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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.2 Belo Horizonte jul. 2013

 

REVISÕES CRÍTICAS DE LITERATURA

 

Violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes: uma revisão bibliométrica

 

Domestic/intra-family violence against children and adolescents: a bibliometric review

 

 

Adriana Aparecida Almeida1; Olivia Barbosa Miranda; Lélio Moura Lourenço

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil

 

 


RESUMO

A violência doméstica/intrafamiliar é um problema de saúde pública que afeta todas as populações do mundo, independente do nível social/cultural/econômico. As crianças/adolescentes podem ser vítimas diretas e indiretas, sofrendo as consequências a curto/longo prazo. Para que se possa investir em políticas de prevenção e capacitação, é importante conhecer as publicações nacionais sobre o tema. O objetivo principal desta revisão é conhecer as pesquisas que vêm sendo realizadas no Brasil sobre violência doméstica/intrafamiliar. Desta forma, foi realizada uma pesquisa bibliométrica em diferentes bases de dados, sendo selecionadas aquelas mais relevantes ao campo da Psicologia: Pepsic/Bireme, BVS, Scielo, Dialnet e Claves, entre 2001 e 2011. Foram utilizados os descritores "violência doméstica" e "crianças", no campo "palavras do título" de cada base. Constatou-se que a maioria dos artigos encontrados aborda crianças/adolescentes como vítimas diretas, sendo a família a principal agressora. O profissional de saúde foi o alvo principal dos artigos e o método qualitativo o mais utilizado.

Palavras-chave: Violência Doméstica, Violência Intrafamiliar, Crianças, Adolescentes.


ABSTRACT

Domestic or intra-family violence is a public health issue that affects all populations around the world, regardless of social/cultural/economic level. Children and adolescents can be direct and indirect victims, suffering the consequences in the short/long term. In order to invest in policies to prevent same and in professional's training, it is important to know the national publications about it. The main objective of this revision is to recognize the research that is being carried out in Brazil on domestic/intra-family violence. In this way a bibliometric survey was conducted in different databases, and the most relevant to the field of psychology: Pepsic/Bireme, BVS, Scielo, Dialnet and Claves, between 2001 and 2011, were selected. The key words 'domestic violence' and 'children' in the field 'title words' of each base, were used. Most articles talk about children and adolescents as the direct victims of violence and the family is identified as the main aggressor. Health professionals were the main target of the articles and a qualitative study was the most used.

Keywords: domestic violence, intra-family violence, children, adolescents.


 

 

Uma das tarefas mais complexas da sociedade atual é o enfrentamento da violência na família, com vários aspectos sociais, morais, geopolíticos, históricos, econômicos e psicológicos característicos e peculiares (Martins et al., 2007). Há tempos a sociedade preocupa-se em compreender a essência da violência, sua natureza e origens, a fim de atenuar, prevenir e eliminar este fenômeno do convívio social (Gebara & Lourenço, 2008).

Os pesquisadores fazem uso de diferentes terminologias para explicar e exemplificar a violência que ocorre dentro das famílias, que vão desde as mais abrangentes às mais específicas, dentre as quais podemos citar "violência doméstica", "violência intrafamiliar", "violência conjugal" e "violência entre parceiros íntimos".

Cada terminologia traz uma singularidade em sua definição, mas, de uma forma geral, todas relatam a violência que ocorre entre as pessoas com algum vínculo afetivo, familiar ou de convivência. A violência intrafamiliar é definida como toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família, podendo ser cometida dentro e fora de casa, por qualquer familiar que esteja em relação de poder com a vítima (Day et al., 2003). A violência doméstica se distingue da anterior por considerar também outras pessoas que convivam no espaço doméstico sem função parental, como empregados, agregados e pessoas que conhecem as vítimas, mas visitam esporadicamente o domicílio (Labronici, Ferraz, Trigueiro, & Fegadoli, 2010). Para os fins deste estudo, iremos utilizar ambas as terminologias.

Violência conjugal é entendida por Brancalhone, Fogo e Williams (2004) como comportamentos agressivos que ocorrem contra a mulher adulta ou adolescente no contexto de um relacionamento heterossexual íntimo (legalmente casados ou não). Nos últimos anos, muitos pesquisadores têm optado por usar o termo "violência entre parceiros íntimos", que pode ser definido como a ameaça, tentativa ou ato concreto de violência física, psicológica e/ou abuso sexual cometido por um parceiro atual ou anterior [marido, ex-marido, esposa, ex-esposa, namorado(a), ex-namorado(a)] (Breiding & Ziembroski, 2011).

As crianças são uma das principais vítimas destes tipos de violência. Elas podem ser tanto vítimas diretas, quando as agressões são voltadas especificamente a elas, quanto vítimas indiretas, nos casos em que sofrem as consequências por presenciarem a violência sofrida por outrem. Em ambos os casos, prejuízos em sua saúde física e mental são observados.

A violência doméstica/intrafamiliar sofrida de forma direta pelas crianças é definida pela Organização Mundial de Saúde como todas as formas de maus tratos emocionais e/ou físicos, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, comercial ou outras formas de exploração, com possibilidade de resultar em danos potenciais ou reais à saúde das crianças, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (Krug et al., 2002).

A Organização Mundial de Saúde define abuso físico contra crianças como os atos praticados por um cuidador ou familiar que causam danos físicos reais ou possuem o potencial de causá-los (Krug et al., 2002). É difícil definir este tipo de violência devido ao estreito limiar entre a agressão física com fins disciplinares e a agressão física severa, visto que a disciplina por meio de punições físicas e psicológicas muitas vezes faz parte da educação dada pelos pais aos filhos (Andrade et al., 2011).

A violência sexual é definida como qualquer ato em que a criança é usada para obter alguma gratificação sexual. A violência emocional contempla a falta de envolvimento apropriado e suporte necessário à criança, incluindo também atos que possuem efeitos adversos na saúde emocional e no desenvolvimento infantil saudável. Tais atos podem ser: restringir os movimentos, denegrir, ridicularizar, ameaçar e intimidar, discriminar, rejeitar ou outras formas de tratamentos hostis. Já a negligência refere-se à falha dos pais em prover o desenvolvimento da criança, em uma ou mais das seguintes áreas: saúde, educação, desenvolvimento emocional, nutrição, abrigo e condições de viver em segurança. A negligência ocorre apenas em casos onde os recursos estão disponíveis para a família ou cuidador e, mesmo assim, não são usados em prol da criança (Krug et al., 2002).

As consequências da violência doméstica/intrafamiliar contra crianças/adolescentes são desastrosas e repercutem em todos os segmentos da sociedade, com agravos significativos à saúde das mesmas (Martins et al., 2007). Visto que as crianças e adolescentes se encontram em um processo de desenvolvimento físico e psíquico, sofrer atos de violência afeta a saúde mental destes indivíduos, causando prejuízos no desempenho escolar, na adaptação social e no desenvolvimento orgânico. A violência doméstica/intrafamiliar também pode estar associada ao desenvolvimento de transtornos de personalidade, comportamentos agressivos, dificuldades na esfera sexual, doenças psicossomáticas e transtorno do pânico, dentre outros (Romaro & Capitão, 2007).

Muitas crianças, por serem vítimas de violência doméstica/intrafamiliar, são mais agressivas na escola. Isso as torna mais rejeitadas pelos colegas e professores, gerando maior estresse e afetando os processos de aprendizagem e o estabelecimento de relações de companheirismo (Lisboa et al., 2002).

O conceito de "estar exposto à violência", ou seja, quando a criança é vítima indireta, é multidimensional, podendo incluir comportamentos como observar diretamente a situação de violência, ouvir o ato violento, mas não o ver, observar os efeitos causados, mas não a violência em si, ou ouvir relatos sobre o ocorrido (Spilsbury et al., 2007).

Dentre as consequências enfrentadas por crianças expostas à violência entre parceiros íntimos pode estar o desenvolvimento de quadros de depressão, agressividade, isolamento, baixa autoestima e, de uma forma geral, problemas em seu desenvolvimento comportamental, social, emocional, cognitivo e físico (Brancalhone et al., 2004). Também possuem um aumento no risco de suicídio, ansiedade, abuso de substâncias, comportamentos inapropriados na escola e problemas acadêmicos, dentre outros (Rothman, Mandel, & Silverman, 2007). A exposição à violência pode ser prejudicial ao desenvolvimento infantil porque tanto o agressor, quanto a vítima são conhecidos da criança e estão envolvidos emocionalmente com ela (Spilsbury et al., 2007).

Várias pesquisas têm sido realizadas com o intuito de conhecer as consequências que estar exposto à violência pode trazer para as crianças. Em um estudo que procurou verificar como as crianças expostas à violência entre parceiros íntimos articulam suas experiências, encontrou-se que esta articulação parece ser um desafio para elas, mesmo quando a violência é reconhecida. As formas prevalentes com as quais as crianças relatavam suas recordações da violência foram tentativas de proteger a mãe e contemplar suas próprias ações durante os momentos de violência. Muitas disseram que, conscientemente, tentavam evitar se lembrar da situação pensando ou fazendo outra coisa, como pensar em guerras ou em comida. No entanto, quando pensavam, o foco principal era sobre seus próprios comportamentos, sobre a vulnerabilidade da mãe ou tentativas de encontrar razões para as ações do pai (Georgsson, Almqvist, & Broberg, 2011).

O fato de contemplarem suas próprias ações pode indicar um sentimento de responsabilidade ou uma culpa por não serem capazes de prevenir a violência (Fosco, DeBoard, & Grvch, 2007). O fato de estar exposto à violência parece criar um medo entre algumas crianças no que se refere aos limites da violência de seus pais. Este medo e a necessidade de proteger a si mesmo e sua mãe também parecem estar de acordo com o medo mais geral dos outros e a necessidade de se protegerem e se defenderem dos outros (Georgsson et al., 2011).

Estudos têm apontado que uma história de maus tratos substanciais na infância aumenta o risco do indivíduo tornar-se um agressor ou vítima da violência entre parceiros íntimos e de violência sexual posteriormente. Logo, a prevenção de tais atos ainda na infância tem o potencial de reduzir violências posteriores (World Health Organization & London School of Hygiene and Tropical Medicine, 2010).

Em função das inúmeras consequências supracitadas, as quais afetam tanto as crianças vítimas diretas e indiretas da violência, quanto a sociedade como um todo, é de fundamental importância que se conheçam os trabalhos realizados na área nos últimos tempos, principalmente os que dizem respeito à produção nacional, a fim de possibilitar um melhor entendimento de como o fenômeno se dá na realidade brasileira, bem como permitir a proposição de medidas protetivas, a criação de estratégias de enfrentamento, e, principalmente, estabelecer um trabalho efetivo a nível primário, focando na prevenção da violência. O objetivo principal desta revisão é conhecer as pesquisas que vêm sendo realizadas no Brasil sobre violência doméstica/intrafamiliar.

 

Método

A fim de atingir o objetivo descrito, foi realizada uma pesquisa bibliométrica em diferentes bases de dados, sendo selecionadas aquelas mais relevantes ao campo da Psicologia, a saber: Pepsic/Bireme, BVS, Scielo, Dialnet e Claves. A busca foi realizada em junho de 2011, sendo selecionados apenas os artigos que compreendem as publicações dos últimos dez anos, englobando o período que se estende entre 2001 e 2011.

Para a busca foram utilizados os descritores "violência doméstica" e "crianças", no campo "palavras do título" de cada base de dados. Como o objetivo principal desta revisão bibliométrica é o de conhecer as pesquisas que vêm sendo realizadas no Brasil, foram selecionadas publicações acerca do tema apenas em língua portuguesa, sendo descartados os artigos publicados em outras línguas. Também foram descartados os artigos repetidos, ou seja, que haviam sido publicados em mais de uma base de dados.

A análise dos artigos se deu através da leitura do texto completo, organizando a amostra coletada segundo autor, número de autores, ano e revista. Foram analisados também aspectos de suma importância na abordagem da violência doméstica/intrafamiliar contra crianças, sendo eles: agressor; vítima (quem e se direta ou indireta); consequências da violência; quais profissionais eram o foco da pesquisa relatada nos artigos; e quais as considerações mais importantes apontadas pelos autores. Além disso, a fim de compreender algumas tendências, no que se refere à produção e divulgação do conhecimento relacionado ao tema, foram avaliados o tipo e método de estudo, em qual base de dados foi encontrado e se havia repetição ou não do estudo em mais de uma base de dados.

 

Resultados

A amostra do estudo correspondeu a um número total de 35 artigos, distribuídos da seguinte forma pelas bases de dados: 16 artigos na BVS, 13 na Scielo, 5 na Pepsic, 1 na Dialnet e 0 na Claves. Houve um número muito elevado de repetição de artigos entre as bases e nas próprias bases, reduzindo o número total de artigos para 19. Os anos de 2005 e 2007 foram os que mais tiveram publicações sobre a temática, com 21,5% cada, seguidos por 2008, com 15,7%. Não foi encontrado nenhum artigo nos anos de 2010 e 2003 (Tabela 1).

 

 

Os autores com maior número de publicações foram, em ordem alfabética, Ferriani, M.G.C. e Williams, L.C.A. com 15,9% dos artigos publicados cada, seguidos pelos autores Roque, E.M.S.T. e Silva, M.A.I., com cada um tendo publicado 10,6% dos artigos. Estes autores juntos publicaram 53% da amostra encontrada (Tabela 2). A maioria dos artigos (36,8%) foi escrita por dois autores, seguida pelas publicações com três autores (26,3%). Somente 5,2% dos artigos foram escritos por apenas um autor (Tabela 3).

 

 

 

 

As revistas com maior número de publicações na área foram Revista LatinoAmericana de Enfermagem e Psicologia em Estudo, com 15,9% e 10,5%, respectivamente. A maioria das revistas (73,6%) publicou apenas um artigo sobre a temática no período pesquisado. As revistas de Psicologia foram as que mais publicaram (52,6%), seguidas pelas revistas da área de saúde (31,5%) (Tabela 4).

 

 

Em relação às vítimas, 68,4% dos artigos abordaram as crianças juntamente com os adolescentes, e 31,6% apenas as crianças, sendo que em 42,1% eles foram pesquisados como vítimas diretas da violência doméstica/intrafamiliar. Apenas um artigo (5,2% da amostra) abordou as vítimas como expostas à violência que ocorre na família (Tabela 5).

 

 

Os principais agressores citados em casos de violência doméstica/intrafamiliar contra crianças/adolescentes foram a família, com 24%, seguida pelos pais, com 16%. A mãe e o pai, separadamente, foram citados em 12% e 8% dos artigos, respectivamente. Alguns artigos (24%) não especificaram os agressores (Tabela 6).

 

 

O profissional de saúde foi o principal foco dos artigos, com 25% das publicações. Outros profissionais, como os que trabalham em 'casas abrigo', os operadores do direito (juízes, advogados, promotores, técnicos) e os professores, foram citados em 10% das publicações cada. A mesma porcentagem (10%) foi verificada com artigos direcionados para pais e famílias de forma geral. Um número expressivo de artigos (25%) não fazia tal especificação (Tabela 7).

 

 

A metodologia mais utilizada nos artigos foi a qualitativa, com 89,4% das publicações, sendo a quantitativa utilizada em apenas 10,5% das publicações. Os instrumentos mais utilizados na coleta dos dados foram as entrevistas (34,6%) e os questionários (15,3%). Também foram utilizados testes/escalas (15,3%), análise documental (11,5%), observação participante (11,5%), grupos focais (3,8%), relatos de experiência (3,8%) e consulta a boletins de ocorrência (3,8%) (Tabela 8). Alguns artigos utilizaram mais de um instrumento para coletar os dados necessários à pesquisa.

 

 

Na maioria dos artigos (57,9%) é mencionada a definição de violência da Organização Mundial de Saúde, descrevendo-se, direta ou indiretamente, as quatro variedades reconhecidas como violência doméstica/intrafamiliar contra a criança e o adolescente: abuso físico, sexual, emocional e negligência. Além disso, 15,8% não apresentaram quaisquer definições do que entendiam por violência doméstica. Os 26,3% restantes apresentaram definições variadas.

Em relação às considerações importantes propostas nos artigos (Tabela 9), destacam-se o fato da punição física ainda ser vista como prática educativa - tanto por pais, quanto por parte da sociedade - sendo este indicador mencionado em 32% dos artigos. A formação insuficiente dos profissionais de saúde e da educação para lidar com a violência doméstica e a precariedade na assistência às vítimas apareceu em 20% dos artigos. Outra variável bastante mencionada, especialmente nos casos dos profissionais de saúde, mas também por parte das vítimas, é o medo de denunciar a violência e sofrer retaliações posteriores, correspondendo a 16% dos casos. Por fim, 12% dos artigos levaram em consideração como o desempenho escolar de crianças e/ou adolescentes vítimas de violência seria afetado.

 

 

Discussão

Através do levantamento realizado, em função da pequena quantidade de artigos na área, se comparada à produção internacional, é possível perceber que a violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes ainda é um fenômeno pouco estudado por pesquisadores brasileiros, apesar de sua relevância e dos impactos causados às vítimas e à sociedade.

Em relação aos autores que mais publicaram, apesar deste estudo compreender um período de dez anos, não houve nenhum pesquisador com maior expressividade na área. É necessário que os profissionais trabalhem em conjunto e invistam mais em pesquisas multidisciplinares e interdisciplinares, com diferentes olhares para o mesmo problema, a fim de conhecer o sujeito como um todo, em suas diferentes facetas, visto que as revistas de Psicologia e da área de saúde, em geral, são os principais meios de divulgação de estudos na área, demonstrando uma concentração de publicações apenas neste campo. Sendo assim, faz-se necessária uma maior diversificação nas pesquisas referentes ao tema.

Quanto ao aspecto metodológico, o método qualitativo foi o mais utilizado nos estudos encontrados. Esta abordagem incorpora a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas humanas (Minayo, 1992). A utilização desse método permite analisar os significados subjetivos da experiência e da prática cotidiana, além de possibilitar compreender o significado particular e a intencionalidade das falas, vivências, valores, percepções, desejos, necessidades e atitudes do sujeito da pesquisa (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 2004).

O campo da saúde é produto de uma realidade complexa, a qual envolve aspectos biológicos, físicos, psicológicos, sociais e ambientais, havendo muitas vezes a necessidade de avaliar valores, atitudes e crenças dos grupos a quem as ações se dirigem, sendo a abordagem qualitativa a mais indicada nesses casos. Ao mesmo tempo, os métodos quantitativos permitem avaliar a importância, gravidade, risco e tendência de agravos e ameaças, além de probabilidades e associações estatisticamente significantes, que são importantes para se conhecer uma realidade (Minayo & Sanches, 1993).

Desse modo, mostram-se necessárias novas pesquisas que lancem mão do método quantitativo no estudo da violência doméstica, visto que uma parcela mínima de artigos buscam tal enfoque. Novas pesquisas sobre uma temática, com diversidade metodológica, permite maior aprofundamento no estudo do problema, assim como a construção de dados para comprovar diferentes hipóteses (Serapioni, 2000).

Como consequência da predominância de estudos que utilizam o método qualitativo, os principais instrumentos ou procedimentos utilizados nas publicações encontradas estão diretamente ligados ao referido método de pesquisa, que, caracteristicamente, utiliza grande variedade de ferramentas para a coleta de dados, sendo, no entanto, a entrevista, a observação e a análise de documentos os mais utilizados (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 2004).

A entrevista, que, em alguns casos, se encontra associada a outros procedimentos de coleta de dados nos estudos, permite tratar de temas complexos - neste caso específico, a violência doméstica contra crianças e adolescentes -, além de permitir que o pesquisador explore os dados obtidos com maior profundidade (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 2004).

A violência doméstica/intrafamiliar é cada vez mais abordada como uma questão de saúde. Porém, muitos profissionais de saúde ainda apresentam dúvidas sobre como se trabalhar esta problemática na rede de serviços, visto que, muitas vezes, têm uma formação deficitária, que, raramente, inclui conhecimentos técnicos específicos sobre o tema (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo & Fundação Ford, 2003).

O atendimento em saúde pública é um espaço fértil para se observar os sinais de violência doméstica/intrafamiliar emitidos ou apresentados pelas crianças e adolescentes, sendo necessário que os profissionais percebam tais sinais. Os efeitos da violência doméstica, sexual e racial são evidentes para quem trabalha na área, visto que crianças e adolescentes em situação de violência frequentam, com relativa assiduidade, os serviços de saúde, apresentando em muitos casos "queixas vagas ou subjetivas" (Rossi & Pinto e Silva, 2005).

É possível perceber que grande parte dos artigos aborda a relação dos profissionais de saúde com a violência doméstica/intrafamiliar, uma vez que estes são, ou deveriam ser, os primeiros a identificá-la. Como resultado, o que se vê é um consenso entre os estudos referente ao despreparo destes profissionais para lidar com este problema, apontando para a necessidade de se realizar modificações na formação desses trabalhadores, a fim de reverter este quadro e contribuir para o atendimento de qualidade às vítimas, com capacidade de identificar e intervir em possíveis casos de violência.

Com relação aos principais agressores das crianças e adolescentes, este estudo encontrou um maior número de artigos apontando a família (de forma geral) neste papel. Segundo Brito, Zanetta, Mendonça, Barison e Andrade (2005), há uma variação nas modalidades de violência cometidas pelo pai - mais comumente violência sexual, associada ou não a outras modalidades - e a mãe - mais apontada em casos de negligência, quando não está associada a outros tipos de violência.

Ao analisar os agressores, percebe-se que, em sua maioria, eles exercem o papel de cuidadores das crianças e adolescentes em nossa sociedade (pais, pai, mãe, padrasto e responsável). A maioria dos estudos também aponta que a violência doméstica, principalmente a física, é vista como uma prática educativa tanto pelos pais quanto pela sociedade. Isso remete à necessidade de programas de prevenção a este tipo de violência e à promoção de formas mais eficazes e menos danosas de se educar, incentivando e até mesmo ensinando formas de se corrigir os erros cometidos por essas crianças e adolescentes sem fazer uso da violência para isso.

É também possível observar nos resultados encontrados uma tendência das publicações em abordar a violência direta em detrimento da indireta, havendo uma lacuna em relação ao conhecimento acerca de quais seriam suas características e as consequências para as vítimas. Além disso, na maioria das pesquisas encontradas, com exceção de uma delas, no que diz respeito ao agressor, este é apenas identificado, não havendo uma preocupação em caracterizá-lo mais pormenorizadamente, em identificar suas crenças, e outros aspectos relevantes.

É importante salientar que quase 60% dos artigos encontrados fazem menção à definição de violência doméstica da Organização Mundial de Saúde, órgão reconhecido que trata de diferentes temas relacionados à saúde, em escala mundial. A utilização de tal definição pode possibilitar uma aproximação com estudos desenvolvidos em outros países, uma vez que não se restringe a uma caracterização específica ao Brasil.

 

Considerações finais

Diante da relevância da temática, é de fundamental importância que os profissionais que trabalham direta ou indiretamente com crianças e adolescentes saibam identificar a violência doméstica e adotar estratégias de intervenção nos diversos serviços em que atuam. Nesse sentido, conhecer suas consequências é essencial para que formas de prevenção e minimização dos efeitos negativos possam ser determinadas.

Este estudo colaborou para o aumento do conhecimento sobre o tema, na medida em que efetuou um levantamento dos estudos e suas principais contribuições, apontando questões importantes como os agressores, as principais tendências nos estudos, os principais pesquisadores e as revistas mais interessadas no assunto. Ao observar o resultado deste levantamento, tornou-se nítida a necessidade de que novas pesquisas sejam feitas, a fim de se produzir novos conhecimentos sobre o assunto, sendo essencial ir além da mera descrição do fenômeno estudado.

Os dados da presente pesquisa estão focados em estudos nacionais, em diferentes bases de dados, buscando um panorama geral das publicações com a temática da violência doméstica contra crianças e adolescentes. Pesquisas futuras podem investir em estudos com outros indivíduos que se encontram dentro deste contexto, assim como ampliar a investigação para análises internacionais.

Dentre as limitações desse estudo é possível apontar o fato de terem sido utilizados como descritores apenas "violência doméstica" e "crianças", uma vez que há divergências quanto a nomenclatura utilizada e o uso de mais descritores poderia ampliar o universo dos artigos encontrados. Outra limitação relevante é o fato de, ao se descartar artigos em outras línguas, terem sido perdidos artigos de autores brasileiros, acerca do tema em questão, publicados em revistas internacionais.

Tendo em vista tudo que foi discutido até aqui, é preciso que estudos futuros apresentem contribuições efetivas para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento do problema, não só nos níveis terciário e secundário, mas predominantemente a nível primário, com foco na prevenção da violência e não apenas em medidas a fim de remediá-la.

 

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Recebido: 06/03/2012
Aceito: 03/10/2012

 

 

1 Contato: adrianalmeidapsi@yahoo.com.br