SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue2Meanings of work and perceived quality of life for workers in judiciaryLacan, a reader of Klein: from the reading of the Kleinian clinical approach with "Dick" to the lacanian theorization author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

As representações sociais de violência dos usuários de jogos eletrônicos

 

The social representations of violence by electronic games users

 

 

Igor Lins LemosI,1; Raimundo Cândido de GouveiaII; Lynn Rosalina Gama AlvesIII

IFaculdade Pernambucana de Saúde, Recife, Brasil
II
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil
IIIUniversidade do Estado da Bahia, Salvador, Brasil. Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Salvador, Brasil

 

 


RESUMO

O presente estudo teve como objetivo geral investigar as representações sociais em relação à violência contida nos jogos eletrônicos e, especificamente, verificar se os participantes estabelecem conexões entre a violência contida nos jogos eletrônicos e comportamentos violentos. Foi utilizada a teoria das representações sociais como alicerce teórico, a qual aponta a forma em que os sujeitos de um determinado grupo constituem teorias do senso comum, as quais são construídas e compartilhadas socialmente, permitindo justificar ações e posicionamentos diante de objetos de interesse coletivo. Foram entrevistados vinte usuários de jogos eletrônicos, maiores de idade, sendo dezenove do sexo masculino. Foi utilizada a análise de conteúdo do tipo categorial-temática de Bardin. Os resultados das categorias e subcategorias apontaram para temas como a diversão, aprendizagem do idioma inglês e catarse. A violência, elemento camuflado na fala dos usuários, não foi considerada uma influência na prática dos jogadores, revelando contradições nos discursos.

Palavras-chave: Representações sociais, Violência, Jogos eletrônicos, Catarse, Diversão


ABSTRACT

The following study had as its general objective the investigation of social representations in accordance to the violence contained in electronic games and, specifically, to verify if the participants establish links between the violence contained in electronic games and violent behavior. The social representations theory as a theoretical basis was used, which shows the way in which individuals of a particular group constitute theories as common sense, which are socially constructed and shared, allowing one to justify actions and positions before objects of collective interest. Twenty users of electronic games, of legal age, nineteen being of male sex, were interviewed. The Bardin thematic-categorical type analyses of content was used. The results of the categories and subcategories indicated themes such as entertainment, learning the English language and catharsis. Violence, a concealed element in the speech of users, was not considered as an influence on the players, thus revealing contradictions in discourses.

Keywords: Social representations, Violence, Electronic games, Catharsis, Entertainment


 

 

Introdução

A prática de jogos eletrônicos pode ser considerada um tipo de manifestação lúdica e, de acordo com Alves (2005), desde a sua origem, diversas evoluções ocorreram neste tipo de componente eletrônico periférico, como os incontestáveis avanços nos seus gráficos, além das possibilidades de interação de jogo em tempo real na Internet. Na contemporaneidade, o seu usufruto é amplamente disseminado, sendo uma das consequências da evolução tecnológica. Entretanto, além do aspecto da diversão que este artefato possibilita aos seus usuários, ressaltamos outro viés da realidade virtual, que é sua manifestação gráfica através de conteúdos violentos, o que será discutido ao longo do artigo.

Onofre (1998) comenta que o jogo é resultado de um trajeto cultural e se encontra em expressividade constante. Retondar (2004) afirma que o jogo é simbólico e contém uma lógica própria de sentidos. Assim, o jogo é visto como abertura ao mistério, ao inteligível e ininteligível, é a tensão permanente e a luta incessante entre o real e o imaginário. Os jogos eletrônicos podem ser caracterizados como uma das formas de desdobramento da cibernética. E, contemporaneamente, os modelos mais difundidos são os de videogames e os de computador, sejam eles portáteis ou não. De acordo com Maciel e Venturelli (2004):

O que distingue os jogos eletrônicos de outros, como romances ou filmes, é a preocupação com o espaço. Mais do que o tempo, que em muitos jogos pode ser parado, mais do que ações, acontecimentos ou metas e, inquestionavelmente, mais do que a caracterização, os games celebram e exploram o desenho da representação espacial como motivo central e razão de ser (p.168).

Suzuki, Matias, Silva e Oliveira (2009) classificam os jogos eletrônicos como periféricos que possuem uma estética própria, possibilitando interações, além de exigir do jogador aspectos sensório-motores e/ou capacidade estratégica e de entendimento de regras. Entretanto, além dos fatores mencionados, acreditamos que outro aspecto merece maior aprofundamento: a violência como tema constante dos conteúdos dos jogos eletrônicos.

Acreditamos no posicionamento de Michaud (1989), segundo o qual não há discurso nem saber universal e conclusivo sobre a violência. Ainda de acordo com este pesquisador, a violência é por princípio um alimento privilegiado para a mídia e nós podemos destacar as violências espetaculares, presentes nos jogos eletrônicos, ainda que o teórico citado não seja um estudioso do campo tecnológico. Diniz, Santos e Lopes (2007) apontam, paralelamente, que a violência é um assunto recorrente na mídia, presente em vários locais, independentemente da faixa etária.

Diversos estudos sobre a relação dos jogos eletrônicos e a violência já foram produzidos, apesar de não haver um consenso nesse sentido sobre os efeitos positivos, como apontam Tobias e Osswald (2010), ou negativos, de acordo com Möller e Krahé (2009), na prática dos jogos eletrônicos. Insistimos que a polarização em efeitos positivos e negativos, em uma estereotipia dualista, não representa de forma acurada as atuais contribuições nas áreas de jogos, pois existe uma gama de objetos específicos (e.g. cooperação social, estresse, experiência afetiva, produção de discursos, etc). Acreditamos que, paralelamente, no presente estudo, a teoria das representações sociais possa ampliar o escasso debate existente entre a violência e os jogos eletrônicos, dando voz aos jogadores.

Salientamos que nem tudo pode ser considerado uma representação social. Herzlich (2005) alerta que uma representação social não constitui um simples reflexo do real, mas sim o seu processo de construção. Moscovici (2003) aponta que a teoria das representações sociais prioriza a dinâmica das relações sociais no contexto da ação e da comunicação. Além disso, comenta que as representações sociais devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar o que já sabemos (Moscovici, 2009).

Considerando os jogos eletrônicos como um tipo de mídia, Ramos e Novo (2003) afirmam que no contexto social há várias representações sociais da violência que necessitam ser entendidas, uma vez que elas orientam e guiam diferentes práticas sociais. Santos (2005) afirma que, ao estudar os discursos dos sujeitos, baseados no senso comum, esta teoria revela o sujeito como um ser socialmente ativo, considerando uma relação social em que ele é construtor da realidade e também é por ela construído.

Na medida em que podemos considerar os jogos eletrônicos, em seu aspecto lúdico, como um ambiente de expressão cognitiva e afetiva, é possível analisar o significado da violência, enquanto conteúdo recorrente, para os seus usuários. Para isto, o suporte da teoria das representações sociais possibilita a compreensão desse significado, uma vez que ajuda a compreender o discurso desses usuários no que diz respeito à importância que a estética da violência assume nesse tipo de prática. Almeida, Almeida, Santos e Porto (2008) apontam que, indiferente à forma que possa assumir e ao lugar onde possa ocorrer, a violência se impõe como um ingrediente que orienta as práticas sociais do cotidiano, práticas estas que são orquestradas pela perplexidade e afinadas pelo medo e pela insegurança.

Sendo assim, podemos nos perguntar: qual a influência dos jogos eletrônicos na vida cotidiana de seus usuários? Por que os jogos eletrônicos com conteúdos considerados violentos são os preferidos dos jovens? Em que medida um jogo eletrônico pode ser considerado violento? Para responder a estas perguntas, foi realizada uma pesquisa com usuários de jogos eletrônicos da cidade de Recife, no Estado de Pernambuco.

 

Método

Objetivo

O objetivo da pesquisa foi verificar se os participantes estabelecem conexões entre a violência contida nos jogos eletrônicos e comportamentos violentos e, para alcançá-lo, foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin (2000).

Procedimento

De acordo com Campos (2004), o método de análise de conteúdo é balizado por duas fronteiras: a fronteira da linguística tradicional e o território da interpretação do sentido das palavras (hermenêutica). Segundo Bardin (2000), para realizar a análise de conteúdo, é necessário seguir uma linha de procedimentos: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados.

Assim, inicialmente foi feita uma leitura flutuante de todos os textos, buscando impressões e orientações até alcançar a constituição de um corpus. Através da regra da exaustividade buscaramse todos os sentidos que o texto traz, sem descartar as possíveis mensagens subliminares dos participantes. Por fim, foi obedecida a regra da representatividade, verificando se o material pode representar a realidade estudada.

A exploração do material consistiu essencialmente em operações de codificação, desconto ou enumeração, em função de regras previamente formuladas. Para esta pesquisa, escolhemos a análise de conteúdo do tipo categorial-temática.

A análise de conteúdo é composta por unidades de registro. E, no presente estudo, o tipo de unidade de registro escolhido foi o tema. Franco (2007) aponta que o tema é uma asserção sobre determinado assunto, podendo ser uma simples sentença ou um conjunto delas, ou mesmo um parágrafo. A partir daí foi feita a categorização que, segundo a pesquisadora, é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação seguida de um reagrupamento baseado em analogias, a partir de critérios definidos.

Amostra

Participaram da pesquisa 20 jovens entre 18 e 28 anos de idade (média de 21,95 anos; desvio padrão de 2,95), 19 do sexo masculino e, dos 20 participantes, 19 possuem nível superior incompleto e um com o Ensino Médio completo. A escolha dos participantes se deu pela busca à representatividade da população de usuários, que são do sexo masculino em sua maioria.

Critérios de inclusão

Os critérios de inclusão para a participação foi que todos utilizassem jogos eletrônicos, independentemente da frequência de tempo e fossem, concomitantemente, maiores de idade. A amostra colhida foi por conveniência, ou seja, foram entrevistados os participantes que foram encontrados em Universidades de Recife, em Pernambuco.

Instrumentos

As entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente, buscando-se passar para a linguagem escrita da forma mais fiel possível ao discurso apreendido no momento da coleta de dados em campo. Optou-se por identificar cada entrevistado por apelidos, que são os nomes fictícios que eles utilizam quando jogam na internet ou mesmo solitariamente. As entrevistas foram do tipo semiestruturada, com duração média de 23 minutos. Os participantes, em sua maioria (n=14, 70%), realizaram as entrevistas em ambiente universitário, em uma sala silenciosa no bloco em que estudavam, sem a interrupção de terceiros. Os outros seis sujeitos preferiram ser entrevistados em outro momento. Desta forma, estas entrevistas foram feitas nas residências destes jogadores, com marcação prévia da visita.

 

Resultados

A análise resultou nas seguintes categorias e subcategorias: A violência (A violência nos jogos eletrônicos e sua ligação com o realismo; Os jogos eletrônicos violentos são os preferidos?; A influência do jogo eletrônico no comportamento violento é um mito?) e Funções dos jogos eletrônicos (O jogo eletrônico como influência no modo de ser do sujeito, Jogos eletrônicos como diversão; Jogos eletrônicos como modelos de aprendizagem; Jogos eletrônicos como catarse).

A violência

Assim como aponta Porto (2006), o que os indivíduos nomeiam como violência varia segundo as representações que estes fazem do fenômeno, assim como variam segundo a natureza da sociedade na qual ele é definido. Podemos considerar, então, que as representações sociais que identificamos neste estudo são de uma parcela da população com nível de instrução superior, pertencente às classes média e média alta (todos os participantes mencionaram que suas famílias possuíam uma renda superior a R$ 10.901,00). Nesta categoria foram identificados diversos elementos que fazem referência direta ou indireta à temática da violência.

A violência nos jogos eletrônicos e sua ligação com o realismo

Na primeira subcategoria, os participantes relacionaram a violência dos jogos com a violência existente na sociedade, o que, segundo eles, pode aumentar o poder de atração dos jogos eletrônicos em relação aos jogadores. A mídia é apontada como um dos modos de disseminação dessa forma específica de expressão da violência. A esse respeito, o participante Siegfried comenta que:

se de um lado tem uma população que tem a violência como algo banalizado, de outro tem uma indústria que explora isso de outras formas, não sei bem como eles pensam, mas talvez seja na ideia de explorar aquilo que é proibido socialmente e que de alguma forma pode ser expresso nos jogos. Acho que é por aí que jogos como de tiro, luta ou em que a pessoa é um ladrão fazem tanto sucesso.

Siegfried aponta uma relação entre o que é vivenciado na sociedade e o que é explorado pela indústria dos jogos eletrônicos. O usuário comenta que o jogo eletrônico funciona como uma forma de experienciar o que não é permitido, devido às regras sociais. Morais e Assis (2008) relatam que os jogos eletrônicos podem ser analisados como parte de um conjunto da produção cultural de uma sociedade. Com isso, é possível entender os padrões de comportamento e as ideias compartilhadas por homens e mulheres que estão imersos nesta realidade virtual. O usuário Rhygo aponta que:

a violência é necessária, pois ela vende. Mas eu gosto de jogos com violência, pois acho que dá mais veracidade aos jogos, mas não faço questão que seja desmedida. (...) a violência vende muito na nossa sociedade. Quanto mais violento, mais procurado o jogo é. Nosso mundo está violento e os jogos acompanham isso.

Chamamos a atenção, neste ponto, para o fato de Rhygo associar o conteúdo violento com o nível de veracidade nos jogos eletrônicos. Isso significa que ele possivelmente compartilha uma representação social da sociedade sendo caracterizada pela violência. Podemos entrever no discurso do participante o reflexo de uma aparente insensibilidade ou naturalização da violência, já que ela é comum no quotidiano. Elias (1994) pontua, inicialmente, que toda a análise da autoconsciência do indivíduo depende do estado de desenvolvimento e da situação global da sociedade. O pesquisador reflete a questão do controle da violência por uma perspectiva histórica de longa duração. O autor retrata que, o processo de controlar a violência física, em função do interesse em pacificar as relações humanas, é um processo praticamente infinito. Podemos cogitar desta forma a hipótese de que a violência nos jogos eletrônicos poderia servir como um pacificador da violência real.

Morais e Assis (2008) comentam que os jogos desenvolvem-se em um espaço virtual, mas com recursos técnicos e psicológicos alcançando uma relação muito forte com o real, por buscar configurar-se como a representação gráfica cada vez mais fiel. De acordo com Belloni (2004), a racionalização progressiva da sociedade racionalizou também a violência, incrementando seu potencial destruidor e sua eficácia como ideologia, cultura e proposta estética. Porto (2006) comenta, paralelamente, que a representação que é dada à violência, de caráter idiossincrático, pode interferir na própria realidade da violência, na medida em que a banaliza.

De acordo com Bushman e Anderson (2009) a diminuição de atenção aos eventos violentos é uma das consequências do seu processo de dessensibilização. Segundo os autores, pessoas expostas à mídia violenta se tornam confortavelmente adormecidos à dor e ao sofrimento, assim como se tornam menos solidários.

As representações que compartilhamos socialmente sobre determinados objetos ou sujeitos servem de referência legitimadora para nossos modos de agir e nos comunicar (Almeida, Almeida, Santos e Porto, 2008). Consideramos, então, que os jogos eletrônicos de conteúdo violento possam funcionar como um tipo de prática aceita socialmente.

Os jogos eletrônicos violentos são os preferidos?

Um ponto que chamou atenção na segunda subcategoria foi que metade dos participantes (n=10, 50%) relatou que os jogos favoritos são aqueles que contêm elementos de violência. A grande maioria (n=17, 85%), paralelamente, define a violência como um fenômeno que visa causar dano ao próximo, seja de forma física ou verbal. Isto parece indicar valorações diferentes para a violência no ambiente dos jogos e na vida cotidiana. Porto (2006) comenta que definir algo como violento implica captar as relações entre objetividade e subjetividade da violência, estratégia que o enfoque das representações sociais parece possibilitar. Portanto, apesar dos participantes terem consciência das implicações negativas dos comportamentos violentos, mostram-se atraídos por ela nesse tipo de ambiente.

Um discurso que demonstra a preferência de jogos violentos é o de Homeless: "Não apenas porque temos uma aparente ânsia por violência, mas também porque são esses jogos que são mais bem produzidos, dão uma maior liberdade ao jogador, possuem um marketing mais forte, etc". De acordo com este recorte de fala, a prática de jogos eletrônicos de conteúdo violento parece estar justificada devido a um aspecto inato que o ser humano possui de se debruçar diante da violência. Ressaltamos que está é uma leitura do jogador, mas a presente investigação não aborda a violência como um aspecto inato ao indivíduo, mas sim como um comportamento que é construído a partir das relações que o sujeito estabelece com os seus pares e com o meio no qual está inserido, em um processo dialético.

De acordo com Retroficiente: "Acredito que os atraia pelo surrealismo, você saber que nunca experimentará tais situações no cotidiano. Sem contar que existem pessoas sádicas que curtem mesmo violência explícita e o sangue, sem se importar muito com o significado de tudo".O usuário posiciona-se em relação à violência contida nos jogos eletrônicos utilizando como comparação a necessidade que alguns indivíduos possuem de ficarem expostos às atrocidades propiciadas por esse tipo de jogo. Porém, além deste aspecto, o usuário realiza um processo cognitivo comum em estudos de representações sociais: o jogador admite o lado sádico dos jogos eletrônicos, através da violência contida neles, entretanto, atribui esse sadismo a outros jogadores, aparentando estar imune à violência, considerando-a surreal.

A influência do jogo eletrônico no comportamento violento é um mito?

Neste momento, é trazida uma fala que corrobora com a hipótese de que a violência contida nos jogos eletrônicos não possui o poder de influenciar no comportamento violento dos usuários. Segundo Valoisbr:

Olha, na minha época a gente jogava de tudo, via de tudo, fazia quase tudo, e não vejo ninguém indo matar alguém hoje em dia e ser perturbado por causa dos jogos que víamos antigamente. Hoje querem superproteger as crianças. Pensam que escondendo as coisas delas vão mantê-las com a cabeça no lugar.

Semelhante posicionamento é visto em outro discurso, de acordo com Retroficiente: "até hoje não vi ninguém com lança-chamas no meio do trânsito queimando todos, todo o exército acionado, helicópteros pra todo lado. Ou não vi, também, espinhas dorsais sendo arrancadas, alguém lutando no inferno, etc.". Será que é tão simples assim? Aparentemente os jogadores esquecem que a violência tem infinitas formas de se expressar. Mais uma vez observa-se que a violência é atribuída ao outro, ao estranho. Com isso, os usuários acabam, aparentemente, por se eximir da responsabilidade diante dela. Entretanto, Elias (1994) critica fortemente as perspectivas que consideram a violência como oposto à paz, ou seja, oposto à normalidade. De acordo com o pesquisador, não é válida a visão na qual a violência pressupõe estados de desintegração, opostos a sistemas sociais bem integrados. Ainda de acordo com o teórico, a violência seria, na realidade, a utilização da força física na regulação das relações sociais.

De acordo com Anderson (2008) há uma forma de responder à ligação entre os jogos eletrônicos e a violência: se os jogos eletrônicos violentos aumentam a agressão, a taxa de crimes violentos nos Estados Unidos da América estaria aumentando ao invés de estar diminuindo? O pesquisador responde que três pontuações deveriam ser verídicas para que este mito seja válido: (a) exposição à mídia violenta (incluindo jogos eletrônicos) está aumentando; (b) os crimes praticados por jovens estão diminuindo; (c) a violência nos jogos eletrônicos deve ser o único (ou o principal) fator que contribui para a violência societal. Anderson responde a cada um desses itens: (a) a primeira pontuação é provavelmente verídica; (b) a segunda não é verdadeira de acordo com dados nacionais de estudos sobre a violência entre jovens; (c) a terceira é completamente inválida. Portanto, mesmo considerando um paralelo entre o aumento da exposição à mídia violenta e da prática de crimes por jovens, considera-se que a violência na mídia é apenas um dos vários fatores que pode contribuir para a violência societal.

Apesar de não haver uma resposta formada sobre a existência ou não desse possível mito, acreditamos ser primordial a inserção de debates sobre esse assunto no âmbito escolar e universitário, tendo em vista os diversos paradoxos existentes sobre o tema da violência midiática, inclusive no campo dos jogos eletrônicos.

Funções dos jogos eletrônicos

A segunda e última categoria retrata funções específicas que os jogos eletrônicos permitem ao usuário. Esta categoria apresenta discursos distintos do que foi visto no primeiro momento, embora também estejam vinculados à violência.

O jogo eletrônico como influência no modo de ser do sujeito

A primeira subcategoria demonstra como o jogo eletrônico pode ser revelado na forma de o indivíduo se constituir. Um dos participantes traz um elemento inédito até então, que é o altruísmo dos heróis como modelo de comportamento. Podemos utilizar esse recorte de fala como referência para perguntar: se os heróis são considerados uma influência, a violência também não pode ser considerada desta mesma forma? Os jogadores podem, então, selecionar aquilo que os influencia ou não? Rhygo aponta que:

Os jogos contam histórias e eu cresci participando delas, aonde heróis tratavam todos muito bem e a luta por um mundo melhor era muito importante. Os jogos me ajudaram a criar uma mente mais aberta e sempre pensando em varias possibilidades.

Medeiros e Severiano (2008) comentam que é possível que a indústria cultural interfira na produção de uma consciência crítica. Contudo, para além desse aspecto, o participante aponta uma dimensão ainda maior sobre a prática dos jogos eletrônicos.

Jogos eletrônicos como diversão

Os usuários ressaltaram durante as entrevistas outro importante aspecto, que é o conteúdo lúdico dos jogos eletrônicos. Tony: "A primária é diversão, mas tem outras, como inspiração, deslumbramento mesmo, imersão". Magodogame: "O que me atraiu nos videogames foi a diversão (...) posso dizer que minha experiência com videogames tem sido divertida até então, e espero nunca abandonar esse hobbie". No discurso de Tony observa-se a palavra inspiração, que podemos relacioná-la como uma pista para a influência dos jogos eletrônicos como uma forma de ser. O aspecto lúdico é importante constituinte do ser humano (Huizinga, 2001; Freud, 1976). Atrelado ao âmbito da diversão, outros elementos são trabalhados na prática dos jogos eletrônicos, o que pode ser demonstrado na próxima subcategoria.

Jogos eletrônicos como modelos de aprendizagem

O processo de globalização trouxe diversas mudanças na sociedade, dentre elas, segundo os participantes, a aprendizagem da língua inglesa através do uso de jogos eletrônicos. Além disso, é citada a questão do senso de organização, resolução de problemas e até o conceito de amizade. Pontuamos, com isso, que esses processos podem ser considerados constituintes mais evidentes de representações sociais, tendo em vista que influenciam diretamente na prática dos jogadores, em detrimento do discurso sobre a violência, que possui um caráter mais camuflado. A aprendizagem envolve a língua inglesa, de acordo com Script: "O meu interesse por eles fez com que eu procurasse entendê-los melhor, o que me motivou a estudar inglês e fez com que eu aprendesse essa língua estrangeira rapidamente", como também a questão da formação de equipes e resolução de problemas, de acordo com Siegfried: "Os jogos de estratégia são meio complicados de pensar numa forma direta de aplicá-los, porém acredito que ganhei muita capacidade de resolução de problemas e de pensar em diversas soluções em decorrência desse modelo de jogo".

Por fim, temos mais um modelo de aprendizagem que os jogos eletrônicos propiciam segundo Homeless, que, além da língua inglesa, é a formação de conceitos sobre laços sociais:

O meu conceito de amizade foi herdado de um jogo chamado Grim Fandango. Mas este é o único caso, pois, este jogo difere daquilo que entendemos como "jogos eletrônicos". Haveria um segundo caso, o jogo se chama Tibia, em que eu pratiquei bastante a língua inglesa e entrei em contato com pessoas de todos os lugares do mundo, pessoas reais, já que é um MMORPG.

Neste discurso surge um novo elemento na análise dos dados, que é o conceito de amizade. O jogo em questão, o Grim Fandango, é um título de aventura, que envolve personagens que necessitam formar fortes laços de amizade para resolver desafios. No mesmo game somos colocados diante de experiências comuns aos seres humanos, tais como o amor, ódio, traição, inveja, trapaça etc. Apesar de o jogo ser vivenciado no mundo dos mortos, é um título que pode ser jogado por diversas faixas etárias. Ainda assim, Homeless seleciona elementos específicos em detrimento da violência, tendo em vista que, em Grim Fandango, mesmo alguns personagens já estando mortos, eles podem morrer novamente, neste segundo momento, de forma definitiva. No entanto, conforme vimos acima, é o conteúdo violento (vistos como mais realistas) o que mais atrai os jogadores, e não o conteúdo altruísta.

Jogos eletrônicos como catarse

Saldanha & Batista (2009) apontam que a violência existente nos jogos exerce uma atração sobre as pessoas por proporcionar um efeito de alívio de suas tensões, tal efeito é chamado de catarse na nomenclatura psicanalítica.

Entretanto, outros autores sugerem falhas sobre a teoria da catarse funcionar como uma validação da prática de jogos eletrônicos. Bushman e Whitalker (2010) comentam que, ao invés da catarse funcionar como uma possibilidade para o jogador relaxar e disseminar suas tensões e emoções relativas à raiva, o que acontece é o oposto: a catarse funcionaria como uma força magnética, atraindo os jogadores a praticar jogos eletrônicos de conteúdo violento devido à promessa da catarse, o que aumentaria os sentimentos negativos. Posicionamento semelhante é mencionado por Murray et al. (2011), quando citam que a teoria da catarse teve força maior na década de 1960 e que, atualmente, não podemos considerá-la uma proposta para justificar a prática de jogos eletrônicos.

Belloni (2004) aponta indicadores de que espectadores de esportes agressivos ou de programas com conteúdo violento oferecem pouca evidência para a teoria da catarse simbólica. Entretanto, através das falas dos participantes, podemos identificar indícios opostos de tal fenômeno, pois os jogadores afirmam o lado positivo na prática de jogos eletrônicos, justificada pela catarse. Segundo Trigow: "Acredito que seja uma maneira de se extravasar a agressividade. E uma maneira saudável de se viver isso é através dos jogos". Discursos, como o de Retroficiente, apoiam essa tese: "O principal sentido, creio eu, é funcionar como uma válvula de escape, proporcionar uma experiência única, surreal e, muitas vezes, até divertida, se for uma matança de zumbis, por exemplo"; Dark23: "Justamente porque trabalha com o lado de diversão com a pessoa, como uma válvula de escape para vencer o estresse do cotidiano", e Reis: "(...) vamos assumir que tem pessoas que usam os jogos violentos para liberar uma vontade interna".

Ressaltamos, entretanto, a possibilidade de os jogadores estarem justificando a prática de jogos eletrônicos de conteúdo violento através do fenômeno da catarse, pontuando-a como uma forma de evitar a violência. No entanto, agredir violentamente outra pessoa (na vida real ou virtual) pode ter um efeito catártico. Entretanto, tal efeito não diminui as consequências nocivas da violência na sociedade. Como foi visto na conceituação da violência, o seu problema não é se ela faz bem ou mal a quem a pratica, mas como ela afeta as outras pessoas. Nesse aspecto, seu efeito catártico não faz diferença. O que consideramos mais relevante pontuar é que os jogadores podem estar enxergando apenas o seu lado da questão.

É importante, por fim, destacar que a transposição da tela para vida real pode estar sinalizando que o sujeito/jogador vem apresentando questões que precisam ser investigadas na sua estrutura psíquica. Para Gee e Hayes (2010) as pessoas que não sabem a diferença entre o virtual e o real podem estar com pouco senso crítico, sendo perigosas para si mesmas e para os outros.

 

Considerações finais

Através da análise realizada, foi possível construir categorias e subcategorias que suscitaram relevantes questionamentos em relação à prática de jogos eletrônicos, na medida em que as relações entre os jogos eletrônicos se ramificam por questões que estão para além da violência, a exemplo da subjetividade, cognição etc. Como inicialmente supomos, os discursos foram distintos entre os participantes em alguns aspectos e em outros se identificaram representações compartilhadas.

Podemos considerar que a violência foi retratada através da diversão e da catarse, ainda que ambos os tópicos possam servir como justificativas para a prática da violência nos jogos eletrônicos. Como visto anteriormente, a questão fundamental não é se a catarse faz bem ou mal a quem a pratica, mas como ela afeta as outras pessoas. Nesse aspecto, seu efeito catártico não faz diferença. O que achamos mais relevante pontuar é que os jogadores aparentam levar em consideração apenas o seu lado da questão, sem ter um olhar mais crítico do fenômeno da violência. Percebe-se claramente nos discursos uma tendência a naturalizar e estetizar a violência.

É necessário considerar que se tratou de uma amostra com usuários esclarecidos e que possuem informações de que a violência é considerada socialmente inadequada, ou seja, politicamente incorreta. Contudo, ressaltamos que outras mídias, a exemplo do cinema, televisão e o livro, têm um histórico de contar narrativas envolvendo a violência e, ao longo da história, tem obtido grande audiência.

Os participantes revelaram, paralelamente, que os jogos eletrônicos os acompanham desde a infância, o que pode ser considerado um fator relevante no crescimento, maturação e estruturação da personalidade dos usuários. Acreditamos que esta é uma possibilidade de formação de representações sociais, tendo em vista que os jogos eletrônicos constituem o sujeito, os diferenciando, significativamente, de outras gerações que não tiveram contato tão íntimo com a tecnologia como a atual.

Os jogos eletrônicos estão vinculados à manutenção de laços construídos com amigos, o que indica a construção de um grupo estabelecido de forma sólida, os chamados gamers. Essa configuração tão específica é suficiente para suscitarmos a existência de representações sociais, tendo em vista que ao longo do desenvolvimento do sujeito ele vai construindo conceitos através da sua vivência com os jogos eletrônicos em relação à violência societal.

Por fim, o estudo apresentou as seguintes limitações: a) a amostra foi exclusiva de estudantes universitários; b) não abordamos distintas faixas socioeconômicas; c) a amostra foi de apenas 20 sujeitos, desconhecendo-se os resultados em um quantitativo superior; d) os sujeitos foram predominantemente do sexo masculino.

 

Referências

Almeida, A. M. O., Almeida, A. M. O., Santos, M. F. S., & Porto, M. S. G. (2008). Juventude na mídia: violência e distinção social. Educação e Cidadania, 10(1),1-16.         [ Links ]

Alves, L. R. G. (2005). Game Over: jogos eletrônicos e violência. São Paulo: Futura.         [ Links ]

Anderson, C. A. (2008). Longitudinal effects of violent games on aggression in Japan and the United. Pediatrics, 122(5),1067-1072.         [ Links ]

Bardin, L. (2000). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Belloni, M. L. (2004). Infância, máquinas e violência. Educação & Sociedade, 25(87),575-598.         [ Links ]

Bushman, B. J., & Anderson, C. A. (2009). Comfortably Numb: Desensitizing Effects of Violent Media on Helping Others. Psychological Science, 20(3),273-277.         [ Links ]

Bushman, B. J., & Whitaker, J. L. (2010). Like a magnet: catharsis beliefs attract angry people to violent video games. Psychological Science, 21(6),790-792.         [ Links ]

Campos, C. J. G. (2004). Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Revista brasileira de enfermagem, 57(5),611-614.         [ Links ]

Diniz, N. M. F., Santos, M. F. S., & Lopes, R. L. M. (2007). Social representations of family and violence. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 15(6),1184-1189.         [ Links ]

Elias, N. (1994). O processo civilizador: uma história dos costumes (Vol. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Gee, J. P., & Hayes, E. R. (2010). Women and gaming: The Sims and 21st Century learning. New York: Palgrave Macmillan.         [ Links ]

Franco, M. L. P. B. (2007). Análise de Conteúdo. Brasília: Liber Livro Editora Ltda.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Além do princípio do prazer e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora.         [ Links ]

Herzlich, C. (2005). A problemática da representação social e sua utilidade no campo da doença. Physis, 15,57-70.         [ Links ]

Huizinga, J. (2001). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Maciel, M., & Venturelli, S. (2004). Games. Conexão -Comunicação e cultura, 3(6),167-190.         [ Links ]

Medeiros, M. D., & Severiano, M. F. V. (2008). Jogos eletrônicos e produção de subjetividade: reflexões sobre as realidades virtuais. Revista Diversa, 1(2),117-129.         [ Links ]

Michaud, Y. (1989). A Violência. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Möller, L., & Krahé. B. (2009). Exposure to violent video games and aggression in German adolescents: a longitudinal analysis. Aggressive behaviour, 35(1),75-89.         [ Links ]

Morais, W. R. & Assis, R. A. (2008). Os jogos eletrônicos: artefatos culturais, tecnológicos e culturais na sociedade da era digital [Resumo]. In I Seminário Nacional de Educação Profissional e Tecnológica, Belo Horizonte.         [ Links ]

Moscovici, S. (2003). Por que estudar representações sociais em Psicologia? Estudos: Vida e Saúde, 30(1),11-30.         [ Links ]

Moscovici, S. (2009). Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Murray, P., Biggins, B., Donnerstein, E., Menninger, R. W., Rich, M., & Strasburger, V. (2011). A plea for concern regarding violent video games. Mayo Clinic Proceedings, 86(8),818-820.         [ Links ]

Onofre, P. S. (1998). As actividades expressivas e criativas... são experiências científicas. Análise Psicológica, 16(4),615-620.         [ Links ]

Porto, M. S. G. (2006). Crenças, valores e representações sociais da violência. Sociologias, 8(16),250-273.         [ Links ]

Ramos, F. P., & Novo, H. A. (2003). Mídia, violência e alteridade: um estudo de caso. Estudos de Psicologia (Natal), 8(3),491-497.         [ Links ]

Retondar, J. J. M. (2004). A produção imaginária dos jogadores compulsivos: a poética do espaço do jogo. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Saldanha, A. A. & Batista, J. R. M. (2009). A concepção do role-playing game (RPG) em jogadores sistemáticos. Psicologia: ciência e profissão, 29(4),700-717.         [ Links ]

Santos, M. F. S. (2005). A teoria das representações sociais. In M. F. S. Santos, & L. M. Almeida (Orgs.). Diálogos com a teoria das representações sociais. (pp. 13-38). Recife: UFPE.         [ Links ]

Suzuki, F. T. I., Matias, M. V., Silva, M. T. A., & Oliveira, M. P. M. T. (2009). O uso de videogames, jogos de computador e internet por uma amostra de universitários da Universidade de São Paulo.Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 58(3),162-168.         [ Links ]

Tobias, G., & Osswald, S. (2010). Effects of prosocial video games on prosocial behavior. Journal of personality and social psychology, 98(2),211-221.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 23/01/14
Aceito em: 06/08/14

 

 

1 Contato: igorlemos87@hotmail.com