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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora dez. 2014

 

ARTIGOS

 

A exigência de especialização a psicólogos para a avaliação psicológica de condutores de veículos no Brasil

 

The requirement of psychologists' specialization for the psychological assessment of vehicle conductors in Brazil

 

 

Joel Malaquias de Barros Júnior1

Faculdade Regional da Bahia, Salvador, Brasil

 

 


RESUMO

O atual paradigma brasileiro da avaliação psicológica na seara do trânsito é padronizado pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), o qual determina em resolução estipulação de prazo limítrofe para que todo psicólogo que atue na referida atividade, (e queira permanecer atuando na mesma), obtenha grau de especialista em Psicologia do Trânsito. Embora o exercício da profissão de Psicólogo no Brasil seja de regulação e fiscalização normativamente atribuídas ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) e aos respectivos Conselhos Regionais, no que concerne à matéria de trânsito a legislação pátria confere a órgãos que regulam e fiscalizam questões de trânsito prerrogativas que sobrepõem-se às dos próprios CFP e CRPs quanto a exigências específicas aos psicólogos, evidenciando-se uma antinomia referente às competências legais de cada órgão na relação com o exercício da Psicologia. A questão promove discussões que permeiam a lógica legal da competência atribuída ao CONTRAN em relação à atividade de psicólogo.

Palavras-chave: Psicologia, Trânsito, Avaliação, Especialização


ABSTRACT

The current Brazilian paradigm of psychological evaluation in the area traffic is standardized by the National Traffic Council (CONTRAN), which determines in resolution the stipulation borderline term for any psychologist who acts in such an activity, (and wants to keep working in it), who gets a specialist degree in Traffic Psychology. Although the profession of a psychologist in Brazil is one regulamentation and supervision which are normatively assigned to the Federal Council of Psychology (CFP) and its Regional Councils, concerning matters of traffic Brazilian law gives the agencies that regulate and supervise traffic issues prerogatives that overlap those of CFP and CRPs themselves as to the specific requirements for psychologists, highlighting an antinomy pertaining to the legal responsibilities of each agency in relation to the exercise of Psychology. The question promotes discussions that permeate the legal logic of the competence assigned to CONTRAN in relation to the activity of the psychologist.

Keywords: Psychology, Traffic, Evaluation, Specialization


 

 

1. Introdução

No Brasil, a legislação de trânsito prevê que o candidato a condutor de veículo automotor, obrigatoriamente, deverá ser submetido à avaliação psicológica como pré-requisito básico para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), bem como àqueles condutores que já são possuidores de CNH, mas que pretendem mudar de categoria de habilitação de condução.

A avaliação supra é realizada por psicólogo, o qual utiliza técnicas e instrumentos de uso privativo da profissão para fazê-lo. Desde quando da implementação da medida referente à citada avaliação, a partir do Decreto Lei n. 2.994 (1941), o qual instituía o Código Nacional de Trânsito à época no país - embora Hoffman e Cruz (em Alchieri, Hoffman & Cruz, 2011) afirmem que, a partir do Código Nacional de Trânsito de 1966, a aplicação de exames psicológicos tivera determinação legal mais incisiva -, não eram previstas restrições quanto ao nível de formação, propriamente dito, na área psicológica do profissional que aplicaria tal avaliação.

Com o advento do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) (Lei nº 9.503/1997), foram instituídas pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) peculiaridades referentes aos procedimentos para a aquisição e demais situações concernentes à CNH, dentre as quais o aperfeiçoamento do profissional de Psicologia para atuar na avaliação de condutores de veículos automotores.

O CONTRAN editou as resoluções 51 (1998), 80 (1998), 267 (2008), 283 (2008) e 425 (2012), as quais possuem previsões no sentido de, respectivamente, exigir que os psicólogos que atuarem na área da avaliação psicológica de condutores de veículos tenham:

a) concluído o Curso de Capacitação para Psicólogo Perito Examinador, tendo como prazo de conclusão até 21/05/2000;

b) concluído o Curso de Capacitação para psicólogo responsável pela avaliação psicológica e como Psicólogo Perito Examinador do Trânsito, até 19/11/2000;

c) Especialização em Psicologia do Trânsito reconhecido pelo CFP ou ter concluído com aproveitamento o curso Capacitação Para Psicólogo Perito Examinador de Trânsito, sendo que até 15/02/2013 ser portador do título de especialista em Psicologia do Trânsito;

d) assegurar ao psicólogo que até 1º/07/2008 tenha iniciado ou concluído o Curso de Capacitação para Psicólogo Responsável pela Avaliação Psicológica e como Psicólogo Perito Examinador de Trânsito, com carga horária mínima de 120 horas/aula o direito de solicitar o credenciamento até 15 de fevereiro de 2010 e ao psicólogo que até 14 de fevereiro de 2013, tenha concluído o Curso de Capacitação para Psicólogo Perito Examinador de Trânsito, com carga horária mínima de 180 horas/aula, o direito de solicitar o credenciamento e que a partir de 15 de fevereiro de 2013 serão credenciados apenas os psicólogos portadores de Título de Especialista em Psicologia do Trânsito reconhecido pelo CFP;

e) que até quatorze de fevereiro de 2015, será assegurado ao psicólogo que tenha concluído e sido aprovado no curso de Capacitação para Psicólogo Perito Examinador de Trânsito, de 180 (cento e oitenta) horas ou curso de Especialista em Psicologia do Trânsito, o direito de solicitar credenciamento ou de continuar a exercer a função de perito examinador e que a partir de 15 de fevereiro de 2015, a solicitação para o credenciamento só será permitida aos psicólogos portadores de Título de Especialista em Psicologia do Trânsito reconhecido pelo CFP.

Com o quantitativo das resoluções editadas e supracitadas, todas versando, dentre outros assuntos concernentes à temática avaliação de condutores de veículos, sobre exigências sobre o nível de formação do psicólogo responsável pela avaliação psicológica do âmbito do trânsito, apresenta-se evidente a evolução de paradigmas no Brasil quanto à qualidade de procedimentos que venham adequar-se com a realidade atual do trânsito do país, inaugurando, mais e mais, uma nova era na história da Psicologia do Trânsito brasileira.

 

2. A Psicologia Aplicada ao Trânsito no Brasil

Por aplicabilidade da ciência psicológica ao contexto do trânsito no Brasil, tem-se a determinação estatal como origem positivista básica para o seu cumprimento, haja vista emanar da lei, e de demais normas editadas pelos órgãos públicos competentes, as práticas da Psicologia no contexto do trânsito, relacionando o Direito para com a temática, podendo-se balizar o assunto a partir dos pensamentos de Gusmão (2009):

As fontes estatais do Direito são constituídas de normas escritas, vigentes no território do Estado, por ele promulgadas, no qual têm validade e no qual são aplicadas pelas autoridades administrativas ou pelas judiciárias. São textos que possibilitam o conhecimento do Direito do Estado. (p. 109)

A partir do pensamento citado, faz-se necessário uma análise da legislação pátrea concernente ao assunto, estabelecendo a origem de tal previsão legal, bem como a circunstância atual da matéria.

2.1 Previsões Legislativas Referentes à Psicologia Aplicada ao Contexto do Trânsito no Brasil

A Psicologia aplicada ao trânsito tem a sua principal previsão em leis federais, tais como, inicialmente, o previsto no Código Nacional de Trânsito de 1941 (Decreto-Lei 2.994, 1941), o qual previa na alínea "b" do artigo 100 a exigência de exame psicológico como requisito essencial para a aquisição de permissão para realizar a atividade de conduzir veículo. Tal determinação é repetida no Código Nacional de Trânsito de 1966 (Lei 5.108, 1966) com a previsão de realização de exame psicotécnico aos condutores de transporte coletivo e aos de cargas perigosas, com a previsão de extensão da exigência a todos os tipos de condutores a partir do aparelhamento adequado dos órgãos de trânsito estaduais para a realização de tais testes. E, por fim, o atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, 1997), que prevê a avaliação psicológica a todos os candidatos à aquisição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

Além das previsões normativas de leis ordinárias supramencionadas, ainda fazem parte do rol de normas relativas ao assunto às deliberações oriundas dos órgãos públicos que compõem o Sistema Nacional de Trânsito (SNT), tal como o Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), o CONTRAN e demais órgãos que compõem o citado Sistema nos níveis estadual e municipal.

Pelo demonstrado, comprova-se que a aplicação da Psicologia ao trânsito, além de originar-se do poder estatal, baseia-se na legalidade e na obediência à lei a partir da sua coatividade (Gusmão, 2009), encontrando acolhimento no Princípio Jurídico da Legalidade, previsto na própria Constituição Federal do Brasil, em seu art. 5º, II, o qual prescreve a não obrigatoriedade de ninguém fazer ou deixar de fazer qualquer coisa senão em virtude de previsão legal (Diniz, 2006). Desta forma, pode-se afirmar que para a aquisição da CNH, é mister, mediante imposição legal, a avaliação psicológica do candidato à condução de veículo.

Isto posto, é correto dizer que a adoção da ciência psicológica na aplicação de recursos avaliativos de condutores candidatos à aquisição da CNH consuma-se em um assunto de Estado, obedecendo a regras legais impositivas e com critérios específicos.

Não haveria de ser diferente, posto o ambiente do trânsito se realizar em um espaço público, tal como frisa Machado (2011, citado por Alchieri, Hoffman & Cruz, 2011), e, sendo público, cabe ao Estado o seu controle e ordenamento, mediante seu papel coativo e sancionador (Reale, 2009).

Feita a análise do disposto, afirmar que a Psicologia é uma das ciências empregadas de forma essencial no universo do trânsito brasileiro, é fato. A aplicação de métodos psicológicos avaliativos na verificação da condição de condução de veículos automotores dos cidadãos constitui-se etapa relevante perante o Estado brasileiro, como forma de assegurar supostamente as condições necessárias à aplicação dos critérios fiscalizatórios e punitivos estatais assecuratórios das condições de circulação adequadas à sociedade.

2.2 Relação entre o Direito e a Psicologia na Seara do Trânsito Brasileiro

Como apresentado anteriormente, a Psicologia aplicada a questões de trânsito tem a sua previsão contida em dispositivos normativos, sendo norteada pelo Princípio da Legalidade. Por tais características, evidencia-se que a aplicação de tal ciência à avaliação que precede obrigatoriamente a aquisição da CNH está imbricada ao Direito. Ipso facto, faz-se necessário uma análise dos detalhes que relacionam a Psicologia ao Direito na seara do trânsito.

Segundo a doutrina de Diniz (2006), o Direito pode ser definido como sendo "uma ordenação heterônoma das relações sociais baseada numa integração normativa de fatos e valores" (p. 246). Com tal pensamento verifica-se a estreita relação do Direito à norma, a qual norteia a integralização entre os elementos valorativos pessoais de cada indivíduo na sociedade na produção de fatos, também de cunhos sociais, fortalecendo o vínculo com a Psicologia em sua aplicação ao trânsito devido, como já citado anteriormente, tal aplicabilidade ser direcionada a partir do Princípio da Legalidade, ou seja, do que é considerado legal pela questão de estar ligado a uma norma (lei).

Ainda segundo a citada autora, a Teoria do Direito, a partir da definição já transcrita, estabelece um critério metodológico de divisão do Direito, podendo este ser denominado, mediante as circunstâncias, como Direito Objetivo ou Direito Subjetivo, assim como também ocupar searas distintas especificadas como Direito Público ou Direito Privado.

O Direito Objetivo é o conjunto de normas jurídicas válidas e as condutas humanas que elas descrevem na sociedade, regendo o comportamento de cada indivíduo com a prescrição de uma determinada sanção em caso de descumprimento do mandamento normativo (Diniz, 2006).

Já com relação ao Direito Subjetivo, tem-se que o mesmo representa a faculdade de agir de cada pessoa a partir do que se está normatizado em uma sociedade. É a permissão dada pela norma jurídica válida para que cada cidadão possa fazer algo ou a sua negativa, com consonante proibição. Tal descrição não pode confundir-se com a simples faculdade de agir de cada pessoa, devido este não ser um direito estabelecido, seja posto normativamente ou doutrinado, mas uma qualidade de cada ser humano (Diniz, 2006).

As divisões do Direito, quanto ao mesmo ser de ordem pública ou privada, derivam do Direito Objetivo, a partir do foco a que se destina cada norma jurídica. O Direito Público pode ser definido como o complexo normativo jurídico que rege as relações nas quais o sujeito é o próprio Estado, representando, em suas ações e decisões, uma coletividade, enquanto que o Direito Privado é representado pelo conjunto normativo que abrange as relações jurídicas entre particulares (Diniz, 2006).

Apresentadas tais divisões jurídicas, cabe ressaltar as quais compõem ligação com a aplicação da ciência psicológica no contexto do trânsito brasileiro. Inicialmente, com base nos dados apresentados anteriormente (capítulos 1 e 2) fora possível estabelecer que a Psicologia do Trânsito é uma disciplina aplicada à uma coletividade, indistintamente, não só àqueles que conduzem veículos, mas também aos pedestres, todos integrando a sociedade em constante mobilidade transitável.

Com base no mencionado supra, decorre-se que a Psicologia do Trânsito é uma ciência que está intimamente ligada ao Direito Público, diante de suas características de aplicabilidade, servindo a um interesse coletivo.

No que tange às subdivisões do Direito do âmbito público ou privado e para qual a área psicológica do trânsito encontrar-se-ia mais plausivelmente intrincada, pode-se, a partir de uma análise da legislação pátrea, obter resposta precisa nesse sentido. O CTB (1997), em seu artigo 19, alínea VII, prevê o seguinte:

Art. 19. Compete ao órgão máximo executivo de trânsito da União:

...

VII -expedir a Permissão para Dirigir, a Carteira Nacional de Habilitação, os Certificados de Registro e o de Licenciamento Anual mediante delegação aos órgãos executivos dos Estados e do Distrito Federal.

Analisando o trecho da legislação supra mencionada, se o ato de dirigir veículos no Brasil é algo passivo de permissão por parte do Estado, seja para a condução temporária ou mesmo permanente após a aquisição da CNH, a partir de seu órgão competente. Sob tal diretriz, a referida atividade pode ser enquadrada como pertencente âmbito do Direito Administrativo, na seara do Direito Público, posto a terminologia "permissão" pertencer ao citado âmbito jurídico.

A doutrina de Meirelles (2012, p. 40), define como Direito Administrativo o "conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado".

Porém, na referência ao mencionado contido no CTB sobre a atividade de conduzir veículos, é explicado por Meirelles (2012):

Permissão é o ato administrativo negocial, discricionário e precário, pelo qual o Poder Público faculta ao particular a execução de serviços de interesse coletivo, ou o uso especial de bens públicos, a título gratuito ou remunerado, nas condições estabelecidas pela Administração (p. 199).

A partir a definição supra, observa-se que, embora tenha a previsão no CTB a título de "permissão", o ato de dirigir não pode ser considerado uma questão permissionária por definição, posto não se enquadrar, em sua essência, como um negócio ou serviço de interesse coletivo. Tal atividade mais se qualifica como um ato autorizador por parte do Poder Público, de acordo com a lição de Meirelles (2012):

Autorização é um ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração. (p. 198-199).

Porém, mesmo assumindo características de autorização, perante a definição doutrinária, o direito de conduzir veículos não se encaixa na modalidade de autorização, devido ao fator de que, segundo o citado doutrinador, é um direito "precário", o qual depende da "aquiescência" do Poder Público, podendo também este, discricionariamente, decidir sobre autorizar ou não ao candidato à condução de veículo tal direito, bem como cessar a qualquer tempo o mesmo, sem indenização, sob o pretexto da mera conveniência pública (Meirelles, 2012, p. 199). Tais circunstâncias não são previstas no CTB, no qual está disposto que, basta o candidato à CNH estar aprovado nos testes aos quais é submetido que o direito a conduzir veículo lhe é conferido com a expedição da Carteira de Habilitação, sendo a mesma suspensa ou cassada somente mediante circunstância considerada como infração ou crime de trânsito cometido pelo próprio condutor, desqualificando tal ato jurídico administrativista como sendo o adequado a classificar o direito de condução de veículo.

Compulsando novamente a doutrina do Direito Administrativo brasileiro, é possível enxergar outro ato estatal ao qual se pode classificar o direito de condução de veículo automotor, este, segundo a doutrina de Meirelles (2012), mais se identifica com a referida atividade, no caso em apreço referindo-se à licença:

Licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais (...). A licença resulta de um direito subjetivo do interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la quando requerente satisfaz todos os requisitos legais para sua obtenção. (p. 198).

Diante do exposto, pode-se dizer que a avaliação psicológica, enquanto prática científica, está atrelada a um procedimento licenciador estatal, podendo-se deduzir que a mencionada licença nada mais é do que um ato de administração da sociedade que cabe ao governo, entidade política que administra um determinado Estado soberanamente, no caso o Estado brasileiro, tal como definido por Meirelles (2012). Com o apresentado, evidencia-se que a relação da Psicologia, em sua prática destinada à avaliação dos condutores de veículos, concernente ao Direito reflete-se no ramo administrativista deste.

A doutrina de Meirelles (2012, p. 40) define como Direito Administrativo o "conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado".

Mediante tais características e conceituações, pode-se definir como sendo a Psicologia do Trânsito um ramo psicológico que possui vínculo com o Direito, na esfera do Direito Público brasileiro, contida no âmbito do Direito Administrativo, como atividade permissionária de interesse do Estado.

 

3. Competências dos Órgãos de Trânsito sobre a Atividade Psicológica no Brasil

A atuação e competências dos órgãos que estão envolvidos com as questões do trânsito no Brasil estão previstas na legislação pátrea, de forma discriminada a partir de cada função específica destes, bem como a hierarquia existente entre os mesmos. No mesmo sentido, as atribuições de cada órgão referente ao emprego da ciência psicológica nas questões envolvendo o trânsito também estão previstas legislativamente, mesmo que de forma indireta, porém sendo possível identificar tal atribuição.

Está prevista no CTB (1997) a existência no país do Sistema Nacional de Trânsito com a seguinte definição em seu artigo 5º:

é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.

Na mesma legislação, especificamente em seu artigo 7º, também encontra-se prevista a composição do referido Sistema:

Art. 7º Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades:

I -o Conselho Nacional de Trânsito -CONTRAN, coordenador do Sistema e órgão máximo normativo e consultivo;

II -os Conselhos Estaduais de Trânsito -CETRAN e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal -CONTRANDIFE, órgãos normativos, consultivos e coordenadores;

III -os órgãos e entidades executivos de trânsito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

IV -os órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

V - a Polícia Rodoviária Federal;

VI -as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal; e

VII -as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações - JARI.

Ainda referente à norma anteriormente citada também está previsto, em seu artigo 9º, a criação de um órgão que será a representação máxima referente à questão de trânsito no Brasil:

Art. 9º "O Presidente da República designará o ministério ou órgão da Presidência responsável pela coordenação máxima do Sistema Nacional de Trânsito, ao qual estará vinculado o CONTRAN e subordinado o órgão máximo executivo de trânsito da União".

Tal órgão máximo executivo de trânsito da União é o Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), criado, originariamente, pelo Decreto-Lei nº 237, de 1967 e inicialmente integrante da estrutura do Ministério da Justiça, posteriormente sendo transferido para a estrutura do Ministério das Cidades, cabendo ao referido ministério, segundo o previsto no artigo 1º do Decreto Federal nº 4.711 (2003) "a coordenação máxima do Sistema Nacional de Trânsito". A partir do Decreto Federal nº 4.711, 2003 também ficara definido que o dirigente do DENATRAN presidirá o CONTRAN.

Originariamente o CONTRAN foi criado pelo Decreto-Lei nº 2.994 de 1941, o qual instituía o Código Nacional de Trânsito da época, e atualmente possui a designação de órgão máximo normativo e consultivo de trânsito do país (CTB, 1997, art. 7º, I). Em escala hierárquica inferior estão os órgãos estaduais e municipais de trânsito.

São atribuições do CONTRAN, segundo o CTB:

a. Estabelecer as normas regulamentares referidas neste Código e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito;

b. Coordenar os órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, objetivando a integração de suas atividades;

c. Criar Câmaras Temáticas integradas por especialistas com o objetivo de estudar e oferecer sugestões e embasamento técnico sobre assuntos específicos para decisões do colegiado;

d. Estabelecer seu regimento interno e as diretrizes para o funcionamento dos CETRAN e CONTRANDIFE;

e. Estabelecer as diretrizes do regimento das JARI;

f. Zelar pela uniformidade e cumprimento das normas contidas neste Código e nas resoluções complementares;

g. Estabelecer e normatizar os procedimentos para a imposição, a arrecadação e a compensação das multas por infrações cometidas em unidade da Federação diferente da do licenciamento do veículo;

h. Responder às consultas que lhe forem formuladas, relativas à aplicação da legislação de trânsito;

i. Normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores, e registro e licenciamento de veículos;

j. Aprovar, complementar ou alterar os dispositivos de sinalização e os dispositivos e equipamentos de trânsito;

k. Apreciar os recursos interpostos contra as decisões das instâncias inferiores, na forma deste Código;

l. Avocar, para análise e soluções, processos sobre conflitos de competência ou circunscrição, ou, quando necessário, unificar as decisões administrativas; e

m. Dirimir conflitos sobre circunscrição e competência de trânsito no âmbito da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Do CONTRAN são emanadas as instruções de trânsito de âmbito nacional que servem como balizamento orientador para os demais órgãos de trânsito, bem como a análise e deliberação administrativa de questões de trânsito submetidas ao mesmo. Em meio às atividades do referido Conselho, foram editadas resoluções que prevêem especificidades acerca da atuação do psicólogo na avaliação de aptidão mental para condutores, na forma de avaliação psicológica, tal como supracitado no Capítulo 1 deste trabalho, restringindo a atuação dos profissionais de Psicologia na referida demanda de trânsito.

Em tais resoluções há uma preocupação evidente com o nível de conhecimento do profissional de Psicologia com a temática trânsito, exigindo do mesmo cursos de aperfeiçoamento para a referida atuação e, nas últimas normas resolutivas, a exigência de que tais profissionais obtenham o grau de especialista em Psicologia do Trânsito como requisito indispensável para a avaliação psicológica dos candidatos à CNH.

Realizando uma exegese das atribuições do CONTRAN supramencionadas, é encontrada dentre estas previsão no sentido de normatizar procedimentos relativos à habilitação e expedição de documentos para condutores, ou seja, regulamentar sobre os trâmites administrativos específicos para a aquisição da CNH no país, de acordo com o descrito basicamente no CTB. Nesse sentido, observa-se a competência do referido Conselho em definir parâmetros para a aquisição da CNH, respeitando a lei hierarquicamente maior, no caso o CTB, influenciando nos procedimentos psicológicos aplicados em tal conjunto de obrigações dos candidatos à condução de veículos.

Como já mencionado supra, foram editadas resoluções pelo CONTRAN no sentido de exigir que os psicólogos que já atuavam ou que desejassem atuar na avaliação psicológica de condutores (ou candidatos a condutores) de veículos realizassem cursos de aperfeiçoamento ou obtivessem o título de especialista na área de Psicologia do Trânsito, aparentando extrapolar suas atribuições e competências enquanto órgão responsável por normatizar e deliberar sobre questões de trânsito. Contudo, da análise dos feitos que competem ao CONTRAN é possível obter-se uma justificativa de cunho jurídico que lhe garanta tais prerrogativas.

Assim como demonstrado no Capítulo 2, o ato de conduzir veículos ocorre mediante uma licença estatal, enquadrando tal procedimento à seara do Direito Administrativo e envolvendo a aplicação da Psicologia nesse sentido em tal área jurídica. De forma análoga, a atuação do profissional psicólogo nos procedimentos de avaliação de condutores no Brasil reveste-se de um cunho jurídico administrativista, posto tal atuação somente ser possível mediante um aval do poder público. Segundo a doutrina de Meirelles (2012), o Poder Público pode realizar seus próprios serviços de forma descentralizada, a partir de entidades paraestatais de cooperação, as quais não compõem a administração pública direta ou indireta, mas simplesmente, entes particulares, sejam na forma de empresas ou individuais. Da análise do parágrafo, cabe uma leitura do que a legislação de trânsito prevê sobre o assunto.

O CTB, em seu artigo 148, prevê a seguinte circunstância em relação à aplicação de exames para a habilitação de condutores de veículos: "Os exames de habilitação, exceto os de direção veicular, poderão ser aplicados por entidades públicas ou privadas credenciadas pelo órgão executivo de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, de acordo com as normas estabelecidas pelo CONTRAN". Por sua vez, o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), seguindo previsão do CTB, normatiza o seguinte sobre o assunto em sua Resolução nº 425/2012:

Art. 15. As entidades, públicas ou privadas, serão credenciadas pelo órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, de acordo com a sua localização e em conformidade com os critérios aqui estabelecidos.

§ 1º As entidades credenciadas deverão manter o seu quadro de peritos examinadores atualizado junto ao órgão que a credenciou.

§ 2º O prazo de vigência do credenciamento será de um ano, podendo ser renovado sucessivamente desde que observadas às exigências desta Resolução.

§ 3º A cada dois anos as entidades, públicas ou privadas, credenciadas deverão comprovar o cumprimento do disposto nos artigos 16 a 23, junto aos órgãos ou entidades executivas de trânsito do respectivo Estado ou do Distrito Federal onde estiverem credenciadas.

Art. 18. O credenciamento de médicos e psicólogos peritos examinadores será realizado pelo órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal,observados os seguintes critérios:

I - médicos e psicólogos deverão ter, no mínimo, dois anos de formados e estar regularmente inscritos no respectivo Conselho Regional;

III - o psicólogo deve ter Título de Especialista em Psicologia do Trânsito reconhecido pelo CFP ou ter concluído com aproveitamento o curso "Capacitação Para Psicólogo Perito Examinador de Trânsito" (Anexo XVII).

§ 2º Até quatorze de fevereiro de 2015, será assegurado ao psicólogo que tenha concluído e sido aprovado no curso de "Capacitação para Psicólogo Perito Examinador de Trânsito", de 180 (cento e oitenta) horas ou curso de "Especialista em Psicologia do Trânsito", o direito de solicitar credenciamento ou de continuar a exercer a função de perito examinador.

§ 3º A partir de 15 de fevereiro de 2015, a solicitação para o credenciamento só será permitida aos psicólogos portadores de Título de Especialista em Psicologia do Trânsito reconhecido pelo CFP.

Frente aos dados apresentados, ao realizar um estudo dos atos administrativos jurídicos do Poder Público, encontra-se o ato de Permissão como o mais indicado para estabelecer-se um vínculo com a atividade de Psicologia aplicada à avaliação de condutores de veículos no Brasil sob a competência dos órgãos de trânsito do país para sua execução. Como já citado anteriormente, a Permissão é um ato administrativo do Estado com fins negociais, para a prestação de serviços de interesses da coletividade. Mas, diante da definição de estabelecida pela doutrina para o ato de Permissão, estabelecendo que o mesmo é eivado de precariedade, no caso em apreço, devido à administração pública não poder revogar o ato permissionário mediante o transcorrer do prazo previsto no artigo 15, parágrafo 2º da resolução supra, caso a entidade estiver na observância das exigências legais para a Permissão, não aparenta ser o ato administrativo que melhor define a relação de competência dos órgãos de trânsito para com a realização da atividade psicológica aplicada à avaliação de condutores prevista no CTB. Nesse caso, segundo Meirelles (2012, p. 199), aplica-se a "Permissão Condicionada", pela qual o Poder Público limita seu poder discricionário de revogação do ato permissivo a qualquer tempo, já que seu prazo já está definido por norma legal.

A atividade psicológica aplicada na avaliação de condutores acima apresentada é, de acordo com a legislação, desenvolvida de forma mista, podendo ser por entidade de caráter público ou privado, porém, quando da circunstância de tal entidade ser privada o resultado esperado da atividade em questão pela citada organização é meramente empresarial, mas como a atividade em foco destina-se à sociedade, reveste-se de um caráter público, daí o fato de ser permitida a partir de ato jurídico-administrativo oriundo dos órgãos reguladores de trânsito do país.

No que se refere aos psicólogos que atuam em tal atividade, de acordo com a última resolução acima mencionada (Resolução CONTRAN 425/2012) e em consonância com a doutrina jurídica administrativista brasileira, o credenciamento de tais profissionais para a atuação em tela ocorre mediante o ato administrativo de Licença. Ou seja, os psicólogos que atuam na avaliação de condutores de veículos o fazem mediante uma Licença emitida pelos órgãos de trânsito, tendo esta caráter definitivo, segundo a doutrina (Meirelles, 2012) e segundo o previsto no artigo 18 da resolução em análise, não havendo previsão de prazo para renovação do referido ato que lhes permitem a atuação na avaliação de trânsito dentre as previsões resolutivas do CONTRAN.

Destarte, a aplicação da ciência psicológica no contexto da avaliação de condutores de veículos no Brasil somente é possível sua execução por instituição de personalidade jurídica pública ou privada, mediante o credenciamento desta junto ao órgão competente de trânsito, recebendo uma Permissão Condicionada do referido órgão para tal atividade, tendo que compor seu quadro psicólogo que tenha também se credenciado junto ao órgão de trânsito, obtendo este profissional uma Licença para atuar na atividade de avaliador de condutores de veículos. Evidencia-se em tal discussão o fato de que os órgãos de trânsito possuem competência legal para atuarem na regulação da atividade psicológica componente do procedimento administrativo para a aquisição da CNH no Brasil, pois a base legislativa que subsidiou este capítulo é, inclusive, de origem de um órgão de trânsito (CONTRAN), fortalecendo a posição aqui exarada.

3.1 Possíveis Antinomias

O vocábulo "antinomia" é uma partícula textual da lexicografia jurídica, de uso no âmbito retórico processual, significando, segundo Horcaio (2006): "Contradição existente entre duas leis que versam sobre a mesma matéria ou entre duas cláusulas de um negócio jurídico" (p. 85). O termo enquadra-se aproximadamente na questão a ser apreciada neste momento do trabalho até aqui desenvolvido, não tratando-se de uma questão de conflito entre leis que tratam do mesmo assunto, nem tampouco de um negócio jurídico, mas de entidades que foram criadas por leis específicas e que tratam de assuntos distintos entre si, mas que abordam uma mesma matéria de forma conflituosa.

Neste subcapítulo analisar-se-á a questão de possíveis conflitos legislativos, ou mesmo de interpretação jurídica, existentes entre a competência atribuída legalmente aos órgãos de trânsito para a regulação da atividade psicológica no procedimento de avaliação de condutores de veículos para a aquisição da CNH versus a competência legal do órgão fiscalizador da profissão de psicólogo, ou seja, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e suas respectivas representações regionais, os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP's).

Está previsto na Lei n. 4.119, de 1962, e regulamentado pelo Decreto Federal n. 53.464, 1964, a criação da profissão de psicólogo no Brasil (art. 1º), e na Lei n. 5.766, de 1971, a criação do CFP e dos CRP's. Dentre outras atribuições, é de responsabilidade do CFP e CRP's, sendo os últimos subordinados ao primeiro, " orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de Psicólogo" (Lei 5.766, 1971, art. 1º). No mesmo sentido, o Decreto Federal n. 79.822, 1977, prevê em seu artigo 3º: "O Conselho Federal de Psicologia tem por finalidade orientar, supervisionar e disciplinar o exercício da profissão de Psicólogo, em todo o território nacional", prevendo ainda no seu artigo 6º, incisos V e VI:

V -exercer função normativa e baixar atos necessários à execução da legislação reguladora do exercício da profissão;

VI -definir o limite de competência do exercício profissional, conforme os cursos realizados ou provas de especialização prestadas em escolas ou institutos profissionais reconhecidos.

Apresenta-se clara a legislação ao delinear as competências dos órgãos regulamentadores da atividade de psicologia no país, em específico às do CFP, evidenciando que competem a este todas as deliberações, inclusive de ordem de produção normativa pertinente à limitação da "competência do exercício profissional", da atividade de psicólogo no Brasil.

É flagrante a superveniência de incoerência contextual de atribuições legais ao ser instituído no país um órgão que lhe é atribuída competência, por todas as diretrizes, de determinada profissão, porém, sendo produzidas regras referentes à mesma profissão por órgão com atribuições estranhas a esta. É o caso do descrito no Capítulo 3, no qual é apresentada a produção de resoluções por parte do CONTRAN que limitam a competência do exercício de psicólogo quando este atua em avaliações no contexto do trânsito, especificamente no âmbito dos procedimentos para a aquisição/renovação da CNH.

Segundo Meirelles (2012), o CFP se enquadra, enquanto órgão da administração pública, na condição de autarquia de regime especial, com autonomia organizacional, operacional, de gestão e de direção. Possui poder de polícia, inclusive, nas suas atribuições fiscalizatórias da profissão de psicólogo, ou seja, é constituído como uma instituição independente com finalidade específica: a de fiscalizar e normatizar sobre o exercício da profissão de psicólogo no Brasil.

No que se refere ao CONTRAN, já fora mencionado anteriormente acerca de suas atribuições, restando claro que todas são do âmbito do trânsito. Embora a questão do trânsito seja assunto de competência ao CONTRAN, legitimando suas deliberações sobre o assunto, é passível de abrangência a atividade psicológica aplicada na forma de avaliação dos candidatos à CNH, mas como tal órgão pode exigir que um profissional psicólogo possua título de especialista na área da Psicologia do Trânsito como requisito essencial para a atuação em tal área? Como aferir a capacidade de atuação de um psicólogo que não seja especialista para a sua atuação no âmbito do trânsito sem, ao menos, possuir competência referente à matéria Psicologia, mas com plena competência para deliberar sobre a matéria trânsito? Essas questões são de definições complexas sob o ângulo das normas que norteiam as atividades do CFP e do CONTRAN.

Mesmo com monção aprovada no I Fórum Nacional de Trânsito em 1999 e encaminhada ao CONTRAN e ao DENATRAN, segundo Lagares (2011, p. 1) "sugerindo a especialização como exigência mínima para atuação como Psicólogo Perito Examinador do Trânsito", o CFP não poderia delegar a outro órgão sua atividade principal, prevista inclusive na lei de sua própria criação, posto constituir um contrassenso jurídico referente às suas atribuições legais.

Normativamente a questão apresenta um considerável nível de complexidade diante das competências e atribuições relativas ao CFP e ao CONTRAN, mas demonstra certa invasão de competência por parte do CONTRAN na seara da atividade da profissão psicológica. Sensato seria que, perante as regras do Direito Administrativo brasileiro e a legislação, o CFP determinasse os critérios para a atuação do psicólogo no âmbito do trânsito, sendo recepcionado tais critérios pelo CONTRAN e demais órgão de trânsito no Brasil, convalidando a deliberação do referido conselho de classe enquanto responsável pela atuação, fiscalização e regulamentação da profissão de psicólogo no país. Também cabe ressaltar que, se analisada a legislação que institui o CFP, não está previsto na mesma a possibilidade de transferência de competência e atribuições da citada instituição para outra instituição, seja pública ou privada, o que tornaria, de imediato, ilegal a postura adotada na ocasião do referido I Fórum Nacional de Trânsito, em 1999, pelo Conselho Federal de Psicologia, mantida até o hodierno pelo tal.

 

4. Uma Análise da Legalidade da Exigência de Formação em Pós-Graduação em Psicologia do Trânsito para a Atuação do Psicólogo na Avaliação Psicológica de Condutores de Veículos

Não se trata de promover neste capítulo um julgamento da conjuntura atual brasileira referente às exigências estabelecidas pelo CONTRAN sobre a formação do profissional psicólogo para a atuação na avaliação de trânsito. Pelo contrário, a proposta aqui é de analisar sob o prisma do que prevê a legislação, a doutrina jurídica, e, quiçá, o emprego de alguma possível analogia que possa ser realizada, a qual encontre semelhança para com o assunto, deixando que tais fontes de discussão falem por si mesmas.

Como apresentado no capítulo 2.1, a aplicação da Psicologia ao trânsito decorre de previsão legal, estando tal prática sob a égide jurídica do Princípio da Legalidade a partir das previsões do CTB (Lei n. 9.503 de 1997), da mesma forma a atividade do profissional psicólogo, assim como de qualquer outro profissional no Brasil, cuja profissão esteja legalmente reconhecida, está regida pelo citado Princípio, sob força de previsão constitucional inicialmente.

É previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XIII: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Mediante a presente previsão constitucional, no que concerne a profissão de psicólogo em específico, seu delineamento, bem como limites de atuação, estão previstos na já citada Lei n. 4.119 de 1962, estando previsto também legalmente as atribuições do conselho de classe referente à atividade profissional em tela (Lei n. 5.766 de 1971). Frente ao exposto, cabe realizar uma análise das resoluções do CONTRAN que versam sobre exigências profissionais aos psicólogos que atuem com a avaliação de condutores de veículos.

Em consulta à doutrina da Teoria do Direito, tem-se que, metodologicamente, o Direito Positivo, ou seja, a teoria a qual baseia o Direito às normas, estabelece uma hierarquização da legislação produzida em sociedade como melhor forma de ordenar o controle da vida social. A partir da mencionada hierarquia normativa, mister um estudo de cada tipo norma até aqui citada que esteja presente na relação de aplicação psicológica aos procedimentos de trânsito brasileiro no intuito de aferir a legalidade da exigência do título de especialista do psicólogo que atua na avaliação de condutores. Inicialmente, tem-se, de forma indireta, o trecho constitucional supra, o qual estabelece o livre direito de exercício profissional a partir da lei. Segundo a doutrina de Gusmão (2009), a Constituição é definida como uma fonte estatal do Direito e que: "Está acima de qualquer lei, sendo, por isso, a lei suprema" (p. 110).

Estando a Constituição no topo da cadeia hierárquica das normas no Brasil, e referindo esta ao exercício profissional no país atrelado à lei, referente à atividade de psicólogo tem-se a lei que criou a profissão e suas atividades (Lei n. 4.119/1962). Esta lei, segundo Diniz (2006), tratase da Lei Ordinária, a qual encontra-se no rol também das fontes formais estatais, e que resulta da atividade legislativa com a sansão do respectivo chefe do Poder Executivo a partir da competência constitucional que é conferida, tanto para formulála e editá-la, como para sancioná-la. No caso em tela, trata-se de uma lei federal.

Já as resoluções produzidas pelo CFP, são consideradas, segundo Meirelles (2012), como espécies de atos administrativos gerais ou normativos, os quais são editados "pelas altas autoridades do Executivo (...) para disciplinar matéria de sua competência específica" (p. 188-193).

Tais ocorrências também se repetem e se aplicam na relação com a matéria trânsito, embora estando previsto na Constituição Federal somente referência à competência da União para a criação de leis sobre o tema. É o que ocorre com o Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503 de 1997), também com a criação do CONTRAN a partir do Decreto-Lei nº 2.994 de 1941, porém, cabe afirmar que as atribuições deste são estritamente relativas ao trânsito de acordo com a legislação citada.

Destarte, ainda dissertando sobre a hierarquia normativa, uma previsão constitucional é superior a uma lei ordinária, bem como esta é superior a uma resolução, não podendo, portanto, uma resolução, tendo caráter de ato meramente administrativo, suplantar um comando legal ordinário, muito menos uma previsão constitucional. Sendo assim, as resoluções do CONTRAN que preveem restrições atinentes à atividade psicológica vão de encontro com as leis que disciplinam a profissão de psicólogo no país e a criação do CFP, bem como à Constituição Federal de 1988, a qual estabelece os regramentos consoantes ao exercício das profissões no Brasil.

Quanto a fato de o CFP autorizar ao CONTRAN deliberar também sobre a profissão de psicólogo no contexto do trânsito, tal fato pode comparar-se, analogicamente, à terceirização, por parte de órgãos e empresas públicas, de suas atividades fins. Nesse sentido observam-se os julgamentos proferidos pelos tribunais do país sobre o tema, a exemplo do exarado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no qual consta: "a terceirização é legítima desde que não implique a execução de atividades inerentes aos quadros próprios dessas entidades" (TCU, Acórdão 1465, 2002). No mesmo sentido está previsto no Decreto Federal n. 2.271, 1997, em seu artigo primeiro: "No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade". Ou seja, de acordo com o julgamento e a legislação, ambos citados, é proibido confiar atividades ou atribuições próprias a outros que não sejam os próprios destas, podendo ser considerado, por analogia, ilegal a delegação de atividades do CFP ao CONTRAN.

Podem-se insurgir argumentos no sentido de que, como a atividade psicológica em questão ocorre no âmbito da relação administrativa estatal relacionada ao trânsito, o órgão responsável pela regulação de tal atividade (CONTRAN) teria a legitimidade para legislar acerca de exigências à profissão de psicólogo. Tal órgão possuiria a competência legal para determinar que os profissionais da referida atividade possuam o título de especialista em Psicologia do Transito para atuarem na avaliação de condutores. Mas como a previsão constitucional de que as atividades profissionais estão subordinadas ao Princípio jurídico da Legalidade e a lei que cria a atividade profissional em questão atribui tão somente ao CFP e aos CRPs a regulação e fiscalização desta profissão, permaneceria na condição de ilegal a transferência de atribuição entre CFP e CONTRAN nesse sentido.

Vale ressaltar que tanto o CFP quanto o CONTRAN são autarquias federais e que tais órgãos públicos possuem, segundo a doutrina de Meirelles (2012): "atribuições estatais específicas" (p. 396), caracterizando, ainda mais latente, a ilegalidade de transferência de tais atribuições entre as mesmas entidades.

 

Considerações Finais

Faz-se necessário afirmar que o presente trabalho não possui o condão, (menos ainda a intenção), de ser conclusivo relativo ao assunto que aborda, mas servindo de mola impulsionadora para outras discussões referente ao tema.

Mediante todos os dados apresentados, a partir das previsões legais demonstradas, além dos conhecimentos doutrinários expressos sobre a temática, ou analogamente relacionados, restou demonstrado o entendimento de evidente caráter ilegal a exigência de título de especialização em Psicologia do Trânsito ao psicólogo que atue, ou vise atuar, na avaliação psicológica de condutores para a aquisição da CHN no status quo hodierno.

Não há explicitamente na legislação abordada no trabalho em tela que o CONTRAN, bem como qualquer outro órgão da área do trânsito, possua a legitimidade de atribuição reconhecida legalmente para legislar administrativamente, (como é o caso em análise), sobre limites ou especificidades relativas à profissão de psicólogo, usurpando as atribuições do CFP e CRPs, como se apresenta desde algum tempo até o atual paradigma.

As atribuições de natureza finalística do CFP são exclusivas deste, não podendo ser exercidas por outro órgão, mesmo que de natureza pública e governamental, sendo, por isso, flagrantemente contrário aos parâmetros legais qualquer meio de delegar ou transferir tais atribuições.

A obrigatoriedade de possuir especialização em Psicologia do Trânsito exigida pelo CONTRAN resolutivamente aos psicólogos para atuarem na avaliação de condutores de veículos como procedimento de aquisição/renovação da CNH, é, perante os parâmetros jurídicos estudados até aqui, pelo menos, contrária as previsões legais, cabendo aos que se sentirem prejudicados pela medida buscarem o direito que lhes assistem juridicamente.

Quanto aos órgãos de regulação e fiscalização da atividade psicológica, demonstra-se imperiosa a necessidade de se rever o atual quadro, rediscutindo-o; buscando manter suas atribuições realizáveis por si mesmos, ainda que se continue a considerar de que as exigências atuais de especialização dos profissionais de psicologia envolvidos na avaliação psicológica de condutores de veículos encontram fundamento na necessidade da busca constante de uma melhor qualidade profissional, com vistas para a entrega de um melhor condutor de veículo à sociedade brasileira em previsões de um cotidiano de trânsito mais positivo no país.

 

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Recebido em: 11/05/14
Aceito em: 01/07/14

 

 

1 Contato: joel.malaquias@hotmail.com