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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora dez. 2014

 

ARTIGOS

 

Estudo introdutório sobre desenvolvimento da percepção infantil em Vigotski

 

Introductory study as to the development of infant perception in Vigotski

 

 

Stéfany Bruna Brito Pimenta; Rafaela Sousa Caldas1

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda de forma introdutória o conceito de percepção em Vigotski e discute seu desenvolvimento na primeira infância (1-3 anos). A elaboração desse trabalho se deu a partir da revisão bibliográfica do próprio autor e de artigos contemporâneos que discutem o desenvolvimento da função perceptiva no homem. O texto apresenta estudos realizados por Vigotski, a partir de experimentos precursores que tiveram como objetivo a compreensão do funcionamento perceptual, e discorre sobre as contribuições da Psicologia histórico-cultural para o entendimento dessa função psicológica na infância. Para o autor a percepção está estreitamente relacionada com as demais funções psicológicas tendo seu desenvolvimento partindo de estruturas biológicas para uma progressiva diferenciação e aperfeiçoamento via mediação social. A Psicologia histórico-cultural aponta para a necessidade de se buscar compreender as inúmeras funções psicológicas considerando seu processo constante de desenvolvimento, suas mútuas influências e seu fundamento cultural.

Palavras-chave: Desenvolvimento, Percepção, Psicologia Histórico-Cultural


ABSTRACT

This article briefly discusses Vygotsky's concept of perception and its development in infancy (1-3 years). It was elaborated through the bibliographic revision of the author's publications and present-day articles about human development. It presents studies by Vygotsky, from precursor experiments that aimed at understanding perceptual functioning, and discusses the contributions of cultural-historical Psychology to the understanding of this psychological function during childhood. For the author, perception is closely related to other psychological functions starting with their development from biological structures up to the progressive differentiation and improvement by social mediation. Cultural-historical psychology points to the need to seek understanding of the many psychological functions due to considering their constant process of development, their mutual influences and their cultural foundations.

Keywords: Development, Perception, Historical-Cultural Psychology


 

 

Introdução

O desenvolvimento infantil tem sido objeto de diferentes interpretações e análises nas diversas abordagens da Psicologia ao longo da história. Apesar da evidente diversidade de enfoques, é possível identificar um elemento comum a grande parte das explicações sobre o processo de desenvolvimento da criança: a naturalização do fenômeno psicológico. Analisar o desenvolvimento infantil sob enfoque naturalista significa explicar os fenômenos psíquicos a partir de uma suposta natureza do homem, apresentando como naturais e universais características sociais e historicamente constituídas e limitando a compreensão do desenvolvimento apenas como uma adaptação às condições do meio.

Como superação desta visão naturalista, tão disseminada pelas teorias que versam sobre o desenvolvimento infantil, nos alicerçamos na teoria histórico-cultural de Vigotski, que possui como pressuposto básico a constituição do ser humano como tal na relação com o outro social. Para o autor, a cultura torna-se parte do homem em um processo histórico que ao longo do desenvolvimento da espécie e do individuo, produz e transforma o seu funcionamento psicológico. Vigotski rejeita a ideia de funções psíquicas fixas e imutáveis, compreendendo o cérebro como um sistema aberto, plástico, cuja estrutura e modos de funcionamento são moldados ao longo da historia da espécie - filogeneticamente - e do desenvolvimento individual - ontogeneticamente.

Ao desenvolver seus estudos, a Psicologia histórico-cultural marcou uma ruptura com os ecletismos e depurações sociais presentes nas abordagens psicológicas anteriores, como a Psicologia Idealista. Segundo essa perspectiva, as amadurecimento orgânico, de modo que o psiquismo humano era compreendido à margem das determinações sociais em que se constitui, destituído de historicidade. Assim, as funções psicológicas superiores seriam constantes e comuns a todas as épocas e a todos os homens. Vigotski opõe-se radicalmente à concepção do desenvolvimento como amadurecimento orgânico, enfatizando a dependência das funções psicológicas superiores da apropriação dos signos da cultura (Eidt & Tuleski, 2010).

Diante dessa compreensão, Vigotski apresenta o funcionamento psíquico humano a partir da gênese e natureza social dos processos psicológicos superiores. O autor propõe uma teoria marxista do funcionamento intelectual humano que inclui tanto a identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes à formação e desenvolvimento das funções psicológicas, como a especificação do contexto social em que ocorreu tal desenvolvimento. Vigotski anuncia então uma nova Psicologia que, baseada no método e nos princípios do materialismo dialético, compreendesse o aspecto cognitivo a partir da descrição e explicação das funções psicológicas superiores, as quais, na sua visão, são determinadas histórica e culturalmente.

Dessa forma, a teoria do desenvolvimento vigotskiana parte da concepção de que todo organismo é ativo e estabelece contínua interação entre as condições sociais, que são mutáveis. Vigotski observou que o ponto de partida são as estruturas orgânicas elementares, determinadas pela maturação. A partir delas formam-se novas e cada vez mais complexas funções mentais, dependentes da natureza das experiências sociais da criança (Oliveira, 1997; Montoya 1995).

Nessa perspectiva, o processo de desenvolvimento da capacidade perceptiva infantil parte do aparelho perceptivo fisiologicamente constituído para, a partir da atuação social, transformar-se em uma experiência de correção da imagem percebida. Esta nova imagem traz consigo as transformações da experiência social e se alterará novamente com a aquisição da linguagem, graças à elaboração lógica da generalização - analisar o percebido e categorizá-lo.

O presente trabalho desenvolve introdutoriamente o conceito de percepção em Vigotski e discute seu desenvolvimento na primeira infância (1-3 anos). A elaboração deste se deu a partir da revisão bibliográfica do próprio autor, Vigotski (1989; 1995; 1996; 2001; 2006 e 2007), e de artigos contemporâneos que discutem questões acerca do desenvolvimento e funcionamento psíquico infantil. Buscou-se apresentar a compreensão da Psicologia histórico cultural acerca dessa função psicológica na infância, visando contribuir para estudos posteriores sobre o funcionamento psíquico infantil e auxiliar em investigações que se dedicam ao entendimento de como processos naturais interconectam-se com processos históricoculturais, resultando no funcionamento psicológico complexo.

 

Concepções gerais acerca do desenvolvimento e aspectos básicos da percepção

Para Vigotski (1929; 2000), na época do nascimento, o organismo - aparato biológico - está estruturalmente formado, entretanto, ele ainda não está humanizado. O desenvolvimento psicológico da criança consiste na união de duas linhas paralelas: a do desenvolvimento biológico e a do desenvolvimento histórico-cultural. Portanto, o desenvolvimento no homem parte de um aparato biológico, encontrando nas relações sociais os fatores humanizadores. Oliveira (1997) aponta que a Psicologia histórico-cultural concebe o homem em sua superação da natureza. O ser humano foi capaz de ir além das funções psicológicas, biologicamente determinadas e herdadas, construindo uma conduta organizada culturalmente.

Dessa forma, o desenvolvimento humano pode ser compreendido enquanto processo contínuo, no qual cada etapa consiste no surgimento de novas funções. As funções vão das mais elementares e biológicas para as superiores. As funções psicológicas superiores (tipicamente humanas, tais como: percepção mediada, atenção voluntária, memória, abstração, etc.) são processos da atividade cerebral, ou seja, possuem base biológica, mas, fundamentalmente, são resultados da interação do indivíduo com o meio, interação mediada por instrumentos, signos e símbolos, enquanto construções humanas historicamente produzidas. Portanto, um aspecto extremamente importante do psiquismo humano é que este se desenvolve por meio da atividade social - ação humana sócio-culturalmente internalizada -, que tem como característica a mediação através de instrumentos que se interpõem entre o sujeito e o objetivo da sua atividade e que se estruturam enquanto mecanismos semióticos (Singardo, 2000).

Nesse sentido, as funções psicológicas encontram na infância um período elementar para sua formação, sendo este o primeiro momento de apropriações culturais e, portanto, do aperfeiçoamento dos processos psíquicos. Na idade, adulta transformam-se em estruturas cerebrais interligadas, geradoras de consciência. Ocorre uma construção progressiva das funções cerebrais de nível primário, como, por exemplo, a percepção imediata, para um nível secundário, percepção mediada. Nas funções psicológicas superiores opera um caráter sistêmico de funcionamento, isto é, atuação de uma rede de funções - atenção, memória, percepção, linguagem, pensamento, etc. (Toassa, 2009).

As conexões existentes entre as diversas funções psicológicas formam um complexo sistema que se modifica ao longo do desenvolvimento. A percepção constitui, dentre outras funções, esse sistema dinâmico do comportamento humano. Ela faz parte, enquanto imediata, das funções inferiores/biológicas da espécie humana, entretanto, não permanece a mesma durante toda a vida do indivíduo. A relação do homem com a natureza causa significativas mudanças no curso do desenvolvimento humano (Vigotski, 2007).

Diante da relação da percepção com outras funções psíquicas, a mudança no desenvolvimento não irá se restringir apenas a ela. As mudanças e transformações ocorrerão, também, em outras atividades cognitivas. Há, para Vigotski, uma relação interpsíquica entre as funções psicológicas. Diferentemente da teoria associacionista, Vigotski (2001) considera que a percepção do todo precede a percepção das partes isoladas. A percepção é um processo integral e não atomístico, mesmo que as partes isoladas se alterem a percepção mantém esse caráter integrador, ou seja, alterando-se as partes surge uma percepção integral distinta. Dessa forma, compreende que o caráter estrutural da percepção é primário, estando presente desde os primeiros anos de vida.

Assim, a percepção humana é caracterizada por apreender um quadro mais ou menos constante, ordenado e coerente. Tendo em vista que a percepção humana sofre modificações, a percepção adulta se distingue da infantil por certas particularidades psíquicas. Uma dessas é a ortoscopia, que se refere à capacidade de visualizar os objetos com certa constância, com sensações de proximidade e afastamento. Essa característica da percepção não é primária, mas sim um produto do desenvolvimento, sendo que essa constância surge quando a percepção começa a atuar no sistema de outras funções (Vigotski, 2001).

Além da percepção adulta ser estável, ortoscópica, ela também é dotada de sentido. A interpretação ocorre juntamente com a percepção, sendo que, "a própria percepção de aspectos objetivos isolados depende do sentido, do significado que acompanha a percepção" (Vigotski, 2001, p. 359). Essa atribuição de sentido também não está dada desde o princípio, surgindo na medida em que ocorre o desenvolvimento da linguagem. Com isso percebe-se que a percepção deve ser sempre considerada em relação a outras funções que constituem o sistema psicológico.

 

Os problemas da percepção e os estudos experimentais

Para Vigotski, a percepção humana não possui apenas um desenvolvimento aperfeiçoado das formas animais, mas as leis básicas que regem as formas superiores dos processos psicológicos humanos possuem estruturas distintas das que estão presentes nos animais. A partir de diferentes visões sobre o tema da percepção, Vigotski dialoga com estes pressupostos, aponta as contradições, refuta-as, para então produzir a sua síntese.

Para Vigotski (2007, p.30), "há razões para acreditar-se que a atividade voluntária, mais do que o intelecto altamente desenvolvido, diferencia os seres humanos dos animais filogeneticamente mais próximos". Tal afirmação se justifica na análise do experimento desenvolvido por Köhler sobre a importância da estrutura do campo visual para a organização do comportamento prático do macaco, no qual observou que o processo de resolução de problemas estava determinado pela percepção, de modo que os macacos não são capazes de modificar seu campo sensorial por esforço voluntário (Vygotski, 1989). Isso ocorre devido ao fato dessas atividades voluntárias serem características das funções psíquicas superiores, exclusivas da espécie humana.

Como visto anteriormente, Vigotski (2001) critica a Psicologia associacionista, que interpreta a percepção como um conjunto associativo de sensações, como se a percepção fosse resultado da integração de sensações ilhadas, que criariam um quadro de memória e explicaria de onde procede a coerência da percepção. A teoria associacionista defende que a percepção infantil desenvolve-se de forma análoga ao desenvolvimento mental, sendo assim, a vida psíquica já viria dada desde o nascimento, e nesse sentido, o desenvolvimento psíquico se daria pelo acúmulo de informações e imagens, cada vez mais amplas e complexas. Se contrapondo a essa visão a Psicologia estrutural busca demonstrar experimentalmente que a percepção é sensorialmente integrada desde o início do desenvolvimento e não a consequência de um prolongado desenvolvimento.

A Psicologia estrutural, apoiada por Vigotski, dedicou-se em demonstrar experimentalmente o nascimento estrutural da vida psíquica por meio da percepção. Para os estruturalistas a percepção do conjunto precede a das partes isoladas e depende dos conjuntos de objetos ou de outros processos que se apresentam a nossos olhos e ouvidos. Vigotski (2001) cita o experimento em que um mesmo objeto próximo dos olhos parece grande e longe parece menor, para explicar a importância da ortoscopia na percepção. Para ele a percepção cumpre sua função porque é ortoscópica, ou seja, nos permite ver os objetos corretamente, alterando o tamanho dos objetos à medida que nos afastamos deles. Essa função é linguística, ou seja, mediada pela cultura.

Vigotski (2001) cita o que denominou como os dois problemas da percepção. O primeiro é a atribuição de sentido na percepção:

Uma das particulares características da percepção do homem adulto é que nossas percepções são estáveis, ortoscópicas; a outra é que nossa percepção tem sentido. Tem-se demonstrado experimentalmente que não podemos criar condições que separem funcionalmente nossa percepção da atribuição de sentido do objeto percebido. (p.359)

Vigotski (2001) confirma a expressão de Buhler, "Minha percepção constitui parte integrante do meu pensamento visual", e acrescenta que "simultaneamente com o que vejo me é dada a ordenação categorial da situação visual que constitui agora o objeto da percepção" (p. 423).

Outras pesquisas demonstram uma série de percepções que surgem das ilusões. A chamada "ilusão de Charpant" é utilizada por Vigotski para demonstrar a diferença de percepção entre portadores de deficiência visual e auditiva. Essa ilusão consiste em expor cilindros de diferentes formas com o mesmo peso. Os sujeitos considerados normais atribuem ao cilindro mais baixo maior peso, da mesma forma que os deficientes visuais atribuíram mais peso aos cilindros mais baixos ao apalpá-lo. Já os deficientes auditivos não estão sujeitos a essa ilusão. Demor (citado por Vigotski, 2001) observou que as crianças com muito atraso na ilusão de Charpant, ou seja, que não percebem o cilindro menor mais pesado, possuem sua percepção sem sentido. Para Claparède (citado por Vigotski, 2001) as ilusões constituem um sintoma do desenvolvimento infantil e que no processo de desenvolvimento normal, crianças de até cinco anos não respondem a ilusão de Charpant.

O segundo problema da percepção refere-se às discordâncias sobre a autêntica relação categorial. Vigotski (2001) apresenta que demonstrações realizadas pela percepção de desenhos partem do fato de que estes representam sempre uma parte da realidade e possibilitam julgar a percepção de crianças de várias idades. Nesta concepção, as diferenças na percepção infantil segundo os desenhos se dividem em quatro fases: a percepção de objetos isolados; o estágio da ação no qual a criança assinala o que se pode realizar com os objetos; o estágio das qualidades no qual a criança assinala os aspectos dos objetos e o da totalidade das partes. Vigotski (2001) critica tal concepção apontando a contradição entre essas fases e o desenvolvimento da percepção, que diferentemente da evolução do desenho, parte do todo para as partes.

Assim, para o autor,

no processo de desenvolvimento infantil surge uma conexão entre as funções de percepção e de memória eidética, e com ele surge um novo conjunto único, em cuja composição a percepção atua como parte interna sua. Surge uma função imediata entre as funções de pensamento visual e as da percepção e essa fusão é tal que não podemos separar a percepção categorial da imediata, isto é, a percepção do objeto como tal do sentido, o significado, desse objeto. A experiência mostra que surge aqui uma conexão entre a linguagem ou a palavra e a percepção, que o curso normal da percepção na criança muda se olharmos essa percepção através do prisma da linguagem (...). [Trad. das autoras] (p.365).

Outros experimentos, como os de Stern e Binet, que fazem referência aos estados evolutivos da percepção de lâminas por crianças, demonstram aspectos específicos da percepção em dependência dos mecanismos psicológicos superiores. Vigotski (1989) reproduziu experimento semelhante sobre descrições de lâminas só que estas deveriam ser feitas por uma pantomima, representação teatral em que a palavra é substituída por gestos e atitudes, no qual uma criança de dois anos percebeu as figuras dinâmicas do desenho e reproduziu facilmente representando, o que para os outros autores seriam características da habilidade perceptiva infantil foi interpretada por Vigostski como produto das limitações do seu desenvolvimento linguístico. Observações demonstraram que o rotular as coisas com nomes é função primária da linguagem das crianças pequenas, permitindo-as eleger um objeto determinado e separá-lo da situação global que estão percebendo, superando a estrutura natural do campo sensorial e formando novos - artificialmente produzidos e dinâmicos-centros estruturais. Esses experimentos demonstram que a criança, antes dos três anos de idade, já é capaz de ter uma percepção estável, semântica (atribuída de sentido) e independente da situação externa.

 

O desenvolvimento da percepção na infância

A percepção, assim como as demais funções, passa, ao decorrer da vida, por um processo de desenvolvimento e alterações. Portanto, "as percepções da criança, inclusive as percepções de tempo e de espaço, ainda são primitivas e distintivas, e passará muito tempo até que se tornem as percepções que são características dos adultos" (Vigotski & Luria, 1996, p.157).

Tendo em vista o aparato biológico da espécie humana, há em todo ser humano um aparelho perceptivo fisiologicamente constituído. Portanto, para o neonato, os limites e as possibilidades de percepção do mundo ao seu redor são definidos pela herança biológica. Entretanto, por meio das interações sociais as funções inatas são modificadas e se desenvolvem. Assim, ao longo do processo de desenvolvimento, a percepção se torna, cada vez mais, uma função mais elaborada, sendo que, o aparelho sensorial não reduz essa função em si mesmo, mas apenas determina as possibilidades de seu contínuo desenvolvimento.

De acordo com Luria (citado por Pino, 2008) a unidade cerebral responsável pela percepção é a temporo-parieto-occipital, que recebe, analisa e armazena os estímulos, permitindo-nos perceber o mundo à nossa volta. Essa estrutura cerebral é necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores na criança, que só se torna humana no contato com outros homens e com a cultura.

Ao nascer, o sistema sensorial, que liga o bebê ao mundo exterior, possui limitações. Um exemplo disso é o fato de que o bebê, inicialmente, vê o mundo de modo simplista e rudimentar, sendo incapaz de realizar sínteses, categorizações, interpretações ou abstrações. Os objetos, no geral, são percebidos apenas quando estão bem próximos ao toque e ao tateio, o que indica a ausência da perspectiva visual, que será desenvolvida posteriormente (Vigotski & Luria, 1996).

A percepção da criança é instável e variável, o que dificulta sua atuação sobre um mundo mutável. A adaptação perceptual consiste em "transformar as percepções de um estágio ingênuo-fisiológico para outro estágio, onde a experiência anterior introduzirá uma correção na imagem fisiológica de um objeto" (Vigotski & Luria, 1996, p. 158).

A adaptação perceptual "corrige" as sensações externas - acomodação visual. O mundo indiferenciado visto apenas pelos seus olhos será agora visto em um quadro estável através de toda a experiência anterior. A visão holística de um mundo integral se dá na medida em que essas experiências anteriores são incorporadas aos estímulos atuais.

Estudos realizados por Binet e analisados por Stern acerca da relação entre o estágio de desenvolvimento e a percepção da criança concluíram que a forma pela qual uma criança percebe o mundo ao seu redor difere a cada sucessivo estágio do seu desenvolvimento. Eles inferiram que o momento em que a criança percebe os objetos isolados precede o momento em que ela é capaz de perceber relações como um todo (Vigotski, 2007).

Entretanto, Vigotski (2007), partindo desses estudos e através de suas próprias observações, aponta, mais uma vez, para o fato de que se pode inferir que a percepção vai de um estágio inicial de fusão para o de gradual diferenciação. Ele recoloca o complexo problema que gera confusão no que diz respeito se a percepção inicial seria diferenciada ou fundida. Vigotski (2007) e seus colaboradores resolveram tal contradição por meio de experimentos realizados com crianças. Os experimentos comprovaram que os processos perceptivos encontram-se inicialmente fundidos entre si devido às limitações do desenvolvimento da linguagem e, sendo assim, a aquisição desta possibilitará um avanço rumo à diferenciação. Portanto, Vigotski esclarece esse embate apontando para o fato de que a linguagem se desenvolve de forma sucessiva, mas a percepção é simultânea.

A percepção, desde o princípio, é global. Um bebê percebe os objetos como um todo estrutural. Assim, não depende das partes isoladas, mas sim da estrutura visual. É nos primeiros anos de vida que surge a estrutura sistêmica e semântica da consciência, enquanto rede complexa de funções interligadas, permeadas por sentidos e significados sociais. Surge, pela primeira vez, um sistema diferenciado de funções, cujo ponto central é a percepção.

Na primeira infância a criança tem seu comportamento determinado sempre pela situação presente. Ela não traz conhecimentos prévios para orientá-la em cada nova situação, sua dependência está dada pelo seu campo visual-direto. Há uma união entre as motivações e a percepção. A percepção não possui ainda independência, estando integrada à reação motora. Portanto qualquer estímulo percebido é desencadeador de uma ação (Vigotski, 2006).

Uma característica da consciência na primeira infância é a unidade entre as funções motoras e sensoriais. A primeira percepção infantil é afetiva, a criança interage com o seu meio de forma que sentimento e percepção tornam-se uma unidade indissociável. Este sistema de consciência é muito peculiar, sendo que na relação entre ação e afeto tem-se que a atração de cada objeto se dará pela sua carga afetiva.

Assim, nessa idade pensar é basicamente orientar-se de acordo com as relações afetivas dadas e atuar de forma dependente da situação externa que se percebe. Vigotski (2006) conclui que nesse momento do desenvolvimento predomina uma percepção visual-direta, baseada nos afetos e que se objetiva em ação de forma imediata.

Tendo em vista, a unidade indissociável da percepção e da sensação, na percepção global e confusa da criança, as impressões exteriores estarão sempre unidas aos afetos. A criança percebe o que é prazeroso, o que é ameaçador, e assim sucessivamente. Esse caráter afetivo é uma das peculiaridades da percepção (Toassa, 2009).

Outra peculiaridade é sua função predominante na consciência. A consciência, atuando sobre a base das percepções, possibilita que essa função se desenvolva antes que todas as outras funções. Tal peculiaridade está de acordo com uma das leis do desenvolvimento infantil, que afirma que as funções psíquicas, assim como as biológicas, não se desenvolvem de modo proporcional, mas que a cada idade existe uma função que predomina sobre as demais. Em cada período as funções se interrelacionam e formam um sistema de consciência.

O desenvolvimento das funções psíquicas da criança começa pelo desenvolvimento da percepção. Isso vai ao encontro de outra lei fundamental do desenvolvimento infantil, que diz que as funções mais importantes servem de base para as outras funções e, portanto, desenvolvem-se antes. A percepção é a função básica da primeira infância. De modo que todas as funções infantis estão imersas na percepção, dependem e se desenvolverão a partir dela (Vigotski, 2006).

Com a aquisição da linguagem, as funções analisadas por Vigotski, como percepção e memória, estarão em seu desenvolvimento, gradativamente ligadas à regulação pela fala. Por volta dos três anos, com a processual aquisição da linguagem, a criança tende a por um salto qualitativo em seu desenvolvimento. No que tange à percepção, acontecerá a quebra da unidade sensório-motora imediata com o meio, o que diminuirá a dependência situacional da criança. A linguagem modifica a estrutura da percepção graças à elaboração lógica da generalização - analisar o percebido e categorizá-lo. Para Vigotski (1995), o desenvolvimento da linguagem da criança influencia o pensamento e o reorganiza. Fato observado no desenvolvimento da percepção, de pontual (concreta), para generalizada (abstrata).

Vigotski (2007, p.23) afirma que, "pelas palavras, as crianças isolam elementos individuais, superando, assim, a estrutura natural do campo sensorial e formando novos centros estruturais". Assim, a percepção não será um processo sensorial feito apenas pelos olhos, mas um processo superior realizado, também, através da fala. A percepção natural, caracterizada por seu imediatismo, é superada pela percepção mediada pela linguagem. Isso representa uma ruptura de transição da história natural do comportamento primitivo dos animais para as atividades superiores dos seres humanos.

Portanto, a percepção vai progressivamente deixando de ser imediata, caracterizada por uma relação direta do indivíduo com seu meio, para ser mediada por signos e instrumentos. Isso ocorrerá na medida em que se dá a internalização da linguagem, dos conceitos e significados culturais. Ao olhar uma bola a criança não mais perceberá uma esfera de determinada cor em um piso grande e "verde", mais sim um objeto, socialmente chamado de bola, que serve para jogar futebol em um grande gramado e conseguirá também apreender características isoladas e todo esse contexto (Oliveira, 1997).

Sabe-se que a percepção inicial é sincrética - a criança percebe objetos em sua integridade contextual. Vigotski evidencia que o pensamento verbal reorganiza a forma de se compreender o mundo. O pré-escolar irá pensar o mundo como um sistema de coisas e objetos ilhados, já o escolar (a partir dos sete anos) analisará o mundo como um sistema de objetos e pessoas em ação, enfim, o escolar de maior idade (a partir dos doze anos) passará a perceber o mundo como um sistema de relações complexas as quais participam tanto as pessoas como os objetos. Essa mudança está diretamente ligada ao gradual desenvolvimento da linguagem.

Para Vigotski, tanto a criança de três anos como o pré-escolar percebem os objetos através de suas funções. Vigotski (1995) nota que essas crianças descrevem primeiro a palavra que designa a ação e depois o nome do objeto em si. A criança pronuncia primeiro palavras soltas, depois frases e, por último, junta grupos de palavras soltas e fenômenos.

Conclui-se que para se desvincular da ação imediata, determinada pela situação presente, e pensar o mundo em toda sua complexidade de relações a criança deverá necessariamente desenvolver a linguagem, visto que essa quebra o imediatismo da unidade sensório-motora e altera significativamente todas as relações da criança com seu meio. O desenvolvimento da motricidade constitui o primeiro domínio adquirido pela criança, e depois, a aquisição da linguagem, possibilita uma interação com o mundo de forma muito mais complexa e elaborada.

Com o domínio da linguagem ocorre o surgimento de generalizações, ou seja, o objeto não é mais visto apenas em relação à sua situação. Uma percepção generalizada é a primeira forma de se obter os significados das palavras. Dizer que a percepção é generalizada, é dizer que ela é atribuída de sentido.

Nisto consiste a diferença fundamental da percepção humana: esta é atribuída de sentido. Assim, adquirimos consciência das nossas impressões, ao mesmo tempo em que se dá nossa percepção externa, isso em apenas um ato de consciência. "A percepção, portanto, não está separada do pensamento visual-direto. O processo do pensamento visual-direto está unido com a denominação semântica dos objetos" (Vygotsky, 1933-34b/2006, p. 378).

Pasqualini (2009) sintetiza que a primeira infância é a fase em que aparecem dois fatos novos: a percepção generalizada dos objetos e o desenvolvimento da linguagem, que estão estreitamente relacionados. Inicialmente a criança é inteiramente dependente do campo visual direto para perceber o mundo, sendo que cada percepção é seguida por uma ação. Mas com o desenvolvimento da linguagem modifica-se essa relação perceptual, pois a percepção não verbal é substituída pela verbal, que dotada de sentido, desenvolve a percepção generalizada. Isso significa que a criança passa a perceber os objetos no interior de um todo, além do que ela pode ver, ou seja, a criança passa a dar um sentido social ao que percebe.

A percepção da criança não será mais uma rotulação simples e direta. A fala fomenta a análise e, assim, a criança torna-se capaz de perceber o objeto em seu contexto e em suas relações. Para Vigotski (2007), essa capacidade adquirida é "instrumental para se atingirem formas mais complexas da percepção cognitiva" (p.23). A relação entre linguagem e percepção é estreita e estão presentes em estágios bem precoces do desenvolvimento.

Devido a essa relação da percepção com a linguagem e as categorizações culturais, conclui-se que, ao se desenvolver, a percepção fará parte de um sistema que, cada vez mais, envolverá outras funções. Assim, afirma Oliveira (1997, p. 74) que, "ao percebemos elementos do mundo real, fazemos inferências baseadas em conhecimentos adquiridos previamente e em informações sobre a situação presente, interpretando os dados perceptuais à luz de outros conteúdos psicológicos".

Não se perceberá mais um conjunto de meras informações sensoriais, mas sim características que são articuladas, formando um todo coerente e categorizado linguisticamente. Essa capacidade estará estreitamente vinculada ao desenvolvimento cultural do indivíduo e às suas vivências específicas.

O desenvolvimento posterior da percepção continua se modificando. Para as crianças maiores, perceber é semelhante a recordar, generalizar, etc. São introduzidas na percepção alterações, através da memória, atenção voluntária e atribuições de sentido (caráter categorial da percepção). A percepção deixa de ser apenas uma função para tornar-se um complexo sistema, que mantém os traços fundamentais de seu desenvolvimento, mas permanece em constante mudança.

 

Considerações Finais

Assim, tem-se que a percepção infantil passa de uma condição primitiva à percepção em termos de significado. As coisas já não existem em si mesmas, mas dependem da percepção e atribuição de sentido. Trazendo uma diferenciação, a percepção animal se reduz a estimulação do ambiente, todavia, a percepção especificamente humana carrega consigo um universo de significados, fantasias e sentimentos. Em oposição à relação estática estímulo-resposta, as representações, sentimentos e percepções se unificam nas vivências e nas atividades das pessoas sobre o mundo. Integram as funções da conduta voluntária e da atividade consciente (Toassa, 2009).

No desenvolvimento deste artigo percebe-se a relevância de se compreender o homem em suas relações sociais. A Psicologia histórico-cultural nos faz atentar para o fato de que as inúmeras funções psicológicas estão em processo constante de desenvolvimento e se influenciam mutuamente. Assim, as funções psicológicas devem ser consideradas de forma dinâmica, tendo em vista a mediação cultural.

A percepção está estreitamente relacionada com as demais funções psicológicas. Seu desenvolvimento ocorre partindo de estruturas biológicas para uma progressiva diferenciação e aperfeiçoamento por meio da mediação do meio social. A percepção é fundamental para a sobrevivência do homem, pois prepara e guia o comportamento humano, tornando os homens capazes de atuar no mundo de forma mais adaptativa. Ela é o veículo pelo qual atuamos sobre o meio e vice-versa.

Ao concluir este trabalho, que também tem como base o devir, permanece o sentido da inconclusão, tendo o como ponto de vista a constância do desenvolvimento. Assim, tem-se como pressuposto a renovação teórica através de novos estudos que possam contradizer, confirmar, reelaborar, enfim, enriquecer os estudos acerca dessa temática.

 

Referências

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Recebido em: 16/10/13
Aceito em: 01/08/14

 

 

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