SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número2Grupo de crescimento psicológico na formação sacerdotal: pertinência e possibilidadesViolência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes: uma revisão bibliométrica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.2 Belo Horizonte jul. 2013

 

ARTIGOS

 

A violência contra a mulher em Montes Claros: análise estatística

 

The violence against women in Montes Claros: statistical analysis

 

 

Roberta Carvalho RomagnoliI,1; Leila Lúcia Gusmão de AbreuI; Marise Fagundes SilveiraIII

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
IIFaculdade de Saúde Ibituruna, Montes Claros, Brasil
IIIUniversidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, Brasil

 

 


RESUMO

Esse artigo trata dos dados quantitativos da pesquisa "Violência Doméstica perpetrada contra a mulher no município de Montes Claros/MG: um recorte possível". Os dados foram coletados no 10º Batalhão da Polícia Militar de Montes Claros, através da análise de 1315 boletins de ocorrência no período de agosto de 2007 a agosto de 2009. Os resultados apontam para a maior prevalência do fenômeno nos bairros de periferia e seu turno de maior ocorrência é o noturno. As vítimas e o agressor em sua maioria possuem entre 26 e 35 anos e mais da metade das mulheres já sofreu agressões anteriores. Os tipos de violência mais encontrados são a agressão física e o abuso moral. Os principais motivos atribuídos são discussão doméstica e ingestão de álcool. Concluímos que o fenômeno é um grave problema neste município.

Palavras Chaves: Violência contra a mulher; Violência doméstica; Mulheres maltratadas.


ABSTRACT

This article discusses quantitative data from the research -"Domestic violence against women in the municipality of Montes Claros /MG: a possible outline". The data was collected from the 10th Battalion of the Military Police of Montes Claros through the analysis of 1315 police reports, from August 2007 until August 2009. The results show a higher incidence in the outskirts of the city and a higher occurrence during the night. Mainly the victims and the aggressor are between 26 and 35 years of age and half of the women had already suffered previous aggressions. The types of violence often found are physical aggression and psychological abuse. The main reasons are domestic arguments and alcohol ingestion. We conclude that violence against women is a serious problem is this municipality.

Keywords: Violence against women; Domestic violence; Battered women.


 

 

Esse texto tem como objetivo apresentar a análise quantitativa da pesquisa "Violência Doméstica perpetrada contra a mulher no município de Montes Claros/MG: um recorte possível"2. O estudo investigou quantitativamente e qualitativamente, os atos violentos contra as mulheres, no que concerne à violência doméstica em Montes Claros, cidade polo da região norte do estado de Minas Gerais. Em sua vertente quantitativa, aqui examinada, o presente estudo busca a tipificação dos atos violentos e a avaliação desses índices, bem como seus atravessamentos econômicos e sociais. Para tal, efetuamos a análise estatística de 1315 boletins de ocorrência no período de agosto de 2007 a agosto de 2009. Foram consultados 2700 documentos para encontrarmos os boletins de ocorrência específicos de violência doméstica. Esses resultados também foram utilizados para a identificação das regiões de maior prevalência do fenômeno junto ao 10º Batalhão da Polícia Militar de Montes Claros, na tentativa de cooperar com as políticas públicas que atendam à população envolvida e com a promoção de atitudes preventivas no que se refere a esse tipo de violência. Esses dados quantitativos serão usados também, em um segundo momento, para a complementação da análise qualitativa da pesquisa, que busca investigar o sentido deste fenômeno para as mulheres envolvidas e seus reflexos na organização familiar, através de observação participante e entrevistas semi-estruturadas efetuadas com usuárias das delegacias do referido município. Na análise qualitativa, buscamos rastrear tanto a reprodução e a cristalização da violência doméstica na dinâmica familiar quanto às tentativas de reorganização que conduzem à invenção, à resistência quanto a esse padrão, na ótica da Esquizoanálise de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Definir violência não é tarefa simples. De acordo com Arblaster (1996), esse conceito é bastante amplo e polêmico. Pontos como intencionalidade, legitimidade e circunscrição da violência à agressão física são muito debatidos, não havendo consenso entre os teóricos. Além disso, cada sociedade ou cultura nomeia diferentemente os atos ou as atitudes violentas. Diante dessa complexidade, a Organização Mundial da Saúde (OMS) (2002) define violência como:

[...] uso da força física ou do poder real ou ameaça contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte ou dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

Nesse panorama, a violência contra a mulher é uma modalidade de violência específica que ocorre nas relações afetivas envolvendo dimensões de poder. Esse fenômeno pode ser compreendido como: "Qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto privada" (Organização dos Estados Americanos [OEA], 1994). Ao estudar a notificação da violência doméstica pelos profissionais de saúde, Saliba, Garbin, Garbin e Dossi (2007) especificam um pouco mais o fenômeno, o indicando como:

[...] toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Pode ser cometida dentro e fora do lar por qualquer um que esteja em relação de poder com a pessoa agredida, incluindo aqueles que exercem a função de pai ou mãe, mesmo sem laços de sangue (p. 473).

Independente de apresentar ou não laços sanguíneos e do local na qual ocorra, a violência doméstica possui estatísticas alarmantes, sendo usual esta ser cometida contra a mulher, efetuada por seu marido ou parceiro, desvelando dimensões de desigualdades e constituindo sério problema de saúde pública. Segundo Dubose Junior (2007), há certas condições para que um problema de saúde seja considerado um problema de saúde pública. Essas condições são: elevado ônus para o sistema de saúde, calculado em termos de mortalidade /morbidade, qualidade de vida e custo; distribuição do problema de forma injusta, afetando principalmente as minorias e os indivíduos desfavorecidos; evidências de que estratégias de prevenção reduziriam seu índice e constatação de que estratégias preventivas desenvolvidas até então ainda não foram suficientes.

A violência contra a mulher atende a essas condições e afeta o cotidiano de diversas mulheres em nosso país. Os dados estatísticos nacionais acerca desse fenômeno revelam altos índices de notificação. O Ministério da Saúde revela que o aumento das mortes e lesões causadas por essa modalidade de violência mudou o perfil da mortalidade e da morbidade nas últimas décadas no Brasil e no mundo (Brasil, 2005).

Conforme indicam Gomes, Minayo e Silva (2005) em pesquisa efetuada em 2004, para cada cinco mulheres, pelo menos uma mulher já sofreu algum tipo de violência sexual, sendo que a violência familiar aparece entre mulheres dos 15 aos 45 anos de idade. Souza e Adesse (2005) declaram que o Ministério da Saúde reconhece que menos de 10% dos casos de violência sexual é notificado, o que indica que esse número é ainda superior. A constatação de que a maior parte das mulheres não procura ajuda nos serviços de saúde e nas delegacias também foi feita por Fonseca, Galduróz, Tondowsky e Noto (2009) em estudo acerca da associação entre violência doméstica e álcool.

Certo é que nem todas as mulheres que sofrem violência procuram a polícia. Observamos essa mesma postura em nosso estudo. Ao longo da pesquisa, mulheres nos procuraram para relatar sua experiência de violência doméstica, embora não tenham realizado nenhuma denúncia, por constrangimento e sem querer se expor socialmente, conforme relataram. Zalesky, Pinsky Laranjeira, Ramisetty-Mikler e Caetano (2010) destacam que a subnotificação por parte das mulheres se deve ao medo de represália dos parceiros. Para os autores, "[...] O fato de que as mulheres permanecem muitas vezes em uma relação conjugal por medo de represálias acaba por colocar em segundo plano fatores como dificuldades econômicas e sociais, dependência emocional, estigmatização e impunidade (p. 56)".

Independente da razão, sem dúvida, os números que aparecem nas notificações da violência contra a mulher não correspondem à realidade. Nesse contexto, para a análise quantitativa aqui apresentada, trabalhamos somente com os casos denunciados nos boletins de ocorrência, sabendo que o número de mulheres agredidas em Montes Claros certamente é bem maior do que o que se apresenta nessa pesquisa. A partir desses documentos, analisamos os dados coletados no 10º Batalhão da Polícia Militar, identificando as regiões mais frequentes, algumas características das mulheres e dos agressores, os tipos de violência mais comuns e os motivos a ela atribuídos.

 

Metodologia

Dada a complexidade da violência contra a mulher, nosso objeto de estudo, optamos por mesclar procedimentos metodológicos distintos nessa pesquisa. A combinação desses procedimentos no estudo de um mesmo fenômeno tem por objetivo abranger a máxima amplitude na descrição, explicação a e compreensão do objeto de estudo, como salienta Gunther (2006) ao analisar a articulação entre a pesquisa quantitativa e a pesquisa qualitativa.

Focando na vertente quantitativa dessa pesquisa, é preciso evidenciar que nossa população alvo foi composta pelas mulheres que solicitaram a intervenção da polícia na resolução de conflitos domésticos e preencheram os boletins de ocorrência pesquisados e arquivados no 10º Batalhão da Polícia Militar de Montes Claros. A amostragem foi aleatória simples. Esse tipo de amostragem faz parte das amostras probabilísticas. Segundo Gil (1991), "a amostragem aleatória simples consiste em atribuir a cada elemento da população um número único para depois selecionar alguns elementos de forma casual" (p. 93). De fato, efetuamos uma variação dessa amostragem, na qual não usamos a numeração dos documentos, embora tenhamos mantido a casualidade. Selecionamos de cada pacote de boletins de ocorrência das 04 regiões da polícia militar em Montes Claros, de forma aleatória, 15 boletins por cada mês pesquisado, iniciando-se em agosto de 2007 e terminando em agosto de 2009. É preciso salientar que em algumas regiões não foi possível alcançar o número previsto estatisticamente para cada mês. Isso ocorreu porque o fenômeno da violência contra a mulher não foi documentado nessas regiões no período. Essa impossibilidade aconteceu principalmente na região central de Montes Claros. Uma análise mais precisa desse dado será feita mais adiante.

Os dados foram coletados a partir de formulário próprio elaborado pela equipe de pesquisa e tratados estatisticamente através do pacote estatístico para Ciências Sociais (Statistical Package for the Social Sciences [SPSS]). Esse formulário foi elaborado para coletar informações acerca das características da vítima e do agressor, tais como: idade, escolaridade, estado civil, trabalho. No caso da vítima foi pesquisado também se esta sofreu agressões anteriores e se sofre agressões do mesmo agressor. No caso do agressor, verificamos o envolvimento deste em outras ocorrências e o uso de substâncias associado à violência. Foram investigadas ainda as características da agressão: local e turno em que ocorreu a violência, tipo de violência e causa presumida, ou seja, os motivos atribuídos aos atos violentos.

É necessário pontuar que tivemos certa dificuldade na coleta de dados dos boletins de ocorrência. Estes documentos, com frequência, foram preenchidos de maneira incompleta e com grafias de difícil leitura e compreensão. As informações preenchidas em menor quantidade e que continham mais lacunas eram referentes à escolaridade, à identificação do agressor e à idade tanto da vítima quanto do agressor. Percebemos ainda grande confusão no preenchimento do estado civil da vítima: nos boletins de ocorrência há categorias de difícil elucidação, tais como amigada e união estável, cuja distinção é complicada para os policiais.

 

Resultados e discussão

Os resultados evidenciaram que as regiões de maior prevalência da violência contra a mulher localizam-se nos bairros da periferia de Montes Claros (Figura 1). E em sua maioria, são bairros pobres, o que pode nos conduzir à explicação equivocada de que este fenômeno, nessa cidade, ocorre predominantemente no estrato social das camadas baixas. De acordo com Boudon & Bourricaud (1993), o estrato social das camadas baixas constitui-se como um estrato de baixo poder aquisitivo, possuindo moradia precária, baixa instrução e baixo nível de qualificação. Efetuar essa leitura simplista denota ainda o que Escorel (1999) assinala como um dos efeitos da permanência ao longo da história brasileira da interdependência entre desigualdade e carência: a estigmatização da pobreza.

Ao estudar a violência contra a mulher, Silva (2010) coloca o preconceito em sua base. Essa atitude sustenta a discriminação contra a mulher, que vem sendo vítima de violência ao longo da história da humanidade. O referido autor aponta que esse processo não é somente de desqualificação da mulher, mas também um processo de exclusão social. O preconceito se dissemina na sociedade de massa através de estereótipos em que "[...] as categorias sociais subalternas no Brasil são essencialmente constituídas por mulheres, negros, pobres e crianças, nas quais, hierarquicamente, a mulher negra e pobre está em último lugar, e o homem branco rico e adulto está no topo" (Silva, 2010, p. 565). Dessa maneira, é preciso estar atento à associação da complexidade que atravessa a violência doméstica com a pobreza. Certamente os dados coletados nos boletins de ocorrência não significam que as camadas baixas sejam mais violentas, apenas que a violência doméstica é mais difundida nesse estrato social, uma vez que as camadas médias e altas da nossa sociedade possuem outros recursos para lidar com esse fenômeno, sobretudo em função de seu poder aquisitivo e de sua inclusão social. Nesse sentido, Maia (2012) assinala que "[...] as mulheres pobres se sentem menos constrangidas ou não dispõem de outro meio quando são obrigadas a buscar ajuda e solução para o problema vivido" (p. 23).

Fundamentados no mapa acima, percebemos que a região de menor prevalência da violência contra a mulher é a região central de Montes Claros. Inclusive, no exame dos boletins de ocorrência, com foi dito anteriormente, não havia tampouco o número suficiente de denúncias para serem computadas estatisticamente. O centro de Montes Claros, como a maior parte dos centros das cidades do interior, é composto basicamente por estabelecimentos comerciais, e não por residências, local no qual ocorre grande parte da violência contra a mulher, por isso o baixo índice de ocorrências (Tabela 3).

No que diz respeito ao perfil das mulheres agredidas, a idade das mulheres que deram queixa nos boletins de ocorrência examinados, se localiza entre 26 e 35 anos em sua maioria (34,8 %); o segundo maior índice refere-se à idade 18 a 25 anos (25,4 %). As mulheres entre 36 a 45 anos correspondem a 20,3% (Tabela 1). Quanto à escolaridade das vítimas, a maioria é alfabetizada (35,7%) e o grau de instrução mais frequente é o ensino fundamental (27,6) (Tabela 1). Quanto ao estado civil, por sua vez, a maioria das mulheres vítimas de violência é casada ou possui união estável (36,3%). Em seguida, estão as mulheres divorciadas (33,1%). Na categoria trabalho, a maior parte das mulheres é do lar, o que indica que estas dependem economicamente dos homens (Tabela 1).

Esses dados nos permitem dialogar com as teorias de gênero que concebem as categorias homem e mulher como construções sociais e históricas, cujas relações são atravessadas por estratégias de poder, dominação e submissão. Pensar a partir da perspectiva de gênero significa compreender as formações de poder na sociedade, como nos atesta Scott (1990), revelando essas construções na subordinação feminina, em contraposição às explicações de natureza biológica. Assim, quando nos referimos ao gênero, entendemos os aspectos psicológicos, sociais e culturais da feminilidade e masculinidade, ao conjunto de expectativas em relação aos comportamentos sociais das pessoas de determinado sexo.

Os índices estatísticos de nosso estudo demonstram que a violência contra as mulheres se dá tanto nas uniões estáveis quanto em seu rompimento. Mas o que mantém essa permanência, mesmo com atos violentos? Ao estudar a violência conjugal no norte de Minas, Maia (2012) o faz a partir da perspectiva de gênero e aponta para relações de poder desiguais entre as posições construídas hierarquicamente e historicamente de homem e de mulher. Nesse contexto, analisa as explicações dadas pelas mulheres para permanecer em relações violentas. São elas:

[...] o histórico de violência familiar; a assimilação/introspecção da ideia de 'culpa'; a vergonha moral; a ideologia do casamento indissolúvel, as relações afetivas; valores religiosos como resignação, compaixão e perdão; a ameaça e o terrorismo psicológico que produzem o medo e a acomodação; a certeza da impunidade dos agressores. Além disso, o ideal de família perfeita e o ideal de amar e ser amada são elementos importantes para muitas mulheres, sobretudo aquelas constituídas dentro de um modo de vida burguês. (Maia, 2012, p. 45).

Nesse sentido, a permanência em um casamento ou em uma união estável, seja qual for a justificativa para tal, desvela uma estrutura social que prescreve uma série de funções para o homem e para a mulher, como próprias ou "naturais" de seus respectivos gêneros, construindo socialmente as relações entre eles. As diferenças de gêneros compõem lugares enrijecidos e cristalizados em uma relação, que muitas das vezes sustentam a dominância da forma masculina e desqualificando a diferença feminina, fundamentada em uma pretensa superioridade. Assim, a mulher se curva, resignada, à dominação masculina, como se essa atitude fosse a esperada. É necessário ressaltar que mais da metade das mulheres que deram queixa nos boletins de ocorrência já sofreu agressões anteriores (53,9%). Das mulheres agredidas, 46,1% o foram pela primeira vez. Das mulheres que já foram agredidas anteriormente, 27,8% foram agredidas outra vez pelo mesmo agressor e 26,1% foram agredidas várias vezes pelo mesmo agressor. Podemos notar que o total de mulheres que foi agredida mais de uma vez (27,8%) somado ao conjunto de mulheres que foram agredidas várias vezes (26,1 %) é superior às mulheres que não sofreram agressões anteriores (46,1%) (Tabela 1).

Esses dados apontam para uma acomodação das mulheres nas relações em que há violência, sendo que esta geralmente sustentada pelo imaginário social acerca das relações estáveis e a indissociabilidade do casamento, como apontado por Maia (2012). Nesse imaginário, as alianças monogâmicas se pautam na idealização do amor eterno, da família feliz, em que o casamento é o desfecho final aguardado por toda e qualquer mulher como realização pessoal como pontua Araújo (2002). Muitas mulheres suportam as agressões por ser o casamento um dispositivo de prestígio e status social. A separação pode significar um fracasso no projeto de vida dessas mulheres. Todavia, a questão é quando a mulher precisa suportar a violência para manter esses vínculos ou ainda lidar com a agressão como se esta fosse inerente a uma relação conjugal.

A naturalização da violência traz consequências nefastas para o cotidiano desses casais e também dessas famílias. A OMS (2002) pontua que essa naturalização da violência contra a mulher não raro é sustentada pelas próprias mulheres que a vivenciam, que podem se tornar cúmplices ao concordarem com o uso da força física, demonstrando posturas de submissão e legitimação do direito irrestrito do homem sobre elas. Essa atitude é arriscada. A naturalização da violência garante a invisibilidade do fenômeno, mantém a impunidade dos agressores e camuflam complexas relações de poder nas quais geralmente a denúncia é incomum. Nesse sentido, podemos afirmar que:

a violência e a agressão contra mulheres, negros e homossexuais, até bem pouco tempo, eram práticas consideradas tão comuns que passavam despercebidas como formas de violência em nossa sociedade, onde os grupos oprimidos escondiam o seu sofrimento sem poder sequer denunciá-lo ou compreendê-lo. (Silva, 2011, p. 562).

Esses atos violentos contra a mulher, deflagradores de dor e de padecimento, são usualmente cometidos pelos parceiros. No que se refere ao perfil do agressor em nosso estudo, a maior parte dos homens agressores tem entre 26 a 35 anos (37,3%); entre 36 a 45 anos (21,7%) e 18 a 25 anos (21,6%) (Tabela 2). Percebemos aqui quase os mesmos índices das mulheres, com a diferença que, a segunda maior taxa de mulheres que são vítimas de violência está entre de 18 a 25 anos (25,4 %). Acreditamos que essa diferença se dá porque geralmente nos casais, em nossa sociedade, os homens são mais velhos que as mulheres. Quanto à escolaridade 40,7% dos agressores é alfabetizado e 27,6% possui ensino fundamental (Tabela 2).

Quanto ao estado civil, à maioria dos homens é casada ou possui união estável (64,3%); 28,7% são solteiros e 6,5%, divorciados (Tabela 2). Vale lembrar que há uma diferença de concepção de casamento entre homens e mulheres, a qual favorece a acomodação do homem nesse tipo de vínculo. Ao estudar o casamento e separação na atualidade, Féres-Carneiro (2001) afirma que para os homens o casamento está associado à constituição de uma família. Por outro lado, para as mulheres, essa união está ligada à relação amorosa. Esse descompasso pode conduzir à manutenção da violência contra a mulher, uma vez que os homens não sentem que precisam ter cuidado com o casamento, já que priorizam a família. Assim, em geral, não acreditam que devem investir na relação com sua companheira que, por sua vez, se acomoda em um cotidiano de agressões.

Dentre os agressores, 45,7% possuem ocupação formal e 31,9% possui ocupação informal (Tabela 2). Esses números se relacionam com a dependência econômica das companheiras, pois, como vimos, a maioria delas é do lar e não tem rendimento próprio (Tabela 1). Os dados apresentam ainda que 17,6% dos parceiros agressores são desempregados, o que nos faz pensar que nos casos em que não há dependência econômica, há uma dependência afetiva (Deeke¸ Boing, Oliveira & Coelho, 2009). Ao discutir o padrão de relação nesses casos, Romagnoli (2012) destaca a dificuldade dos casais ligados pela violência em experimentar outra forma de relação que não seja mediada pela violência. Estes casais geralmente sustentam interações repetitivas e estereotipadas, comprometendo a relação entre eles e com seus filhos e familiares. Essas interações são tecidas subjetivamente em meio a rotinas, conflitos, questões sociais e financeiras, histórias transgeracionais e padrões de interações do casal, perpetuando um jogo sustentado tanto pelo homem como pela mulher.

Quanto ao envolvimento em outros episódios de agressão contra as mulheres, 74,2% dos homens dizem não ter participado, contra 25,8% que declara ter vivenciado outros episódios de violência (Tabela 2). É preciso assinalar que esse dado contradiz os dados informados pelas mulheres, já que mais da metade diz ter sido agredida anteriormente (Tabela 1). Essa contradição pode ser explicada pelo fato de que provavelmente essas mulheres tenham sofrido sim agressões antes de preencher o boletim de ocorrência, contudo, não a denunciaram. Por outro lado, é possível que alguns homens acreditem que não agridam. Ao estudar os motivos da agressão conjugal contra a mulher na perspectiva dos homens que efetuam a agressão, Rosa, Boing, Buchele, Oliveira e Coelho (2008) salientam que estes não demonstram compreensão ativa de que são agressores, ou seja, não reconhecem os atos de violência que relatam e nem se sentem arrependidos. Esses homens percebem o comportamento violento como insignificante e justificam suas atitudes como resposta ao comportamento da companheira. Assim, torna-se natural o uso da força física para os homens envolvidos em episódios violentos. Em pesquisa qualitativa feita em 2006 com 30 casais, na Delegacia de Proteção à Mulher, à Criança e ao Adolescente de Florianópolis, Deeke, et al. (2009) propuseram escutar o casal e não somente a mulher agredida, para examinar o discurso tanto da vítima quanto do agressor, ressaltando que muitas das vezes os homens não têm oportunidade de verbalizar sobre o episódio de violência. Esses autores também notaram grande incongruência entre os discursos dos homens e das mulheres, sendo que a maioria dos homens tende a amenizar as agressões e não raro não designar como tal o que fizeram, além de minorar sua periodicidade.

Nos dados obtidos nos boletins de ocorrência pesquisados, o uso do álcool aparece como presença constante na violência contra a mulher (73,6%), seguido pelo uso de substâncias psicoativas (18,1%) e outros (8,3%) (Tabela 2). Cabe ressaltar que esse item é geralmente preenchido pelo policial no momento da denúncia, não só pela colocação da vítima, mas também por observação do estado do agressor, quando possível. Esse alto índice de uso de álcool nos episódios de violência corrobora com a pesquisa de Fonseca et al. (2009). Ao examinar as situações de violência doméstica ocorridas com o agressor alcoolizado, os autores efetuaram um levantamento domiciliar que incluiu 108 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes, em 2005, e pesquisaram 7.939 domicílios. Em 33,5% foi relatado histórico de violência domiciliar, sendo 17,1% com agressores alcoolizados. Em mais da metade dos casos de violência doméstica, o agressor estava sob o efeito do álcool. Por outro lado, para estudar a prevalência de violência por parceiros íntimos e o consumo de álcool durante os eventos dessa violência, Zalesky et al. (2010) entrevistaram 1.445 homens e mulheres casados ou vivendo em união estável, de novembro de 2005 a abril de 2006. Os autores constataram que os homens consumiram álcool em 38,1% dos casos. Em pesquisa realizada também em Montes Claros na qual foram analisados 1.064 boletins de ocorrência registrados na Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Mulher, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1998 a 2002, Durães e Moura (2004) reconhecem que em 33,9% dos casos, a ingestão de bebidas alcoólicas favorece que o agressor haja de forma violenta. Maia (2012), por sua vez, ao analisar os processos-crime de lesão corporal e tentativa de homicídio, ocorridos em Janaúba e Montes Claros entre 1970 e 2007, focando a violência conjugal contra a mulher, destaca que muitos dos casos examinados encontram-se associados ao consumo de álcool, o que parece facilitar a exteriorização da agressão masculina.

Com certeza, o uso de álcool é um forte atravessamento nos episódios de violência doméstica e estes tendem a ser mais graves mediante essa combinação, embora o álcool por si só não seja responsável pelos atos violentos. A crença de que o álcool é o causador da violência parece diminuir a responsabilidade do agressor e aumentar a tolerância da vitima, cooperando com o surgimento de novos episódios, como constatado por Fonseca et al. (2009). Isso porque muitas mulheres desculpam a violência que sofreram baseadas no fato de seu parceiro estar bêbado. E, nesses casos, o homem também justifica o que fez pelo uso da bebida.

A compreensão de que o consumo de álcool está associado à violência contra as mulheres certamente aponta para a necessidade de sua prevenção. Além da lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, Zalesky et al. (2010) afirmam que algumas medidas nos serviços de saúde e na esfera das políticas públicas podem ser adotadas. Essas medidas vão desde a necessidade de protocolos e instrumentos de rastreamento específicos até a própria indagação acerca do fácil acesso, do baixo custo das bebidas alcoólicas e da necessidade de campanhas para a redução do seu consumo.

No que se refere ao local em que se realiza a agressão, nos documentos examinados foi constatado que 87,8% das agressões ocorrem em casa, 3,6% na rua, 1,3 % em local de trabalho, 2,5% em local de lazer e 4,8% em outros lugares (Tabela 3). Embora o conceito de violência doméstica considere que o fenômeno pode correr dentro ou fora do lar, como nos lembra Saliba et al. (2007), a residência ainda é o local no qual ela prioritariamente acontece. Em pesquisa realizada também na cidade de Montes Claros, no período de janeiro e fevereiro de 1998 a 2002, Durães e Moura (2004) constataram que 68,2% das agressões ocorreram na residência. Comparando com os dados obtidos em nossa pesquisa observamos que houve um aumento considerável (19,6%) de agressões nesse local. Conforme os boletins de ocorrência, o turno em que ocorre o maior número de agressões é o noturno (46,1%), seguido do vespertino (27,6%) (Tabela 3).

Ao examinar os tipos de violência percebemos que a agressão física é majoritária correspondendo a 62,6% das denúncias. Os outros tipos de violência em percentual são: abuso moral (16,2%), utilização de armas perfuro-cortantes (12,5%), enforcamento (0,9%,), abuso sexual (0,9%,), utilização de substâncias químicas (0,5%), estupro (0,4%) e homicídio (0,2%) (Tabela 3).

Quanto aos motivos da agressão, em nossa pesquisa observamos que 27,3% se dão por discussão doméstica, 23,7% por ingestão de álcool, 12,5% por ciúme, 5,8% por ingestão de substâncias psicoativas, 1,4% por suspeita de traição, 0,7% por desobediência, 0,6% por interferência familiar com a família de origem e 0,2% por crise financeira (Tabela 3). A categoria "outros" teve um percentual de 27,8%. Vale lembrar que esse item é informado pela denunciante, a partir de sua percepção, daí a diferença com os dados analisados na Tabela 2 acerca da ingestão de álcool e ingestão de substâncias psicoativas. Dessa maneira, muitas das vezes a ingestão de álcool é minorada pela vítima, que pode desconsiderar o seu uso.

De qualquer forma, é preciso destacar que o uso de álcool e também o uso de substâncias psicoativas geralmente fazem parte dos episódios de agressão. Deeke et al. (2009) ao explorar os motivos da violência contra a mulher, os circunscreve em: ciúmes, o homem ser contrariado, ingestão de álcool e suspeita de traição. Para os autores, a violência nas relações expressa dinâmicas de afeto e poder e denunciam uma assimetria nas relações de gênero. Nesse contexto, o uso de álcool pelo homem é fator significativo de risco. Por outro lado, Rosa et al. (2008) pesquisaram as razões pelas quais os homens efetuam a agressão conjugal contra a mulher, e os resultados apontam

para: comportamentos e atitudes que permitem identificar as causas da agressão contra a companheira evidenciada a partir da interferência de pessoas estranhas à relação conjugal; presença de ações inadequadas da companheira; domínio da mulher sobre o companheiro; resposta à agressão física, verbal ou psicológica da companheira; dependência química e situação financeira. Essas razões geralmente se misturam no cotidiano sob a forma de conflitos que eclodem em atos violentos contra a mulher.

 

Considerações finais

Observamos em nossa pesquisa, ao examinar as características das mulheres e dos agressores, os tipos de violência mais comuns e os motivos atribuídos, que os números da violência contra a mulher em Montes Claros são altos. Sabemos que, infelizmente, embora tenhamos pesquisados os boletins de ocorrência no período de agosto de 2007 a agosto de 2009, eles não cobrem todos os fatos reais. A maior parte dos casos de violência contra as mulheres ainda se encontra oculta e não chega a ser denunciada, perpetuando laços de imposição e sujeição no cotidiano, difíceis de serem rompidos. Esses laços dão sentidos às agressões, através das representações instituídas de família, de gênero, de lugares sociais naturalizados de homem e mulher, de posições marcadas de algoz e vítima. Essas marcas sustentam círculos viciosos e nocivos para todos os envolvidos. Em meio a normas sociais, preconceitos e relações de poder, a violência circula e mantém unido vários casais.

Um dos desafios que se apresenta para os profissionais que atuam com o fenômeno é como interromper esse círculo vicioso e permanente de agressão e contribuir para a criação de outros tipos de conexões nessas relações. Por este viés, acreditamos ser necessário identificar e fortalecer as formas de enfrentamento da violência contra a mulher, refletindo também acerca dos mecanismos pelos quais a dominação se exerce e se mantém nessas relações, para produzir outras maneiras de relacionar, na tentativa de favorecer saídas construtivas para essas mulheres e esses homens, auxiliando na sustentação de intervenções que reduzam esse grave problema social e de saúde pública.

 

Referências

Araújo, M. de F. (2002). Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações. Psicologia: Ciência e Profissão, 22(2), 70-77.         [ Links ]

Arblaster, A. (1996). Violência. In W. Outhwaite & T. Bottomore (Orgs.), Dicionário do pensamento social no século XX (pp. 803-804). São Paulo: Jorge Zahar.         [ Links ]

Boudon, R. & Bourricaud, F. (1993). Estratificação social. In F. Boudon & F. Bourricaud, Dicionário Crítico de Sociologia (p. 214). São Paulo: Ática.         [ Links ]

Brasil (2005). O impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.         [ Links ]

Deeke, L. P., Boing, A. F., Oliveira, W. F. & Coelho, E. B. S. (2009). A dinâmica da violência doméstica: uma análise a partir dos discursos da mulher agredida e de seu parceiro. Saúde eSociedade, 18(2), 248-258.         [ Links ]

Dubose Junior, T. D. (2007). Chronic kidney disease as a public health threat: new strategy for a growing problem. Journal of the AmericanSociety of Nephrology, 18, 1038-1045.         [ Links ]

Durães, S. J. A. & Moura, J. M. (2004). Alguns tipos de violência contra as mulheres em Montes Claros/MG: análise de indicadores da delegacia de repressão aos crimes contra a mulher (1998-2002). UNIMONTES Científica, 6(2), 29-37.         [ Links ]

Escorel, S. (1999). Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.         [ Links ]

Féres-Carneiro, T. (2001). Casamento contemporâneo: construção da identidade conjugal. In T. Féres-Carneiro (Org.), Casamento e família: do social à clínica (pp. 67 - 80). Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Fonseca, A. M.; Galduróz, J. C. F.; Tondowsky, C. S. & Noto, A. R. (2009). Padrões de violência domiciliar associada ao uso de álcool no Brasil. Revista de Saúde Pública, 43(5), 743-749.         [ Links ]

Gil, A. C. (1991). Métodos e técnicas de pesquisa social. (3ª ed.). São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Gomes, R.; Minayo, M. C. de S. & Silva, C. F. R. (2005). Violência contra a mulher: uma questão transnacional e transcultural das relações de gênero. In Secretaria de Vigilância em Saúde (Org.), Impacto da violência na saúde dos brasileiros (pp. 117-140). Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Gunther, H. Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa: esta é a questão? (2006). Psicologia: Teoria e Pesquisa, 22(2), 201-209.         [ Links ]

Maia, C. J. (2012). Rompendo o silêncio: histórias de violência conjugal contra as mulheres no norte de Minas (1970-2007). In C. de J. Maia, & R. C. L. Caleiro, (Orgs.), Mulheres, violência e justiça no norte de Minas (pp. 15-52). São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Organização dos Estados Americanos (1994). Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher -"Convenção de Belém do Pará", 1994. Retrieved September 05, 2009, from https://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde (2002). Primeiro relatório mundial sobre violência e saúde, 2002. Retrieved September 07, 2009 from http://www.saude.gov.br         [ Links ]

Romagnoli, R. C. (2012). A violência contra a mulher em interlocução com a Esquizoanálise: aprisionamentos e devires. In R. C. Romagnoli & F. F. S. Martins (Orgs.), Violência doméstica: estudos atuais e perspectivas (pp. 43-63). Curitiba: CRV.         [ Links ]

Rosa, A. G., Boing, A. F., Buchele, F., Oliveira, W. F. & Coelho, E. B. S. (2008). A violência conjugal contra a mulher a partir da ótica do homem autor da violência. Saúde e Sociedade, 17(3),152-160.         [ Links ]

Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, 16 (2), 05-22.         [ Links ]

Saliba, O., Garbin, C. A. S., Garbin, A. J. I. & Dossi, A. P. (2007). Responsabilidade do profissional de saúde sobre a notificação de casos de violência doméstica. Revista de Saúde Pública, 41 (3), 472-477.         [ Links ]

Silva, S. G. da. (2010). Preconceito e discriminação: as bases da violência contra a mulher. Psicologia Ciência e Profissão, 30(3), 556-571.         [ Links ]

Souza, C. M. & Adesse, L (2005). Violência sexual no Brasil: perspectivas e desafios. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.         [ Links ]

Zaleski, M., Pinsky, I., Laranjeira, R., Ramisetty-Mikler, S. & Caetano, R. (2010). Violência entre parceiros íntimos e consumo de álcool. Revista de Saúde Pública, 44(1), 53-59.         [ Links ]

 

 

Recebido: 04/07/2012
Aceito: 20/03/2013

 

 

1 Contato: robertaroma@uol.com.br
2 Estudo financiado pela FAPEMIG e CNPq