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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora dez. 2014

 

ARTIGOS

 

A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl

 

The psychopathology in Renato Ferraz Kehl works

 

 

André Luis Masiero1

Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil. Pontifícia Universidade Católica, Poços de Caldas, Brasil

 

 


RESUMO

Renato Ferraz Kehl é conhecido por ter introduzido a eugenia no Brasil. No entanto, dedicou-se também à psicopatologia, psicologia, antropologia e filosofia. Este trabalho objetiva descrever e analisar sua teoria psicopatológica. Foram analisadas 6 obras de sua autoria, publicadas entre 1927 e 1941 e que focam temáticas psicológicas e psicopatológicas. Para Kehl traços de personalidade e psicopatológicos seriam indicadores da qualidade racial da população. Classifica os desvios de personalidade e tipos psicológicos com o objetivo de oferecer dados para a análise do caráter nacional e controle do que acreditava serem sinais de degeneração racial. O material foi analisado a partir do conceito de "tecnologias do instinto" de M. Foucault. Conclui-se que o limite entre o normal e o patológico é periodicamente modificado ao longo da história das ciências e está sujeito a variáveis tanto científicas quanto aos jogos de poder. A obra de Kehl é um importante indicador desse processo.

Palavras-chave: Psicopatologia, Caracterologia,,Eugenia, Renato F. Kehl.


ABSTRACT

Renato Ferraz Kehl is known for introducing eugenics into Brazil. However, he was also devoted to psychopathology, psychology, anthropology and philosophy. This paper aims to describe and analyze his psychopathology theory. Six (6) of his works were selected and analyzed and published between 1927 and 1941 focusing on t psychological and psychopathological issues. For Kehl personality and psychopathology traits would be indicators population's racial quality. He classifies personality deviations and psychological types in order to provide data for the analysis of the national character and control of what he believed to be signs of racial degeneration. The material was analyzed based on the concept of "technologies of instinct" (Michel Foucault). We concluded that the boundary line between normal and pathological is periodically changed throughout the history of science and is subject to both scientific and power seeking variables. Kehl's work is an important indicator of this process.

Keywords: Psychopathology, Caracterology, Eugenics, Renato Ferraz Kehl


 

 

Introdução

Dentre as muitas transformações ocorridas na cultura e ciência brasileiras no século XIX, a psiquiatria se consolida como saber especializado incorporando uma ampla gama de conhecimentos da antropologia física, da educação, da medicina, e por fim da psicologia. Desde o início, um dos objetivos da psiquiatria e da psicologia, na vertente dos estudos das diferenças individuais, era dividir os seres humanos em estratos e ordena-los em uma hierarquia, quantificando e qualificando as propriedades mentais. Nesta época, os limites entre o normal e o patológico começaram a ser definidos de acordo com as potenciais ameaças a constituição da civilização nacional. Seja qual for o método de avaliação psiquiátrica definidora deste limite sempre teremos uma concepção de homem historicamente construída que oferecerá subsídios à Psicopatologia. No outro extremo teremos as formas de tratamento.

Nunca houve um consenso entre as diversas ciências e profissões envolvidas na questão da Psicopatologia. As diferenças culturais, políticas, econômicas - para citarmos somente três problemas - entre os povos e países afetados pelas concepções psicopatológicas padronizadas tem gerado uma insatisfação na área médica e psicológica. Por isso, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) já está em sua quinta versão. Note-se que tudo isso ocorreu em um curto espaço de cerca de 60 anos. Antes do surgimento das classificações internacionais das psicopatologias, atualmente o capítulo V da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), especificamente dos itens F00 a F99, e o DSM IV-R, cada pesquisador elaborava uma classificação específica para o contexto de seu país ou da instituição hospitalar onde trabalhava. Na medida em que a loucura é medicalizada a partir do século XVIII (Foucault, 1978), com a conseqüente hospitalização do louco, é que começam a surgir as classificações da anormalidade, baseadas em um modelo taxionômico. Por outro lado, tão logo a Psicologia clínica surge como ciência e profissão, tem início uma via de classificação humana autônoma. Estas classificações concentravam-se nos processos mentais, nos comportamentos explícitos e nos tipos de personalidade, entidades privilegiadas da então nova ciência no início do século XX. Assim, a Psicologia começa a influenciar a Psicopatologia médica. O psiquiatra brasileiro Whitaker (1937), em sua época passando por esta influência, distingue três fases nas relações entre psiquiatria e a psicologia: A primeira caracterizava-se pelas teorias filosófico especulativas, o que culmina em um sistema "topográfico do espírito", pouco científico e sem muitas aplicações; a segunda fase consiste no surgimento da "fisiopatologia cerebral", de modo que toda a psicologia "subjetiva" acaba sendo abandonada, deixando um espaço carente de uma teoria mental abrangente que reunisse conhecimentos biológicos e sociais. A busca deste espaço caracterizaria a terceira fase das relações entre a psicologia e a psiquiatria, o que exigiu a criação de instrumentos de investigação da personalidade e medidas mentais largamente utilizados nas instituições psiquiátricas.

 

Psicopatologia e processo civilizatório

Vários foram os médicos que tentaram criar uma classificação psicopatológica apropriada ao contexto brasileiro. Em um primeiro momento, as classificações não eram propriamente médicas. O Hospício Pedro II foi inaugurado em 1852 com 140 pacientes, dos quais 126 foram classificados como "tranquilos", 10 como "agitados" e 4 como "imundos". (Gonçalves e Edler, 2009). Saltando um longo período, um grupo de psiquiatras, em sessão da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal (SBPNML), no dia 05 de abril de 1908, entre eles Juliano Moreira, Afranio Peixoto e Henrique Roxo, foi incumbido de elaborar uma classificação nacional das doenças mentais com o objetivo de servir de base estatística aos manicômios brasileiros. Esta classificação brasileira sofreu bastante influência do alemão Emil Kraepelin e do suíço Eugen Bleuler. Publicada em 1910 pela equipe da SBPNML, a classificação dividia as doenças mentais em 14 tipos: 1) Psicoses infecciosas; 2) Psicoses autotoxicas; 3) Psicoses hetero-toxicas; 4) Demência precoce; 5) Demência Paranóide; 6) Paranóia 7) Psicose maníaco depressiva; 8) Psicose de involução; 9) Psicoses por lesões cerebrais; 10) Paralisia Geral; 11) Psicose epiléptica; 12) Psicoses nevrósicas (sic); 13) Estados atípicos de degeneração; 14) Imbecilidade e idiotia.

Mas esta classificação não atingiu um consenso nacional e logo outros psiquiatras brasileiros criaram novas. Seguindo outras referências. Mirandolino Caldas Filho (1926), por exemplo, do Hospital Nacional de Alienados no Rio de Janeiro (o antigo Pedro II), selecionou uma amostra de 1300 internos, sendo 588 homens adultos, 660 mulheres adultas e 52 crianças, e os classificou segundo 20 patologias neuropsiquiátricas e 1 doença infecciosa (tal a freqüência com que apareceram). São elas: 1) Psychose maníaco depressiva; 2) Confusão mental; 3) Alcoolismo; 4) Epilepsia; 5) Delírio episódico; 6) Debilidade mental; 7) Demência senil; 8) Paralysia geral; 9) Demência precoce; 10) Hysteria; 11) Imbecilidade; 12) Paraphrenia; 13) Arterio-esclerose cerebral; 14) Estado atypico de degeneração; 15) Syphilis cerebral; 16) Psychose de involução; 17) Idiotia; 18) outras toxicoses; 19) Syndrome paranoide; 20) Psychose traumática; 21) Doença de Chagas.

Vê-se que ambas as classificações, embora bastante diferentes e com tipos cujos significados precisam ser recuperados pela história, atendem às preocupações da psiquiatria brasileira do início do século XX. O alcoolismo, a sífilis e as intoxicações, entendidos na época como reflexos de comportamentos típicos do processo de urbanização (abuso de álcool e drogas e desvios sexuais) eram chamados de "venenos da raça" (Kehl, 1935) por serem causas de muitas desordens neuropsiquiátricas ameaçadoras das gerações futuras. Já os "estados de degeneração" seriam indicadores da preocupante decadência da qualidade racial do país ou devido à mestiçagem, cujo resultado seria uma progênie inferior contaminada pelos vícios da raça negra ou pela deformação das células reprodutoras pelo álcool, drogas ou sífilis.

Sabendo-se a quantidade e tipos de doenças mentais recorrentes no território nacional seria possível traçar um mapa da situação, permitindo prever os gastos com esta população e elaborar planos de intervenção. Controlar os comportamentos impulsivos da sexualidade juvenil como forma de impedir a disseminação da sífilis foi uma grande preocupação dos primeiros estudiosos da psicologia, médicos, pedagogos e antropólogos. É justamente no debate sobre o desenvolvimento da civilização brasileira e os obstáculos que a ela se apresenta que Renato Ferraz Kehl concentra a sua obra psicológica e psicopatológica.

 

A psico-crítica de Renato Ferraz Kehl

Natural da cidade de Limeira, no interior de São Paulo, Renato Feraz Kehl foi o principal responsável pela introdução da eugenia no cenário científico brasileiro. Inicialmente, a idéia foi definida pelo matemático e psicometrista inglês Francis Galton em 1865 como a ciência do aprimoramento das qualidades físicas, psicológicas e morais do homem, através da manipulação racional da reprodução humana, orientada pelo estado (Masiero, 2005). Tal foi o entusiasmo de Kehl pelas idéias de Galton, que fundou a Sociedade eugênica de São Paulo em 1918. Com o apoio de seu amigo Monteiro Lobato, de muitos médicos e outros intelectuais, a sociedade funcionou por apenas dois anos, para sua decepção. Em 1929 funda então, agora no Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Eugenia, que passaria a se chamar Comissão Central Brasileira de Eugenia. Nos quatro anos seguintes editou o mensal Boletim de Eugenia, um pequeno jornal destinado à divulgação da higiene racial.

Neste contexto, Kehl, um dos muitos cientistas interessados pela então nova ciência da psicologia, via nos comportamentos humanos um perigoso fator de degeneração, ora como causa da decadência racial, ora como reflexo de um processo degenerativo já instalado. Por isso, em várias de suas obras sobre psicologia tenta tipificar os comportamentos desviantes. É importante ressaltar que embora buscasse uma classificação psicopatológica, Kehl partia de princípios não somente neuropsiquiátricos, mas também dos comportamentais. Suas conclusões não são decorrentes de prática em clínica nem em manicômios, mas sim da observação do cotidiano, de seu conhecimento teórico de psicologia e psicopatologia da época e da sua atividade como médico sanitarista, que exerceu no início de sua carreira.

Os estudos sobre Kehl têm se dedicado principalmente à sua obra sobre a eugenia (Stepan, 1991; Castañeda, 2003). De fato, este era seu principal interesse e em seu ponto de vista todas as outras ciências deveriam estar submetidas a ela, como se pode constatar em seus livros de psicologia: Tipos vulgares: introdução a psicologia da personalidade, de 1927 (sucesso editorial publicado primeiramente na Espanha e Argentina); Conduta: guia para formação do caráter, de 1934; Psicologia da personalidade, de 1941; A cura do espírito, de 1943; e A interpretação do homem: ensaio de caracterologia, de 1951. Há muitos outros escritos de Kehl sobre psicologia, tanto textos curtos em revistas quanto livros de outros temas, nos quais ele passa pela psicopatologia e psicologia rapidamente, ou a elas dedica capítulos inteiros, como em Lições de Eugenia, de 1929, no qual propõe aplicações eugênicas dos testes mentais. De qualquer forma, estas seis obras são suficientemente ilustrativas de seu pensamento na área das ciências psicológicas. Não são obras técnicas, mas objetivavam divulgar à população leiga conhecimentos a partir de discussões científicas e filosóficas.

Kehl acreditava que o comportamento humano deveria ser mudado pela educação, embora houvesse limites, pois as disposições genéticas às quais a vontade individual estava submetida é que determinariam os traços de caráter. Daí ter escrito duas obras orientando os jovens na escolha de parceiros sãos para o casamento e reprodução: Como escolher uma boa esposa,e Como escolher um bom marido, nas quais fazia um alerta aos jovens em idade matrimonial ensinando-os como identificar sinais de degeneração racial, do ponto de vista psicológico e caracterológico, orientando-os a evitar uniões com essas pessoas caso algum sinal suspeito fosse identificado. Indicando fórmulas higienistas para se atingir a felicidade na vida familiar, profissional e amorosa, pode ser lido também como um precursor da literatura de autoajuda no Brasil. Sua vasta produção e edições sucessivas de suas obras por editoras nacionais e internacionais de grande alcance para a época indicam que era bastante lido.

Kehl (1958b) chamou de "psico-crítica" um ramo da caracteriologia, destinada à observação criteriosa das tendências da personalidade humana e seus traços anormais. Essa observação deveria orientar as políticas públicas e os cidadãos conscientes de sua responsabilidade para com a raça humana e a formação da civilização nacional. Sua teoria psicológica e o limite normal-patológico podem ser entendidos a partir deste conceito:

É mister, por meio de uma análise psico-crítica, que não se aprende no estreito quadrante da psicologia clássica, devassar a alma dos homens. A psico-crítica com base na biologia ou mais especificamente com fundamento na constituição e temperamento torna possível compreender melhor a estrutura e a dinâmica espiritual para interpretação das individuo-personalidades. (Kehl, 1958b, p. 18)

A base da psico-crítica deveria ser biológica, buscando encontrar os substratos físicos das características humanas boas ou desviantes, o que o estreito quadrante da psicologia clássica não traria. Entendia por psicologia clássica aquela sem fundamentos nas ciências naturais. Prosseguindo diz:

Inegável o interesse instintivo e intuitivo de cada pessoa em conhecer o lado afetivo-ativo, o modo de sentir e de reagir dos indivíduos. Na imensa variedade de tipos procura-se distinguir os que convêm à aproximação e os que devem ser mantidos a distância. (Kehl 1958b, p. 18)

Não bastaria saber identificar os elementos indesejáveis, mas também seria necessário posicionar-se criticamente, afastando-se deles. Assim, os conhecimentos sobre a Psicologia humana deveriam ser aplicados na segregação dos elementos prejudiciais à raça e à nação:

Existem testes para aquilatar o valor individual em vários sentidos, seja quanto a inteligência, à presteza de raciocínio, à memória, à desatenção; (...) Coube a Galton a primazia na tentativa de determinar os caracteres psíquicos individuais, como meio para resolver o problema da seleção humana" (Kehl, 1958b, p. 91)

Kehl criou várias classificações dos comportamentos disgênicos, muito próximos das atuais classificações das psicopatologias da personalidade (Kehl, 1951, 1954, 1958a, 1958b, 1959). Na obra Tipos vulgares: introdução a psicologia da personalidade, descreve 19 perfis:

Felizes/infelizes; Gordos e magros; O velhaco, o impulsivo; o preguiçoso; o medroso; o bajulador; o invejoso; crentes e crédulos; o sestroso; o inconseqüente; o farcista (sic); o confusionista; o criticador; o indisciplinado; o escravo do álcool; o ciumento; o jogador; os castos forçados. (Kehl, 1958b.)

Esta classificação de tipos por comportamento patológico, conforme podemos conferir em outras publicações, pretendia chamar a atenção para os problemas que, segundo ele, faziam parte da "alma nacional" e que contribuíam para o atraso do país. Como poderia o Brasil se desenvolver com tantos "preguiçosos", "medrosos", "infelizes", "alcoólatras", etc.? Embora já houvesse termos psicopatológicos para referir-se a esses desvios da personalidade, por se tratar de uma obra introdutória de divulgação para leigos, optou por utilizar termos vulgares de fácil entendimento de seu público.

Ele abre esta obra, editada pela primeira vez em 1927, com a discussão do principal anseio humano: a busca da felicidade. Toda a felicidade não seria questão de sorte, nem de vontade divina, tampouco do desejo do homem, como queriam os filósofos e psicólogos clássicos, mas sim da boa configuração biológica: "O médico e o eugenista não encaram nem podem encarar a felicidade por prismas tão metafísicos, sentimentais e utopistas. Para estes o problema só pode ser resolvido por equação biológica" (Kehl, 1958b, p. 20).

Os homens realmente felizes não dependeriam de aprovação externa, pois não teria dúvidas de seu estado. Os "bajuladores", como reflexo da sua infelicidade tenderiam a adular e lisonjear o outro, esperando aprovação externa. Os elogios vindos destas pessoas, portanto, seriam falsos, convindo mantê-los distantes quando identificados. Mesmo que assim o fizesse não alcançaria a felicidade, pois o problema dos bajuladores não residiria na aprovação externa, mas em sua incapacidade por limitações físico-mentais.

A felicidade humana dependeria do equilíbrio entre a boa conformação biológica com o desejo individual, o que o leva ao segundo perfil psicocrítico. Baseado na teoria constitucional do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer, que procurava uma correlação entre o físico e o psíquico, os gordos teriam traços de caráter bem diferentes dos magros. Segundo o psiquiatra alemão, os gordos, tecnicamente chamados de pícnicos e brevilineos tenderiam a ter um temperamento ciclóide. Estes indivíduos seriam amigáveis, alegres e dependentes das relações pessoais. No extremo dessas paixões cairiam na psicose maníaco depressiva, caracterizada pela oscilação entre a hiperestesia e anestesia. Já os magros ou leptossômicos, seriam mais contidos, introvertidos e impacientes, características marcantes do temperamento esquizóide. No extremo cairiam mais facilmente na esquizofrenia, psicopatologia caracterizada pelo embotamento e perda do contato com o outro e com a realidade. A tese tipológica de Kreteschmer pressupunha que os leptossômicos teriam um metabolismo mais acelerado, daí sua tendência à ansiedade e impaciência. Já os pícnicos, ao contrário, tenderiam a ser mais calmos e lentos devido ao seu metabolismo. Isso faria com que dedicassem mais tempo e paciência ao outro. Por algum motivo, a ativação nervosa seria diferente entre os dois tipos. Em um predominaria a atividade do nervo vago (conhecido como nervo da paz) e no outro a atividade do nervo simpático (nervo da guerra). A felicidade consistiria no equilíbrio entre as duas tendências. Nota-se nestes perfis uma continuidade entre o normal e o patológico, limite dado não pela qualidade do afeto, mas pela sua variabilidade quantitativa. Por exemplo, o temperamento ciclóide, comum entre os brevilíneos, em seu extremo poderia desencadear uma psicose maníaco depressiva.

O "velhaco" seria outro perfil psico-crítico bastante comum no Brasil. Caracterizados pela falta de escrúpulos, tendência maníaca ao engodo, aos golpes e, via de regra, a ações em grupos. Seriam muito comuns em cargos públicos e nas altas rodas sociais. Hábil com as palavras, como o "farsista", geralmente inteligentes e cultos, aparentariam boa constituição, no entanto, não passariam de fraudadores. Kehl (1958b) cita o arqueólogo e egiptólogo francês Charles Lenormant como um representante deste tipo. A diferença entre os "velhacos" e os "farsistas" é que os segundos são golpistas e não somente malandros como os primeiros. Aqui, Kehl abstémse de apresentar uma correlação físico-psicológica como no perfil anterior, mas aponta que nem sempre uma boa constituição é garantia de um bom indivíduo. Desses "velhacos" muitos se aproveitariam da ingenuidade alheia sentindo prazer em assistir a ruína de suas vítimas. Os "jogadores" seriam golpistas deste tipo, e o pior é que teriam a capacidade de contaminar os expectadores com sua volúpia disfarçada de diversão.

O perfil dos "impulsivos" e "inconseqüentes" representam na obra de Kehl a mais ilustrativa tese do fatalismo biológico, pois independentemente do desejo individual e das forças sociais regulatórias sobre todos os indivíduos, eles agiriam segundo sua psicopatologia sem que nada pudessem fazer para evitar, como um pane instintual. Haveria criminosos de todos os tipos neste perfil, de assassinos a ladrões. Assim se explica como indivíduos que levaram uma vida honesta durante muito tempo repentinamente se tornariam criminosos. Exemplifica com casos de assassinos por motivos fúteis. Se o motivo do crime não poderia ser encontrado no ambiente, restaria somente o biológico como explicação:

Os estudos modernos sobre hereditariedade, constituição e temperamento demonstram, à evidência, que todos nós estamos presos a uma fatalidade orgânica e psíquica a qual não podemos fugir, e que os nossos atos dependem, essencialmente, de nossa constituição, de nosso temperamento e não da simples influência do meio e de circunstâncias mais ou menos imprevistas. (Kehl, 1958b, p. 39).

Faltaria a essas pessoas o filtro psicológico para o autocontrole dos instintos. Aos "inconseqüentes" faltaria a simples habilidade de ligar sua ação a conseqüência. Um problema de síntese da função mental básica que os colocariam no nível dos débeis mentais.

Em um país recém-saído do domínio imperial, em processo de rápida urbanização, recebendo levas de imigrantes europeus e asiáticos, e preparando-se para o futuro, a "preguiça" mórbida e o "medo", traços comuns da população brasileira, seriam dois perfis psico-críticos de profundo impacto cultural. Kehl (1958b) relata que de acordo com o psiquiatra Paul Emil Levy, a preguiça como na neurastenia caracterizava-se por uma baixa atividade neurológica, daí a constante indisposição desses indivíduos para quaisquer atividades produtivas. Já o "medo", em um mundo no período entre guerras, seria mais um perigo à civilização brasileira, pois deixava o país desprovido de bons defensores do território o que seria natural em todas as espécies animais.

Não se devem tomar os medrosos como entes desprezíveis, mas dignos de lastima. Durante a grande guerra de 1914 a 1918, foi bem estudada esta questão: verificaram-se numerosos indivíduos medrosos vitimas de nevroses, quási sempre com caráter dramático, acompanhadas de contraturas ou de ticos convulsivos. (Kehl, 1958b, p. 55).

No Brasil, o hábito do estímulo à covardia ocorreria desde a primeira infância quando as criadas contavam histórias de sacis, cucas, bichos papões, espíritos etc. para as crianças. Durante o desenvolvimento infantil essas histórias, assim como outros fatos do cotidiano, seriam fixadas no subconsciente podendo formar futuramente um caráter medroso (Kehl, 1954). Como profilaxia deste mau hábito nacional, Kehl desaconselhava propagar estas histórias.

Há uma relação de perfis psico-críticos que seriam obstáculos a felicidade individual, como os "bajuladores", os "invejosos" e os "criticadores". Os primeiros por nutrirem-se de falsos elogios aos outros e os segundos por não suportarem o sucesso alheio que não conseguiram, ao invés de investirem energias em conseguir os mesmos méritos, desgastam-se sabotando o sucesso do outro. Como reflexo da inveja, os "criticadores" fariam o mesmo. Por falta de criatividade seriam consumidos pelo excessivo desejo de destruição do outro passando-se por vítimas quando acusados.

A tendência do brasileiro a acreditar em emissários divinos e influências espirituais na vida terrena, comuns na mitologia nacional, identificariam o perfil psico-crítico dos "crentes e crédulos". Para Kehl, a religiosidade e misticismo assemelham-se, sendo disfarces da superstição e reflexos do medo e da ignorância. Incompatíveis com o pensamento científico e oferecendo respostas falsas às dúvidas humanas, a religião e o misticismo geralmente seriam acatados por pessoas conformistas ou que se apegariam a elas como tábua de salvação diante dos mistérios da vida. Por outro lado, observa que mesmo pessoas instruídas seriam influenciadas com certa facilidade pela religião. Isto se daria principalmente após grande choque afetivo, ou na velhice, quando perderiam sua racionalidade. Kehl lembra episódios de fanatismo religioso como os seguidores de Padre Cícero e o conflito de Canudos quando o líder Antonio Conselheiro amealhou uma legião de fanáticos e ameaçou os ideais republicanos.

As propensões comportamentais, como as dos fanáticos, já nasceriam na constituição humana. O egoísmo seria um comportamento comum em todas as espécies. Mesmo que a própria evolução levasse a espécie humana ao gregarismo, o homem só o teria feito devido aos interesses individuais, portanto continuaria egoísta. A necessidade de viver em bandos deu origem à moralidade humana, um sistema de regras que permitiria a vida em sociedade. Sempre na mesma explicação socialevolucionista e moralista, Kehl argumenta que em alguns indivíduos faltaria o sistema interno de regulação que faria com que instintos primitivos predominassem sobre os valores elevados da cultura. Caso dos "sestrosos", simplesmente mal educados incapazes de incorporar os mais comezinhos valores éticos, por isso atentariam aos códigos da civilidade.

A educação na escola ou família em quase todos os casos pouco poderia fazer por esses indivíduos, mas mesmo assim, explica, seria necessário faze-lo:

Trazemos ao nascer a marca indelével do que seremos, segundo as leis da hereditariedade (...). Admitido o determinismo e rejeitado o arbítrio das vontades livres para querer e não querer, não devemos negara as influências do meio e da educação sobre os indivíduos. (...) Indivíduos originários de estirpe não favorável apresentam, não obstante, qualidades que lhes poderiam assegurar melhores situações na sociedade se não lhes tivessem faltado influências encorajadoras. (Kehl, 1958a, p. 15).

Algumas psicopatologias seriam caracterizadas pela aversão a educação, como os "indisciplinados", hostis ao mando superior dos pais e professores. Como resultado da aversão desses indivíduos a educação por motivos de ordem hereditária, é que se assistiria a onda de desordens políticas, familiares e sociais.

O homem moderno teria uma propensão ao gozo ilimitado, por isso o perigo do álcool, uma epidemia ameaçadora das futuras gerações. Os "escravos do álcool", também "impulsivos e indisciplinados", um dos mais perniciosos perfis psicocríticos, não se dariam conta do prejuízo que estariam causando à raça nacional fazendo sofrer não apenas os seus contemporâneos próximos, mas também a raça vindoura. Kehl voltará ao tema do alcoolismo em obras futuras e o combaterá intensivamente.

Com influência da teoria blastoftórica de August Forel, psiquiatra alemão, defendia que a ação do álcool danificaria as células reprodutivas humanas, degenerando a progênie. Essa degeneração poderia inclusive fixar-se definitivamente na descendência familiar, por isso era chamada também de "falsa hereditariedade", isto é, embora a manifestação da desordem fosse semelhante a manifestação fenotípica dos defeitos genéticos, na verdade seria efeito de células reprodutivas danificadas pelo álcool. Era uma forma de neo-lamarckismo, na qual considerava-se possível a herança de caracteres adquiridos. Além de classificar, como já se pode notar em várias de suas obras, Kehl procura descrever o psicodinamismo dos perfis patológicos que descreve. Os "ciumentos", também doentes da razão, seriam indivíduos com acentuado sentimento de inferioridade por isso não se julgariam merecedores de amor do próximo. Como duvidariam da própria sinceridade, de manterem-se fiéis ao cônjuge, julgariam o outro de acordo com os próprios desejos.

Em um país em que se reconhecia o crime passional como atenuante no julgamento de assassinatos, Kehl mantém-se fiel aos valores civilizados. A melhor vingança, diz, é manter a dignidade, rompendo-se o relacionamento ou desprezando-se o traidor. Mas para isso seria necessário muita força de caráter.

O tema da sexualidade humana está implícito nos tipos psico-críticos. A escolha do cônjuge pelos jovens, as relações homem mulher, as doenças sexualmente transmissíveis etc. teria de levá-lo necessariamente a reflexão sobre a sexualidade humana. Influenciado pela psicanálise descreve o tipo dos "castos forçados". Mesmo com as críticas de Freud à hereditariedade das doenças mentais e ao fatalismo biológico (Masiero et al., 2006), Kehl aproveita-se de alguns conceitos muito superficialmente como a etiologia sexual das neuroses, a sublimação e subconsciente. Na verdade, Freud falava em inconsciente explicando a inadequação do termo "subconsciente".

Os tabus sexuais impostos pela cultura durante longos anos teriam criado um misticismo ao redor da sexualidade sendo causador de muito sofrimento desnecessário. A igreja cristã, diz Kehl, é a grande responsável por isso. O ascetismo e as tentações impuras da carne ditados pelos cristãos na verdade seriam encobridoras de mentes doentias, cujos desejos não estariam em conformidade com a natureza. O que os crentes fariam era sublimar a sexualidade, como dizia Freud, transformando seus desejos em práticas religiosas obsessivas. Por outro lado, a idéia de pecado criada pelo cristianismo teria a função de dominar os fiéis e os sacerdotes. No mundo contemporâneo, a facilidade do contato sexual dos jovens estaria esvaziando as igrejas, pois eles não mais aceitariam a abstinência sexual, nem o sexo como pecado, afinal, estas crenças seriam uma forma de cerceamento da liberdade. Na sua interpretação naturalística da sexualidade, a abstinência sexual forçada levaria a uma série de transtornos. E o tratamento seria simples: desobstruir a sexualidade, permitindo sua manifestação livre, desde que higienizada e moralizada.

Posteriormente, em 1941, na obra Psicologia da personalidade: guia de orientação psicológica, Kehl (1959) vai aprimorar seus perfis de personalidade incluindo subdivisões, outras psicopatologias, bem como formas de intervenção para evitar a proliferação desses tipos, além de um capítulo sobre os super normais, indivíduos de altas qualidades eugênicas por seu caráter, inteligência e conduta.

Os tipos de personalidades vulgares e psicopatologias apresentados na classificação desta obra são:

Desalmados; frívolos e fúteis; simplórios e simplistas; ousados e tímidos; perversos; mistificadores; simuladores e dissimuladores; simulação de dupla personalidade; rotineiros e conservadores; ressentidos e despeitados; amantes da dor; criancelhos; intolerantes; paranóicos e paranódes; abúlicos e mendigos; vulgaristas; monoideistas e fobistas. (Kehl, 1959, p. 23)

Aqui há uma aproximação com a psicopatologia clássica, além de repetir as personalidades já apresentadas na obra anterior.

Os "perversos" eram descritos como pessoas invejosas que, pelo seu sentimento, pretenderiam destruir o próximo e a sociedade, ofendendo, ferindo ou brutalizando os objetos invejados. Mas eles tem certo grau de escrúpulos, e só reagiriam quando provocados. Dentro desta psicopatologia haveria ainda subdivisões variando em graus de perversidade quantitativos e qualitativos. Há "perversos estilizados" dando um aspecto dramatizado a sua crueldade. Há ainda os "perversos obsessivos" que vivem no estado de pensamentos cruéis permanentemente. Seria comum encontrar na genealogia desses indivíduos "taras blastoftóricas", por isso seriam incuráveis e refratários aos castigos físicos ou morais, devendo ser mantidos internados ou sob controle. Kehl chama a atenção para o fato de que dependendo do país e do autor a definição de perversidade pode variar. Os autores ingleses e italianos tenderiam a pensar a perversidade como perturbação do juízo ético, já os alemães como debilidade genotípica manifesta em um comportamento moral rebaixado.

Os "simuladores de dupla personalidade" seriam indivíduos capazes de manter afastados impulsos ambivalentes mantendo esta cisão sob controle, como se dois espíritos habitassem o mesmo corpo. Mostra exemplos de personagens históricos reais e ficcionais. Na Inglaterra era conhecido na época Jonathan Wild, um famoso investigador de polícia infalível em recuperar roubos. Autoridades descobriram que ele mesmo era o ladrão. Na ficção um bom exemplo seria o Dr. Jekill e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson.

Os "amantes da dor", também chamados de "algofílicos e algomaníacos" seriam pessoas que não mantêm a tendência natural de evitar o sofrimento. Os algofílicos seriam os masoquistas passivos e os algomaníacos os que imporiam o sofrimento ao outro. Não chegariam a ser sadistas e masoquistas propriamente, mas pessoas que carregariam estes componentes na personalidade. Essas manifestações psicopatológicas não seriam apenas de ordem sexual, mas também pessoas que impõem-se sofrimentos como suplícios corporais, jejuns prolongados para uma suposta purificação da alma. A agressividade humana, relata Kehl, seria fruto do medo, ou seja, uma reação natural ao sentimento permanente de ameaça. Os ataques não apenas físicos, mas também espirituais, seriam até mesmo aceitos pela cultura. Os tabus religiosos teriam transformado o amor em pecado; o nascimento, fruto de um ato sujo e a morte em encontro com o dia do julgamento. Sob constante ameaça, a tendência humana seria reagir com violência ora contra o outro, ora contra si mesmo com a justificativa de purificar a alma e alcançar a remissão dos pecados.

Exemplos não faltariam também entre poetas e filósofos. Entre os algofílicos estariam Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela, entre outros, que apresentariam toda a amargura de viver em seus escritos. Entre os algomaníacos cita o personagem Carlitos, de Charlie Chaplin que criaria situações humilhantes para ofender os sentimentos estéticos e conspirar contra a paz social. Estes tipos amantes da dor sofreriam de uma patologia que os dificultaria a dar sentido a existência, ora humilhando o outro e a sociedade ora rebaixando-se ou se auto agredindo.

As tendências sado-masoquistas já apareceriam na infância mesmo em crianças normais, isto quer dizer que se trata de uma tendência natural do ser humano. Os amantes da dor teriam uma dificuldade caracterológica a controlar esses impulsos. Já o instinto de sobrevivência também latente no ser humano o levaria a tender a acumular riqueza para satisfazer suas necessidades primárias. O capitalismo teria aí sua origem. Alguns indivíduos, no entanto perderiam a medida e desenvolveriam verdadeiras psicopatologias, também frutos do medo de não conseguirem superar as adversidades da vida. É o caso dos avaros que no extremo se transformariam em paranóicos. Seriam pessoas combativas, ávidas por acumular riquezas e prestígio social, por isso seriam orgulhosas e arrogantes. Por temerem a perseguição, de algo ou alguém que ameaça retirar seus bens materiais ou imateriais são irredutíveis e avessos a negociações. Quando líderes, esses paranóicos poderiam tornar-se assassinos cruéis. Kehl (1959) enquadrou vários revolucionários franceses nesta condição, como Jean Paul Marat e Maximilien Robespierre, que desenvolveram uma verdadeira "neurose revolucionária".

Visto esta imensa gama de degenerados, na mesma obra Kehl descreve o que chamou de protótipo de "super-mental eugênico", ou aqueles que "reunindo qualidades ótimas, convergidas para felizes complexos mentais, constituem a legítima aristocracia humana" (Kehl, 1959, p. 239). Antes faz um alerta. Sobretudo pela influência de Cesare Lombroso, a genialidade teria uma relação com a loucura. Isto ocorreria devido à vulgarização do termo degeneração que invadiu outros domínios científicos como a criminologia, psiquiatria e até a crítica literária, perdendo a sua clareza. Degeneração, para Kehl, significa deterioração progressiva com perda dos bons caracteres ao longo de gerações. O limite entre o normal e o patológico deveria ser novamente estabelecido, afastando as concepções que pretenderiam turvar este limite. O oposto dos degenerados, os supernormais, gênios ou eugênicos mentais não deixariam dúvidas sobre sua condição:

o gênio se caracteriza implícita e explicitamente pela própria grandeza, pela própria força criadora e vale pelo elevado grau de sentimento, de sensibilidade, de vontade, de perseverança e de paciência que manifesta (...). Tendo pois em vista, que os gênios são os heróis do pensamento, do belo, do bom, do útil, participes da constelação biológica que ilumina o céu do vasto anonimato, como conciliar, dentro da lógica, genialidade com degeneração?. (Kehl, 1959, p. 244)

Os gênios e os degenerados evidentemente afastar-se-iam da norma, nem por isso seriam semelhantes em essência. Alguns gênios realmente teriam reações psicopatológicas, no entanto isto não se daria devido à degeneração ou doença, mas por desgaste pelo excesso de trabalho, por perseguições, pela hipersensibilidade emotiva, ou outras asperezas da vida. Assim, nunca a real genialidade seria efeito da degeneração, mas uma variação superior do tipo médio. Kehl (1959) analisa a biografia de três expoentes que se enquadrariam neste caso: Francis Galton, Charles Darwin e o filósofo Friederich Nietzsche. Não obstante seus tormentos, os três teriam em comum a originalidade, a crítica à mediocridade da cultura contemporânea, a insubordinação aos tiranos, o apreço pela liberdade, a sinceridade e a perseverança, traços estes marcantes da caracterologia dos "super-mentais eugênicos". No caso mais controverso, o do filósofo alemão, todos os seus infortúnios teriam sido devido a influências mesológicas (não hereditárias) e por amor ao pensamento livre. Não por vadiagem é que se desligou da universidade e isolou-se, abrindo mão do comodismo, das convenções e tradições. Ele preferiu pagar o preço da liberdade, o que o engrandece, mas seus críticos inutilmente tentariam desqualificar sua obra pela sua psicopatologia.

Provas da sua superioridade é que se manteve ativo intelectualmente e sua loucura eclodiu somente após os 40 anos de idade, do contrário esse traço o teria acompanhado durante toda a vida, como nos degenerados.

O fato de um gênio nascer de uma união de um casal de medíocres ou o contrário não colocaria o determinismo biológico em questão. Haveria sim uma tendência dos super normais e degenerados gerarem semelhantes em grande número. O restante seriam casos isolados devido à variabilidade genética, uma questão estatística facilmente explicável. Como os recursos para sobrevivência humana são limitados não valeria a pena pagar os custos sociais de muitos anormais para o surgimento de poucos superiores entre eles. Mais valeria oferecer apoio diferenciado aos gênios. Aqui a Psicologia poderia oferecer seus maiores préstimos a humanidade, ao criar métodos para diferenciar os superiores dos inferiores. Para subsidiar sua tese, apresenta os estudos genealógicos de Galton e outros autores.

Em um estudo de 1000 ingleses notáveis, o eugenista inglês teria verificado que 100 deles tiveram 31 pais eminentes, 41 filhos, 17 avós e 14 netos igualmente notáveis. Já Woods demonstrara em um estudo genealógico com 3500 americanos notáveis que a proporção de geração de inteligência superior seria de 1 para 5 nesta população, ao passo que entre os medíocres seria de 1 para 500 (Kehl, 1959, p. 248). Diferença tão alta assim não poderia estar associada ao ambiente. Assim, Kehl rebate críticas feitas à eugenia mental de que o combate à degeneração racial levaria indiretamente à diminuição dos notáveis também. O que se faria no Brasil era justamente ao contrário. Mobilizado por um sentimentalismo piegas e religioso, o estado brasileiro teria a tendência à filantropia, acolhendo vagabundos, débeis mentais, loucos e degenerados de todo tipo em instituições de caridade, onerando a parcela sã e trabalhadora da sociedade e assim incentivando a descendência defeituosa. Era o que chamava de "filantropia contra-seletiva". Não que o estado devesse deixá-los à própria sorte ou eliminá-los, como em alguns países europeus. As políticas públicas deveriam sim exercer um controle profilático dessas pessoas, retirando-os de circulação e impedindo a sua reprodução, pois o dever do estado seria ajudar o que a natureza já teria determinado, ou seja, a eliminação progressiva dos deficientes. Pelas leis da evolução, os menos adaptados tenderiam a desaparecer naturalmente, processo que a filantropia estaria impedindo. Já as medidas educativas e ambientais, também ineficientes no Brasil, deveriam atuar impedindo que os indivíduos de boa ascendência fossem degradados pelo álcool ou pelas doenças, principalmente pela sífilis e tuberculose, bem como orientar o comportamento da juventude a evitar estes males.

Na obra Tipos Vulgares, Kehl apresenta um esquema de identificação desse longo elenco de deficitários morais:

Primeiramente dever-se-ia investigar as constantes biopsicológicas ou fatores de predestinação da personalidade, hereditários e congênitos. "Esses fatores seriam determinantes dos caracteres fixos exteriorizados e dos que se mantêm latentes" (Kehl, 1958a, p. 136).

Em segundo lugar considerar os fatores variáveis, mesológicos ou ambientais. Esses seriam os desencadeadores das patologias latentes: "Estímulos fisiológicos": desordens glandulares, crescimento, idade sexual, idade crítica; "Estímulos psíquicos": ambiente doméstico, escolar de ordem geral (crenças sugestões etc.) de ordem sentimental; "Estímulos econômicos e sociais": miséria, urbanismo, doenças intoxicações. Ele não apresenta uma fórmula para quantificar esses fatores e estímulos, no entanto, diz que uma avaliação psicológica deveria ser assim desenvolvida de acordo com os conhecimentos da caracterologia.

Analisando todos perfis psico-críticos, enfim, aparentemente pode-se concluir que Kehl é um crítico da civilização brasileira, pois visto a ampla gama de anormalidades, poucos seriam considerados normais segundo esses parâmetros e sendo a anormalidade uma questão biológica, uma constante, como diz, pouco poderia ser feito. No entanto, Kehl apresenta ao longo de sua obra psicológica uma série de intervenções para a correção do grave problema da degeneração mental brasileira. Para ele, a crítica não bastava.

 

A cura do espírito

De forma muito mais restrita que a identificação e tipologia das personalidades e psicopatologias, Kehl (1954; 1958a) apresentará orientações para a formação do caráter e a "cura do espírito". Parece que neste campo haveria muito menos a dizer. As suas orientações, ele deixa claro, só poderiam ter efeito naquelas pessoas que já tivessem a capacidade de incorporá-las, mas que o ambiente não estaria favorável. Caso contrário, pouco poderia ser feito. Uma pessoa míope jamais saberia de sua limitação se ninguém a dissesse e indicasse um par de óculos. No entanto haveria pessoas que não compreenderiam este princípio básico e por mais que se fizesse recusariam a correção, permanecendo assim indefinidamente. A melhor intervenção seria mesmo a eugênica, impedindo o aparecimento dos degenerados mentais por imposição do estado ou iniciativa dos indivíduos instruídos na matéria, que se recusariam a coabitar e procriar com os tipos humanos que descreve em suas obras.

Em sua obra Cura do espírito (Kehl, 1954) utiliza o verbo "curar" não como sinônimo de "sanar" ou interromper um processo patológico. Aproximando-se do sentido latino, entende cura como "zelar, cuidar, tratar". Curar e sanar em sua obra são dois processos diferentes. O único caminho para sanar uma deficiência seriam as ações eugênicas profiláticas. Já as suas orientações necessitariam de um solo fértil para que pudessem florescer.

Kehl (1954) não apresenta nenhuma prática psicológica clínica, restringindo-se a uma série de aconselhamentos e orientações médicas para o dia a dia aliada ao que chamou de hormono-vitaminoterapia. Nesta obra parece oscilar entre um pessimismo com a cultura nacional e esperança de que a maioria dos infelizes assim o seriam devido ao meio desfavorável.

Em sua obra a eugenia é a ciência do bom nascimento, já a eutenia é a ciência do desenvolvimento das melhores contingências ambientais. Importante notar que o segundo conceito aparece, sobretudo, em sua obra psicológica. Ambas teriam as mesmas metas, oferecer condições ao individuo para o seu desenvolvimento rumo a felicidade.

Bloqueados biologicamente, ou não, Kehl (1954, p. 43-8) oferece doze estratégias gerais para confortar os espíritos desajustados ou desenvolver os bons espíritos latentes, mas carentes de um ambiente propício:

I) Julgar-se razoavelmente aquinhoado: Todos os indivíduos razoavelmente bem conformados biologicamente são favorecidos em alguns pontos e desfavorecidos em outros, assim não há quem não tenha um potencial; II) Considerar-se simples usufruturário da existência: Há um papel da vida que não se encerra na existência individual, mas é papel do homem cuidar das gerações futuras; III) Atender a consciência, ao foro íntimo: É necessário que a consciência fique em paz consigo mesma, assim é preferível afrontar o mundo para servir a consciência que o contrário; IV) Cuidar de atender as exigências naturais: Em sinal de desconforto tentar averiguar quais exigências naturais não estão satisfeitas; V) Não se absorver, isto é, não se dedicar obsessivamente ao problema de gozar a felicidade: A felicidade não deve ser perseguida diretamente, mas sim em passos gradativos pelo esforço individual; VI) Não se iludir com as aparências da felicidade alheia: todos gozam e todos sofrem, assim não é possível fazer comparações, pois a felicidade não se apresenta diretamente; VII) Esforçar-se para merecer e para acrescentar mais alguns momentos felizes: Considerar-se dotado de inteligência suficiente para conquistar mais momentos de felicidade; VIII) Cultivar o amor próprio sem o exacerbar: Jamais julgar-se menos que os outros; IX) Guiarse pelo sentimento, atendendo à razão ou ao equivalente, viver pela razão, sem exagerar-se em sentimentalismos: Buscar o equilíbrio entre a razão e a emoção; X) Respeitar a lei de reciprocidade: Não fazer aos outros que não se deseja que nos façam. Nunca contribuir para a infelicidade alheia; XI) Estabelecer o programa da auto-suficiência: Não depositar a felicidade nas mãos de outro; XII) Conquistar as chaves magnas do sucesso: a paciência, a calma e a moderação: A paciência deve ser cultivada para melhor compreensão dos obstáculos da vida. Não deixar que as paixões se sobreponham..

Estes doze princípios encerram três segmentos dos espíritos sãos e livres: o equilíbrio entre razão e emoção; a auto-regulação, isto é, imune ao ressentimento o espírito são conhece seus deveres sem precisar de algo que o mande. Kehl, na mesma obra, vai dedicar uma extensa reflexão sobre o espírito sadio, visto sua importância para a "medicina do espírito". Problema explorado por Nietszche, em Genealogia da Moral, o ressentimento é caracterizado por uma ruminação mental decorrente de alguma ofensa não respondida a altura. Este sentimento poderia tomar uma proporção que acabaria por intoxicar a alma, invertendo os valores civilizados. O ressentido, fixado em um fato ou pessoa, poderia ser tomado por desejos desde simples malquerença até a uma vingança sanguinária. Ele seria incapaz de passar ao largo de uma decepção, odiando um objeto anteriormente amado, ou o contrário se isso servisse de alento. Kehl defende que o ressentimento deveria figurar nos tratados de psicopatologia.

Como conclusão Kehl (1954) oferece a sua "farmácia do espírito", um conjunto de ditos breves, preceitos morais, máximas educativas, aforismos filosóficos e conceitos eugênicos, como se fossem frascos de medicamentos, mas para o espírito. Estes "medicamentos" seriam indicados para facilitar o caminho da auto-análise, uma vez que os núcleos neuróticos não poderiam ser reconhecidos diretamente, mas somente com muito exercício de autocrítica.

Para tanto, orienta que o leitor procure identificar os seus próprios desajustes, estabeleça um propósito de autocura, o que chama de "hormônio psíquico revigorador" (Kehl, 1954, p. 132) e por fim procure criar os próprios recursos auto-sugestivos, precavendo-se de futuros ataques das paixões subconscientes. A saúde mental consiste em aprender a criar administrar os próprios remédios para o espírito.

 

Tecnologias do instinto

No século XIX surge um novo problema para a psiquiatria, fundamental para delimitar a fronteira entre o normal e patológico: os instintos. Segundo Foucault (2001) é a noção de instinto que permitirá à Psiquiatria ser inscrita na problemática biológica, mais especificamente no evolucionismo darwinista. Mesmo a Psiquiatria estando estabelecida como especialidade médica, ainda faltava-lhe algo que de fato a incluísse nas ciências naturais, escapando das noções metafísicas, como a alma. O delírio, como o outro da razão, conceito caro a Psiquiatria, não foi suficiente para essa função. Os instintos revelados pelo evolucionismo apontavam um verdadeiro perigo à cultura e isso exigia uma resposta da medicina. A sexualidade e a agressividade, dois instintos primários e reveladores da face animal do humano, se não controlados poderiam causar sérios danos à constituição racial de um país. Assim, aponta Foucault (2001), criaram-se duas tecnologias de controle instintual no século XIX: a eugenia e a psicanálise. Essas duas práticas fundadas em discursos sobre o instinto permitirão à Psiquiatria estender suas ações para além dos muros manicomiais. É o que ocorre na psicopatologia de Renato Kehl. Toda sua classificação psicopatológica é voltada às práticas de controle social, as quais, como vimos, deveriam ser conduzidas pelos indivíduos comuns esclarecidos ou cientistas especializados que orientariam as políticas públicas para a loucura e para toda a sorte de anormalidades. Mas essas tecnologias não surgiram espontaneamente, nem foram frutos de descobertas propriamente científicas da psiquiatria, antes, foram resultado das engrenagens de poder (Foucault, 2001). Ao se fundar nas ciências naturais a Psiquiatria fornecerá elementos aparentemente inequívocos para a criminologia, na medida em que definirá o limite imputabilidade criminal, isto é, onde começa e termina a responsabilidade do sujeito por seus próprios atos. As classificações das anormalidades criadas por Kehl pretendiam resultar em uma psiquiatria e psicologia (ele não faz uma grande distinção entre essas ciências) eugenista, afim de recolocar em ordem os atributos mentais e morais do brasileiro, em vias de degeneração.

A chamada caracterologia, base da psicologia do eugenista, era uma tecnologia que permitiria, a partir da análise de traços explícitos do comportamento e da fisionomia, verificar como o instinto se revelaria em um indivíduo. Evidente que todos carregariam os mesmos instintos, mas a expressão deveria ser diferente em cada um e em alguns essa expressão revelaria suas anormalidades.

 

Conclusões

Embora sua obra psicológica seja extensa e destinada a transformação psíquica individual e cultural, Kehl nunca atuou como clínico. Toda a sua obra é especulativa e derivada da colagem de uma infinidade de filósofos, cientistas, médicos etc.. Nas obras analisadas ele apresenta uma série de esquemas de exame mental, porém, não aplicados por ele nem sistematizados a partir de pesquisa experimental no ambiente brasileiro. Isso se deve também ao momento histórico préexperimental em que se encontrava a psicologia brasileira. Suas qualidades residem muito mais na forma com que consegue encaixar conhecimentos de diferentes domínios como a caracterologia, a criminologia, a filosofia, a medicina, que propriamente de suas próprias descobertas. Ele não apresenta nenhuma tese original nem qualquer invenção, mas suas habilidades literárias, sua capacidade argumentativa, e sua erudição são inegáveis. Suas análises de personagens históricos e literários são interessantes para a época e talvez por isso tenha chamado a atenção de vários escritores, entre eles, Monteiro Lobato.

O fato de não ser propriamente um pesquisador nem um clínico é a causa de aproximar-se do neolamarckismo, defendendo a tese da herança de caracteres psicológicos adquiridos em uma época em que esse conceito já estava superado. Isso pode levar-nos a concluir que se trata de um autor sem grande importância para a história da psicopatologia brasileira moderna. Engano. Sua defesa radical do determinismo biológico o aproxima de certas classificações psicopatológicas atuais indicando que no Brasil outrora esta concepção já fora bastante presente, o que a rigor pouco se modificou. Embora as categorias psicopatológicas atuais sejam bastante diferentes das de Kehl, o sistema taxionômico é praticamente o mesmo. A sua Psicologia atendia prontamente as necessidades e aspirações culturais brasileiras e estava perfeitamente sintonizada com a psicopatologia mundial.

Ele pode ser entendido também como um pioneiro da Psicologia Evolucionista no Brasil, isto é, uma psicologia que busca na seleção natural darwinista a explicação das propriedades mentais (inteligência, memória, afetividades etc.) e para os comportamentos normais e desviantes. Segundo esta leitura, os comportamentos que mais geraram benefícios à sobrevivência do homem, tenderam a permanecer, enquanto os prejudiciais tenderam a desaparecer. As anormalidades, portanto, seriam momentos de adaptação da espécie, como se a natureza estivesse testando um novo modelo de comportamento para verificar sua funcionalidade na manutenção da vida, interesse de toda a espécie.

No entanto, encontra um grande obstáculo quando trata da raiz moral das psicopatologias, como o ressentimento. Sendo os comportamentos e os desvios moldados biologicamente não haveria razão para Kehl empreender sua crítica cultural ao Brasil. O que diria sobre os costumes nacionais se tudo fosse pré-determinado? E o sujeito, como poderia ser responsabilizado se suas ações fossem pré-determinadas pela hereditariedade? Assim, é na sua obra psicológica que seu reducionismo e determinismo biológico são colocados à prova. Se a manipulação do meio, a que chama de eutenia, fosse inútil para prover o indivíduo de boas condições para o seu desenvolvimento, as ciências psicológicas não teriam motivo de existir. Tudo teria de ser resolvido pela regulação da reprodução humana. Sua solução foi hierarquizar o biológico, o individual e o ambiental, nesta ordem, e retirar a nova e promissora ciência da Psicologia das amarras da metafísica. Ao explorar os determinantes individuais e ambientais das psicopatologias e desvios morais, procurava responsabilizar o individuo sem deixar de lado o determinismo biológico. Caso contrário, ninguém poderia ser responsabilizado por seus próprios atos, ou seja, a engrenagem poder-saber (Foucault, 2001) não se encaixaria.

Pode-se dizer que sua Psicologia é pessimista, pois aceita a idéia da modelagem comportamental de maneira restrita, restando pouco espaço ao desejo individual e ao ambiente, ao contrário das correntes behavioristas e psicanalistas então em ascensão no período em que escreve. Para ele, o indivíduo é pouco moldável, por isso insiste na manipulação das características da espécie, como uma tecnologia (Foucault, 2001). Assim o conceito de personalidade aparece como uma constante e não variável.

Em um viés predominante pedagógico, passa ao largo das práticas clínicas. É compreensível. O manejo clínico em psicologia e psicopatologia é quase que exclusivamente ambiental e mental. Se investisse nesse assunto feriria a hierarquia entre biológico, individual e ambiental.

Para alcançar seus objetivos então elabora uma série de lições de como proceder na vida cotidiana para se alcançar a felicidade, o que de certa forma o aproxima também da literatura de autoajuda atual. Porém, são lições que só poderiam ser aproveitadas pelos espíritos elevados. Muito faria a psicologia pela humanidade se conseguisse evitar que os indivíduos bem conformados biologicamente fossem maculados pelos venenos da raça.

Kehl tem muitas influências da Psicanálise, embora não admita diretamente, principalmente no tocante a naturalização e "desmoralização" da sexualidade. Conceitos como subconsciente, inconsciente, sexualidade, recalque, sublimação e instinto estão presentes no dinamismo das psicopatologias e desvios de conduta que descreve, mas tudo isso é síntese de um substrato biológico. Como previu Foucault (2001), é isso que permitirá a inscrição da Psiquiatria na ordem discursiva naturalística.

A luta entre os poderes naturais do instinto e as exigências da cultura também é marcante em sua obra. Como em Freud (2010), a privação sexual da moral civilizada cristã é motivo de muito sofrimento desnecessário e misticismo. Em sua "farmácia do espírito", Kehl afirma que parte da vida saudável consiste em dar vazão aos chamados da natureza. A sexualidade, como a fome, deve ser satisfeita para uma vida plena e normal. O tipo psicopatológico dos "castos forçados", um ataque indireto ao catolicismo, seria um exemplo de grave desvio de conduta. Isso é o que ocorre quando a moral civilizada tem um suporte religioso e não cientifico, como no Brasil. Kehl, em nenhum momento, coloca a religiosidade como necessária a integração cultural nem para condução da vida privada. Para ele, como em outros pensadores brasileiros do início do século XX, a religiosidade é incompatível com a racionalidade, como se uma invadisse o campo da outra e a subjugasse. Ele propunha assim substituir a repressão dos instintos, por uma "tecnologia do instinto" (Foucault, 2001).

Ele nega toda a subjetividade e coloca o papel do sujeito em segundo plano no direcionamento de seu destino. Kehl, assim, aproveita a crítica cultural psicanalítica, mas não o seu determinismo mental, tampouco a metapsicologia freudiana. Evidentemente Kehl prescindia do determinismo mental de Freud em função do determinismo e reducionismo biológico, por isso os termos inconsciente e subconsciente não são conceituados e aparecem somente como adjetivos e não como substantivos. Talvez por não aproveitá-la integralmente é que opte por não mencioná-la diretamente. É bastante conhecida a crítica de Freud ao determinismo e reducionismo biológico, uma vez que empreendera técnicas exclusivamente psicológicas para tentar sanar o sofrimento mental. Nos Estudos sobre histeria (1996), publicado pela primeira vez em 1895, Freud expõe uma série de casos clínicos tratados com hipnose. Iniciava uma busca por um modelo mental autônomo. A análise do ressentimento em Kehl é equivalente a da histeria em Freud. Os afetos não encaminhados adequadamente ficam represados no inconsciente individual e acabam sendo desviados para outras metas, formando assim os sintomas.

Individualista, para Kehl as verdadeiras virtudes não poderiam ser alcançadas esperando-se atitudes do outro ou empreendimentos coletivos. Dever-seia atender prioritariamente a própria consciência, mesmo que isso fosse contra a unanimidade. De nada valeria estar de bem com o mundo, mas desconfortável com a própria consciência. Isso equivale ao vício da hipocrisia. O brasileiro não teria a habilidade empreendedora individual e as formações coletivas decorreriam da sua incapacidade de posicionar-se criticamente. Os bajuladores, tão comuns nas instituições nacionais, seriam exemplos deste vício.

O projeto científico de homem e cultura nutrido pela modernidade exige a segmentação e a ordenação dos fenômenos. As doenças mentais e desvios comportamentais não podem escapar a este projeto. Ao segmentar e ordenar, o projeto moderno de homem, do qual Kehl é mais um representante, cria ao mesmo tempo os seus "outros", isto é, os seus contrários, gerando assim uma série interminável de ambigüidades (Foucault, 2001). Para todo anormal - inúmeros tipos que pesam sobre a sociedade - há o que Kehl chama de supernormal, ou seja, superiores responsáveis por resolver os problemas que os primeiros geraram, garantindo assim o equilíbrio social. Em sua obra, as mazelas sociais do Brasil seriam decorrentes de um desequilíbrio nesta equação.

Um dos problemas que a clínica psiquiátrica enfrenta atualmente, devido a segmentação do fenômeno do sofrimento mental humano, é a duplicidade diagnóstica. Algumas classificações psicopatológicas dos manuais diagnósticos são tão próximas que na prática clínica não se observa grandes diferenças. Por outro lado outros modelos epistemológicos já desistiram da empreitada da segmentação e pouco se importam com o nome dado ao sofrimento. Essas linhagens de pensamento não são absolutamente novas e são marcadas principalmente pela Psicanálise.

Vê-se que os limites entre o normal e o patológico necessitam ser modificados periodicamente ao longo da história, e o conhecimento psicológico é o campo privilegiado deste debate.

 

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Recebido em: 21/08/13
Aceito em: 04/08/14

 

 

1 Contato: andremasiero@ufscar.br