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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.2 Belo Horizonte jul. 2013

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Uma fotonovela construída por usuários de saúde mental: estórias e cenas de crime e loucura

 

A photonovel constructed by mental health users: stories and scenes of crime and madness

 

 

Fernanda Cristina Marquetti1

Universidade Federal de São Paulo, Santos, Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo relatamos a experiência de um grupo composto por sujeitos com agravos de saúde mental, através do recurso terapêutico da fotonovela, numa instituição de saúde pública. Analisamos o processo terapêutico e o conteúdo produzido pelos sujeitos a partir da emergência no grupo do par conceitual crime e loucura, numa perspectiva foucaultiana. Discutimos como a construção histórica elaborada entre os conceitos de crime e loucura, e suas respectivas relações com justiça e psiquiatria, permearam este processo terapêutico. Também, analisamos as vicissitudes das formas de comunicação verbal e imagética envolvidas na fotonovela a partir de elementos psicanalíticos.

Palavras-chave: Crime, Loucura, Discursos.


ABSTRACT

In this article we developed a group case study carried out through the therapeutic resource of the photonovel in a public health institution with patients with mental health problems. We analyzed the process and content produced by the patients as concerns crime and madness in a Foucaultian perspective. We discussed how the historical construction of the concepts of crime and madness and their respective relationships with justice and psychiatry permeated this therapeutic process. Also analyzed were the vicissitudes of verbal and imagery forms involved in photonovel starting from psychoanalytic elements.

Keywords: Crime, Madness, Discourse.


 

 

A estória-fotonovela construída por usuários de um Centro de Atenção Psicossocial que é descrita neste relato de experiência (consultar fernandamarquetti.blogspot.com.br ), nos remeteu ao processo de disputa existente entre as instituições psiquiátrica e jurídica do século XIX. De acordo com Foucault (1977), o caso célebre de um camponês na França, chamado Pierre Rivière, que matou a mãe, a irmã e o irmão, foi motivo, na época, de disputa entre a recente disciplina psiquiátrica e o judiciário acerca da questão crime e loucura. Pierre Rivière cometeu três homicídios considerados abomináveis e as instâncias mais importantes da psiquiatria foram acionadas para esclarecer o caso. A questão primordial deste caso é outra: por que um crime relativamente banal, de um pobre camponês, despertou tanta atenção das maiores autoridades da psiquiatria? Segundo Foucault, o crime de Pierre Riviére foi emblemático para a afirmação da psiquiatria e a divisão de poder entre psiquiatria e judiciário. Na elaboração do laudo do caso Rivière pelos psiquiatras foram entrevistadas pessoas da sua localidade. Neste, observou-se que aos relatos banais, sem relevância patológica, os psiquiatras atribuíram significações para acontecimentos cotidianos e corriqueiros da vida deste camponês. Assistia-se a construção do saber psiquiátrico e o respectivo processo de reconhecimento de sintomas de loucura prévios ao ato de desvario. Esse fato permitiu à nascente psiquiatria a construção de diagnósticos e suas intervenções preventivas. Neste episódio, justiça e medicina partilharam o caso Rivière e, assim, levantou-se a questão da disputa de saberes e de classificação: culpado ou louco.

Na análise final, Foucault (1977) conclui que a finalidade deste empreendimento exemplar na história da psiquiatria foi a patologização dos atos de crime. Uma história iniciada no século XIX alcançou o imaginário de nossos sujeitos-loucos no século XXI em São Paulo. Na estória-fotonovela surgiram os conflitos presentes na tênue linha divisória entre "normal-anormal" e "crime-loucura", bem como a força com que este dilema retornou ao cotidiano dos sujeitos que vivem a experiência da loucura no mundo contemporâneo.

A submissão dos usuários do CAPS aos códigos e preceitos socioculturais de crime-loucura/normal-anormal determinou atitudes, gestos e medos em relação às suas identidades: loucos ou criminosos. Por outro lado, durante a elaboração das cenas e estórias da fotonovela, a definição de loucura-normalidade, construída historicamente, foi alvo de contestações, réplicas, ironias e debates no grupo, em uma explícita subversão das regras do discurso psiquiátrico. Os movimentos deste processo grupal oscilaram entre a submissão angustiada à identidade de louco-criminoso e a posição contestatória em relação à definição de normalidade dada pelo saber-poder psiquiátrico.

Neste artigo, discutimos o processo grupal dos usuários numa perspectiva de inspiração psicanalítica, pois este percurso terapêutico esteve permeado de conflito, angústia e ambiguidades quanto à identidade dos sujeitos. Outro viés abordado destaca como o imaginário destes sujeitos esteve impregnado com as representações históricas sobre crime e loucura. Tais representações reelaboradas na cena sociocultural contemporânea geraram posições contestatórias à norma psiquiátrica. Mas, concomitantemente, surgiram atitudes de ambivalência na oposição frente à disciplina e ao poder médico. O imaginário social sobre a loucura edificado ao longo de séculos evidenciou seu poder, mas através das posições emergentes houve um deslizamento das significações referentes à loucura e à norma médica.

 

Uma ideia incomum

Um grupo de usuários do Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS) no município de São Paulo destinado a pessoas com agravos de saúde mental se encontrava semanalmente para elaborar um jornal com os acontecimentos do cotidiano. Os oito participantes tinham diagnósticos do subgrupo: esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes conforme a Classificação Internacional de Doenças (Organização Mundial de Saúde, 2008). A média etária dos usuários era 25 anos, a maioria tinha histórico recente de sofrimento psíquico e estavam no serviço de saúde há cerca de seis meses.

Em uma sessão, repentinamente, um deles sugeriu fazer uma fotonovela. A ideia foi aceita imediatamente pelo grupo e eles passaram a discutir a temática da fotonovela. Consideraram que poderiam mostrar o tratamento da instituição e o grupo sugeriu várias cenas do cotidiano. O título da fotonovela foi decidido: "Caminhando para uma vida saudável". A discussão sobre as cenas da fotonovela tomou uma perspectiva completamente diversa da inicial. Gradativamente, cada paciente lembrou cenas de filmes de suspense e terror e descreveram crimes, personagens loucos e assassinos perversos. Eles diziam que estes personagens poderiam compor a estória deles. Houve um fascínio pelo tema. No momento em que este imaginário, repleto de violência e loucura, emergiu nos sujeitos houve um intenso debate. Discutiu-se se este tema era o desejo do grupo para a fotonovela. Rapidamente, o grupo recuou e as colocações emergentes sobre crime e loucura foram reprimidas. Eles repudiaram todo o discurso anterior e, significativamente, disseram "Precisamos de um pouco de realidade, vamos retomar a estória da nossa realidade". Houve uma tentativa de abandonar aquele imaginário tão atrativo, mas um sentimento de ambivalência permaneceu nos sujeitos. Observou-se a diferença entre o entusiasmo do grupo ao contar estórias de crime e o desânimo ao voltar para o tema da "realidade". Porém, após alguns momentos na dinâmica do grupo, todos voltaram novamente a contar, lembrar e criar cenas com crimes de médicos e pacientes assassinados. Assim, a fotonovela que deveria retratar "O caminho para uma vida saudável" deslizou através do desejo imperioso dos sujeitos para uma estória de suspense e mistério entre loucos e médicos.

Na sequência, um dos sujeitos do grupo colocou em discussão o estilo da fotonovela: ficção ou realidade. Alguns deles diziam que era preciso se apegar à realidade, pois estavam em tratamento; outros referiam que as cenas de crime não podiam ser realidade, o grupo oscilou muito. O impasse criado pela ambivalência dos sujeitos do grupo foi resolvido com a seguinte fórmula literária: a fotonovela seria uma ficção baseada em fatos reais.

Este foi o princípio da intrigante estória contada com a técnica de fotonovela: estória de medo e violência, sugestivamente, designada como baseada em fatos reais. Enquanto esta produção imagética era elaborada observamos que a articulação histórica construída entre os conceitos de violência e loucura estava subjacente ao material. Um discurso sobre a loucura era produzido de um lugar diferente do tradicional, aquele que detém a voz e o poder sobre as relações entre criminalidade e loucura, a psiquiatria. Este novo discurso foi construído a partir do lugar caracterizado pela sociedade contemporânea como: o lugar do vazio, da ausência de sentido, enfim, o lugar simbólico do louco (consultar fernandamarquetti.blogspot.com.br ).

 

O processo de construção criativa e sua análise

A fotonovela se caracterizou como uma linguagem de imagens, sendo que as "falas" verbais adicionadas em balões foram secundárias no processo de criação. A sequência estabelecida foi: a ideia da fotonovela e a elaboração do roteiro; a construção dos personagens e escolha dos atores; a montagem das cenas e a captura das imagens em fotografias; a articulação das cenas fotografadas dentro do roteiro e a colocação das "falas nos balões".

Depois da elaboração do roteiro e construção dos personagens, os participantes teceram os vínculos que entrelaçavam os mesmos. Na fase seguinte eles elaboraram os cenários e figurinos e as imagens foram capturadas. As cenas fotografadas foram organizadas dentro do roteiro preestabelecido e, como última etapa, as falas dos personagens foram incluídas na fotonovela. A linguagem verbal foi secundária no processo de estruturação, sendo que esta apareceu no último momento do processo. Assim, temos uma questão: Porque o recurso das imagens foi facilitador no processo? Porque a linguagem verbal foi secundária? A sinalização para esta resposta está presente nas colocações dos sujeitos durante o processo: A estória da fotonovela é imaginária ou realidade? Ela retrata o cotidiano real ou cria estórias fantásticas? Ela é ficção ou realidade? Nestas colocações eles colocaram sua ambivalência entre o universo repleto de representantes das pulsões do inconsciente e o universo das representações possíveis do consciente. Havia uma ambivalência entre dar vazão aos representantes pulsionais carregados de desejo ou conter esta vazão e trazer apenas os conteúdos manifestos, deformados pela ação do recalcamento (Laplanche & Pontalis, 1991).

Podemos esquematizar da seguinte forma os pólos opostos que emergiram no processo grupal: a estória versus a história; o fantástico versus o cotidiano; a ficção versus a realidade. Nestas duas opções de conteúdo da fotonovela podemos correlacionar duas vias de comunicação, ou seja, imagens ou palavras. A característica do sistema inconsciente revela pontos que esclarecem o favorecimento das imagens em detrimento da palavra.

[...] o sistema inconsciente, que tem por missão, portanto, escoar a tensão o mais depressa possível e tentar atingir o prazer absoluto. Esse sistema tem as seguintes características: compõem-se exclusivamente de representantes pulsionais. Freud os denomina de "representações inconscientes". Essas representações, ele também as chama de "representação da coisa", por elas consistirem em imagens (acústicas, visuais ou tácteis) de coisas ou pedaços de coisas impressas no inconsciente. As representações da coisa são de natureza principalmente visual e fornecem a matéria com que se moldam os sonhos e, em especial, as fantasias [...] (Nasio, 1995, p. 21).

A ambivalência do grupo oscilava entre os representantes pulsionais inconscientes e os conteúdos deformados pelo recalcamento, ou seja, entre as fantasias de crime/loucura e o cotidiano comum. Desta forma, compreendemos como o recurso das imagens favoreceu a emergência dos conteúdos pulsionais do inconsciente, pois os representantes psíquicos investidos libidinalmente apresentam uma maior facilidade de expressão através de imagens. As imagens da fotonovela eram representações da "coisa" e de natureza. Portanto, o fato do instrumento terapêutico ser baseado em imagens facilitou a produção da atividade. Igualmente é esclarecido o porquê da dificuldade dos usuários em se apegarem à realidade com o tema "Caminhando para uma vida saudável", pois na temática das fantasias de crime/loucura eles davam vazão aos representantes pulsionais intensamente investidos. O título final da fotonovela foi "O massacre da lâmina da faca afiada". Estória plena de fantasias sobre assassinos, médicos e loucos num serviço de saúde mental imaginário.

O grupo oscilou muito durante a construção da estória para decidir quem era o assassino: um médico ou um louco? E resolveram o impasse com a seguinte solução: um enfermeiro que se tornou louco. Esta escolha do assassino foi uma solução ímpar na ambivalência do grupo. Eles elaboraram suas fantasias de violência e mesclaram lugares que pareciam intocados: loucura e normalidade. Para compreender esta subversão do discurso psiquiátrico emergente na fotonovela e a ambivalência que o acompanhou precisamos conhecer como os tipos de loucura foram forjados no início da psiquiatria. Na construção classificatória da psiquiatria revelaram-se elementos relacionados ao controle e à disciplina dos denominados anormais. E, desta forma, uma grande arbitrariedade científica permaneceu na constituição desta disciplina médica.

A grande família indefinida e confusa dos "anormais", cujo medo obcecou o final do século XIX, não marca apenas uma fase de incerteza ou um episódio pouco feliz na história da psicopatologia, ela se formou em correlação com um conjunto de instituições de controle, com uma série de mecanismos de vigilância e de distribuição, e, ao ter sido quase inteiramente recoberta pela categoria de "degenerescência", deu lugar, a elaborações teóricas irrisórias, porém a efeitos duramente reais. (Foucault, 1997, p. 61).

Esta inconsistência nos conceitos científicos quanto à definição de loucura e normalidade é observada no cotidiano das unidades de saúde mental até hoje. A definição de anormalidade da psiquiatria mostra-se dúbia e os sintomas classificados nos quadros diagnósticos revelam incoerências e contradições. Não era incomum nos espaços de convivência do CAPS observar os usuários comparando seus diagnósticos e apontando a ausência de lógica nas condutas médicas. Entretanto, o saber-poder médico instaurado não permitia contestações explícitas pelos ditos anormais, mas este grupo terapêutico encontrou na linguagem metafórica da fotonovela uma forma de subversão do discurso psiquiátrico. O par conceitual estabelecido pela norma psiquiátrica "médico-normal e paciente-anormal" esteve em suspensão neste episódio. Mas, ao questionar o conceito de normalidade, inevitavelmente, eles também interrogavam o valor do exame na psiquiatria. Esta peça fundamental na regulamentação do poder psiquiátrico, que permite mensurar e classificar desvios, foi severamente recriminada de forma indireta.

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, quantificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos da disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo seu brilho visível (Foucault, 1987, p. 154).

Este ponto nevrálgico do saber-poder psiquiátrico - o exame - foi o alvo da crítica. Ao questionar quem eram os loucos e os normais, eles minaram a ferramenta de hierarquia e controle da psiquiatria. O lugar do saber-poder da medicina sobre a loucura foi abalado na fotonovela. Também, as definições dos tipos de anormalidade conhecidos neste período histórico interessam nesta discussão. No grupo de anormais definido pela psiquiatria desde o século XVII, o subtipo "monstro humano" foi o que mais se aproximou dos personagens da fotonovela. Esta categoria englobou os sujeitos caracterizados como bestiais, com atitudes animalescas e atos que feriam as leis. Esse indivíduo perturbava as leis jurídicas e também as biológicas.

O monstro humano. Velha noção cujo quadro de referência é a lei. Noção jurídica, portanto, mas no sentido amplo, já que se trata não somente das leis da sociedade, mas também das leis da natureza, o campo do aparecimento do monstro é um domínio jurídico-biológico. Uma após outra, as figuras do ser meio-homem meio-besta, as individualidades duplas, os hermafroditas, representam essa dupla infração, o que faz com que o mostro humano seja um monstro não é somente a exceção em relação à forma da espécie, é a perturbação que traz às regularidades jurídicas. O monstro humano combina o impossível e o interdito (Foucault, 1997, p.61).

Nessa categoria estavam todos os sujeitos que perturbavam as leis biológicas ou sociais. O erro biológico e a infração social se sobrepõem e estes sujeitos são do domínio do direito e da medicina. Os loucos descritos pela fotonovela (sejam médicos, enfermeiros, psicólogos ou pacientes) se assemelhavam muito a esta categoria da psiquiatria da época. Todos, sem exceção, tinham atitudes violentas e bestiais e seus destinos ficcionais oscilaram entre as punições jurídicas ou médicas. E, por fim, vemos na escolha do estilo da fotonovela como ficção baseada em fatos reais, uma precisa solução de compromisso entre o sistema consciente-inconsciente, como nos ensina a psicanálise (Laplanche & Pontalis, 1991).

Uma ficção repleta de imaginário com fantasias extremas de violência e loucura, digna das pulsões do inconsciente, mas baseada em fatos reais e que poderia acontecer no cotidiano de qualquer serviço de saúde. Entretanto, eles frisaram: "Não aconteceu aqui!" Assim, esta ficção pode ser acessível à consciência e se mostrar em imagens impressionantes. Tais imagens puderam se materializar na fotonovela e mesmo assim preservar as relações cotidianas da realidade.

 

O caleidoscópio das imagens de crime e loucura sob o olhar do louco

Sabemos que a associação entre crime e loucura foi uma justificativa para a construção do processo de internamento da loucura. Assim, obteve-se o motivo científico e racional para a criação do modelo dos manicômios. Na construção do saber psiquiátrico, o verdadeiro objetivo nunca foi o tratamento mental, e sim o sistema de controle social (Foucault, 1972). O indivíduo perigoso era alvo da psiquiatria que ansiava aumentar sua área de atuação. Este indivíduo perigoso tornou-se um criminoso patologizado e autorizou o saber médico sobre os criminosos: "Se, a imposição do conceito de periculosidade à loucura serviu para autorizar a internação e o isolamento dos loucos pela psiquiatria, a articulação entre crime e loucura serviu para a psiquiatria estender seu poder e sua atuação" (Foucault, 1977, p. 45). Portanto, tivemos a oportunidade de observar como estes mesmos conceitos foram simbolizados e elaborados a partir do viés da loucura. Durante a confecção da fotonovela observou-se uma verdadeira catarse. Era constante a demonstração de um prazer exorbitante ao elaborar as imagens/ textos sobre a loucura, os crimes, as vítimas e os profissionais da saúde. Houve uma suspensão de censuras, recalques, proibições e emergiu a construção de um discurso extremamente velado e negado a eles. Ao louco não é permitido falar sobre a loucura, portanto, o próprio ato de falar sobre a loucura trazia um momento de êxtase.

No produto final da fotonovela podemos observar as associações sobre violência-loucura produzidas pelo imaginário dos usuários. O material permite leituras inesgotáveis aos leitores e abordamos apenas algumas cenas que nos intrigaram. O mote da fotonovela foi uma crítica ao conceito de normalidade e a partir deste os usuários puderam resignificar vários outros conceitos cristalizados em torno da loucura. O lugar clássico de tratamento em saúde mental, geralmente, visto como lugar de serenidade e eficiência terapêutica é transformado em lugar de desequilíbrio, perversidade e violência.

A figura do médico é profundamente alterada em relação à representação cultural do mesmo, ou seja, na fotonovela o médico dá conselhos absurdos aos pacientes, propõe que eles cometam atos violentos e também admite suas práticas violentas. Nestas situações, observamos uma crítica aos espaços terapêuticos e aos médicos que são seus representantes mais tradicionais. O lugar da sanidade foi retratado como lugar de loucura e o médico foi retirado do papel de equilíbrio para o de louco. No final da fotonovela, descobre-se que o médico era um paciente-louco e, inclusive, foragido do manicômio. Somente nestas representações vemos uma total reversão de conceitos e de lugares simbólicos: o lugar do normal está ocupado pela loucura. Ao longo da fotonovela, conforme surgem os outros profissionais de saúde, sem exceção, todos são retratados como perversos ou estranhos. A farmacêutica tem atos nefastos contra os pacientes porque está seduzida pelo enfermeiro, a psicóloga é perversa e maltrata os pacientes e o enfermeiro é um assassino. Enfim, a equipe que deveria tratar os pacientes foi representada com patologias mentais, ou seja, eles são anormais. E na fotonovela os supostos pacientes são vítimas da violência e da loucura dos profissionais da saúde. É interessante notar que a loucura dos pacientes não é encenada na fotonovela, ou seja, se eles têm algum tipo de sofrimento psíquico que justificaria sua presença naquele local esta não aparece. Assim, o par de conceitos opostos normal-anormal está retratado de forma totalmente invertida, isto é, o normal é louco e o louco é normal.

No processo terapêutico havia um clima de catarse e, naturalmente, de humor e ironia. Assim, apesar da tragédia da estória, o aspecto do humor aparece nas cenas exageradas e nos nomes inverossímeis dos pacientes e profissionais, às vezes, nomes de psicotrópicos e medicamentos antibactericidas. Na mágica da linguagem metafórica, o profissional de saúde transforma-se num medicamento de controle psíquico e de esterilização. As formas de execução dos assassinatos no espaço terapêutico são violentas: esquartejamento, envenenamento, facadas. Há uma necessidade de reforçar a violência. O homicídio já é uma morte violenta, mas na fotonovela a sua elaboração é cruel e com requintes sofisticados de maldade.

Lembremos algumas cenas: o esquartejamento da psicóloga e as partes do seu corpo espalhadas pelos arquivos administrativos ou a paciente envenenada enquanto acreditava que tomava seu psicotrópico. E no final da fotonovela o grande suspense. Quem é o assassino: um médico ou um louco? Este importante detalhe da estória foi decidido somente depois que toda fotonovela já estava elaborada, tanto o roteiro como o registro das cenas em fotografias. Os sujeitos não conseguiam se decidir quem seria o assassino. Apesar de todas as críticas aos profissionais de saúde através dos personagens criados, eles não conseguiam admitir, mesmo que em ficção, que o assassino poderia ser uma das pessoas destinadas a oferecer saúde e tratamento. E, também, havia o constante perigo anunciado no estilo da fotonovela, pois esta era uma ficção baseada em fatos reais. Imaginário e realidade se confundiam. Sabiamente, eles adotaram uma solução intermediária, outra verdadeira solução de compromisso, e resolveram que na fotonovela o assassino era o enfermeiro, mas que também era louco. Esta superposição de papéis resolveu o impasse criado.

Há ambivalência, também, na questão da representação do médico, pois, no final da fotonovela, descobre-se que ele era um paciente fugido do manicômio. Vemos que os papéis de médico e louco se confundem, mas também podemos observar um recuo em admitir um médico tão anormal. Entretanto, na estória da fotonovela um louco desempenhava o papel de médico e ninguém notava a diferença entre estes, até o segredo ser revelado. Houve um retorno ao conceito convencional: um médico não pode ser louco e sim há um louco que finge ser médico. O papel do médico na história do internamento e patologização da loucura não pode ser subestimado. Tornou-se árduo o enfrentamento simbólico da figura médica, pois eles tentavam contestar um poder construído através de séculos numa figura lendária do saber psiquiátrico: o personagem médico.

Todas as técnicas ou procedimentos praticados nos hospícios do século XIX - o isolamento, o interrogatório privado ou público, os tratamentos punições como a ducha, as entrevistas de cunho moral (encorajamentos ou sermões), a disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório, as recompensas, as relações preferenciais entre médico e alguns de seus doentes, as relações de vassalidade, de posse, de domesticação, por vezes de servidão, que ligavam o doente ao médico - tudo isso tinha por função fazer do personagem médico o "mestre da loucura" [...] (Foucault, 1997, p.49).

Portanto, mesmo em uma obra ficcional, transformar o "mestre da loucura" em louco-criminoso e admitir um médico anormal não foi tarefa possível para eles. Diante do saber-poder da psiquiatria eles recuaram: o médico na verdade era um louco disfarçado e o assassino era um enfermeiro-louco. Entretanto, nas entrelinhas da fotonovela ambiguidades e dúvidas rondaram o poder psiquiátrico. Também, não podemos ignorar a sugestiva escolha do enfermeiro-louco como o assassino, eles sinalizaram o papel coadjuvante e fundamental da enfermagem na constituição da disciplina e do poder psiquiátrico. Houve uma necessidade de preservar o espaço terapêutico e o imaginário, mas os discursos verbais e imagéticos serviram aos usuários para envolver a realidade e torná-la mais aceitável.

No final da estória o assassino é morto. Nenhum dos sujeitos conseguia admitir a possibilidade de deixar o assassino impune. Ele era culpado e tinha que sofrer uma punição. O grupo hesitou muito entre algumas possibilidades de punir o assassino: prisão perpétua, internamento no manicômio judiciário ou a morte. E todas as considerações sobre a severidade destas punições não amenizaram o destino ficcional deste assassino. Eles não podiam deixar sem punição aquele que cometeu

vários crimes. Houve uma preocupação durante o processo terapêutico, pois eles estavam discursando sobre eles próprios e assim punindo aquele que ocupa o lugar de louco. Mas, a punição do criminoso e a severidade dos seus juízes prevaleceram no destino final do assassino. Entretanto, a morte do assassino foi acidental e não foi executada por nenhum personagem da trama. O sujeito da punição é indeterminado, o acaso ou o destino são os algozes do assassino.

Os mesmos recursos imagéticos lançados sobre o objeto crime-loucura pelas instituições na sociedade contemporânea, agora utilizados de outro lugar e por outros sujeitos, podem produzir novas significações sobre este recorte fundamental: normal e anormal. Nesta produção dos usuários, vimos uma repetição de conceitos tradicionais sobre loucura, mas também pudemos observar deslizamentos de sentido significativos. Se os próprios loucos-criminosos, que são depositários desta ruptura de sentido que é a loucura, puderam construir uma nova imagem sobre este objeto, talvez, seja possível criar novas significações culturais para este lugar simbólico.

 

Referências

Foucault, M. (1972) A história da loucura. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Foucault, M. (1977) Eu, Pierre Riviére, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1987) Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Foucault, M. (1997) Resumo dos cursos do Collége de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Laplanche, J., & Pontalis, J B. (1991) Dicionário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Nasio, J.D. (1995) Introdução à obra de Freud. In: J. D. Nasio (org.), Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto e Lacan (pp.13-58). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde (2008). Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. São Paulo: Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças em Português.         [ Links ]

 

 

Recebido: 17/11/2012
Aceito: 10/04/2013

 

 

1 Contato: femarquetti@uol.com.br