SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número1O psicólogo na escola: um trabalho invisível?Eficácia, emoções e conflitos grupais: a influência do coaching do líder e dos pares índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.1 Juiz de Fora jun. 2014

 

ARTIGOS

 

Famílias com filhos em situação de rua: percepções sobre a intervenção de um programa social

 

Street children families: perceptions about a social program intervention

 

 

Lirene Finkler; Débora Dalbosco Dell'Aglio1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo avaliou a percepção de famílias atendidas pelo Serviço Ação Rua, responsável pela abordagem e acompanhamento a crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Porto Alegre, no período de 2007 a 2009. Foram realizados grupos focais com 11 mães e avós de famílias com filhos em situação de rua. As discussões foram transcritas e analisadas qualitativamente. Os resultados e discussão enfocaram os seguintes temas: expectativas quanto ao serviço, percepções quanto às intervenções, e dificuldades do serviço em relação à abordagem e acompanhamento das situações de rua. A teoria bioecológica do desenvolvimento humano e a perspectiva teórica do apoio social sustentam as análises, nas quais se destacaram os processos proximais entre os trabalhadores sociais e as famílias e o apoio social percebido como informal. O estudo contribui para avaliação das estratégias utilizadas em serviços socioassistenciais para enfrentamento das situações de rua.

Palavras-chave: Avaliação, Programas Sociais, Situação de Rua, Apoio Social.


ABSTRACT

This study evaluated the perception of families assisted by Ação Rua, a service responsible for monitoring and approaching street children and adolescents in the city of Porto Alegre, from 2007 to 2009. Focus groups were conducted with 11 mothers and grandmothers of families with street children. The discussions were transcribed and analyzed qualitatively. The results and discussions focused on the following themes: expectations regarding the service, perceptions on the intervention and difficulties encountered in the services. The bioecological theory of human development and the theoretical perspective of social support sustain the analysis, which highlighted proximal processes between social workers and families, as well as the informality in social support perceived. The study contributes to the evaluation of strategies used in socio assistance services to cope with street situations.

Keywords: Evaluation, Family, Social Programs, Street Situation, Social Support.


 

 

Intervenções voltadas para o enfrentamento da situação de rua, antes centradas nas crianças e dolescentes, voltaram de forma crescente seu foco para as famílias. A Constituição Federal demarcou a família como base da sociedade e determinou especial proteção do Estado (Brasil, 1988). A definição de família utilizada pelas políticas a públicas destaca as funções afetiva e de cuidado, o sentido de espaço de convívio privilegiado e a articulação dialética da família com a estrutura social na qual está inserida. Assim, ações e programas têm a finalidade de fortalecer a função protetora das famílias, promover seu acesso a direitos, fortalecer os vínculos familiares e comunitários e contribuir na melhoria de sua qualidade de vida (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome -MDS, 2004).

A família, independentemente do formato que assuma, é mediadora das relações entre o sujeito e a coletividade. É um espaço contraditório, por vezes de proteção, por vezes de risco (De Antoni, Barone, & Koller, 2007; Granpal/UFRGS, 2004). Colocada como instância primordial da sociedade, a família se conforma como espaço privado por excelência, que deve responder pela proteção social de seus membros (Mioto, 2008). Entretanto, muitas famílias estão submetidas a contextos de desigualdades sociais, sem garantia de emprego, e vulneráveis na garantia da sobrevivência de seus membros. Essas famílias desenvolvem, alternativamente, diversas estratégias para a manutenção de sua sobrevivência (Mioto, 2008), algumas das quais expõem crianças e adolescentes a riscos e favorecem a saída e fixação no espaço da rua.

As famílias encontram diferentes modos de reação e cuidado de seus filhos diante de situações de violência e risco presentes em suas comunidades e em seus cotidianos de vida. Algumas se apresentam mais vulneráveis aos efeitos negativos da comunidade, o que parece estar relacionado, entre outros fatores, à falta de uma rede social de apoio e a maior presença de fatores de risco (Cecconello, 2003; Yunes, 2003). É constatado na literatura que muitas destas famílias não têm conseguido cumprir de forma eficaz e dedicada as suas funções parentais, devido à alta demanda para a própria sobrevivência, prejudicando o cuidado dos filhos (Cecconello, 2003). Esta condição enfrentada por crianças, adolescentes e famílias em situação de risco foi descrita por Alves et al. (1999) como miséria econômica e afetiva. Famílias que vivenciam eventos de vida estressantes, como desemprego, doenças crônicas ou divórcio, podem apresentar disfunção nos processos proximais entre pais e filhos, repercutindo em baixa responsividade parental às necessidades infantis (Bronfenbrenner & Evans, 2000). A teoria bioecológica trabalha com o construto-chave denominado processo proximal (Bronfenbrenner, 2005). Trata-se do processo que atua ao longo do tempo e que se caracteriza pelas formas particulares de interação das pessoas com seus ambientes imediatos, especialmente no nível dos microssistemas. Envolve a reciprocidade de influências entre os participantes da interação e podem promover tanto competências quanto disfunções.

Estudos indicam que o apoio social pode se constituir em fator de proteção para famílias em situação de vulnerabilidade (Cecconello, 2003; De Antoni et al., 2007). O apoio social é um constructo complexo, com múltiplos componentes (Sarason, Sarason, & Pierce, 1990), sendo que, em geral, existem três tipos de apoio que aparecem em todas as classificações: apoio emocional (conceituado como disponibilidade de conversar e dividir problemas, estabelecendo uma relação de confiança), instrumental (associado à ajuda e à assistência em tarefas) e informacional (relacionado à disponibilidade de orientação e informação a respeito dos recursos da comunidade) (Pierce et al., 1996; Wills, Blechman, & McNamara, 1996). Segundo Gracia Fuster (1998), as fontes de apoio social formais (serviços e políticas públicas) e informais (apoio familiar e comunitário) coexistem, mas com escassa articulação, cada qual contando com diversas limitações e potenciais. Uma integração dialética destes dois sistemas pode gerar uma rede assistencial mais ampla e efetiva. Para tanto, um dos aspectos relevantes é analisar o funcionamento das fontes formais de apoio social, estruturadas em serviços e programas socioassistenciais.

Dentro dos contextos das famílias de baixa renda, a rede formal de apoio, constituída por serviços de saúde, assistência social e educação, pode cumprir um importante papel, suprindo lacunas da rede informal e comunitária, e auxiliando as famílias a desenvolverem novas competências e relações de apoio. Contudo, no discurso cotidiano dos trabalhadores sociais, como assistentes sociais, psicólogos e educadores, entre outros, o foco recai nas graves dificuldades apresentadas pelas famílias em lidar com suas crianças e adolescentes, mais do que nas competências familiares (Yunes, 2003, 2010). Nem sempre são devidamente reconhecidas as dificuldades enfrentadas em termos de violência estrutural e social (Yunes, 2010), assim como de recursos financeiros ou de saúde mental dos cuidadores principais.

É nesse contexto de afirmação da matricialidade familiar como diretriz das políticas sociais que se insere o presente estudo, ao destacar a relevância de ouvir como as próprias famílias percebem os serviços que lhes são destinados. O conceito de matricialidade familiar utilizado tem como base a Política Nacional de Assistência Social (MDS, 2004), que considera família o grupo de pessoas com laços consanguíneos e/ou alianças e ou/afinidades, espaço de proteção e socialização primária, que também necessita ser cuidado.

A temática família em sua relação com crianças e adolescentes em situação de rua vem sendo amplamente debatida na literatura (Granpal/UFRGS, 2004; Gregori, 2000; Morais, Morais, Reis, & Koller, 2010; Magni, Schuch, Gehlen, & Dickel, 2008; Paludo & Koller, 2008; Morais, Paludo, & Koller, 2010). Os estudos indicam que é falsa a ideia de que a criança que está na rua não tem família e procuram trabalhar com uma visão contextualizada de família, a partir da própria percepção de crianças/adolescentes. Os programas de enfrentamento à situação de rua têm, cada vez mais, envolvido intervenções voltadas às famílias e, dessa forma, é necessário que se conheça suas percepções quanto a esses processos. Assim, este artigo teve como objetivo investigar como as intervenções do Serviço Ação Rua são vividas e percebidas pelas famílias que possuem filhos em situação de rua.

 

Método

O presente artigo constitui-se em parte de um estudo maior de avaliação do Serviço Ação Rua, responsável pela abordagem e acompanhamento a crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias na cidade de Porto Alegre. O Serviço foi constituído em 2007, no contexto da política de Assistência Social. Foram constituídas 14 equipes, a maior parte através de convênio com entidades não governamentais, cada qual composta por sete profissionais (educadores de rua, psicólogos e assistentes sociais), as quais tinham como responsabilidade atuar de forma territorializada, sendo responsáveis por mapear as situações de rua, abordar crianças e adolescentes, estabelecer vínculo com elas e suas famílias, iniciar processo de acompanhamento continuado e favorecer a reinserção em espaços protetivos adequados para a faixa etária (escola, educação infantil, serviços convivência e de fortalecimento de vínculos e trabalho educativo, por exemplo). A atuação em cada território implicava em articulação com a rede socioassistencial e demais políticas públicas, especialmente de saúde e educação, tanto no sentido da inserção do público atendido, quanto fomentando a discussão sobre situação de rua nesses diferentes contextos.

O período abrangido pelo estudo contempla os três primeiros anos do Serviço, entre implantação e execução (março de 2007 a dezembro de 2009). A metodologia utilizada no estudo maior de onde se origina este artigo foi o Estudo de Caso Único (o Caso Ação Rua) com cinco unidades de análise incorporadas (Yin, 2005): análise documental, grupos focais com gestores, trabalhadores, adolescentes em situação de rua e famílias atendidas. Neste artigo são apresentados os resultados de uma das unidades de análise, que se refere ao estudo que avaliou a percepção de famílias atendidas quanto à intervenção do Serviço Ação Rua, observando o processo de abordagem e acompanhamento realizado pela equipe e dificuldades percebidas em sua execução.

 

Participantes

Participaram do estudo 11 famílias (nove mães e duas avós), com filhos em situação de rua, de três regiões da cidade de Porto Alegre. A Tabela 1 apresenta os dados sociodemográficos das participantes, que tinham idades entre 27 e 62 anos. Também estiveram presentes aos encontros crianças pequenas que acompanhavam as mães. Todas possuíam nível fundamental incompleto de escolaridade. As mulheres (mães ou avós) eram as principais responsáveis pela educação dos filhos, sendo cinco delas famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Entre as participantes, seis eram donas de casa ou não estavam trabalhando, tendo realizado atividades esporádicas em serviços gerais e domésticos, e cinco atuavam em serviços gerais e domésticos. Os companheiros trabalhavam com biscate e catação de materiais para reciclagem. A moradia era compartilhada com irmãos, netos e

bisnetos, estando a família extensa sempre próxima. O número de crianças por unidade familiar variou de três a 12, e as atividades de trabalho e/ou mendicância acompanhadas pelos filhos eram frequentes. Os filhos em situação de rua dessas famílias tinham idades entre zero e cinco anos, quando acompanhando a mãe na catação e/ou mendicância, e entre 11 e 15 anos, quando sozinhos em situação de rua.

 

Instrumentos e procedimentos

O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS (Protocolo nº 2008/007) e autorizado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), de Porto Alegre. Para a composição dos grupos de famílias foram definidas três regiões com maior número de casos de situação de rua, e convidadas a participar famílias que se encontravam em acompanhamento pelas equipes do Ação Rua. Foram realizados três Grupos Focais, com questões relativas ao modo como conheceram o Serviço, expectativas geradas nesse processo, detalhamento da forma como o acompanhamento foi vivido pela família, resultados percebidos e sugestões de modificação do Serviço, entre outras. São exemplos de questões orientadoras dos grupos focais: quando a equipe do Serviço começou a trabalhar com o filho/a e com a família, o que a família esperava que acontecesse?; o que de fato aconteceu, a partir do acompanhamento do Serviço?; em que ajudou?; o que poderia ter sido diferente? Além dos Grupos Focais, todas as participantes preencheram uma ficha de dados sociodemográficos, com informações pessoais e informações escolares, profissionais e familiares e assinaram Termo de Concordância Livre e Esclarecido.

A escolha do Grupo Focal se justificou por possibilitar debate e interação entre as participantes, de modo a promover elaborações, ideias originais e opiniões divergentes sobre o tema em foco (Carey, 1994; De Antoni et al., 2001; Fávero, Vitale, & Baptista, 2008). Os grupos foram conduzidos por duas pesquisadoras, uma exercendo a função de mediadora e outra de relatora-observadora. Foram realizados três encontros, com duração de 1h15min até 2h, cada um com cerca de quatro participantes. Todos os debates foram registrados através de gravação de vídeo, de anotações das falas e registros da linguagem não verbal (posturas e expressões). Os grupos foram realizados em serviços de assistência social próximos da residência das famílias, de modo a favorecer ao máximo a familiaridade com o espaço de realização do grupo e facilitar o deslocamento das participantes. O convite para participação foi realizado através de profissionais com os quais as participantes tinham contatos periódicos, como psicólogos, assistentes sociais e educadores de serviços regionais. A coleta de dados deste estudo foi realizada entre o segundo semestre de 2008 e abril de 2009.

 

Análise dos dados

Os dados obtidos através de Grupo Focal refletem as ideias, percepções e opiniões discutidas, com ênfase na noção coletiva que prevalece sobre os temas abordados e que formam um processo dinâmico e único (Carey, 1994; De Antoni et al., 2001; Fávero et al., 2008). Num primeiro momento, os dados de cada Grupo Focal foram analisados separadamente, uma vez que cada um deles constitui uma configuração ecológica distinta. Observaram-se semelhanças nas características sociodemográficas e familiares das participantes e diferenças nas temáticas predominantes em cada encontro. Durante a realização dos grupos focais as participantes referiram diversas experiências de abandono, situação de rua e trabalho infantil, vivenciadas em sua própria família de origem. Suas histórias são marcadas por problemas que se acumulam, relacionados à perda de saúde, falta de recursos materiais e financeiros e situações limite, relacionadas à ausência de moradia e de garantia de renda mínima para sobrevivência, caracterizando a população que é alvo do Serviço Ação Rua. Com relação às temáticas, em um dos grupos a ênfase da discussão recaiu no trabalho infantil e mendicância, no segundo grupo emergiu intensamente a questão do uso de drogas e a relação com o tráfico e, permeando os três grupos, a situação de rua junto aos pais (seja na atividade de recolhimento de materiais recicláveis para venda, seja na moradia nas ruas). Tais diferenças nos caminhos tomados pelo debate em cada grupo indicam a diversidade das problemáticas relacionadas à vivência de rua,o que torna complexa tanto a compreensão do fenômeno quanto seu enfrentamento. No entanto, neste estudo, o foco de análise está centrado nas percepções das famílias sobre as intervenções do Serviço, não se aprofundando nas demais temáticas evidenciadas.

Na segunda etapa, a análise conjunta dos grupos focais possibilitou a identificação de eixos de análise que perpassaram os três grupos, e que se relacionam à avaliação das famílias sobre o Serviço Ação Rua. Os dados foram submetidos à análise qualitativa seguindo pressupostos para análise de evidências de Yin (2005), buscando-se determinar as percepções dos diferentes participantes acerca da intervenção do Ação Rua. Esse processo ocorreu através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das discussões, envolvendo uma pré-análise, exploração do material e levantamento de eixos de análise e interpretação dos resultados. Os resultados e discussão serão apresentados a partir dos seguintes eixos de análise: 1) expectativas quanto ao serviço, 2) percepções quanto às intervenções, e 3) dificuldades do Serviço. A reprodução de falas das participantes é utilizada para exemplificar os conteúdos debatidos nos grupos e estão destacadas em itálico.

 

Resultados e Discussão

O primeiro aspecto a ser discutido é a participação feminina como representante das famílias nos grupos de discussão da pesquisa. Ainda que tenham sido convidadas as famílias, é característico das intervenções sociais atingirem predominantemente as mulheres (Fávero et al., 2008; Mioto, 2010). Conforme relatórios do Serviço, entre as famílias atendidas pelo Ação Rua, a função materna é realizada pela mãe, irmã mais velha ou avó, que desempenham o cuidado afetivo e, mesmo quando existe um companheiro masculino, também são responsáveis financeiras pelo núcleo familiar. Esse aspecto é corroborado por Meyer, Klein e Fernandes (2012), em estudo sobre as noções de família em programas governamentais de inclusão social. Há predominância de famílias monoparentais chefiadas por mulheres com baixa escolaridade, com poucas opções de trabalho e renda, grandes jornadas de trabalho, precárias condições de moradia, alimentação e acesso à saúde e educação. Por serem as mulheres as principais responsáveis pela família é compreensível que sejam elas a falar da experiência com o Serviço Ação Rua. A adoção do termo ‘família1 como foco de ações pelas políticas públicas deve ser problematizada, uma vez que, na prática, é a mulher-mãe quem é convocada para ser sua parceira na intervenção (Meyer et al., 2012). Nesse sentido, o fato das participantes deste estudo serem mulheres reflete o contexto social, e também do programa em estudo.

a) Expectativas quanto ao serviço

Para compreender as reações das mães às intervenções foi relevante considerar as expectativas iniciais presentes em seus primeiros contatos com o Serviço Ação Rua. Tais expectativas estavam relacionadas a intervenções com a família como um todo e com os filhos. Por um lado, esperavam que a equipe tivesse ação diretiva e invasiva, tentando controlar, determinando o que pode ou não ser feito, sem a perspectiva de resolução de fato. Por outro lado, esperavam que os filhos fossem retirados das ruas. Esse controle externo sobre os filhos foi referido de duas formas: de um modo mais coercitivo (que a criança/adolescente fosse retirada das ruas a despeito de seu próprio desejo, e que fosse levada para algum lugar do qual não pudesse sair, como um abrigo, local que mudaria seu comportamento e sua relação com as drogas) ou mais compreensivo (que as crianças fossem protegidas, não apenas dos perigos da rua, mas de ameaças que poderiam estar dentro da própria casa). De forma geral, as famílias manifestaram predominantemente expectativas de ação intensiva e diretiva advinda dos serviços públicos, dentre os quais se localiza o Ação Rua, que eram em parte negativas, não garantindo apoio real:

Eu achei que eles iam faze a mesma coisa que o Conselho: não pode faze isso, não pode faze aquilo, achei que eles iam só se mete também e não iam resolve nada

(Participante 3).

Essas visões negativas são possivelmente influenciadas pela história de relação com a Assistência Social, como assinalaram Yunes (2010) e Mioto (2010). Estudos da década de 80, analisados por Gracia Fuster (1998), já apontavam que o fato de solicitar ajuda aos sistemas formais de apoio pode, para determinados indivíduos, constituir-se em uma ameaça à autoestima e reconhecimento público de fracasso ou inferioridade. A própria expectativa das participantes de que o Serviço atuasse de forma coercitiva com os adolescentes pode estar relacionada ao esgotamento de tentativas anteriores das mães, que acabam por serem favoráveis ao uso de medidas mais enérgicas para lidar com a ida para a rua. Esse esgotamento da família na proteção de seus filhos vem sendo alvo dos diversos programas de apoio sociofamiliar em todo o país, os quais apresentam semelhanças em suas propostas metodológicas (Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2007; MDS, 2009).

b) Percepções quanto às intervenções

As descrições e percepções das famílias quanto à intervenção do Ação Rua foram, de forma geral, relacionadas à questão do apoio recebido, não só em relação ao cuidado de seus filhos, mas também à forma de funcionamento da família. A partir das categorias de apoio apresentadas na literatura (Pierce et al., 1996; Wills, Blechman, & McNamara, 1996), foram organizadas duas subcategorias para descrever o apoio percebido pelas famílias: apoio emocional, através de expressões usadas para descrever a intervenção e as características dos trabalhadores sociais; e apoio instrumental, através de expressões usadas para descrever a intervenção e os encaminhamentos práticos estabelecidos. O apoio informacional não foi identificado de forma isolada, uma vez que a disponibilidade de orientação e informação a respeito dos recursos da comunidade, no caso destas famílias, implicava acompanhamento efetivo no acesso a tal recuso, caracterizando apoio instrumental.

A percepção das famílias sobre a experiência com o Serviço parece diferenciar-se das expectativas iniciais, na medida em que faz forte referência aos apoios emocional e instrumental recebidos. Se por um lado as expectativas iniciais parecem estar mais centradas no filho, a percepção quanto à intervenção está focada em grande parte na relação pessoal estabelecida pela mãe/avó com os trabalhadores sociais, complementada pela intervenção relacionada mais diretamente ao filho com vivência na rua.

Apoio emocional

Esta categoria relaciona-se com todas as expressões utilizadas pelas participantes que se referiam ao reconhecimento de formas de apoio emocional obtidas através da interação com os trabalhadores do Ação Rua. A intervenção do serviço foi percebida pelas participantes como escuta e acolhimento às questões tanto da criança quanto da família. Foram usadas expressões como "conversavam" (Participante 2 e 5), "falavam comigo" (Participantes 2 e 7), "me davam apoio" (Participante 9 e 11), "acalmavam pra não fazer besteira" (Participante 9). O apoio e acolhimento às necessidades emocionais da própria mãe foram reconhecidos como fatores que contribuíram para a mudança, e foram geradores de confiança nos trabalhadores, percebidos como pessoas que não a abandonam ou desistem da família, como pode ser observado na fala desta mãe:

... eles me ajudaram bastante, tiveram bastante paciência comigo também... [Mediadora - Paciência por quê?] Ah, porque eu era meio teimosa, meio birrenta. Eles vinham lá, conversavam com o M. [filho], comigo, iam lá... Eles tiveram muita paciência comigo (Participante 2).

As participantes destacaram a capacidade de "conversar" (Participante 2 e 5), ser comunicativo e "apoiador" (Participante 11), reconhecendo os pequenos resultados e aquisições da família. Isso parece levar as famílias a perceberem os trabalhadores sociais como "pessoas humanas e compreensivas" (Participante 11), e que, de fato, têm condições de "conhecer e entender a situação da família. Dá mais vontade da gente conversar" (Participante 10).

Outro elemento que possibilitou o apoio emocional foi o desenvolvimento de uma perspectiva de proximidade com os trabalhadores. Eles foram referidos como estabelecendo relação "como amigo" (Participante 2), o que imprime um caráter de familiaridade e semelhança com as relações estabelecidas no âmbito de sua comunidade. O educador passa a ser visto pelas famílias como alguém próximo, não é um estranho ou alheio à vida e ao cotidiano das vilas, "não tem medo de entrar nos beco ou nas vila" (Participantes 1 e 3). Para as participantes, os trabalhadores não se importam com a sujeira da casa ou da criança, "não se importa com o cheiro das pessoas" (Participante 8), é "pessoa simples" (Participantes 5 e 10), que "não se importa de conversar com pobre" (Participante 5), não agem como se fossem superiores. As seguintes falas exemplificam esses aspectos:

Boa vontade deles de tá nos beco, porque é isso que eles fazem, né... (...) Tando no trabalho deles eles vão. Seja meio dia, seja de manhã, eles vão. (...) É uma grande coisa, porque não é todo mundo que vai lá não

(Participante 5).

Não são aquelas pessoa metida a não me toque, eles sentam no chão. O educador não pode chega e dizer assim "ai ela tá fedendo!(...) não tem como (Participante 8).

Outro aspecto relevante do apoio social que pode ser observado nas falas das participantes relaciona-se ao afeto percebido através de expressões físicas e concretas: "abraços" (Participantes 8 e 9), "olhar nos olhos" (Participante 11), "abanar" (Participante 2) (reconhecimento), demonstrando que "gostam da gente" (Participante 9 e 11). Gestos concretos como esses parecem reforçar a relação e o vínculo, assim como demonstrações de preocupação e interesse nas questões da família, o que é percebido através de gestos como "telefonar" (Participantes 5, 9 e 10), "ir na casa" (Participantes 1, 2, 3 e 8), e que "não pense só em ganhar dinheiro" (Participantes 5 e 8), indicando foco na família mais do que em seu lugar de trabalhador, como exemplificado pelas seguintes falas:

As pessoas gostam de alguém na área deles, que olhe nos teus olhos e diga: "Ah, fulana, que tá acontecendo?" Que eu acho que o que todas nós precisamos é de alguém que apóie a gente. Pessoas humanas (Participante 11).

Elas são umas pessoa que se preocupam, não é a assistente social que atende e não levanta da cadeira pra ver se tu já fez uma casa. Quem procura é elas, elas que telefonam pra mim, elas que falam as coisa pras crianças...

(Participante 10).

Apoio instrumental

Foram categorizadas como apoio instrumental falas das participantes que se referiam à ajuda direta ou serviços que foram prestados pelo Ação Rua. As famílias descreveram o trabalhador social como aquele que "arranja lugar para a gente ir" (programa social) (Participante 2 e 9), "ensina a ir em lugares" (Participante 11), "arruma ocupação para o filho" (Participante 1 e 10). Assim, a partir das falas das participantes, observou-se que elas esperam que o trabalhador tenha conhecimento e capacidade de acompanhar a família nos diversos espaços necessários à sua cidadania e proteção, assim como capacidade de mediar conflitos junto aos demais serviços da rede.

Dentre as ações descritas pelas famílias como apoio instrumental estão: abordagem na rua/levar em casa, presença da equipe na escola, acompanhamento, visita domiciliar semanal, inserir em programa/atividade para os filhos, mediação de conflitos com serviços da rede e ser fonte de informações sobre direitos e cidadania. A fala da participante exemplifica o apoio instrumental percebido:

A gente às vezes tá em lugares que nem espera que elas trabalhem, lá tá elas pra cima e pra baixo, atrás de criança, de curso, não sei o que, a mãe não levou no dia de faze matrícula, não é qualquer um que faz não (Participante 10).

Eles me ajudaram, caminhavam comigo, vamo lá na delegacia, vamo da queixa aqui... então eles caminham junto (Participante 11).

As participantes destacam esse foco simultâneo na escuta e acolhimento às questões tanto da criança quanto da família (apoio emocional), quando na constituição de ações percebidas como de apoio e cuidado em ações concretas (apoio instrumental). Essa relação positiva percebida pelas famílias será brevemente analisada pela perspectiva da teoria bioecológica do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner & Morris, 1998) e da perspectiva teórica do apoio social (Gracia Fuster, 1998).

As interações proporcionadas na intervenção do Ação Rua com as famílias parecem justamente caracterizar processos proximais facilitadores do desenvolvimento de competências junto às famílias. Essas interações são descritas pelas famílias como constantes, envolvendo diálogo, reciprocidade e afetividade. São destacados também o fato de serem mantidas em um período estável de tempo e realizarem-se nos contextos de vida da própria família (a casa, a rua, a escola, a comunidade). Essas interações tornam-se progressivamente mais complexas e passam a mediar tanto as interações intrafamiliares (entre os adultos cuidadores e as crianças), como também extrafamiliares (entre os adultos cuidadores e a rede de atendimento, especialmente serviços de saúde e sociofamiliar, assim como entre a criança/adolescente e sua rede de atendimento, como serviço socioeducativo e escola). As interações proximais desenvolvidas pelo Ação Rua procuram promover competências relacionais, tais como exercício de novas possibilidades de práticas educativas, ampliação da capacidade comunicacional, expressão de afetos e limites, que podem ser utilizados como alternativa ao uso de violência física na relação com os filhos. Também procuram promover competências na relação com a rede socioassistencial. Evoluem, portanto, no enfrentamento das vulnerabilidades, utilizando as condições e forças disponíveis na família e na rede social informal e formal existentes na comunidade.

A avaliação subjetiva quanto ao apoio recebido por parte dos usuários é elemento destacado na literatura como relevante componente do apoio social (Gracia Fuster, 1998; López-Cabanas & Chacón, 2003; Pierce et al., 1996). As famílias deste estudo caracterizaram o apoio emocional recebido do Serviço como de certa proximidade, semelhante à relação com um amigo. Esse aspecto permite questionar a linha que separa o apoio formal (prestado pelos serviços sociais) do apoio informal (relacionado às relações pessoais e comunitárias). O apoio oferecido é formal, no sentido de que o Serviço executa etapas metodológicas previstas, operando a partir de um sistema de categorias explícitas. Entretanto, parece que para as famílias este apoio precisa ser sentido como informal, próximo, pois esse é o apoio reconhecido e valorizado. São manifestações informais de afeto, apresentadas pelos trabalhadores, que possibilitam às famílias perceber a ação do projeto. O apoio formal precisa ser sentido como informal, tornando possível, a partir do vínculo trabalhador/usuário, compreender a efetividade do Serviço. Conforme Gracia Fuster (1998), trata-se da aproximação de culturas diferentes: regras formais e procedimentos de rotina versus privacidade de regras implícitas e a atividade espontânea.

A revisão realizada por Gracia Fuster (1998) já apontava análises teóricas que problematizavam a importância dos grupos informais e seu papel complementar aos sistemas de apoio formais. A questão não é se os sistemas formais de apoio podem substituir as redes informais, mas como podem atuar de forma mais articulada, estimular tais redes e, principalmente, aprender com seus padrões de interação de modo a tornarem-se mais efetivas.

Esse parece ser um aprendizado exercitado pelo Serviço Ação Rua. Na visão das participantes, os trabalhadores do Ação Rua, diferentemente de outras experiências das famílias com serviços socioassistenciais, parecem incorporar em sua prática a dimensão de reciprocidade em oposição à dimensão de autoridade, que caracteriza os sistemas formais (Gracia Fuster, 1998). Também a demonstração concreta de afeto por parte dos trabalhadores e a aceitação da realidade de vida das famílias são elementos pertinentes de análise. Diferentes falas das participantes destacaram momentos de expressão física de afeto: o abraço, o toque, o "pegar na mão", o sentar junto, mesmo que na sujeira. O apoio emocional irá auxiliar, especialmente as mães, a reconhecer suas emoções e padrões relacionais estabelecidos com os filhos que se encontram em situação de rua, com feedbacks relacionados aos potenciais de sua identidade e desempenho parental (ajudando-as no aprendizado do exercício da maternagem, por exemplo). Parece estar em questão um elemento de humanização, um momento de aproximação mais efetiva do trabalhador, uma interação que é percebida como verdadeira, ainda que seja uma tarefa profissional. São elementos como esses que tornam possível o vínculo, e é somente a partir do vínculo que a intervenção passa a existir de fato. A análise assinala que é justamente o caráter informal percebido que cria condições para o vínculo, torna acessível e qualifica os serviços de apoio ofertados pelos programas sociais.

Ao analisar o apoio social construído na relação com as famílias, não ficam excluídas as diferenças sociais entre trabalhadores e famílias, que, em sua maioria, são de classes sociais e moram em bairros diferentes do público que atendem. Percebido subjetivamente pelas famílias como informal, o apoio social é formal para os trabalhadores, não em sua expressão, mas em sua essência, afinal, é instrumento de trabalho, uma tecnologia relacional. Portanto, no contexto deste estudo, o apoio social oferecido pelo Ação Rua pode ser interpretado como formal/informal. Essa expressão destaca a contradição que constitui a relação interpessoal estabelecida no contexto das profissões de ajuda, especialmente aquelas que envolvem a abordagem social e intervenções comunitárias. No estudo de Alexandre, Labronici, Maftum e Mazza (2012), que avaliou a rede social de apoio às famílias, também emergiram dois tipos de rede -formal e informal, sendo que os autores entenderam por rede social formal aquela na qual a composição se relaciona à posição e aos papéis desempenhados por seus membros na sociedade, incluindo profissionais de saúde, entre outros; e rede social informal foi aquela que envolveu membros com relações na dimensão pessoal e afetiva, entre eles família, amigos, vizinhos, entre outros. No entanto, também foi observado que o reconhecimento das famílias quanto à presença de diferentes profissionais de saúde por meio da participação destes na equipe multiprofissional, favoreceu o estabelecimento de relações mais confiáveis entre profissional-usuário, gerando interações favoráveis entre os membros da rede social de apoio às famílias.

Estas características reforçam a possibilidade de compreender os processos que ocorrem nestas interações como processos proximais (Bronfenbrenner, 2005), tendo em vista que se observa a presença de afeto, reciprocidade e equilíbrio de poder. Esse equilíbrio de poder refere-se à posição de respeito pelos conhecimentos e perspectivas da família no andamento das intervenções, ao não impor o ponto de vista do Serviço, sem, todavia desconsiderar que a diferença de classe social compõe esse cenário. A reciprocidade, neste contexto, precisa ser diferenciada daquela existente entre pessoas que disponibilizam apoio social e compartilham o mesmo contexto de vida, são vizinhas, por exemplo. Trata-se de um nível de reciprocidade que tende para a relação pessoal de ajuda, mas que se mantém também como relação profissional de ajuda. Tais relações proximais ocorrem com regularidade, num período de tempo, no contexto de inserção e se tornam progressivamente mais complexas (Bronfenbrenner, 2005). Elas favorecem o desenvolvimento na medida em que são percebidas pelas famílias como promotoras de competências.

Neste sentido, Tudge (2008) destaca que um dos aspectos dos processos proximais que precisa ser considerado refere-se à forma como os papéis sociais são negociados entre parceiros nos processos proximais, e o significado que as atividades e interações têm para os envolvidos. Assim, os papéis sociais em jogo podem ser de educador, de amigo, de representante do Estado, de repressor do trabalho infantil, conforme as relações se estabelecem e o significado é dado pelos participantes. As participantes do estudo destacaram o aspecto positivo e promotor de competências das interações proximais. Entretanto, estes outros papéis encontram-se no espectro de possibilidades nas relações profissionais de ajuda, pois o lugar de trabalhador social e representante de uma política pública específica não deixa de existir.

O apoio instrumental está relacionado com as etapas do Serviço: abordagem na rua, acompanhamento da família e gerenciamento das relações com a rede. Pode-se destacar a necessidade de promoção de interfaces com outras redes formais de apoio cuja atuação não atinge adequadamente o público em situação de rua (educação e saúde, por exemplo). Ou seja, o Ação Rua passa a atuar como mediador dos micro e meso sistemas que atuam (ou deveriam atuar) com a criança em situação de rua a sua família. Os microssistemas são os espaços em que ocorrem os processos proximais, padrões de atividades, papéis e relações interpessoais experimentados em relações face a face. O mesossistema refere-se ao conjunto de microssistemas característicos de crianças e adolescentes em situação de rua e suas interrelações. O apoio instrumental oferecido pelo Ação Rua refere-se principalmente ao acompanhamento das famílias em seu processo de inserção nos recursos assistenciais de transferência de renda e apoio familiar. Esse acompanhamento deve ser devidamente destacado, uma vez que, na descrição dos trabalhadores, não se refere a fazer por, mas a fazer com. Nesse sentido, o apoio instrumental de acompanhamento soma-se ao apoio informacional, pois, para muitas dessas famílias, não basta a disponibilização de informações sobre como fazer documentos, como inscrever-se em programas, mas é necessário o movimento concreto de acompanhá-las em seus primeiros acessos à rede de serviços. Essa ação mostra-se ainda mais relevante quando se coloca em questão o objetivo de construção de cidadania das pessoas colocadas à margem das demais políticas públicas. Dessa forma, o papel do Ação Rua parece ser importante na constituição do mesossistema, pois atua diretamente nos microssistemas destas famílias, favorecendo seu entrelaçamento.

c) Dificuldades/problemas do Serviço Ação Rua

Os problemas apontados pelas famílias nas discussões dos grupos focais foram relacionados à estrutura do serviço, rede, qualidade do atendimento prestado/relação da equipe com a família, efetividade e metodologia. Em termos da estrutura do serviço as famílias mencionaram aspectos tais como a ausência de automóvel para o deslocamento das equipes (que utilizam o transporte público) e a necessidade de ampliação do horário de funcionamento para atender durante as 24 horas do dia.

Com relação à rede de atendimento, as participantes citaram a oferta insuficiente de serviços complementares ou de vagas na rede da região para atendimento em terapia familiar e modalidades de atendimento em saúde mental. Também foram referidas diferenças de atuação entre as equipes, relacionadas principalmente à diferente rede de serviços de saúde e assistência disponíveis em cada região investigada. Por exemplo, nem todas as regiões contam com Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD).

Ainda relacionada à rede, foram referidas disputas e divergências de concepção ou de entendimento sobre os casos entre os programas socioassistenciais, sendo que as famílias percebem no Ação Rua aliados para ajudá-las a obter atendimentos na rede. Ou seja, a aquisição de um direito social, como acesso a educação ou serviço de saúde, parece ser favorecida pelo apoio de um serviço que promove o acompanhamento e orientação das famílias em seu próprio contexto, como no trecho a seguir:

"Eu acho assim, que o (nome do Serviço) tinha que ter mais autoridade. (...) por exemplo, eu queria bota meus pequeno na creche, dai elas tão tentando desde o ano passado..." (Participante 10).

Sobre a qualidade do atendimento prestado/relação da equipe com a família foram destacados dois problemas: confiança na família e questão de sigilo na comunidade. O primeiro problema descrito foi de que as equipes nem sempre acreditam na palavra da própria mãe com relação ao andamento de sua situação e de seu filho, ouvindo também vizinhos, professoras, e fontes externas à própria família. Neste caso, os trabalhadores foram referidos como sendo parciais, priorizando tais fontes, e não confiando plenamente na palavra da mãe.

O segundo problema referente à qualidade do atendimento foi relacionado à exposição da família que é atendida pelo programa, uma vez que as intervenções em geral ocorrem na comunidade e na rua, onde é difícil garantir privacidade e sigilo. De acordo com as participantes, os vizinhos acabam sabendo do que se trata o acompanhamento, levando a família a sentir vergonha, como no exemplo a seguir:

Eu só tive um problema né, eles (os vizinhos) tavam tudo na frente, e ali em casa é sempre assim, tá sempre cheio mesmo, aí chega alguém estranho (a equipe do Ação Rua), fiquei meio assim, que eu tava com vergonha, né. (...) Meu guri fico meio avermelhado, que ele tava fazendo umas coisa que era errado, (os vizinhos) até pararam de conversa pra escuta o que eles (a equipe do Ação Rua) tavam falando (Participante 5).

No entanto, a relação entre a equipe e o público alvo também parece passar por momentos de retratação. As mães referiram situações em que a equipe se desculpou ao perceber o constrangimento da família e procurou evitar falar questões mais pessoais fora da casa, sendo que questões de confiança foram retomadas no processo de trabalho.

Sobre a efetividade do trabalho desenvolvido, as mães trouxeram ao debate referências a comentários da população de que "o Serviço não faz nada". No entanto, elas não assumiram diretamente esta opinião negativa sobre a efetividade do programa, tendo remetido-a a comentários de outras pessoas de suas comunidades:

Eu vejo muito as pessoas falarem que o (nome do Serviço) não faz nada: 'isso é desperdício de verba pública', era o que eu ouvia na região. Mas como eu sou educadora, eu sei que primeiro tem a abordagem, a agente não vai aborda e resolve (Participante 8).

Por fim, em termos da metodologia do serviço, as participantes problematizaram a questão do tempo/duração do acompanhamento realizado pelo Ação Rua e a perspectiva de sua finalização. Para algumas famílias o tempo de atuação direta da equipe é percebido como curto, como, por exemplo, quando é possível ser inserido em um programa de transferência de renda (como Bolsa Família ou PETI) e tal inserção repercute na vulnerabilidade foco da intervenção. Em outros casos o tempo de atuação da equipe se estende, com sistematicidade semanal; em certos períodos, com presença quase cotidiana. As mães nem sempre sabiam dizer por que a equipe não visitava mais, não associavam necessariamente com o resultado de, por exemplo, os filhos não estarem mais na rua, ou com uma modificação na metodologia, envolvendo um acompanhamento mais à distância. Pelas falas das mães, pode-se observar que as mesmas não têm clareza quanto a um limite do trabalho do Ação Rua ou um encerramento do acompanhamento. A passagem para outro programa também parece ser sentida como certo abandono, falta de preocupação da equipe e não pertencimento:

Não sei, só sei que na minha casa elas não vão mais. Elas foram muito já na minha casa.(...) acho que me deixaram com a D. (técnica de outro programa da assistência social), comigo elas não se preocupam mais (Participante 2).

Por outro lado, pode ser sentida como forma de controle e ação invasiva:

Até a minha guria de quatorze anos pergunto assim (...): "por que que eles continuam vindo aqui se a gente não vai mais lá? [na rua]" Aí eu digo "olha, por causa de que eles tão acompanhando (Participante 1).

Dentre as dificuldades reconhecidas pelas famílias na atuação do Ação Rua, cabe destacar a falta de clareza quanto às etapas do acompanhamento, especialmente quanto à etapa de finalização. Por um lado essa questão relaciona-se ao fato do vínculo ser reconhecido como informal, portanto submetido aos tempos, distanciamentos e proximidades das relações informais. Por outro lado, não saber ao certo quando termina a intervenção parece provocar, em algumas famílias, algum desconforto ou por sentirem-se abandonadas quando o acompanhamento distancia-se, ou por não compreenderem porque o acompanhamento se mantém, mesmo os filhos não estando mais diretamente em situação de rua. As demais vulnerabilidades vividas por essas famílias, que possivelmente contribuíram para a experiência de rua dos filhos, motivam a continuidade do acompanhamento. Entretanto, essas vulnerabilidades podem não ser consideradas um problema pelas famílias, ou elas podem não desejar maior intervenção.

Cabe registrar que não foram mencionados pelas famílias elementos relevantes relacionados à reinserção dos jovens na comunidade. Esse é um eixo previsto no projeto do Serviço Ação Rua, que favoreceria as redes de apoio informais, e alimentaria as relações da criança/adolescente e sua família em sua comunidade. Entretanto, as famílias referem a inserção em serviços socioassistenciais, ou seja, rede de apoio formal, mas não comentam sobre sua participação mais efetiva em espaços da comunidade ou outros grupos de apoio informais. Uma hipótese é que esse objetivo do serviço não tenha sido de fato atingido. Por outro lado, esta etapa metodológica pode ter sido trabalhada, mas não percebida enquanto tal pelas famílias participantes.

 

Considerações Finais

Os dados deste estudo apontaram a predominância de uma percepção positiva das famílias em relação ao Serviço e podem contribuir no processo de avaliação das estratégias utilizadas em serviços socioassistenciais, assim como no seu aperfeiçoamento. Entre as modificações percebidas pelas famílias a partir da intervenção do Serviço Ação Rua, estão: a inserção dos filhos ou da própria família em programas ou serviços (escola, serviço de apoio socioeducativo em turno oposto à escola, Bolsa Família); modificações nas interações familiares (maior diálogo dentro da família, em especial entre as mães e os filhos); modificações nos estilos educativos adotados (mais conversa e menos violência física). Ainda assim, há referência de que alguns de seus filhos seguem em situação de rua.

A etapa de avaliação do serviço Ação Rua realizada com as famílias destaca a necessidade de revitalização e transformação dos sistemas de apoio dos serviços públicos, de modo a torná-los mais participativos, acolhedores e atrativos para o usuário, o que pode ser proporcionado a partir do aprendizado dos padrões de interação informais. O fato da intervenção das equipes ser reconhecida pelas famílias como apoio emocional informal aparece como uma de suas principais forças potencializadoras das interações proximais que se seguem ao vínculo. Para Alexandre et al. (2012), os profissionais podem e devem desenvolver estratégias de ligação entre os membros da rede social de apoio disponível às famílias, visando à promoção do desenvolvimento, além de encorajálas a serem agentes ativos e buscarem coletivamente recursos e serviços da comunidade que propiciem melhorias na qualidade de vida.

Destaca-se a relevância de realizar processos de avaliação dos serviços públicos oferecidos. Assim como se constata que a modalidade de interação percebida como informal permite desenvolver interações mais potentes, os processos de avaliação devem constituir metodologias mais informais, que irão possibilitar a expressão subjetiva das percepções dos usuários quanto aos serviços. Os grupos focais com objetivo de avaliação de serviços e programas mostram-se um dispositivo interessante, pois proporcionam troca de opiniões e avaliação utilizando linguagem e contexto dos próprios usuários. Realizar momentos de avaliação em grupos já existentes, quando há uma interação grupal já estabelecida entre os participantes pode potencializar o encontro. Em estudos futuros seria relevante considerar as opiniões de outros membros da família, para além das cuidadoras principais, criando condições alternativas para sua motivação e participação. Há necessidade de construir diversos ângulos de aproximação à realidade complexa destas famílias.

Por fim, cabe destacar a importância de que projetos sociais direcionados a crianças e adolescentes em situação de rua considerem cada vez mais as interações familiares. É relevante sublinhar que o fortalecimento dos adultos da família, no seu papel de cuidadores/parental apresenta repercussões diretas junto aos filhos que se encontram em situação de rua, mas tem também um papel preventivo no agravamento de situações vividas com os filhos que ainda permanecem em casa. Portanto, a ênfase na matricialidade familiar repercute em promoção de qualidade de vida junto a essas famílias e comunidades.

 

Referências

Alexandre, A, M. C., Labronici, L. M., Maftum, M. A., & Mazza, V. A. (2012). Mapa da rede social de apoio às famílias para a promoção do desenvolvimento infantil. Revista Escola de Enfermagem USP, 46(2), 272-279.         [ Links ]

Alves, P., Koller, S. H., Silva, A.S., Reppold, C. T., Santos, C. L., Bichinho, et al. (1999). A construção de uma metodologia observacional para o estudo de crianças em situação de rua: criando um manual de codificação de atividades cotidianas. Estudos de Psicologia, 4(2), 289-310.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (2005). The bioecological theory of human development. In U. Bronfenbrenner (Org.), Making human beings human: bioecological perspectives on human development (pp. 3-15). Thousand Oaks: Sage Publications.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U., & Evans, G. (2000). Developmental science in the 21st century: emerging questions, theoretical models, research designs and empirical findings. Social Development, 9, 115-125.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U., & Morris, P. (1998). The ecology of developmental processes. In: R. M. Lerner & W. Damon (Orgs.), Handbook of child psychology (pp. 9931027). New York: John Wiley & Sons.

Carey, M. A. (1994). The group effect in focus group: planning, implementing and interpreting focus group research. In M. Morse (Org.), Critical issues in qualitative research methods (pp. 224-241). Thousand Oaks: Sage.         [ Links ]

Cecconello, A. M. (2003). Resiliência e vulnerabilidade em família em situação de risco. Tese de Doutorado Não-Publicada, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.         [ Links ]

Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados (1988). Constituição da República Federativa do Brasil (18ª ed.). Centro de Documentação e Informação, Coordenação de Publicações.         [ Links ]

De Antoni, C., Barone, L. R., & Koller, S. H. (2007). Indicadores de risco e de proteção em famílias fisicamente abusivas. Psicologia: Teoria e Pesquisa 23(2), 125-132.         [ Links ]

De Antoni, C., Martins, C., Ferronato, M. A., Simões, A., Maurente, V., Costa, F., & Koller, S. H. (2001). Grupo focal: método qualitativo de pesquisa com adolescentes em situação de risco. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 53(2), 38-53.         [ Links ]

Due, P., Holstein, B., Lund, R., Modvig, J., & Avlund, K. (1999). Social relations: network, support and relational strain. Social Science and Medicine, 48(5), 661-673.         [ Links ]

Fávero, T., Vitale, M. A. F., & Baptista, M. V. (2008). Famílias de crianças e adolescentes abrigados: quem são, como vivem, o que pensam, o que desejam. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Gracia Fuster, E. (1998). El apoyo social en la intervención comunitária. Barcelona: Paidós.         [ Links ]

Granpal/UFRGS (2004). Perfis e mundo das crianças e adolescentes em situação de rua da Grande Porto Alegre. Relatório de pesquisa não publicado, GRANPAL - Associação dos Municípios da grande Porto Alegre, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS, Porto Alegre.         [ Links ]

Gregori, M. F. (2000). Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

López-Cabanas, M., & Chacón, F. (2003). Apoyo social, redes sociales y grupos de autoayuda. In M. López-Cabanas & F. Chacón (Orgs.), Intervención psicossocial y servicios sociales (pp. 189-214). Madrid: Síntesis Psicología.         [ Links ]

Magni, C. T., Schuch, P., Gehlen, I., & Dickel, I. K. (2008). Crianças e adolescentes em situação de rua em Porto Alegre. In: I. Gehlen, M. B. Silva, & S. R. Santos (Orgs.), Diversidade e proteção social: estudos quantiqualitativos das populações de Porto Alegre (pp. 71-92). Porto Alegre: Century.         [ Links ]

Meyer, D. E., Klein, C., & Fernandes, L. P. (2012). Noções de família em políticas de ‘inclusão social1 no Brasil contemporâneo. Estudos Feministas, 20(2), 433-449.

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004). Política Nacional de Assistência Social PNAS. Brasília: MDS.         [ Links ]

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009). Tipificação nacional de serviços socioassistenciais. Conselho Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS.         [ Links ]

Mioto, R. C. T. (2008). Família e políticas sociais. In I. Boschetti, E. R. Behring, S. M. M. Santos, & R. C. T. Mioto (Orgs.), Política social no capitalismo -tendências contemporâneas (pp. 130-148). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Mioto, R. C. T. (2010). Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no contexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar. In: M. A. Sales, M. C. Matos, & M. C. Leal (Orgs.), Política social família e juventude - uma questão de direitos (6ª ed., pp. 4359). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Morais, N. A., Morais, C. A. de, Reis, S., & Koller, S. H. (2010). Promoção de saúde e adolescência: um exemplo de intervenção com adolescentes em situação de rua. Psicologia e Sociedade, 22, 507-518.         [ Links ]

Morais, N. A., Paludo, S., & Koller, S. H. (2010). A família de crianças e adolescentes em situação de rua. In N. A. Morais, L. Neiva-Silva, & S. H. Koller (Orgs.), Endereço desconhecido: crianças e adolescentes em situação de rua (pp. 177-198). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Paludo, S., & Koller, S. H. (2008). Toda criança tem família: crianças em situação de rua também. Psicologia & Sociedade, 20(1), 42-52.         [ Links ]

Pierce, G.R., Sarason, B.R., Sarason, I.G., Joseph, H.J., & Henderson, C.A. (1996). Conceptualizing and assessing social support in the context of the family. In: G.R. Pierce, B.R. Sarason, & I.G. Sarason (Orgs.), The handbook of social support and the family (pp. 3-23). New York: Plenum.         [ Links ]

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. (2007). Monitoramento e avaliação da política de assistência social de Belo Horizonte: sistema de indicadores. Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social. Belo Horizonte: SMAAS.         [ Links ]

Sarason, B. R., Sarason, I. G., & Pierce, G. R. (1990). Social support. An interactional view. New York: John Wiley & Sons.         [ Links ]

Tudge, J. R. H. (2008). A teoria de Urie Bronfenbrenner: uma teoria contextualista? In L. V. C. Moreira & A. M. A. Carvalho (Orgs.), Família e educação: olhares da psicologia (pp. 209-231). São Paulo: Paulinas.         [ Links ]

Wills, T. A., Blechman, E. A., & McNamara, G. (1996). Family support, coping, and competence. In M. Hetherington & E. A. Blechman (Orgs.), Stress, coping, and resiliency in children and families (pp. 107-133). New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.         [ Links ]

Yin, R. K. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.         [ Links ]

Yunes, M. A. M. (2003). Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, 8, 75-84.         [ Links ]

Yunes, M. A. M. (2010). As práticas de agentes sociais com famílias de baixa renda: em busca de intervenções com foco na resiliência. In C. S. Hutz (Org.), Avanços em psicologia comunitária e intervenções psicossociais (pp. 61-87).São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/02/13
Aceito em: 17/06/13

 

 

1 Contato: dalbosco@cpovo.net