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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.1 Juiz de fora June 2012

 

ARTIGOS

 

Bem-estar subjetivo em famílias com histórico de abuso sexual intrafamiliar

 

Subjective Well-Being (SWB) in families with sexual abuse history in the family

 

 

Ana Maria Franchi Pincolini1; Claudio Simon Hutz

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo avaliou o Bem-Estar Subjetivo (BES) de vítimas de abuso sexual intrafamiliar e de seus familiares após a conclusão de processos judiciais. O estudo foi exploratório e de naturezas quantitativa e qualitativa. Foram aplicadas as Escalas de Satisfação de Vida (SV) e de Afetos Positivos e Negativos (PANAS) aos responsáveis adultos, vítimas e irmãos de vítimas. Embora quantitativos, os dados foram discutidos qualitativamente. Os resultados evidenciaram que as mães apresentaram menores níveis de BES em comparação aos responsáveis masculinos. A SV foi maior nos responsáveis de famílias reconstituídas e com desfecho judicial condenatório. Nas vítimas e irmãos, os maiores níveis de BES ocorreram em famílias monoparentais com processos de desfecho absolutório. Em geral, as vítimas apresentaram níveis de BES mais altos que seus irmãos, indicando que eles precisam receber mais atenção das redes de proteção/atendimento.

Palavras-chave: Abuso Sexual, Bem-estar Subjetivo, Família


ABSTRACT

This study assessed the Subjective Well-Being (SWB) in victims of sexual abuse in the family and in their relatives after the conclusion of lawsuits. The study was exploratory, quantitative, and qualitative. The Satisfaction With Life Scale (SWLS) and the Positive and Negative Affective Scale (PANAS) were applied to the adults, victims, and victims' siblings. Despite quantitative, the data were discussed qualitatively. The results demonstrated that the mothers presented lower levels of SWB if compared to the fathers. The SWLS was higher in the guardians of reconstituted families and with lawsuits which resulted in convictions. In general, the victims presented higher levels of SWB than their siblings, suggesting that they need to be given more attention from the systems of protection/assistance.

Keywords: Sexual Abuse; Subjective Well-being; Family


 

 

Durante a maior parte de sua história, a Psicologia preocupou-se principalmente com aspectos disfuncionais do psiquismo e do comportamento humano. Algumas iniciativas no sentido de incluir o estudo de aspectos positivos surgiram na década de 1930, com os trabalhos de Terman, Jung e Watson (Graziano, 2005), e reapareceram nos anos 1960 e 1970, com as contribuições da Psicologia Humanista, em especial de Maslow (1954) e Rogers (1959). Entretanto, como movimento organizado de crítica à ênfase da ciência psicológica na patologia e na disfunção, a Psicologia Positiva surgiu em 1998, por iniciativa de Seligman, Csikszentmihalyi, Fowler, Peterson, Vaillant e Diener (Graziano, 2005; Passareli & Silva, 2007) e afirmou-se em 2001, na edição especial da American Psychologist (Yunes, 2003).

A Psicologia Positiva é definida como o estudo científico das forças e virtudes do indivíduo, seu potencial, capacidades e motivação (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). O estudo da felicidade e das potencialidades humanas é uma importante questão de pesquisa para a Psicologia no século XXI. Segundo Yunes (2003), propor uma ciência que focalize potencialidades e qualidades exige tanto esforço e seriedade quanto o estudo de aspectos disfuncionais. A Psicologia Positiva pretende suplementar, e não desconsiderar, o conhecimento que a ciência psicológica adquiriu sobre sofrimento, transtornos e disfunções, compreendendo as experiências humanas de forma equilibrada, sem privilegiar aspectos positivos ou negativos (Passareli & Silva, 2007).

O Bem-Estar Subjetivo (BES), tema frequentemente estudado pela Psicologia Positiva, é considerado por alguns autores como sinônimo de felicidade (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000) e uma avaliação subjetiva da qualidade de vida (Giacomoni, 2004). Pesquisadores têm buscado entender como eventos estressantes repercutem no BES e qual a influência de fatores genéticos (temperamento) e características de personalidade (Giacomoni, 2004). Graziano (2005) estudou eventos de vida e situações críticas (descoberta de ser portador do vírus HIV, sequestros, acidentes, assaltos), com interesse em pessoas cuja recuperação superou as expectativas. Observou que tais pessoas possuíam certa percepção de responsabilidade (controle) sobre seu bemestar e que quanto maior o locus de controle interno de um indivíduo (percepção de controle sobre reações e eventos de vida), maiores seus níveis de felicidade.

A subjetividade, a avaliação global e as medidas positivas são características fundamentais do BES (Diener, 1995). Ele é composto por uma dimensão emocional, Afeto, subdividido em Afeto positivo (AF+) e Afeto Negativo (AF-); e por uma dimensão cognitiva, Satisfação de Vida (SV). AF+ refere-se a um estado emocional de contentamento, alerta, atividade, prazer e entusiasmo. AF- corresponde a um estado de distração e baixo engajamento, acompanhado de aborrecimento, ansiedade, depressão, pessimismo e outros estados desagradáveis. Por sua vez, SV permite acessar a avaliação geral que o indivíduo faz de suas experiências, em uma perspectiva cognitiva (Diener, 1995), comparando o padrão de vida desejado e as circunstâncias de vida reais (Albuquerque & Tróccoli, 2004). Altos níveis de BES significam uma postura de autoaceitação, relações positivas, autonomia (autodeterminação, independência, autorregulação do comportamento), sensação de controle sobre o ambiente, desejo de crescimento pessoal e sentimento de um propósito na vida (Riff, 1989).

Várias formas de mensuração foram propostas para o BES. As primeiras eram medidas de item único, em que os participantes respondiam a uma questão ampla a respeito de bem-estar, qualidade e satisfação de vida. Apesar da praticidade e brevidade, essas medidas eram demasiadamente simplistas. Atualmente, utilizam-se lembranças de eventos de vida e escalas que medem as dimensões afetiva e cognitiva do BES (Giacomoni, 2004). O aspecto subjetivo da avaliação do bem-estar é de suma importância, pois as pessoas avaliam uma mesma experiência de modo diverso, havendo grandes variações individuais com relação ao impacto dos acontecimentos (Diener, 1995). O presente estudo, que avaliou o BES de crianças, adolescentes e familiares que viveram ou testemunharam um evento de vida potencialmente danoso como o abuso sexual, pretende contribuir com essa discussão.

 

Abuso sexual intrafamiliar

O abuso sexual de crianças e adolescentes se caracteriza pelo envolvimento sexual entre um ou mais adultos e uma pessoa menor de 18 anos. Compreende todo ato ou jogo sexual, homo ou heterossexual, com ou sem penetração (Azevedo & Guerra, 1989). Nas diversas definições de abuso sexual infantil está incluída a não-compreensão da vítima (e consequente incapacidade para consentir) e o desenvolvimento psicossexual adiantado do abusador em relação a ela (Habigzang & Caminha, 2004), determinando uma diferença de poder (Amazarray & Koller, 1998). Quando ocorre dentro da família, o abuso sexual é intrafamiliar (ASI) ou doméstico e, nesse caso, o abusador tem para com a criança laços de consanguinidade e/ou responsabilidade. Os abusadores podem ser responsáveis biológicos ou adotivos, curadores, tutores ou quem quer que detenha poder/responsabilidade sobre a criança/adolescente, gerando quebra da confiança da vítima para com as figuras parentais ou de cuidado (Azevedo & Guerra, 1989). Acredita-se que as consequências psicológicas costumam ser mais graves quando se trata de ASI do que quando o abuso é cometido por estranhos (Amazarray & Koller, 1998; Habigzang & Caminha, 2004, Pfeiffer & Salvagni, 2005) em função dos vínculos afetivos entre vítima e abusador. Participar da interação abusiva pode levar a vítima a crer que é responsável pelo abuso e que será culpabilizada caso o abusador seja preso e a mãe fique magoada (Borba, 2002). Esses sentimentos de culpa e responsabilidade contribuem para a criação e manutenção da chamada "síndrome do segredo" (Furniss, 1993), na qual, por meio de ameaças, implícitas ou não, o abusador faz a vítima crer que suas queixas não serão escutadas, que ninguém lhe dará crédito ou que ela será castigada (Pfeiffer & Salvagni, 2005). Além da vítima, a mãe também precisa de ajuda (Cohen & Mannarino, 2000). Ela tende a vivenciar o abuso sexual dos filhos nos papéis de vítima ou testemunha e pode sentir-se fracassada por não ter conseguido protegê-los (Santos, 2007). Costuma ser dependente emocional e economicamente do abusador e não é incomum que tenha sido vítima de abuso sexual na própria infância (Narvaz, 2003).

O abusador (geralmente o responsável masculino) costuma ter dificuldades para impor limites dentro da família e tende a usar violência física para resolver conflitos. É possível que adote comportamentos de omissão, minimização da dor e das consequências do abuso e desqualificação/desprezo à vítima (Ravazzola, 1997). Ele próprio pode ter sido abusado ou abandonado na infância; daí, a dificuldade de atender às necessidades afetivas e salvaguardar os direitos de uma criança (Santos, 2002).

Por ser um evento de vida potencialmente traumático, as consequências do ASI costumam ser danosas a todos os envolvidos, em especial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. O ASI gera um alto grau de tensão, interfere nos padrões normais de resposta e pressupõe alta probabilidade de ocorrência de algum tipo de desordem, que pode incidir sobre o comportamento, afeto ou cognição da vítima (Silva & Hutz, 2002). Outros familiares também são afetados, pois a violência sexual pode ser experimentada nos papéis de vítima, perpetrador ou testemunha, e todos esses papéis geram consequências negativas ao desenvolvimento (De Antoni & Koller, 2002). Pelo exposto, presume-se que o ASI repercute sobre o bem-estar da família como um todo. Há poucos dados a respeito do BES em famílias que vivenciaram um processo judicial de ASI. Pouco se sabe acerca da satisfação com suas vidas e se, de fato, estão mais felizes após o julgamento dos acusados. Esse estudo pretendeu contribuir no preenchimento dessa lacuna.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 13 adultos responsáveis, nove vítimas e sete irmãos de vítimas de abuso sexual. Essas pessoas faziam parte de um total de dez famílias selecionadas.

Delineamento e procedimentos

O estudo foi exploratório e se constituiu em um estudo de caso coletivo (Stake, 2005), delineamento apropriado quando há o interesse em estudar vários casos em conjunto para indagar sobre um fenômeno. Os participantes foram selecionados após um levantamento de dados junto às 1ª e 2ª Varas da Infância e Juventude (VIJ) de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com autorização judicial de acesso aos números dos processos e aos arquivos. De posse do número do processo, foi possível localizar, mediante pesquisa no site do Tribunal de Justiça, processos já julgados e encerrados. Os critérios de inclusão na amostra foram: processos criminais, já encerrados, referentes a abuso sexual, cujo acusado fosse um familiar da vítima e em que a família da vítima residisse na região metropolitana de Porto Alegre. Os entrevistados deveriam ser alfabetizados, maiores de sete anos, sem diagnóstico de retardo mental/transtorno psiquiátrico que comprometesse o entendimento dos instrumentos. Após a pré-seleção de processos que respeitassem os critérios de inclusão na pesquisa, pela consulta ao site e, quando necessário, aos arquivos, duas profissionais das 1ª e 2ª VIJ (psicóloga e assistente social) fizeram contato com os responsáveis das famílias vitimadas, convidando-os a participar. Esse contato prévio foi necessário em função dos critérios éticos adotados e em função de que o Judiciário não poderia fornecer o contato das famílias sem a concordância delas. No total, 52 processos preenchiam os critérios de inclusão, mas seis foram excluídos em função de que não se conseguiu contato com os responsáveis familiares. Somente em dez das 46 famílias contatadas, os responsáveis aceitaram participar da pesquisa. Após a concordância em participar do estudo, a aplicação dos instrumentos foi agendada por telefone e ocorreu no domicílio dos participantes. Os participantes foram informados acerca do estudo e foi esclarecido o caráter voluntário de participação, assim como os procedimentos éticos adotados. Após assinatura do Termo de Concordância Livre e Esclarecido, os instrumentos foram aplicados pela pesquisadora, com o auxílio de uma aluna bolsista do grupo de pesquisa, em conformidade com os procedimentos descritos nos estudos de validação (Giacomoni, 2002; Giacomoni & Hutz, 1997, 2006, 2008). Na aplicação, tomou-se o cuidado de escolher um local apropriado da residência, que não comprometesse o sigilo das informações e evitasse interrupções. Caso houvesse algum contratempo ou os entrevistados se sentissem mal ou prejudicados de algum modo em função da aplicação, a pesquisadora informou que poderiam interromper a entrevista em qualquer tempo ou decidir não participar sem prejuízo algum. No entanto, todos aceitaram participar e não consideraram que a entrevista tenha trazido prejuízos; ao contrário, salientaram que sua participação poderia auxiliar outras famílias que enfrentam situações semelhantes.

Instrumentos

Com os responsáveis adultos foram utilizados os seguintes instrumentos:

- Escala de Satisfação de Vida (SV). Versão adaptada da escala de Diener, Emmons, Larsen e Griffin (1985), traduzida por Giacomoni e Hutz (1997). Trata-se de uma escala tipo Likert de sete pontos, em que o participante avalia cinco afirmativas referentes à SV. A amplitude da escala varia de cinco a 35 pontos.

- Escala de Afeto Positivo e Negativo. Versão em português da escala de Watson, Clark e Tellegen (1988). Organizada como uma lista de 40 sentimentos (afetos) negativos e positivos (duas subescalas de 20 itens), variando de um a cinco pontos, com amplitude de 20 a 100 pontos. Esse instrumento e o anterior podem ser obtidos em Giacomoni e Hutz (1997).

Em crianças e adolescentes (vítimas e seus irmãos), foram aplicados:

- Escala multidimensional de Satisfação de Vida para crianças. Escala composta por 50 afirmações em que a criança pontua de "1" ("nem um pouco") a "5" (muitíssimo). Os itens são agrupados de modo a avaliar a SV infantil em seis dimensões ou fatores: Self, Self comparado, Não -violência, Família, Amizade e Escola. Embora originalmente essa escala tenha sido desenvolvida para crianças e pré-adolescentes com idades entre sete e 12 anos, optou-se neste estudo por aplicá-la em todas as vítimas e irmãos, a fim de realizar comparações dentro da família e obter informações quanto às seis dimensões. Além disso, a maioria das vítimas e irmãos com mais de 12 anos possuía baixa escolaridade, dificultando a compreensão da escala de adultos. Essa escala pode ser obtida em Giacomoni (2002), e orientações sobre construção e validação, assim como alguns parâmetros para correção, em Giacomoni e Hutz (2008).

- Escala de Afeto Positivo e Afeto Negativo para crianças. Escala composta de uma lista de 34 sentimentos (afetos) positivos e negativos, que constituem duas subescalas independentes, cada uma com 17 itens, variando de um a cinco pontos. A amplitude da escala varia de 17 a 85 pontos. As versões preliminar e final desse instrumento podem ser obtidas em Giacomoni (2002) e Giacomoni e Hutz (2006), sendo que, nesse último, há informações sobre a validação concorrente da escala e alguns parâmetros para correção. Embora esses instrumentos tenham sido utilizados prioritariamente em pesquisas, acredita-se que podem ser de muito valor, a fim de subsidiar avaliações do BES infantil também nos contextos clínico e institucional.

Análise dos dados

Após a aplicação dos instrumentos e coleta dos dados, eles foram tabulados e foram calculadas medidas de tendência central (Média, M) e dispersão (Desvio Padrão, DP) para SV, AF+ e AF- . As estatísticas utilizadas para análise (M e DP) são descritivas e tiveram por objetivo possibilitar uma comparação entre as médias obtidas pelos sujeitos deste estudo e aquelas obtidas nos estudos de validação dos instrumentos utilizados (Giacomoni, 2002; Giacomoni & Hutz, 1997, 2006, 2008) com amostras não-clínicas. A magnitude do efeito foi calculada por meio do d de Cohen, útil em estudos com pequena quantidade de sujeitos, calculado em unidades de desvios padrão. Procurou-se calcular a magnitude da forma mais conservadora possível, utilizando o maior dos desvios padrão. Acredita-se que a pequena quantidade de sujeitos participantes se deve tanto à dificuldade em encontrar tais sujeitos quanto à resistência em participar de um estudo como o presente, que pode mobilizar muitas ansiedades nos entrevistados, por mais que seja assegurado encaminhamento a serviços de atendimento, se identificada a necessidade.

Como o BES é um construto multifatorial, na análise foi necessário examinar separadamente o componente cognitivo (SV) e o afetivo (AF+ e AF-). Espera-se que indivíduos com alto nível de BES apresentem níveis altos de SV e predominância de afetos positivos. Salientase que, em função da pequena quantidade de participantes, os dados obtidos não são passíveis de generalização e limitam-se à descrição dos níveis de BES encontrados nesta pesquisa e à comparação desses níveis com os encontrados em estudos anteriores.

Considerações éticas

A pesquisa foi submetida à aprovação judicial e à apreciação do Comitê de Ética em Psicologia da UFRGS, de forma a preencher as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos (Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde). Foi aprovada sob o Protocolo de número 2009/14 e registro número 25000.089325/2006-58.

 

Resultados e discussão

Inicialmente, são apresentados os resultados para os responsáveis adultos, iniciando pela SV e posteriormente pelos níveis de AF+ e AF- . Pela combinação dos componentes afetivo e cognitivo, foi estimado o nível de BES. Foram feitas comparações levando-se em conta a função na família (mãe X pai X padrasto), o tipo de família (reconstituída X monoparental X original) e o desfecho do processo (condenatório X absolutório). Posteriormente, são apresentados os resultados para as crianças e adolescentes e a respectiva discussão, sendo que, por ter sido aplicada uma escala multidimensional de SV, a discussão desse componente foi mais abrangente para crianças/adolescentes do que no caso dos adultos. As mesmas comparações foram feitas para crianças e adolescentes em relação à função na família (vítimas X irmãos de vítimas), tipo de família e desfecho do processo. Ao final da sessão de resultados, discutem-se, com base na literatura, as diferenças encontradas entre responsáveis adultos e crianças/adolescentes.

Bem-estar subjetivo (BES): Responsáveis adultos

BES responsáveis adultos X BES dados de estudos anteriores (sujeitos não-clínicos):

Dos 13 responsáveis participantes, nove eram mães de vítimas, dois eram padrastos e dois eram pais biológicos. Em nenhum caso, havia abusadores morando com a família, de modo que abusadores não foram avaliados. A Tabela 1 sintetiza os resultados.

Como se pode observar, as mães de vítimas apresentaram SV menor do que o conjunto dos responsáveis masculinos (com magnitude de efeito moderada (d =0,69). Uma hipótese para esse resultado é que as mães avaliadas tenham sido mais impactadas pela experiência vivida do que os responsáveis masculinos.

Comparando somente estes, a SV dos pais biológicos foi menor que a dos padrastos. Embora a magnitude de efeito tenha sido menor (d=0,28), essa diferença poderia apontar impactos do abuso sexual na família sobre a SV, já que os padrastos, que entraram na família após a conclusão do processo e vivenciaram apenas suas consequências tardias, apresentaram níveis de SV maiores que os pais biológicos.

Com relação ao aspecto afetivo, a média de afetos positivos das mães novamente foi inferior à dos responsáveis masculinos (embora com menor magnitude de efeito, d=0,33). Os pais biológicos apresentaram menores níveis de AF+ que os padrastos (com d=0,55), mas é importante ressaltar que foram avaliados apenas dois pais biológicos e dois padrastos. No caso dos pais biológicos, a dispersão foi muito grande, já que um deles apresentou um escore de AF+ bem mais baixo que o outro (4,5 e 1,45). O pai que teve o escore menor é filho do abusador e necessitou atendimento psiquiátrico após a denúncia, enquanto o outro pai era genro do abusador e, naquele caso, quem necessitou atendimento psiquiátrico foi sua ex-mulher, mãe da vítima e filha do abusador. Esses dados podem estar apontando o conflito de lealdade que o genitor tende a viver, em especial quando é filho do acusado.

Com relação ao AF- , as mães avaliadas apresentaram valor ligeiramente superior ao apresentado pelo conjunto dos responsáveis, assim como o valor do AF- nos pais biológicos foi ligeiramente superior ao dos padrastos. Talvez esses resultados reflitam alguma tendência, mas, como a quantidade de participantes foi pequena, a interpretação nesse sentido deve ser feita com cautela. De modo geral, esses resultados apontaram mais altos níveis de BES (maiores valores de SV e AF+ e menores valores de AF-) entre os padrastos. Pelo exame dos dados, pode-se concluir que, nesse pequeno grupo de pessoas avaliadas, as mães apresentaram os menores níveis de BES, seguidas pelos pais biológicos. Isso reforça a hipótese de que pertencer a uma família na qual ocorreram abusos sexuais repercute sobre o BES. Cabe ressaltar que cinco das nove mães entrevistadas viviam maritalmente com o acusado na época do fato, de modo que conviveram com sentimentos ambivalentes em relação a ele, como raiva, amor e carinho, além de sentimentos de culpa ou inadequação como figuras maternas (Santos, 2007).

BES responsáveis adultos X tipo de família

Das dez famílias pesquisadas, sete atualmente são monoparentais (em seis a guardiã é a mãe e em uma, o pai) e três famílias têm um casal como responsável, sendo duas reconstituídas e uma original. Os responsáveis de famílias reconstituídas apresentaram valores de SV mais altos do que aqueles de famílias monoparentais (M=5,1; DP=0,8 e M=4,6; DP=1,6, respectivamente) embora a magnitude do efeito tenha sido baixa (d=0,31). O casal da família original apresentou a menor SV (M=1,9; DP=1,27), consideravelmente inferior se comparado aos responsáveis de famílias reconstituídas (d=2,52) e monoparentais (d=1,69). Com relação ao AF+, os resultados foram semelhantes aos obtidos para a SV: as famílias reconstituídas apresentaram médias maiores que as monoparentais (M=3,5; DP=0,89 e M=3,4; DP=0,68, respectivamente), mas com pequena magnitude (d=0,11). Novamente, a maior diferença ocorreu entre o casal original e os demais, pois esse casal apresentou o menor nível de AF+ (M=1,6; DP=0,32) quando comparado às famílias reconstituídas (d=2,13) e monoparentais (d=1,7), o que motivou, inclusive, o encaminhamento para atendimento psicoterápico.

Uma hipótese para os valores mais altos de SV e AF+ entre responsáveis de famílias reconstituídas com relação às monoparentais neste estudo poderia se relacionar a condições objetivas, como a divisão das responsabilidades, não sobrecarregando um dos cônjuges. Explicações subjetivas poderiam indicar que as mães sintam que se recuperaram da experiência, tanto que encontraram um novo companheiro no qual conseguem confiar novamente. No entanto, no caso do AF- , os níveis mais altos apareceram entre os responsáveis de famílias reconstituídas (M=2,4; DP=0,39). Em famílias monoparentais, os responsáveis apresentaram média de AF- igual a 2,3 (DP=0,88). Os maiores valores de AF- entre responsáveis por famílias reconstituídas podem indicar a presença de conflitos, que se presume mais acentuada quando as decisões são tomadas por um casal do que quando há apenas um responsável. Outra explicação para os menores valores de AFencontrados entre os responsáveis das famílias monoparentais pode residir no fato de que as mães que optaram por viver sozinhas estejam mais seguras de que não ocorrerão novos abusos, ao menos no âmbito doméstico. Durante a aplicação, uma mãe referiu que "não ter mais homem dentro de casa" foi uma forma encontrada para sentir tranquilidade.

O maior nível de AF- foi obtido no casal original (M=3,7; DP=0,88), cuja comparação com os demais evidenciou, novamente, uma magnitude alta, em torno de 1,5 DP (d=1,48). Pode-se concluir que, na única família original deste estudo, os responsáveis apresentaram o menor valor de BES. A situação atual dessa família contribui para explicar esse dado: em função do processo, abandonaram a moradia (que era no terreno do abusador, avô paterno da vítima) e atualmente vivem em uma casa cedida, extremamente precária (dois cômodos, sem banheiro, sem água ou esgoto). O casal está desempregado e depende da família extensa materna. Além desses fatores objetivos, alguns fatores subjetivos também podem estar afetando o BES: o acusado foi absolvido e os conflitos continuam: o casal foi "excluído" da família paterna e ambos adoeceram consideravelmente após a descoberta dos abusos. Todas essas questões provavelmente repercutiram no BES desse casal, já que ainda vivem consequências diretas do abuso e carregam a sensação de terem sido injustiçados. A situação dessa família evidencia que as consequências do abuso ultrapassam os níveis individual e familiar, tomando proporções sociais de curto e longo prazos e afetando questões como trabalho, renda, saúde e habitação.

BES responsáveis adultos X desfecho do processo

Com relação ao desfecho do processo, os mais altos níveis de BES foram encontrados entre responsáveis de famílias em que a sentença foi condenatória, sendo que a diferença tanto nos componentes afetivos quanto cognitivos teve magnitude moderada (d=0,54 para a SV e, para AF+ e AF, d=0,57 e 0,56, respectivamente). Esse resultado é esperado: provavelmente, quando houve condenação, os responsáveis sentiram-se mais seguros e com a ideia de que o agressor foi responsabilizado. Ao comparar somente os valores obtidos pelas mães, também se observaram maiores níveis de BES nas famílias em que houve condenação embora a magnitude seja menor (Tabela 2).

Satisfação de Vida (SV): Vítimas e irmãos de vítimas

BES crianças/adolescentes em famílias com histórico de ASI X BES em crianças/adolescentes não-clínicos

Entre as 16 crianças e adolescentes participantes do estudo, nove eram vítimas e sete eram irmãos de vítimas. A média de idade foi de 11,12 anos (DP=2,65), sendo a idade média das vítimas 10,5 anos (DP=2,4) e dos irmãos 11,8 anos (DP=2,97). Como já explicitado, a SV infantil foi avaliada por meio de uma escala multidimensional. Huebner (1994) propôs quatro domínios na SV infantil (Família, Escola, Self e Amizade). Em seu estudo, além dos fatores propostos por esse autor, Giacomoni (2002) testou outros domínios, resultando uma escala final de seis dimensões. "Self " é um fator composto por características que descrevem um eu positivo (autoestima, bom humor, capacidade de relacionar-se e demonstrar afeto). "Self comparado" agrupa itens em que são feitas comparações com os pares com relação a lazer, amizade e satisfação de desejos. "Não-violência" inclui itens associados a comportamentos agressivos. "Família" agrupa descritores de um ambiente familiar saudável, afetivo, divertido e satisfatório. "Amizade" caracteriza o nível de satisfação nos relacionamentos com pares. E, por fim, "Escola" descreve o nível de satisfação no ambiente escolar. A Tabela 3 apresenta as médias de SV obtidas neste estudo, bem como as obtidas pela autora referenciada.

Ao comparar as médias de SV obtidas por Giacomoni (2002) para crianças e adolescentes não-clínicos com aquelas encontradas para vítimas de abuso sexual e seus irmãos, percebe-se que os participantes deste estudo apresentaram SV menor em todos os domínios, sendo que as diferenças de maior magnitude aparecem nos fatores "Família" e "Self". Isso pode indicar que o abuso sexual sofrido ou testemunhado repercuta na SV das vítimas e na de seus irmãos, especialmente com relação a aspectos vinculados à dinâmica familiar e autoimagem, o que tem consonância na literatura. Além disso, a magnitude da diferença do fator "Não-violência" pode indicar as marcas da violência sofrida ou testemunhada.

Ao observar os resultados referentes somente às vítimas, embora as menores médias de SV sejam nos domínios relacionados à autoimagem (Self e Self comparado), Família é o fator com a média mais alta de SV, indicando que é o fator com o qual estão mais satisfeitas. Como no conjunto das crianças/adolescentes esse fator obteve alta magnitude de diferença em relação aos valores de referência, o que pode estar contribuindo para isso é a média dos irmãos no fator Família, inferior à média das vítimas. Isso indica que as vítimas estão mais satisfeitas do que seus irmãos em relação à família e aponta para uma atenção diferenciada recebida pela vítima após o abuso sexual. No mesmo sentido, levando em conta que a menor média de SV obtida pelos irmãos ocorreu no fator Self comparado, isso pode indicar que os irmãos percebem que recebem menos atenção por parte da família em comparação à vítima.

De fato, quando se comparam as médias de SV de vítimas e de seus irmãos, o resultado é surpreendente, pois as vítimas apresentaram médias mais altas em todos os domínios da SV infantil. Esses dados podem estar indicando também o suporte diferenciado habitualmente propiciado para vítimas e seus irmãos. Após a descoberta do abuso, as vítimas foram alvo de uma série de ações da rede de proteção/atendimento: todas tiveram acesso à psicoterapia e desfrutaram de um espaço para tentar elaborar a situação abusiva. No entanto, a mesma atenção não foi dada aos irmãos. Como as consequências do ASI atingem todos os membros da família, os procedimentos avaliativos e terapêuticos deveriam ser ampliados aos demais familiares, e não ficar restritos às vítimas (Padilha & Gomide, 2004).

Além de negligenciados nas ações de avaliação e proteção, os irmãos de vítimas também parecem ser esquecidos nas pesquisas sobre ASI. Vários estudos dedicaram-se às mães de vítimas (Amendola, 2004; Narvaz, 2001; 2003; Santos, 2007), ou mesmo aos próprios abusadores, e salientaram a importância de um trabalho com a família como um todo, para além da punição (Borba, 2002), mas os irmãos das vítimas são pouco estudados. No estudo de Habigzang, Koller, Azevedo e Machado (2005), em 61,7% dos casos de ASI alguém já sabia do fato e não denunciou e 54,3% dessas pessoas eram irmãos de vítimas. Isso aponta para o fato de os irmãos de vítimas serem testemunhas frequentes de ASI. Se todas as formas de vivenciar a situação abusiva, inclusive testemunhar, trazem consequências negativas, como sugerem alguns autores (por exemplo, Amazarray & Koller, 1998), os irmãos de vítimas, que participam de algum modo da interação abusiva e sofrem suas consequências, estão sendo negligenciados na oferta de atendimentos. Essas diferenças devem ser investigadas em estudos futuros, com amostras maiores e, além de apontar a efetividade dos tratamentos disponibilizados às vítimas, apontam a necessidade de que seus irmãos sejam incluídos nas estratégias de acompanhamento e intervenção. Além disso, a alta magnitude da diferença entre SV de vítimas e seus irmãos no fator Nãoviolência é preocupante, pois pode estar indicando revitimizações. Os irmãos, menos visados do que a vítima, podem ser os novos alvos potenciais da violência.

SV crianças/adolescentes em famílias com histórico de ASI X tipo de família

Ao comparar a SV das crianças e adolescentes (vítimas e irmãos) em função do tipo de família, foram encontrados resultados opostos aos observados para adultos. Crianças/adolescentes de famílias monoparentais mostraram-se mais satisfeitas em todos os domínios da SV, com magnitudes de diferença bastante altas nos fatores Self comparado e Não-violência.

Esses resultados podem apontar que, nas famílias reconstituídas, vítimas e seus irmãos tenham dificuldades em estabelecer vínculos com outra figura masculina de cuidado. Talvez vítimas e irmãos vejam com receio a presença do padrasto, diferentemente das mães, com médias de SV superiores nas famílias reconstituídas. São necessários estudos com amostras maiores, a fim de observar se esse padrão se mantém (Tabela 4).

Caso outros estudos apontarem nessa direção, pode-se supor que mães de famílias com histórico de ASI e reconstituídas seriam de certo modo inábeis para perceber quando não vai bem a relação entre os filhos e o padrasto. Assim como tiveram dificuldades de perceber o abuso que ocorria em sua casa em seu relacionamento anterior, poderiam estar apresentando a mesma dificuldade de visualizar a relação entre os filhos e o novo companheiro.

Santos (2007) lembra que, em casos de ASI, as mães estão envolvidas de algum modo, seja por passar juntamente com as vítimas pela situação de abuso ou por exporem seus filhos a companheiros molestadores. Vários autores (Flores & Caminha, 1994; Narvaz, 2003; Santos, 2007, entre outros) têm apontado que muitas mães foram vítimas de abuso na infância e que, enquanto algumas conseguem ser protetivas, para outras a experiência de abuso infantil parece ter interferido na capacidade de evitar situações potencialmente perigosas a si mesmas e aos filhos (Kreklewets & Piotrowski, 1998). Por essa perspectiva, mães com histórico de abuso infantil apresentariam maior risco de envolvimento com companheiros abusivos (Flores & Caminha, 1994). O presente estudo não investigou experiências de abuso infantil entre as mães avaliadas. No entanto, conforme salienta Furniss (1993), todos os membros devem ser trabalhados, a fim de alterar a dinâmica familiar abusiva. Sem um trabalho amplo com a família, sem que cada um reconheça seu papel na situação de abuso, este tende a perpetuar-se, mesmo com outros personagens. Assim, não se pode inclusive afastar a possibilidade de novas vitimizações nas famílias pesquisadas, em especial direcionadas aos irmãos, menos visados que a vítima, como discutido anteriormente.

Esses achados também contribuem para desmitificar a ideia de que a monoparentalidade é um fator de risco a priori. Yunes, Garcia e Albuquerque (2003) investigaram fatores de proteção e resiliência em famílias monoparentais e afirmam que, mesmo a monoparentalidade representando uma sobrecarga à figura feminina, em especial em famílias de baixa renda, em situações de violência do companheiro, a monoparentalidade pode se constituir em um importante fator de proteção e revelar aspectos positivos da família, como a coragem em romper com velhos padrões estabelecidos. Cabe ressaltar, nesses casos, a importância da existência de uma rede de apoio social efetiva, pela mobilização da família extensa ou de outras pessoas e instituições, que possam prestar auxílio a essas mães (Yunes et al., 2003).

SV crianças/adolescentes de famílias com histórico de ASI X desfecho do processo

A Tabela 5 sumariza os resultados obtidos.

Como se pode observar na Tabela 5, as crianças/adolescentes das famílias em que a sentença foi absolutória apresentaram maiores médias de SV em todos os domínios, sendo que a diferença de maior magnitude foi justamente no fator Não violência. Esse resultado foi oposto ao obtido para os responsáveis adultos e, à primeira vista, parece surpreendente, uma vez que seria de esperar que, quando houve condenação, a criança/adolescente estivesse mais satisfeita. Duas explicações plausíveis são as seguintes: em tese, nos casos em que a sentença foi absolutória, presume-se que não houve abuso. Essas famílias enfrentaram um processo criminal e todas as suas vicissitudes, mas seria esperado que crianças/adolescentes estivessem mais satisfeitos em famílias em que a sentença foi absolutória por não terem sido abusados. Por outro lado, levando em consideração a verdade subjetiva das famílias e não a verdade jurídica do veredicto e admitindo que a justiça nem sempre consiga apurar os fatos e que muitos acusados resultem absolvidos por insuficiência probatória, esse resultado poderia refletir a questão da culpa e da ambivalência que, provavelmente, essas crianças sintam (Borba, 2002). Pietro e Yunes (2008) salientam que a culpa possui dois aspectos: o legal e o psicológico. O primeiro refere-se à responsabilidade do acusado e ao fato de sua conduta não corresponder ao papel parental. O segundo refere-se ao fato de que a vítima, por participar da situação abusiva, equivocadamente sinta que tem responsabilidade pelo que aconteceu (Furniss, 1993), o que remete à culpa psicológica. Além de sentimentos de culpa, pode-se pensar que operam conflitos internos, mais ou menos velados, pois vítimas e irmãos nutrem diferentes sentimentos para com o abusador. Diferentemente dos adultos, que muitas vezes carregam o desejo de punição, as vítimas nem sempre desejam a condenação e a prisão do agressor. Algumas vezes, desejam apenas que os abusos cessem e que a família reconheça seu sofrimento (Arabolaza & Piedra, 2001).

Outro achado interessante que pode ser observado da Tabela 5 é que nas famílias em que houve condenação, as vítimas apresentaram menor satisfação do que seus irmãos nos fatores Self e Self comparado e maior satisfação em Não-violência e Família. Novamente, esses achados sugerem que o abuso tem mais implicações sobre a SV das vítimas nos domínios relacionados à autoimagem. Crianças vítimas muitas vezes apresentam um senso de desvalor (Pietro & Yunes, 2008) e podem tornar-se pessoas com baixa autoestima e comportamentos de vitimização na idade adulta (Furniss, 1993). Além disso, as maiores médias apresentadas pelas vítimas nas dimensões Não-violência e Família podem se relacionar ao cuidado que passaram a receber após a descoberta do abuso, já que o suporte familiar é um importante fator de proteção (Habigzang et al., 2005). Vários estudos (Cohen & Mannarino, 2000; Forward & Buck, 1989) apontam a importância do apoio familiar para a redução de sintomas das vítimas. Por outro lado, a menor satisfação dos irmãos nos fatores Família e Não-violência coaduna-se com o fato de que, além de excluídos das medidas terapêuticas, os irmãos provavelmente são menos amparados pela família, que, quando protetiva, tende a cuidar mais da vítima. Isso não deixa de ser uma negligência e omissão da família para com eles; daí, esse fator ser justamente aquele em que os irmãos estão menos satisfeitos (e cuja magnitude da diferença é a maior de todos os fatores quando se comparam vítimas e irmãos de famílias com sentenças condenatórias).

AF+ e AF- em crianças/adolescentes de famílias com histórico de ASI:

Com relação ao componente afetivo do BES infantil, Giacomoni (2002) e Giacomoni e Hutz (2006) avaliaram um grupo de crianças de zero a 12 anos e encontraram escores de AF+ em torno de 66,3 (DP=9,69) e AF- em torno de 31 (DP=10,9). No presente estudo, o escore de AF+ praticamente não diferiu do encontrado pelos autores (M=63,6; DP=11,53). Assim, pode-se supor que a experiência de abuso na família não tenha repercutido sobre os sentimentos positivos dos participantes desta pesquisa. Já no caso do AF- , os valores encontrados pelos autores citados diferiram consideravelmente dos encontrados neste estudo. O escore de AF- apresentado pelas vítimas e seus irmãos foi de 41,5 (DP=10,66; d Cohen=0,96), quase um desvio padrão acima do valor encontrado na amostra não-clínica. Esse dado indicou que as crianças e adolescentes pesquisados, provenientes de famílias com histórico de ASI, apresentaram mais sentimentos negativos. Isso pode apontar que esse evento de vida (abuso sexual na família) repercutiu no BES de tais crianças e adolescentes, exacerbando aspectos negativos. Também pode relacionar-se a sentimentos velados e negados dentro da família.

Na comparação dos níveis de AF+ e AF- de vítimas e irmãos, observou-se que as vítimas apresentaram AF+ superior (M=3,9; DP=0,67 e M=3,4; DP=0,57, respectivamente). A estimativa de tamanho de efeito em porcentagem de desvio padrão aponta uma diferença considerável, de quase um desvio padrão (d Cohen=0,98) entre vítimas e irmãos. Isso indica que, paradoxalmente, as vítimas apresentaram níveis mais altos de sentimentos positivos do que seus irmãos nesta pesquisa. Além disso, as vítimas apresentaram médias inferiores de AF- com relação aos irmãos (M=2,3, DP=0,69 e M=2,5, DP=0,54) embora a estimativa do tamanho do efeito seja bem menor. Chama a atenção o fato de as irmãs não-vítimas terem sido as crianças que apresentaram menos sentimentos positivos e mais sentimentos negativos neste estudo. Esse dado é preocupante e pode apontar, inclusive, uma segunda vitimização. Esses resultados reforçam o já explicitado anteriormente em relação à negligência da rede de proteção/atendimento para com os irmãos das vítimas e às dificuldades em estabelecer vínculos de confiança com outros cuidadores, como o novo companheiro da mãe. Também podem apontar sentimentos agressivos não elaborados, dirigidos à vítima ou a outros familiares, em função da condenação do agressor ou de seu afastamento de casa e da pouca atenção da família, que, possivelmente, passou a dar mais suporte afetivo à vítima.

Ao comparar o tipo de família, os resultados seguem o padrão da SV: mais afetos positivos e menos afetos negativos nas crianças/adolescentes das famílias monoparentais, com magnitude de efeito considerável (AF+: d=2,35 e AF- : d=1,6), indicando maiores níveis de BES infanto-juvenil nessas famílias. Cabe salientar que nas famílias monoparentais todas as crianças avaliadas eram vítimas e, mesmo assim, os níveis de BES foram mais altos do que os obtidos nas reconstituídas (Tabela 6).

 

 

Ao analisar os afetos das crianças e adolescentes em função do desfecho do processo, a média de AF+ apresentada quando a sentença foi absolutória (M= 4,2; DP=0,77) é maior do que quando foi condenatória (M=3,3; DP=0,51), com d=1,17. A média de AF- também foi menor quando a sentença foi absolutória (M=1,9, DP=0,69; sentença condenatória: M=2,7, DP=0,5, d=1,16). Essas diferenças são consideráveis e possivelmente refletem as mesmas questões já discutidas em relação à SV. Se a decisão da Justiça for tomada como parâmetro e se considerar a verdade jurídica, quando o acusado foi absolvido o abuso efetivamente não ocorreu e é esperado que os maiores níveis de BES (níveis altos de SV e AF+ e níveis baixos de AF-) sejam encontrados em crianças/adolescentes de famílias em que o acusado foi absolvido. No entanto, considerando o relato das famílias, em nove dos dez casos o abuso ocorreu. Como nesta pequena amostra todos os acusados foram afastados e não tinham mais contato com a vítima, independentemente de terem sido absolvidos ou condenados, uma hipótese para esses resultados é que, quando houve absolvição, as vítimas não eram mais submetidas ao abuso (a situação abusiva cessou) sem que de indicar que abusadores não devam ser responsabilizados. O que podem indicar é que vítimas e seus irmãos tiveram dificuldades de elaborar esse processo, em especial quando houve condenação, necessitando de maior atenção das redes de atendimento e talvez de um espaço para discutir essas questões em família. Além disso, os dados apontam que é necessário repensar o modelo de responsabilização vigente, focado apenas na culpabilização de agressores e em seu encarceramento temporário. São necessárias ações dirigidas a todos os membros da família, inclusive ao abusador (Furniss, 1993).

 

Considerações Finais

Este estudo avaliou o BES em vítimas, irmãos e responsáveis adultos em famílias com histórico de ASI cujo processo judicial foi encerrado na Justiça de Primeiro Grau. Entre os adultos, as mães apresentaram os mais baixos níveis de BES. Isso pode relacionar-se a sentimentos de ambivalência com relação ao agressor e à vítima e à história de vida dessas mães. Nesse sentido, uma das limitações do estudo foi não ter investigado experiências de abuso sexual na infância delas, pois os conhecimentos de que se dispõe sobre o tema apontam para a transgeracionalidade do abuso sexual.

As diferenças no BES dos adultos e das crianças/adolescentes apontaram para a percepção diferenciada que mães/pais/padrastos e vítimas/irmãos apresentam e também para as repercussões diferenciadas de aspectos, como a entrada de um novo membro na família (padrasto) e desfecho do processo judicial sobre o BES. Os baixos níveis de SV encontrados entre irmãos de vítimas indicaram que os programas de proteção e acompanhamento estiveram demasiadamente focados na vítima, por mais que haja consenso na literatura no sentido de que o ASI é um fenômeno que atinge toda a família. Também indicam que as famílias precisam estar mais atentas às demais crianças/adolescentes, e não apenas às vítimas. Longe de considerar que os achados deste estudo apontam para a necessidade de não punir os agressores, parece ser importante que haja maior atenção às famílias como um todo, mesmo posteriormente ao término do processo judicial. É importante criar serviços e estratégias que permitam trabalhar na vítima e em seus irmãos os sentimentos latentes que a condenação do acusado desperta. Furniss (1993) sugere intervenções que incluam o abusador e que permitam à família como um todo nomear e compreender a função do abuso sexual em sua estrutura. A família abusiva, que tem como característica a disfuncionalidade, somente poderá se alterar mudando seus padrões de interação. Para tal, é necessário repensar o trabalho das redes de proteção/atendimento, com vistas a possibilitar um tratamento mais integral à família com histórico de ASI, que inclua o agressor, os irmãos da vítima e os novos membros, quando for o caso.

 

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Recebido em: 22/11/2011
Aceito em: 14/05/2012

 

 

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