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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.1 Juiz de Fora jun. 2014

 

ARTIGOS

 

Um diálogo entre a psicodinâmica do trabalho e a sociologia clínica no universo da modernidade líquida

 

A dialogue between the psychodynamics of work and clinical sociology in the world of liquid modernity

 

 

Antônio Roziano Linhares1; Marcus Vinícius Soares Siqueira

Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

 

 


RESUMO

Os trabalhadores se defrontam com transformações férteis à racionalidade instrumental, que fragmentam as relações sociais e convertem os homens em utensílios organizacionais, assediados pela ditadura do medo e da insegurança, sofrimento e adoecimento psíquico, razão por que elegemos como objetivo deste artigo estabelecer um diálogo entre a Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do trabalho, de forma a identificar alternativas para o fomento do prazer no trabalho, num ambiente dominado pela modernidade líquida. O estudo revelou que para combater o individualismo; a cultura da urgência e da eficácia, bem como o seqüestro da autonomia, inteligência e desejo dos trabalhadores se faz necessário o resgate da fala, humildade, alteridade, solidariedade e confiança, elementos capazes de alijar a soberba narcísica que impede a dinâmica do reconhecimento, presença necessária para que o olhar do outro reconheça as qualidades de seus pares, bem como para o encontro com o universo do prazer e saúde laboral.

Palavras-chave: Gestão, Trabalho, Saúde, Reconhecimento.


ABSTRACT

Workers face a set of transformations fertile for instrumental rationality, which fragments social relations and converts men into organizational tools, harassed by the dictatorship of fear and insecurity, suffering and mental illness. This is the reason why we have chosen as the aim of this paper to establish a dialogue between Clinical Sociology and Psychodynamics of Work, in order to identify alternatives to promote pleasure at work in an environment dominated by liquid modernity. The study reveals that to combat individualism; the culture of urgency and effectiveness, as well as the kidnapping of autonomy, intelligence and the desire of the workers, it is necessary to rescue speech, humility, otherness, solidarity and trust, elements capable of jettisoning the narcissistic arrogance that prevents the free flow of the dynamics of recognition, a presence required to allow for the recognition of peers, as well as a condition for the encounter of workers with the universe of pleasure and occupational health.

Keywords: Management, Work, Health, Recognition.


 

 

Introdução

O conjunto de transformações que marcaram a história da humanidade, principalmente pós-caracterizado por contínuas transformações do revolução industrial contribuiu para a fecundação de um novo mundo, um mundo líquido, mundo do trabalho, que à luz da metáfora baumaniana, revelou-se líquido, já que caracterizado pela incerteza, fluidez e demanda por agilidade, elementos que contribuíram para a precarização das condições laborais impostas aos trabalhadores (Bauman, 2001; Cugini, 2008; Basílio, 2010).

O cenário de liquidez do trabalho é ratificado por Antunes (2011) quando aponta um conjunto de significativas transformações no mundo do trabalho, entre as quais se destacam: redução do proletariado fabril, industrial e manual; desemprego estrutural; surgimento da sociedade de serviços (setor terciário) e da era da informatização do trabalho; enorme ampliação do assalariamento no setor de serviços; flexibilização da jornada e do local de trabalho; fim da estabilidade no emprego; maior demanda por profissionais mais qualificados (administradores, especialistas, técnicos, funcionários administrativos e de vendas); significativa heterogeneização do trabalho; crescente incorporação do contingente feminino no mundo operário; expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado e terceirizado, além da complexificação da classe trabalhadora.

Referido cenário, fruto da desintegração do tradicional (Kuhn, 2011) e do derretimento de sólidos, demanda, segundo Bauman (2001), a revisão de costumes, estilos de vida, hábitos e tradições, frente a uma sociedade global e em redes, mobilizada pela Revolução da Informação (Castells, 1999), onde a produção, o consumo e a circulação de mercadorias ocorrem num universo desprovido de fronteiras e assediado pela ética do utilitarismo, movimentos estes que desafiam a capacidade humana de acompanhar o ritmo das transformações impostas aos trabalhadores; a manutenção do equilíbrio entre as demandas do trabalho e o respeito a saúde e a individualidade (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994), além de também deixaram toda a complexa rede de relações sociais no ar - nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios inspirados pelos negócios, viabilizando-se, assim, o desvio fatal: a assunção da racionalidade instrumental (Bauman, 2001).

A demasiada preocupação da racionalidade instrumental com a consecução da mais-valia reforça, segundo Bauman (2001) e Dejours et al. (1994), o quadro de precarização das condições de trabalho, tendo em vista que contribui para : a reificação dos homens, convertidos em meros recursos organizacionais; a fragmentação e desumanização das relações sociais; a migração da socialização para a individualização; a competição e fortalecimento do egoísmo, além da propagação do medo, ansiedade e insegurança, o que coloca em xeque a capacidade dos trabalhadores atuarem como sujeitos autônomos e detentores de inteligência crítica.

Referido fenômeno se dá porque a inteligência e criatividade dos indivíduos são preteridas em prol das prescrições defendidas pelas organizações, sequestrando-se assim, dos trabalhadores, o livre exercício da fala, do benefício da dúvida e do contraditório, o que faz surgir entre eles um conjunto de patologias sociais relacionadas ao trabalho, com destaque para a aceleração (engajamento frenético que ocupa todo o campo de consciência dos trabalhadores e gera sobrecarga no trabalho (lesões de hipersolicitação, tais como a Lesão por Esforço Repetitivo - LER, e o Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho - Dort); a servidão voluntária (conformismo, alienação e rendição do trabalhador ao ideário organizacional); e a violência organizacional (assédio moral), patologias essas que colocam em xeque o equilíbrio, a saúde física e mental dos trabalhadores.

Diante deste cenário, deparamo-nos com a necessidade de um debate crítico e comprometido sobre a realidade do mundo laboral, de forma a descortinar-se o quadro de desamparo, sofrimento e adoecimento imposto aos trabalhadores, condição necessária para a emersão de sua consciência, bem como sua maior intervenção no mundo laboral, razão por que não podemos prescindir do conhecimento e das contribuições trazidas por teóricos que pensam o trabalho. Em função do exposto, elegemos como objetivo geral deste artigo estabelecer um diálogo entre aparatos teóricos da Sociologia Clínica e da Psicodinâmica do Trabalho, de forma a se identificar alternativas para o fomento do prazer e do bem estar no trabalho, num ambiente dominado pela modernidade líquida.

A escolha das referidas correntes teóricas, como áreas de conhecimento propulsoras da melhor compreensão da realidade laboral, deu-se porque referidas correntes se ancoram numa perspectiva mais humanista, que reconhece o homem como sujeito de sua história, marcado pelo poder de resistência, de engajamento e de mudança diante da realidade de dominação simbólica, social, política e econômica inerente aos contextos de trabalho (Enriquez, 2006).

 

Identidade e parentesco teórico entre a Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do Trabalho

Tanto a Sociologia Clínica, quanto a Psicodinâmica do Trabalho, movidas pela sensibilidade da ciência, que auscultando os movimentos da realidade detectou um conjunto de mudanças que impactam sensivelmente o mundo do trabalho e, por conseguinte, as relações de equilíbrio entre trabalho, individualidade e saúde dos trabalhadores, desenvolveram estudos e percursos teóricos que se complementam e contribuem para a melhor compreensão da realidade laboral, do sofrimento infligido aos trabalhadores, bem como dos caminhos e alternativas disponíveis para melhoria desta realidade.

A defesa impetrada pela Sociologia Clínica no sentido de garantir-se aos homens uma maior capacidade de intervenção no mundo do trabalho advém do espaço por ela reservado aos fatos sociais totais, que coloca o sujeito no centro da problemática analisada, o que segundo Gaulejac (citado por Araújo & Carreteiro, 2001, p.37) se daria porque a Sociologia Clínica tem como elementos constituintes: "a análise das articulações entre os determinismos sociais e os determinismos psíquicos, a questão do sujeito nas ciências humanas e sociais e a démarche clínica como condição necessária ao desenvolvimento de uma Sociologia Clínica".

A Sociologia Clínica constitui-se, portanto, uma disciplina indisciplinada, constrói-se a partir de Durkheim, Freud, Mauss, Reich e da Escola de Frankfurt, sempre com a preocupação em compreender a relação indivíduo-empresa, o poder, o controle, o desejo e a autonomia necessária para o indivíduo se fazer sujeito. Faz-se, portanto, a partir da prática, dos fatos vivenciados nas organizações e no mundo do trabalho. Desta forma, a partir de suas intervenções a clínica tem papel central "para appréhender os fenômenos sociais, estes que constituem uma modalidade particular de fazer pesquisa e de intervenção. Significa trabalhar o mais próximo do que é vivenciado pelos atores..." (Gaulejac, Hanique & Roche 2007, p. 27).

Uma das principais preocupações de autores filiados à Sociologia Clínica (Gaulejac, Pagès e Enriquez) é o de sistematizar um conhecimento da realidade atual do mundo do trabalho, evidenciando o mal-estar vivenciado pelos trabalhadores em um mundo cada vez mais sobre pressão, fortemente influenciado pelas transformações impostas ao mundo do trabalho: contínuas reestruturações; flexibilidade organizacional; culto da urgência; intensificação do trabalho, além da imposição de cargas psíquicas que mobilizam o psiquismo dos trabalhadores, que reféns do tabu do fracasso: medo do não reconhecimento da organização e da perda do emprego diante do não cumprimento dos objetivos organizacionais (Sennet, 2006), entregam-se incondicionalmente à consecução das metas organizacionais, mesmo que para isso tenham que ignorar seus desejos, inteligência, autonomia e até a própria identidade (Gaulejac, 2011; Dejours & Molinier, 2004).

Referida realidade intensifica o quadro de sofrimento e adoecimento imposto aos indivíduos, que pode chegar a limites extremos, conforme verificado nos casos de suicídio vinculados ao trabalho ocorridos na Renault e na France Telecom, situações que tem contribuído para elevar o nível de preocupação em relação ao tema, principalmente quando presentes práticas de gestão ancoradas na ditadura do medo e da insegurança (Braverman, 1987), fatores esses que influenciaram sobremaneira os casos de suicídio vinculados ao trabalho (Merlo, 2009)

As transformações ocorridas no mundo do trabalho, associadas aos danos trazidos à saúde dos trabalhadores fizeram surgir outra corrente teórica, a Psicodinâmica do Trabalho, abordagem científica desenvolvida na França durante a década de 90 do século passado, por Christophe Dejours. Inicialmente ancorada nos referenciais teóricos da psicopatologia, seu objetivo se concentra, segundo Mendes (2007) no estudo das relações dinâmicas entre organizações do trabalho e processos de subjetivação, que se manifestam nas vivências de prazer-sofrimento; nas estratégias para mediar contradições da organização do trabalho; nas patologias sociais; na saúde e no adoecimento dos trabalhadores, em especial o mental.

A Psicodinâmica do Trabalho pressupõe o investimento da inteligência prática (criatividade), da personalidade e da cooperação, como elementos que articulados podem dar conta da loucura e manter a saúde, à medida que são postos em confronto com as tentativas de dominação da organização do trabalho. Para o sucesso do referido investimento apresenta-se, também, como condição sine qua non o deslocamento do indivíduo para o coletivo do trabalho, já que sua ausência inviabiliza a mobilização da subjetividade dos sujeitos e, por conseguinte, sua intervenção na realidade (Mendes, 2007).

Desta forma, ainda segundo Mendes (2007) a Psicodinâmica do Trabalho considera fundamental a oferta pela organização do trabalho, de espaços que permitam aos trabalhadores o exercício da liberdade de expressão pela fala, além da exposição da dúvida e do contraditório, o que facilita a leitura, inserção e ação dos indivíduos sobre a realidade, bem como a viabilização da emancipação dos sujeitos, além do prazer no trabalho. O caminho contrário inviabilizaria a leitura crítica da realidade pelos sujeitos, fazendo com que a subjetivação dos trabalhadores se torne ferramenta útil, aliada inconteste da ideologia produtivista, da busca do desempenho e da excelência a qualquer custo, o que, conforme já afirmado anteriormente, pode levar ao sofrimento e, por conseguinte, ao adoecimento dos trabalhadores, que vítimas da banalização do mal (Arendt, 2008), passam a considerar normal e até desejável o próprio sofrimento, principalmente diante da não consecução dos objetivos e metas definidas pelas organizações, situação em que se utilizam inconscientemente do sentimento de culpa e vergonha como moedas expiatórias, garantidoras do perdão e da sua manutenção no corpo funcional da organização (Gaulejac, 2007)

Na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, o sofrimento surge quando a relação do trabalhador com a organização do trabalho é bloqueada em virtude das dificuldades de negociação das diferentes forças que envolvem o desejo da produção e o desejo do trabalhador, bem como quando não é mais possível a negociação entre o sujeito e a realidade imposta pela organização do trabalho, o que não permite a subversão do trabalho prescrito em um trabalho no qual o trabalhador use sua inteligência prática, inviabilizando-se, portanto, a absorção da criatividade dos trabalhadores pela organização (Dejours et al., 1994).

Assim, quando o rearranjo da organização do trabalho não é mais possível e a relação do trabalhador com a organização do trabalho é bloqueada:

a energia pulsional que não acha descarga no exercício do trabalho se acumula no aparelho psíquico, ocasionando um sentimento de desprazer e tensão....e quando as capacidades de contenção são transbordadas, a energia recua para o corpo, nele desencadeando certas perturbações, podendo desencadear inclusive processos de somatização (Dejours et al., 1994, p.29).

Desta forma, à luz da Psicodinâmica do Trabalho, o sofrimento seria inevitável, condição natural do ser, além de elemento contraditório na constituição da psicologia dos trabalhadores, já que enquanto parte da condição humana, constitui-se mobilizador de investimento para a criação de novas realidades e engrandecimento dos indivíduos, além de revelar-se também fonte de adoecimento, daí por que Dejours et al. (1994) enfatiza a importância de sua ressignificação enquanto condição para vivência do prazer, o que para o mesmo autor se daria por meio da mobilização subjetiva dos trabalhadores e não da negação ou minimização do sofrimento.

Referido processo, contudo, é desafiador, já que o caminho a ser percorrido para ressignificação do sofrimento contempla a concessão do direito à reflexão e à fala aos trabalhadores, o que segundo Dejours et al. (1994) se constitui condição para transformação do sofrimento patogênico, refém da produção e responsável pelo adoecimento, em sofrimento criativo, mobilizador de processos subjetivos e reflexivos que permitem aos trabalhadores resgatar sua capacidade de pensar e gerir o trabalho.

Abre-se, desta forma, uma janela de oportunidade para a desalienação dos trabalhadores, além da possibilidade de sua apropriação e dominação do trabalho (Mendes, 2007), o que não acontece quando o processo de ressignificação do sofrimento não é exitoso na conversão do sofrimento patogênico em criativo, fazendo-se necessário nesta situação a utilização, pelos trabalhadores, de estratégias de defesa (proteção, adaptação e exploração) garantidoras de sua saúde mental.

As estratégias de proteção são modos de pensar, sentir e agir compensatórios para suportar o sofrimento. Nesta situação o trabalhador consegue evitar o sofrimento alienando-se e convivendo com uma realidade indesejada. Já as estratégias de adaptação e exploração têm nas suas bases a negação do sofrimento e a submissão ao desejo da produção. São normalmente inconscientes e levam os trabalhadores a manter a produção exigida pela organização do trabalho (Mendes, 2007)

A aplicação pelos trabalhadores das referidas estratégias, no combate ao sofrimento, explica a instituição da normalidade enigmática, aparente normalidade do estado de saúde dos trabalhadores, mesmo quando estes são confrontados com situações que hostilizam à sua salubridade física e psicológica. A fuga desta armadilha dar-se-ia pela reapropriação da consciência, da propriedade da fala, do desejo, do benefício da dúvida e do contraditório pelos trabalhadores, que assim resgatariam sua autonomia, capacidade de pensar e agir criticamente sobre a organização do trabalho.

Desta forma, viabilizar-se-ia a construção de soluções via utilização da inteligência prática dos trabalhadores, que beneficiários do direito de questionar, usuários maiores de seus próprios desejos e de sua própria criatividade, encontram elementos para transgredir o prescrito e contribuir para o atendimento dos objetivos de produção com procedimentos mais eficazes do que os impostos pela própria organização do trabalho. Assim, a simples permissão do fluxo normal da inteligência prática dos trabalhadores contribuiria não só para o atendimento dos objetivos organizacionais, como para minimizar o sofrimento e transformá-lo em prazer.

A transformação do sofrimento em prazer darse-ia também por meio da sublimação, processo que segundo Dejours et al. (2004, p.152) "diferentemente das outras defesas, assegura, em relação ao sofrimento uma saída pulsional que não faz desmoronar o funcionamento psíquico e somático", revelando-se, assim, uma negociação bem-sucedida entre o desejo e a realidade (Mendes, 2008). Para consecução deste movimento, o trabalho atua como mediador e locus de gratificação das pulsões, por isso, faz-se necessário que as condições laborais disponibilizadas aos trabalhadores tornem este processo possível, o que nem sempre ocorre (Dejours et al., 2004).

A sublimação constitui-se, portanto, um processo que mobiliza o sujeito a reagir aos investimentos pulsionais de forma mais saudável e socialmente útil, buscando a manutenção da sua integridade psíquica, por isso se constitui um dos caminhos mais promissores para a relação com o mundo externo, diferentemente do recalque que se constitui numa defesa neurótica e traz dificuldades para os sujeitos se relacionarem consigo mesmos e com os outros (Mendes, 2011)

Diante do exposto, observamos que tanto a Sociologia Clínica quanto a Psicodinâmica do Trabalho reconhecem que os trabalhadores se defrontam com uma realidade laboral que ameaça o prazer no trabalho, além da integridade da identidade, autonomia e saúde dos trabalhadores. Deparam-se, portanto, com desafios, problemáticas, angústias, esperanças, objetivos e pressupostos epistemológicos comuns (trabalho como dimensão fundante do ser; racionalidade subjetiva; homem consciente e sujeito da história; homem psíquico e não utensílio das organizações), que determinam um forte parentesco entre referidas correntes, as quais percorrem caminhos complementares em busca da transformação da realidade laboral hostil aos trabalhadores. Contudo, não obstante os esforços empreendidos, defrontam-se referidas linhas de pensamento com um dos principais aliados da racionalidade instrumental: o gerencialismo.

 

Gerencialismo: lenimento das angústias organizacionais.

Segundo Gaulejac (2007), o gerencialismo se revela uma ideologia aliada da racionalidade instrumental que se põe a serviço do capital e traduz as atividades humanas em resultados e indicadores, efeitos colaterais do culto da eficácia, que, por sua vez, revela-se refém da quantofrenia (idolatria dos números), dos critérios econômicos e da supremacia do lucro, elementos que cicatrizam uma visão reificada dos homens e que converte o resultado num fim em si mesmo e não em meio para produção de valor para a sociedade. Legitimase, assim, um pensamento objetivista, utilitarista, funcionalista e positivista, voltado para acalentar as angústias organizacionais: busca da eficácia e maisvalia (Gaulejac, 2007).

Ainda segundo Gaulejac (2007) a paixão pela quantofrenia e pela medição seria fruto da preocupação com a objetividade e da ilusão que o cálculo nos dá de domínio sobre o mundo, elementos estes intimamente vinculados à abordagem funcionalista, para quem os conflitos são considerados como disfunções, o que pressupõe a existência de uma norma de funcionamento apresentada como ideal. Nega-se, assim, a possibilidade de negociação do trabalho prescrito com o real, condição apontada por Dejours et al. (1994) como necessária ao exercício do prazer no trabalho.

Outro pressuposto que fundamenta o gerencialismo é a rendição da reflexão à eficácia, o que se dá porque para o gerencialismo o pensamento é considerado como inútil se não permitir contribuir para a eficácia do sistema. Pode-se exercer a liberdade do pensamento e de palavra, se esta servir para melhorar os desempenhos. Propugna-se, assim, o conformismo como contrapartida do utilitarismo (Gaulejac, 2007) e a rendição ao discurso fechado de Marcuse (1967), ou seja, negação de qualquer outro discurso que não empregue seus termos.

Para a consecução dos fundamentos gerencialistas, as organizações recorrem, segundo Gaulejac (2007), a um conjunto de mecanismos gestionários. O álibi da guerra econômica seria um destes mecanismos, o qual contribuiria para disseminar a idéia da vulnerabilidade das empresas diante de um cenário bélico, onde a busca da rentabilidade e do ideal de perfeição (programas de excelência, zero defeito) seria condição para sua sobrevivência.

Desta forma, institui-se um cenário de competição sem fim, onde "a linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores" (Bauman, 2001, p. 86), onde são exigidos dos funcionários sacrifícios ilimitados, já que nos seus ombros é depositada a responsabilidade pela sobrevivência da organização. O cenário de guerra, competição e incertezas líquidas fragiliza os laços que unem os homens, institui a queda dos fundamentos da solidariedade e a ascensão da ética do individualismo, onde o indivíduo torna-se a unidade de reprodução do social no mundo da vida, com a consequente corrosão e lenta desintegração da cidadania, da preocupação com o comum (Bauman, 2001; Grisci, Bittencourt & Fleck, 2012).

Este movimento viabilizou o surgimento de outro mecanismo gestionário: a individualização e dissolução dos coletivos, que segundo Gaulejac (2007), se caracteriza pela ascensão de um modelo de personalidade narcísica, agressivo, pragmático, sem estados de alma, centrado sobre a ação e não tanto sobre a reflexão, pronto para o sucesso a qualquer custo, o que culmina com a ruína da solidariedade; a celebração do mérito individual; a negação da alteridade; o desinteresse pelo comum e; a naturalização da luta por lugares.

Para Bauman (2001) é neste cenário que se dá o embate entre o indivíduo, morno, cético ou prudente em relação à causa comum e o cidadão, pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade. Assim, num contexto de modernidade líquida, a sociedade parece viver um momento de ebulição e incessante atividade de individualização, onde não existem mais valores coletivos, os vínculos sociais se desfazem cada vez mais rapidamente, os homens se deparam com a competição por cargos e a solidão como companheira, tornando-se, assim, o indivíduo o pior inimigo do cidadão.

A ascensão do individualismo, mergulho dos trabalhadores nos seus desejos mais particulares em detrimento do coletivo, também contribuiu para a instituição da gestão do imaginário e do afetivo (Gaulejac, 2007), tendo em vista que as organizações apoderam-se dos desejos narcísicos dos indivíduos, mergulham na sua psicologia e com isso sequestram sua subjetividade, o que favorece a identificação, a mobilização psíquica e a adesão dos funcionários ao ideário organizacional.

Desta forma, segundo Motta (1986), migra-se de um sistema fundado sobre a solicitação do superego (autoridade, obediência e culpabilidade) para um sistema fundado sobre a solicitação do ideal de ego (exigência da excelência, ideal de onipotência), que teme lesões narcísicas (medo do fracasso e, por conseguinte, da perda do amor e reconhecimento da organização, a quem os trabalhadores enxergam como mãe protetora) e institui o seqüestro da subjetividade, mesmo que o imaginário dos indivíduos seja habitado pela ilusão da liberdade, que segundo Bauman (2001, p.24) se caracteriza pela:

possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser objetivamente satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres.

O corolário dessa possibilidade é o de que "as pessoas podem ser juízes incompetentes de sua própria situação" (Bauman, 2001, p.25), o que viabilizaria a ascensão de outro mecanismo gestionário, as injunções paradoxais, filhas da enunciação de grandes princípios, os quais "inibem a razão, favorecem a adesão e a aceitação da racionalidade instrumental" (Gaulejac, 2007, p.140). Não obstante o fato de que referidas enunciações nunca sejam respeitadas, os agentes se deixam levar por elas, recorrendo assim a mecanismos de defesa dejourianos, para suportar o universo com menor custo psíquico e sofrimento.

Os mecanismos gestionários contribuem, assim, para o extermínio da solidariedade, além da expatriação da subjetividade, autonomia e criatividade dos indivíduos. Diante deste contexto, faz-se necessário o desenvolvimento de ações minimizadoras dos danos causados aos trabalhadores, de forma a tornar possível a vivência do prazer no trabalho, mesmo em contextos precarizados, o que segundo Dejours et al. (2004, p.51) seria possível via mobilização da inteligência prática, cooperação e pela institucionalização de espaços que viabilizem a negociação com a realidade imposta aos trabalhadores pela organização, situação esta considerada exequível por que:

"entre o homem e a organização prescrita para a realização do trabalho, existe, às vezes, um espaço de liberdade que autoriza a negociação, invenções e ações de modulação do modo operatório, isto é, uma invenção do operador sobre a própria organização do trabalho, para adaptá-la às suas necessidades, e mesmo para torná-la mais congruente com o seu desejo" (Dejours et al., 1994, p. 14).

Não obstante, a relevância do livre fluxo da cooperação, da fala e da inteligência no universo laboral, referidos elementos não se constituem isoladamente os únicos responsáveis pela saúde mental dos trabalhadores, já que o livre exercício da fala e da inteligência demanda a presença de outro elemento, parente comum da Sociologia Clínica e da Psicodinâmica do Trabalho: o reconhecimento do trabalhador pela organização e seus próprios pares, o que segundo Dejours et al. (2004), constitui-se condição determinante da integridade psíquica e equilíbrio dos trabalhadores, tendo em vista que representa elo vital entre trabalho e saúde, semente que se bem regada e repatriada para a identidade dos indivíduos, revelase um dos caminhos para reconstituição da solidariedade, do vínculo social, saúde e prazer no trabalho.

 

A dinâmica do reconhecimento: elo vital e integrador da identidade humana.

Diante do cenário de metamorfose contínua do mundo do trabalho e das práticas gerencialistas que sequestram dos trabalhadores sua autoestima, autonomia, criatividade e capacidade de tornar-se sujeito da história, os trabalhadores se deparam com a necessidade de um elo que viabilize a transposição de uma visão mesquinha de mundo e de homem para uma visão não alienadora da ação humana sobre a realidade, onde os homens sejam reconhecidos por sua essencialidade na terra, sua potencialidade de transformação da realidade e por suas ações transformadoras do ambiente de trabalho.

Neste contexto assume relevância a dinâmica do reconhecimento que, segundo Dejours et al. (2004), seria o resultado do processo de valorização do esforço e do sofrimento investido para realização do trabalho, por isto constitui-se elo vital do trabalho com a saúde, integridade psíquica e identidade do trabalhador, sendo também responsável pela conversão do sofrimento em prazer, o que a constitui força minimizadora do mal-estar nas organizações.

Dejours et al. (2004, p. 32) reforça a importância do reconhecimento ao afirmar que "é a partir do olhar dos outros que nos constituímos como sujeitos", fato esse também reconhecido por Gaulejac (2007, p.198), para quem o olhar alheio ocupa relevância significativa no imaginário dos indivíduos, afinal "ao perder o reconhecimento da empresa muitos trabalhadores perdem sua base narcísica", sua autoestima, seu sentido do trabalho, quebrando-se, portanto, o contrato narcísico, segundo o qual o "indivíduo espera da empresa que ela favoreça sua realização, enquanto ela espera dele sua adesão incondicional" (Gaulejac, 2007, p.229).

Assim sendo, o reconhecimento consagra-se como o centro de gravidade da saúde mental, processo dinâmico, mediador e constituinte da identidade do trabalhador, elo entre trabalho e identidade, prazer e sofrimento (Dejours et al, 2004), elemento de unificação do vínculo social, já que se concretiza pelo coletivo do trabalho, pela interação dialética do eu indivíduo com o outro (Mendes, 2007). Desta forma, dada a relevância da dinâmica do reconhecimento para a saúde dos trabalhadores, ignorar esta dimensão subjetiva e identitária do sentido do trabalho repercute diretamente na saúde dos sujeitos, notadamente da saúde mental, tendo em vista que diante de sua paralisia, o sofrimento não pode mais ser transformado em prazer, não pode mais encontrar sentido para o trabalho: só pode "gerar acúmulos que levarão o indivíduo a uma dinâmica patogênica de descompensação psíquica ou somática" (Dejours et al., 2004, p.77).

O reconhecimento depara-se, contudo, com elementos que contribuem para sua malversação, a exemplo de sua rendição inconteste ao ideário que subordina homens e organizações às regras definidas pelo capitalismo (eficácia, desempenho e resultados), fazendo com que o reconhecimento "não resulte das qualidades das pessoas, mas de sua capacidade de interiorizar as regras organizacionais, de adaptar-se às exigências e de reproduzir a ideologia" (Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, 2006, p.111). Assim sendo, vencer escudado nos princípios da racionalidade instrumental seria o meio de ser reconhecido, admitido e aceito pela empresa, tendo em vista que "no mundo da fantasia e no imaginário dos funcionários, seria o meio de ser amado pela organização" (Pagès et al., 2006, p.134).

Outra forma de malversação do reconhecimento dá-se quando a organização o utiliza como ferramenta manipuladora, modo de captura dos trabalhadores nas armadilhas de seus desejos de reconhecimento (carreira e manutenção no emprego), o que seria possível, segundo Gaulejac (2007, p.120) porque "a exigência do sucesso encontra seu fundamento no desejo inconsciente de onipotência, no temor de não estar à altura e na humilhação de não ser reconhecido como um bom elemento" dentro da organização.

Desta forma, a manipulação do reconhecimento se revela uma grande aliada do gerencialismo, pressuposto teórico que se distancia significativamente da dinâmica do reconhecimento, principalmente no que refere às visões que adota acerca dos conceitos de racionalidade; homem; trabalho; ética; cultura e liberdade, conforme nos revelam os esforços teóricos empreendidos pela Sociologia Clínica e a Psicodinâmica do Trabalho.

No que se refere à racionalidade observou-se que enquanto o gerencialismo se mostra adepto da lógica financeira, dominada pelos critérios econômicos, quantitativos e pela desvalorização das finalidades sociais em prol da sociedade do ter (racionalidade instrumental), a dinâmica do reconhecimento se mostra filiada à racionalidade subjetiva, que defende à lógica do inconsciente e enxerga este tipo de reconhecimento como elo entre sofrimento e prazer, trabalho e identidade, trabalho e saúde, além de defender o resgate da sociedade do ser.

O retorno da sociedade do ser constitui êxito da dinâmica do reconhecimento no combate à visão propugnada pelo gerencialismo, que defende o uso dos trabalhadores como utensílios, recursos a serviço da empresa, marcados pelo conformismo, passividade, docilidade e resignação diante do sequestro de seu direito a dúvida, à reflexão e ao contraditório, elementos estes que viabilizaram a unção do homem homogeneizado e servidor, que abatido em sua autoestima e receoso do direito ao livre arbítrio, conformou-se com a ilusão de liberdade, por isso não experimenta a necessidade de libertação, perdendo, assim, a chance da verdadeira liberdade (Bauman, 2001), que somente é conquistada pelo homem consciente e heterogêneo, ou seja, um homem autônomo, consciente, cônscio da importância do coletivo, bem como da manutenção de sua singularidade em meio às diferenças, condição está necessária para exercitar toda a sua inteligência prática e criatividade (Gaulejac, 2007; Dejours et al., 1994).

O trabalho também ocupa posições diferenciadas no imaginário dos trabalhadores, que ao optarem pelo contato com a consciência e pelo exercício da autonomia se depararam com o trabalho vivo e equilibrante, condição para que este se apresente como fonte de saúde, responsável pela transformação do sofrimento em prazer, marcado pela presença da inteligência prática e criatividade, além da possibilidade de negociação com o real e transformação do prescrito no cotidiano laboral (Dejours et al., 1994).

Do contrário os trabalhadores se defrontarão com o trabalho eunuco, solitário e desequilibrante, que impõe aos indivíduos a ausência de sentido do trabalho, diante da obrigatoriedade de executar desempenhos sem permitir ao trabalhador à negociação do trabalho prescrito com a realidade, o que contribui para que os trabalhadores mergulhem num quadro de sofrimento patogênico que os deixem vulneráveis ao adoecimento, às perturbações psicossomáticas e depressões nervosas.

Referido quadro também decorre da pressão aplicada pela cultura da urgência para o cumprimento das metas organizacionais que, diante de um cenário de precariedade, incerteza e fluidez, impõe aos trabalhadores a ética do individualismo; o enfraquecimento dos laços coletivos e a luta por lugares e visibilidade, além do sentimento de culpa diante da não consecução do ideário organizacional (desejo de lucro), o que se dá porque os funcionários, seduzidos pelos modelos de gestão aplicados pelas organizações de trabalho, não se permitem fracassar, por isso, precisariam expiar a culpa pela não concretização dos objetivos organizacionais, evitando assim, a perda do reconhecimento da organização, que se constitui base narcísica dos trabalhadores e manifestação convicta da certeza da manutenção do amor organizacional (Enriquez, 1997b; Pagès et al., 2006).

Referidos movimentos se dão em função do império da competição sem limites, fruto da cultura da superação e do alto desempenho, modelo de eficiência que põe o mundo sob a pressão da idolatria dos números, que impõe à sociedade sua rendição ao projeto perpétuo de superação, fazendo com que os trabalhadores acreditem na vulnerabilidade da empresa, que ameaçada, precisa dos sacríficios de seus funcionários para garantir sua salvação (Gaulejac, 2007). Perpetra-se, assim, a ruína do espírito de cooperação e da capacidade dos trabalhadores doarem reconhecimento aos seus pares, o que inviabiliza a sobrevivência dos vínculos que os indivíduos constroem entre si para alcançar voluntariamente uma obra comum (Dejours et al., 2004)

A realidade apresentada acima deve ser arduamente combatida, de forma a viabilizar-se o resgate da alma, singularidade, subjetividade e inteligência dos trabalhadores na resolução de conflitos, fato que só ocorrerá perante a presença do reconhecimento do trabalhador pela organização e seus pares, o que se revela imprescindível para a saúde laboral, já que o reconhecimento é fruto do trabalho e este, segundo Dejours et al. (1994), constitui-se dimensão fundante do ser, produtor da condição humana, central na formação da identidade dos trabalhadores, mediador da relação entre sofrimento e prazer, mediação esta também desempenhada pela dinâmica do reconhecimento, arauto do bem-estar no trabalho.

O empoderamento do individualismo e do espírito de competição entre os trabalhadores se revela fruto da ética do resultado, álibi do projeto capitalista que voltada exclusivamente para si própria, substitui a moral pela busca do resultado a qualquer custo, impondo ainda aos trabalhadores a ética da solidão, onde os medos, ansiedades e angústias contemporâneas devem ser vividos solitariamente, já que os desafios não coletivizados, não se somam e nem se acumulam numa causa comum, facilitando-se, assim, o desempoderamento da força do coletivo e, por conseguinte, da ascensão da dimensão política entre os trabalhadores (Arendt, 2008), tão temida pelas organizações.

O exercício da dimensão política pelos trabalhadores demanda, contudo, a libertação de seu espírito crítico, sob pena de tornarem-se juízes incompetentes de sua própria história, incapazes de fazer uma leitura adequada da conjuntura histórica em que se encontram inseridos. Desta forma, segundo Bauman (2001), para combater a cegueira e chegar ao nível da consciência e projeção do futuro é preciso que os trabalhadores estejam firmemente plantados no presente, ou seja, firmemente ancorados numa leitura adequada da realidade, para o que se faz necessário que lhes seja provido o direito à fala, veículo de exposição dos medos, anseios e angústias contemporâneas, que na modernidade líquida são feitos para serem sofridos em solidão, dado o esvaziamento do espaço público (ágora: espaço para vivência da política), antes provido aos habitantes da cidade.

Diante deste cenário, a disponibilização de espaço para o livre exercício da fala e da inteligência crítica se constitui ferramenta emancipatória que permite a desalienação, o confronto com o contraditório, o desvelamento do sofrimento, o resgate da capacidade de pensar e negociar com o trabalho prescrito, além do resgate da autoestima, já que o espaço de palavra não é necessário apenas para as arbitragens, constitui-se também o lugar onde se desenrola o processo de reconhecimento e filiação, movimento que amortece o drama da individualização do coletivo (Dejours et al., 2004).

 

Considerações Finais

Diante da modernidade líquida, da contínua metamorfose do trabalho e do quadro de precarização das condições laborais, que conduz os trabalhadores ao adoecimento, mostra-se relevante o diálogo instituído entre aparatos teóricos da Sociologia Clínica e da Psicodinâmica do Trabalho, tendo em vista que referido diálogo contribui para desvelar fatores que atuam no campo do trabalho e que, permanecendo ocultos à consciência dos trabalhadores, inviabilizam sua inserção autônoma no universo laboral.

Entre referidos elementos, destaca-se o fato de que a racionalidade instrumental grassa livremente no ambiente circunscrito pela lógica financeira, que desvaloriza as finalidades sociais e enaltece o ter em detrimento do ser, o que se dá, segundo Gaulejac (2007), em função da submissão dos homens a um processo de alienação que os faz refém de seus próprios desejos, que apropriados pelas organizações, viabilizam o sequestro de sua subjetividade, bem como de sua capacidade de questionar e aplicar sua inteligência prática, o que ocorre porque rendidos ao sentimento ilusório de liberdade, rendem-se também à homogeneização (definição e aplicação de modelos e práticas de comportamentos tidos como ideais pela organização), ao conformismo e ao papel de homem utensílio na busca da consecução dos objetivos organizacionais (Enriquez, 1997a e 2006).

Referidas situações ocorrem em função do receio da perda do amor das organizações pelos trabalhadores, que projetando sobre a empresa seu próprio ideal de onipotência e excelência, introjetam o seu ideal de expansão e de conquista, além de renunciarem a si mesmos (Gaulejac, 2007), interiorizando a necessidade de vencer e despender o máximo de energia em prol da organização, de forma a assegurar-lhe comprometimento, progresso, excelência e alto desempenho (Pagès et al., 2006; Motta, 1992).

Ignoram, contudo, as organizações, que a simplificação do trabalho e da pessoa humana, oriunda da visão utilitarista da eficácia, deprecia a inteligência dos trabalhadores e compromete o sentido do trabalho (Antunes, 2009), além do desejo do trabalhador investir raciocínio e energia moral na sua atividade laboral, fragilizando-se, assim, sua saúde psíquica (Dejours et al., 1994), o que se dá porque o culto ao desempenho agride as relações de trabalho quando os trabalhadores temendo o tabu do fracasso (Sennet, 2006), avocam o sequestro da fala, do direito ao contraditório e do exercício de sua inteligência prática como moeda expiatória para livrarem-se do fantasma da perda do amor da organização, representado no seu imaginário pelo reconhecimento (Enriquez, 2004/2005; Freitas, 2008 & Bouyer, 2010).

Assim, imersos numa realidade que lhes impõe a incerteza da manutenção do emprego, a cultura do desempenho, da urgência e da eficácia, os trabalhadores sucumbem a um processo de competição e individualismo autofágicos, onde o ideal de perfeição institui a exacerbação da competição sem fim; a linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; o trabalho não reserva espaço para o descanso, já que toda celebração de sucesso não passa de um intervalo antes de outra rodada de trabalho duro; e as regras relativas ao jogo das promoções e demissões foram esgotadas ou tendem a ser alteradas antes que o jogo termine (Bauman, 2001). Referidos movimentos mergulham os trabalhadores num processo de seleção darwinista, responsável pela fundação do tempo dos laços fracos e da queda dos fundamentos da solidariedade, o que também lhes impõe custos físicos e psíquicos que transformam o trabalho em material patogênico e desequilibrante.

Deparamo-nos, assim, com a ética do individualismo, que rechaçando o espírito da cooperação e da solidariedade inviabiliza o olhar caridoso com o outro e, por conseguinte, o reconhecimento e valorização de suas qualidades. Negligencia-se, desta forma, a dinâmica do reconhecimento na constituição da identidade e saúde dos trabalhadores, cuja relevância se dá, segundo Dejours et al. (2004), porque esta se constitui sua base narcísica, elo vital do trabalho com a autoestima, saúde, integridade psíquica e identidade dos indivíduos, além de também responsável pela conversão do sofrimento em prazer, constituindo-se, assim, força minimizadora do mal-estar nas organizações.

Assim, diante do cenário de modernidade líquida e das práticas de gestão propugnadas pelo gerencialismo (racionalidade instrumental; negação do conflito; homem utensílio, alienado e homogeneizado; trabalho patogênico e desequilibrante; ética do individualismo e da competição; fala e reflexão reféns da solidão e da eficácia) deparamo-nos com a necessidade de um salto epistemológico e pragmático que reverta as relações instituídas entre o trabalho, individualidade e saúde dos trabalhadores.

À luz dos pressupostos da Sociologia Clínica e da Psicodinâmica do Trabalho, seria de ser instituir no universo laboral o resgate da racionalidade subjetiva; das relações de cooperação e solidariedade; da autonomia e consciência crítica dos indivíduos, além do advento de práticas de gestão que concedam aos trabalhadores o espaço para o fluxo livre da fala e da criatividade (inteligência prática), elementos que exigem como condição sine qua non a presença da dinâmica do reconhecimento, itinerário viabilizador da empatia e alteridade necessária à oferta pelos pares e pela organização do espaço devido ao outro, outro que a ética do individualismo teima em apresentar aos pares como o grande inimigo do desejo individual, negando a possibilidade da consecução dos desejos no espaço coletivo e, por conseguinte, dificultando a instituição do trabalho vivo e equilibrante, gerador de bem-estar e saúde.

O reconhecimento constitui-se, assim, o grande mediador; centro de gravidade da saúde dos trabalhadores; elo entre sofrimento, trabalho e prazer; condição fundamental para construção do sentido do trabalho; e passagem obrigatória para a reconstrução de vínculos, do tecido social, da solidariedade, da amizade, da alegria, do prazer de trabalhar e viver junto (Dejours et al., 1994), bem como para a vitória do cidadão sobre o indivíduo (Bauman, 2001).

Deve-se atentar, contudo, que a força benéfica do reconhecimento se encontra ameaçada, tendo em vista que ao mesmo tempo em que é um dos modos de fortalecimento da estruturação psíquica e da saúde dos indivíduos, pode ser um modo de captura dos trabalhadores, quando estes diante de seus desejos de reconhecimento (carreira) se deixam seduzir pelos aparelhos gestionários (gestão do imaginário e do afetivo), atentos observadores do desejo dos trabalhadores (Gaulejac, 2004/2005).

Para viabilizarmos a ação do reconhecimento faz-se necessário que migremos da cultura da competição, da luta por lugares, da busca da perfeição e do individualismo (Gaulejac, 2011) para a cultura da cooperação e do coletivo do trabalho (Dejours et al., 1994), onde o individualismo é visto como uma derrota e não um ideal e os trabalhadores são apresentados ao espaço público da fala e do debate; à humildade, alteridade, solidariedade e confiança, únicos elementos capazes de alijar a soberba narcísica que impede que o olhar do outro reconheça as qualidades de seus pares e, por conseguinte, o advento do prazer no trabalho. O resgate destes elementos contribuirá para a repatriação e registro do reconhecimento na identidade dos indivíduos, dando-se assim, a conquista da identidade no social, mediada pelo trabalho, via julgamento dos pares, bem como o encontro com o universo do prazer e da salubridade laboral. Aos trabalhadores e às próprias organizações é reservado o desafio desta caminhada.

 

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Recebido em: 09/09/13
Aceito em: 24/02/14

 

 

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