado (p. 13: grifos nossos).

A segunda pode ser representada pelas argumentações de representantes de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), vinculadas à Rede Interuniversitária de Incubadoras de Cooperativas Populares (RITCPs), para os quais, por exemplo, a Cooperativa Popular5 é a única organização que pode ser considerada como a unidade básica da economia solidária, tendo para isso a sustentação nos princípios da autogestão e da cooperação que foram apresentados anteriormente neste artigo.

Por outro lado, existe um debate que acontece na América Latina acerca do próprio tema economia solidária, que apresenta pelo menos quatro vertentes. A primeira, defendida, por exemplo, por Singer e Souza (2000) e Singer (2002), segundo os quais se está presenciando a evolução da economia solidária, que já foi bem apresentada até o momento neste artigo.

A segunda, que pode ser representada por Mance (2000), para quem a tese da economia solidária não se sustenta, pois sua unidade básica de sustentação, a cooperativa, e sua concepção geral se baseiam apenas em propostas econômicas. Nesse caso, Mance (2000), sugere que se busque um novo conceito para as práticas solidárias que, segundo ele, vai além da Economia Solidária e cria a noção de Colaboração Solidária, na qual o objetivo é

garantir a todas as pessoas as melhores condições materiais, políticas, educativas e informacionais para o exercício de sua liberdade, promovendo, assim, o bem viver de todos e de cada um. Não se trata apenas de uma proposta econômica para gerar empregos e distribuir renda. Mais do que isso, trata-se de uma compreensão filosófica da existência humana, segundo a qual o exercício da liberdade privada só é legitimo quando deseja a liberdade pública, quando deseja que cada outro possa viver eticamente a sua singularidade, dispondo das mediações que lhe sejam necessárias para realizar - nas melhores condições possíveis - a sua humanidade, exercendo a sua própria liberdade. Igualmente sob esta mesma compreensão, a liberdade pública somente é exercida de modo ético quando promover a ética realização da liberdade privada (p. 179).

Nessa noção, a unidade básica de sustentação dessas atividades seriam as Redes. Para Mance (2000):

Operando com o paradigma da complexidade, desenvolvemos uma tese simples: sendo praticado o consumo solidário sob certos parâmetros, qualquer unidade produtiva pode vender a sua produção, gerando um excedente que pode gerar novas unidades produtivas que, conectadas em rede, podem atender a uma diversidade ainda maior de elementos demandadas pelo consumo final e produtivo de novas células, incorporando um número maior de consumidores e produtores em um movimento autossustentável de expansão. A essa tese, acrescentamos uma segunda: as pessoas excluídas nas sociedades capitalistas podem organizar redes de colaboração solidária em qualquer comunidade, em qualquer país, partindo das ações que atualmente desenvolvem de consumo, posto que as compras coletivas permitem melhorá-lo a todos os participantes e ainda poupar recursos que podem financiar atividades de produção solidária que, por sua vez, possibilitam ampliá-lo ainda mais em quantidade, qualidade e diversidade. O conjunto dessas duas teses nos leva à conclusão de que uma revolução econômica pode ocorrer atualmente se os atores econômicos, que buscam gerar uma alternativa autossustentável, conectarem suas ações em uma rede de colaboração solidária (p. 185).

Uma terceira variante pode ser representada por Coraggio (2000), que sugere a argumentação de uma Economia Popular, que, para ele,

emerge das rupturas contínuas impostas repetidamente ao cotidiano popular pela reconstrução global do capital, e dos comportamentos reativos da população trabalhadora em luta por reproduzir a sua vida - é muito importante advertir que a unidade de análise econômica que se deve tomar não deve ser nem a do indivíduo que trabalha por conta própria, nem, tampouco, a da microempresa. Se a perspectiva dessa economia é a da reprodução da vida, a unidade de análise mais conveniente vem a ser aquela que os antropólogos denominam de unidade doméstica. Em nossas sociedades, a modalidade de unidade doméstica mais generalizada - mesmo que não a única - é a família, nuclear ou extensa, e com base em relações de consanguinidade e afinidade. As transformações que se vêm experimentando fazem, inclusive, com que essa forma de organização de reprodução também se modifique. Por exemplo: se a proporção de famílias nucleares completas é cada vez menor, por outro lado, é cada vez maior o número de famílias com mãe solteira. Pelo menos é o que vem acontecendo na região metropolitana de Buenos Aires. A unidade doméstica, como microunidade de organização dos sistemas de reprodução, é a célula da economia popular, da mesma forma que as empresas, como microunidades de reprodução do capital, são células da economia capitalista. Neste sentido, a unidade doméstica, como já foi dito, pode ser formada tanto por pessoas com vínculo de consanguinidade, como pode ser unipessoal, ou multifamiliar, ou até formada por amigos, por comunidades étnicas (como os grupos de Otavaleños, no Equador), de vizinhos, por grupos que se unem livremente para cooperar, ou agregações solidária de outro tipo qualquer, que compartilhem recursos e articulem estratégias, explícitas ou implícitas, para reproduzir sua vida coletiva. Em todos os casos, seus membros juntam seus recursos, no todo ou em parte, para satisfazer coletiva e solidariamente as necessidades de todo o conjunto - o que torna essas unidades um lar, um domicílio, no mesmo sentido que as pesquisas oficiais dão a esse termo. As regras de distribuição interna podem ser as mais variadas e muito diversificados os graus de consciência a respeito daquilo que os analistas qualificam como a sua 'estratégia' (pp. 94-95: grifos nossos).

Uma quarta vertente é a que categoricamente nega a possibilidade da articulação de uma economia solidária. Pode ser representada pelas argumentações que Vainer (1999) faz ao considerar que:

Numa linguagem sofisticada, eu diria que 'economia solidária' é um oxímoro, é um paradoxo em si. O mundo da economia, tal como ele existe, o mundo da sociedade onde a economia domina é, sobretudo, na representação dos economistas, mas não apenas - sejam eles clássicos ou neoclássicos -, o mundo natural da guerra de todos contra todos [...] a luta dos trabalhadores, num certo sentido, entendam-me bem, 'uma luta contra a economia', ou seja, uma luta contra as regras e as leis que a economia, os capitalistas e seus porta-vozes, pretendem impor às regras e às leis inexoráveis do mundo [...] A economia é o lugar da competição e da guerra. Os espaços de solidariedade são aqueles dominados por outros fins, por outros valores e por outras práticas (pp. 45-47).

Em contraposição à proposta de economia solidária, Vainer (1999) sugere, baseando-se nas argumentações feitas pelo filósofo marxista francês Henri Léfèbvre, a prática da utopia experimental, que, para o autor, significa "a vivência, mesmo que limitada no tempo, mesmo que limitada na qualidade, daquilo que poderia ser o outro mundo" (p. 60).

Para Vainer (1999):

As cooperativas, os sindicatos que conseguem sobreviver apesar das dificuldades, os partidos políticos que não se subordinam às lógicas burocráticas, as associações culturais e esportivas e os vários momentos de fresta popular autêntica são momentos de utopia experimental no sentido de que são momentos de afirmação, no presente, de que o futuro é possível (pp. 60-61: grifos nossos).

Como se percebe, de fato, trata-se de um tema ainda em construção e, portanto, traz consigo toda uma reflexão que medra tanto mais rapidamente quanto mais se alastrem as experiências concretas e se acelerem as investigações empíricas. Mas, dada a explosão dessas experiências e investigações levadas adiante em todo o Brasil, por exemplo, trata-se de um tema que poderá contribuir muito para as reflexões acerca dos movimentos sociais, pois, indiscutivelmente, é um tema que emerge das lutas populares.

No Brasil e na América Latina, as práticas de economia solidária buscam "reinventar" as experiências dos Falanstérios de Fourier e as da Nova Harmonia (Aldeias Cooperativas) de Owen. Mas, sobretudo, a chave para o exercício dessas práticas será a necessidade que os movimentos sociais e o movimento sindical tem de buscar alternativas concretas para os programas liberais, principalmente porque a falência destes está provocando, de forma acelerada, concentração de renda, desemprego e avanço da miséria.

Em grande medida, certamente, este debate se reportará de forma mais contundente para as investigações científicas na tese de Robert Owen, como as apresentadas, por exemplo, em Cole (1944), Polany (1980), Mill (2001) e Singer (2002).

 

Ampliando o debate

Estudo publicado sob a organização de Boaventura de Sousa e Santos (2002) reúne experiências que enriquecem o debate acerca da tese de que está emergindo uma outra globalização em grande medida, contrária à globalização liberal, constituída de redes transfronteirizadas entre movimentos, lutas e organizações locais e nacionais, que, sobretudo, lutam contra a exclusão social, a precarização do trabalho e o avanço da miséria no mundo.

Algumas dessas experiências, segundo Santos (2002), sugerem a prática da chamada economia solidária. Sobre elas, o autor apresenta o que ele chama de "nove teses", que serão importantes para a verificação nos estudos que se seguirão sobre o assunto.

São elas:

Tese 1 - As alternativas de produção não são apenas econômicas: o seu potencial emancipatório e suas perspectivas de êxito dependem, em boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação econômica e processos culturais, sociais e políticos [...] (p. 64).

Tese 2 - O êxito das alternativas de produção depende de sua inserção em redes de colaboração e de apoio mútuo [...] (p. 66).

Tese 3 - As lutas pela produção alternativa devem ser impulsionadas dentro e fora do estado [...] (p. 68).

Tese 4 - As alternativas de produção devem ser vorazes em termos de escala [...] (p. 68).

Tese 5 - A radicalização da democracia participativa e da democracia econômica são duas faces da mesma moeda [...] (p. 69).

Tese 6 - Existe uma estreita conexão entre as lutas pela produção alternativa e as lutas contra a sociedade patriarcal [...] (p. 71).

Tese 7 - As formas alternativas de conhecimentos são fontes alternativas de produção [...] (p. 71).

Tese 8 - Os critérios para avaliar o êxito ou o fracasso das alternativas econômicas devem ser gradualistas e inclusivos [...] (p. 72).

Tese 9 - As alternativas de produção devem estar em relações de sinergia com alternativas de outras esferas da economia e da sociedade [...] (p. 73).

Sobretudo a partir de quando Quijano (2002) afirma, podemos estar vivenciando uma fase de construção do que ele considera como o momento de transição entre a resistência e a busca de alternativa ao capitalismo. Nesse aspecto, o autor considera que se presencia a construção de um possível "novo imaginário anticapitalista", ao se referir às experiências, às quais também se refere Santos (2002). Ressalta-se que as teses necessitam ser "testadas" e/ou investigadas em estudos diversos.

Esse "novo imaginário anticapitalista", para Quijano (2002),

ainda não está formulado por (ou associado a) uma teoria crítica do poder, sistematicamente questionada, e suas correspondentes propostas políticas revolucionárias. Já estão ativas, contudo, algumas correntes que fluem nessa direção. Isso é com certeza o que justifica, por um lado, que na crítica e na resistências contra as tendências capitalistas mais predatórias que a globalização tem desencadeado contra os direitos dos explorados e dominados no mundo. Ainda predominem, embora em recessão, os instrumentos da teoria crítica que esteve associada à derrota mundial do anticapitalismo entre 1968 e 1989. Mas também, por outro lado, é isto que explica que, nas alternativas que começam a ser propostas, seja exatamente a nacionalização da economia que está notoriamente ausente (p. 482).

Segundo Quijano (2002), fazem parte dessas experiências, para o caso da América Latina, duas variantes: 1) a economia solidária, na qual a cooperativa é sua instituição central; e 2) a economia popular, na qual a instituição central é a comunidade.

Essa sintetização demonstra que as teses de Santos (2002) são importantes e que os debates levados à cena no Brasil e na América Latina, apresentados no item anterior, são pertinentes.

Ao que parece, mesmo levando-se em consideração que essas formas alternativas ao capitalismo necessitam ser buscadas nas suas mais variadas formas, a economia solidária parece concretizar melhor essas propostas. E sua fundamentação no exercício do cooperativismo popular - pelo fato de o cooperativismo possuir teoria própria e poder historicamente ser relacionado às lutas de resistência ao capitalismo - significa a unidade básica que melhor pode dar sustentação tanto do ponto de vista programático como do ponto de vista da realização de experiências concretas. Sobretudo, no que diz respeito a poder se fazer a relação do setor produtivo de bens e serviços, com o distributivo, ou seja, poder apresentar elementos para que se possa estar falando de um "novo" modo de produção, que, num primeiro momento, dada as condições da luta, pode, ou não, ser revestido de alguma teoria do poder.

O que parece é que, certamente, presenciam-se formas alternativas que vislumbram quebrar o ciclo de crescimento da pobreza e da exclusão social, causadas pelos programas liberais globalizados.

A economia solidária é, minimamente, um tema importante dentro das ações do movimento social e sindical, como também no âmbito das políticas públicas e em outras relações da sociedade civil com o Estado.

Os debates se ampliam à medida que se plugam à discussão de outras questões apresentadas neste artigo.

Torna-se importante compreender a vinculação de outros conceitos como: liberdade, oportunidade, necessidade, empoderamento e diversidade. Para Maluf (2000), a compreensão de diversidades sociais poderá definir mais claramente as necessidades (Sen, 2000) da população mais carente. Por sua vez, a definição das necessidades pode despertar o exercício de diferentes capacidades (Sen, 2001), dessas parcelas da população em buscar nas políticas públicas formas de elaboração de processos de mudanças sociais.

Para isso, é preciso que possam ter condições de estarem permanentemente transformando em ativos de capital os recursos que têm à sua disposição (Delgado, 2002). À medida que esses processos se tornem consistentes, poderá ser possível serem criadas diferentes condições de empoderamento.

Nesse cenário, diversidade deve ser encarada como um elemento da formação cidadã; necessidades são imaginadas como a construção de uma determinada agenda por um determinado grupo social; capacidades são entendidas como a forma autônoma de se transformar em ativos de capital os recursos sociais e materiais disponíveis; e, empoderamento, diferentemente da compreensão do World Bank, que o qualifica apenas como uma forma de garantir a boa governabilidade6, deve ser compreendido, conforme argumenta Romano (2002), como abordagem e como processo. Como abordagem, coloca as pessoas e o poder no centro dos processos de desenvolvimento, implicando o desenvolvimento de capacidades (capabilities) das pessoas e de suas organizações. Isso significando poder superar as principais fontes de privação das liberdades, construir novas opções, poder e saber escolher, poder implementar e poder se beneficiar das escolhas. Como processo, deve ser entendido como uma forma de as organizações, as comunidades tomarem controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida e tomam consciência da sua habilidade e competência para produzir, criar e gerir.

 

Algumas considerações finais

A eleição de Luís Inácio Lula da Silva, pela coligação liderada pelo Partido dos Trabalhadores, no Brasil, representou, para boa parte das organizações representativas dos trabalhadores e dos movimentos sociais, a possibilidade de se verem concretizadas algumas formas de alternativas ao capitalismo, ao menos no que diz respeito às suas vinculações com o acesso às políticas públicas.

Pode-se registrar como um mecanismo institucional facilitador a criação, dentro da estrutura do Ministério do Trabalho, com a intenção de ajudar no combate à fome e na perspectiva de geração de oportunidades de emprego, trabalho e renda, a Secretaria Nacional de Economia Solidária. Fato similar a esse já tinha sido adotado na França no último governo socialista do Leonel Jospin. Essa Secretaria surgiu como fruto de uma movimentação de organizações que atuam nesse campo.

Evidentemente que esse processo trouxe e trará para o debate temas antigos e novos, que terão que ser enfrentados e que foram sinalizados neste artigo.

Esse debate só terá proveito se contar com a participação do movimento sindical e do movimento social, bem como, no caso específico, pelos membros das organizações praticantes e entidades fomentadoras da economia solidária. Mas, também, que tenha o Estado atuando, ao mesmo tempo, como ator e arena desse debate.

Um grande desafio que se apresenta, especificamente acerca das ações da Secretaria Nacional de Economia Solidária, é o risco de o Estado se apropriar dessas alternativas, transformando espaços de experiências e construção de alternativas de vida populares em políticas públicas limitadas e atomizadoras, dificultando, assim, a possibilidade de que esses movimentos construam sua autonomia diante da nova situação que está colocada, principalmente porque as pessoas que participam desses empreendimentos são, em sua maioria, trabalhadores desempregados ou indivíduos em situação de completa exclusão social.

 

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Recebido em: 04/09/11
Aceito em: 03/12/11

 

 

1 Contato: otideneb@ufsj.edu.br
2 A Aliança Internacional Cooperativista foi fundada em 1895 e representa organizações cooperativas de 267 organizações espalhadas em 97 países. Ver mais em http://www.ica.coop/es/
3 Esse termo é atribuído, no Brasil, ao professor Paul Singer da Universidade de São Paulo (USP) e atual secretário Nacional de Economia Solidária, principalmente por ser um termo referido por ele para as suas propostas de combate ao desemprego e à exclusão social.
4 O texto de Mance (2000) aparece com uma data anterior ao texto do Singer (2002), pois representa análises feitas por Mance, baseadas em publicações das teses defendidas por Singer, quando da elaboração do programa de governo a ser defendido nas eleições municipais de 1996 por Luíza Erundina pelo PT em São Paulo.
5 Na compreensão de Guimarães (1998), cooperativa popular é aquela em que princípios vão sendo enraizados muito mais numa perspectiva de afirmar o que somos do que defender o cooperativismo em geral. Muito mais do que a renda, o que a define são questões de princípios que se sustentam em determinadas perspectivas, como as comissões de ética e a forma de distribuir rendas. Nesse sentido, a cooperativa não é uma empresa em que os trabalhadores estão lá ocupados; ao contrário, é um órgão administrativo de sustentação.
6 Ver http://www.worldbank.org/poverty/empowerment no texto Empowerment and poverty Reduction: A Sourcebook.