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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora Dec. 2014

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Implantação de políticas públicas em saúde mental: o caso de São João del Rei

 

Implantation of public policies in mental health: the case of São João del Rei

 

 

Samira Pontes1; Lídia Lopes; Larissa Medeiros Marinho dos Santos; Roberto Calazans

Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo discute a implantação das políticas públicas federais em saúde mental no município de São João del Rei. As coordenadas que subsidiaram este trabalho decorreram do desenvolvimento de um projeto de extensão que fomenta um amplo campo de debates sobre as políticas públicas em Saúde Mental e Educação, utilizando-se de entrevistas com os profissionais da rede pública do município. A problemática elucidada se refere à tensão existente entre a criação de políticas federais em saúde mental e sua implantação nos municípios, uma vez que o efetivo funcionamento desses serviços é concernente a realidade administrativa de cada município.

Palavras-chave: Políticas públicas, Saúde mental, Psicologia, São João del Rei


ABSTRACT

The present article discusses the implantation of public policies in the municipality of São João del Rei. The coordinates which subsidized this work arose from the development of an extension project that aims to create a wide field of debates as to public policy in Mental Health and Education, using interviews with professionals from the public network of the municipality. The problem that this article deals with concerns the tension existing between the creation of federal policies of mental health and their subsequent implantation in the municipalities, considering that the effective functioning of these services depends on the administrative reality of each municipality.

Keywords: Public policies, Mental health, Psychology, São João del Rei


 

 

Introdução

"Vivemos um momento único no campo das Políticas Públicas de Saúde Mental no país" (Delgado, Gomes e Coutinho, 2001, p. 452). Essas palavras estamparam o editorial da revista Cadernos de Saúde Pública em junho de 2001 quando a Lei 10.216, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental. foi aprovada e sancionada pelo Presidente da República, no dia 6 de abril do mesmo ano.

Arriscamos em dizer que estamos vivenciando outro momento único nesse mesmo campo: a complexidade do desafio representado pela implantação de políticas públicas em saúde mental. Existe uma tensão existente entre a criação de políticas federais em saúde mental e sua implantação nos municípios, uma vez que o efetivo funcionamento desses serviços é concernente a realidade administrativa de cada município.

O avanço do processo de municipalização, como nos mostram Luzio e Yasui (2010), quando houve o deslocamento da condução e gerenciamento das ações de assistência para os estados e municípios, teve como consequência uma vinculação do avanço da Reforma Psiquiátrica à criação e consolidação do SUS.

A ideia da realização deste artigo partiu do trabalho realizado com o blog (retiramos o nome e o endereço eletrônico do blog para respeitar o blindreview. Voltaremos a colocar caso o artigo seja aprovado), um projeto de extensão que visa criar um método ampliado de discussão sobre as políticas públicas e a realidade social no que se refere, principalmente, aos campos da Saúde Mental e da Educação.

O objetivo deste projeto é promover debates sobre as políticas públicas voltadas para os campos da Saúde Mental e Educação entre pesquisadores universitários e setores da sociedade via internet. Para isso, são realizadas postagens semanais de modo alternado que comtemplem as temáticas estudadas pelo blog -Saúde Mental e Educação. As postagens seguem um formato padrão: são compostas de uma entrevista com especialistas do assunto selecionado seguida de um breve texto explanatório.

O debate em torno dessas políticas públicas almeja tomar um caminho mais amplo, em que a dimensão Política possa se apresentar sem a exclusividade dos espaços e meios tradicionais: associações de pessoas que serão sempre representadas por outras pessoas. Antes disso, este modo de debate permite que cada um, em seu próprio nome, possa participar da construção de conhecimento em torno de um tema tão caro e necessário tanto ao psicólogo de hoje quanto aos cidadãos em geral. Daí a ideia da utilização dos meios virtuais de comunicação, tais como blogs e redes sociais, não em contraposição aos espaços tradicionais, mas em extensão a estes espaços, criando fóruns de discussão em diversas mídias, em que os participantes possam exercer por meio virtual sua cidadania.

Os dados coletadas por meio de entrevistas com os trabalhadores dos serviços de saúde mental do município para a realização das postagens do blog (retiramos o nome e o endereço eletrônico do blog para respeitar o blindreview. Voltaremos a colocar caso o artigo seja aprovado) nos deram subsídios para problematizar a tensão que existe entre os programas na área de saúde mental criados pelo governo federal e sua implementação pelos municípios.

Desse modo, o objetivo de nosso artigo é debater a implantação das políticas públicas federais em saúde mental no município de São João del Rei, focando, desde o início, a tensão que existe entre os programas na área de saúde mental criados pelo governo federal e sua realização nos municípios.

O trabalho realizado com o blog, principalmente por meio das entrevistas, foi a estratégia metodológica utilizada para a coleta de informações sobre o posicionamento de trabalhadores dos serviços de saúde do município em relação as políticas públicas de saúde mental.

Foram realizadas cinco entrevistas com os profissionais da rede de saúde mental do município: a psicóloga do Núcleo de Saúde Mental de São João del Rei, a psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a coordenadora do CAPS, a médica da equipe Estratégia Saúde da Família (ESF) do bairro Tejuco, e a coordenadora do Centro de Convivência e Cultura, em seus respectivos locais de trabalho. As entrevistas obedeciam o formato semiestruturado e duravam no máximo 15 minutos. Foram realizadas individualmente e gravadas com o auxílio de uma filmadora, sendo autorizadas pelos respectivos entrevistados, por meio dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido.

Lembrando que os dados obtidos para a elaboração da questão que permeia o artigo não se restringiam somente às entrevistas, que foram o nosso mecanismo metodológico principal. Levamos em consideração também as diversas visitas realizadas aos serviços de saúde mental do município bem como à Secretaria de Saúde para o agendamento das próprias entrevistas. Estas visitas certamente contribuíram para o conhecimento do funcionamento dos serviços e o contato com a realidade pesquisada.

Para isso, nos dedicaremos em um primeiro momento a realizar um levantamento de políticas públicas em saúde mental no Brasil, de 1991 a 2012, ou seja, desde a implantação da política do Sistema Único de Saúde (SUS) até os dias atuais. Após esse levantamento, partiremos para a colocação da seguinte a questão: como se dá a implantação dessas políticas no município de São João del Rei?

 

Políticas públicas: uma breve conceituação

Antes de continuarmos a explicitar nosso eixo da pesquisa, contudo, consideramos importante trazer algumas considerações sobre o que é política pública. O conceito de política pública não é unânime. Ao tratar deste tema, diversos teóricos apresentam suas próprias definições. Para Hofling (2001), por exemplo, políticas públicas devem ser entendidas como responsabilidade do Estado, no tange à sua implementação e manutenção, em que decisões são tomadas em conjunto com diferentes organismos e agentes da sociedade envolvidos na questão a ser tratada.

Mead (1995, p.68), por sua vez, a define como "um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas". Já a concepção de que políticas públicas refletem um jogo de interesses no curso de ação do Estado é defendida por Reis (1989). Nascida como subárea da ciência política, a área de políticas públicas também deve ser pensada a partir da dimensão do laço social. De acordo com Souza (2007), podemos resumir política pública como campo do conhecimento capaz de analisar as ações do governo e, quando necessário, propor mudanças nessa direção.

No Brasil, é evidente a participação e o envolvimento de grupos e movimentos sociais na formulação de políticas públicas (Costa, 1989; Reis, 1989; Jacobi, 1989; Stotz, 1994), tais como as políticas de saúde mental, que sofreram influência da reforma psiquiátrica e do movimento sanitarista.

Acreditamos que o uso do termo política não é gratuito. E como um termo especifica um conceito que delimita um campo de ação e um campo de debate, nos deparamos com algumas questões relevantes para essa discussão: a questão da política em seu sentido mais amplo. Assim, as políticas públicas determinam um campo de ação que deve ser pensado a partir da dimensão do laço social, dos meios de convivência a serem pensados ou desejados. Estas ações da política pública se dão no espaço da Pólis: espaço de convivência entre os diversos cidadãos em que diversos desejos se entrecruzam. Desejos que apontam para uma dimensão administrativa da política, mas que demandam também uma ética que se dê para além da mera gerência de recursos; que demandam também pensar, debater as finalidades de tais recursos e o desejo que sustenta tal política. E a partir desta definição e reflexão sobre este campo que almejamos explicitar a discussão.

 

Políticas públicas em saúde mental no Brasil

Assistimos a partir do final da década de 1970 a uma reorganização do modelo de atenção à saúde mental no país resultante do processo (ainda em curso) da Reforma Psiquiátrica. Tal processo reorientou não só os saberes e práticas a respeito do sofrimento psíquico como também culminou na necessidade de uma revisão legislativa do país, a fim de solidificar essas transformações.

A Reforma Psiquiátrica acompanhou outra proposta reformista em curso no país, a saber, o movimento sanitarista, responsável por questionar o modelo médico privatista de assistência nacional à saúde. Nas palavras de Andrade, Pontes e Martins Junior (2000):

O grande desafio do Movimento da Reforma Sanitária passou a ser promover a transição do sistema desintegrado, no que diz respeito à articulação das esferas de governo, e centralizado, ora em serviços médicos hospitalares privados, ora em programas verticalizados, para um outro sistema com comando único em cada esfera de governo. Aqui não mais uma tarefa de resistência, mas uma tarefa construtiva.( p. 87)

Em um contexto mais amplo, ambos os movimentos reformistas aconteceram durante o processo de redemocratização do Brasil. Além da crítica ao modelo clássico de assistência psiquiátrica e o reclame a cidadania do louco (Tenório, 2002), a reforma psiquiátrica, nas palavras de Ottaviano (2011), revisou também "o lugar do hospital psiquiátrico, sendo capaz de incorporar outras práticas, a fim de encontrar novas formas de entender e organizar o tratamento das pessoas acometidas de diversos sofrimentos psíquicos." (p. 48).

Dentro dos movimentos reformistas no período de redemocratização do país, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) ocupa lugar de destaque no que tange ao processo de descentralização da saúde. A Lei 8080/90 versa sobre o direito universal à saúde, além de promover a descentralização político administrativa do SUS. A implantação do SUS proporcionou um novo paradigma da assistência à saúde e, consequentemente, a elaboração de políticas públicas de saúde mental que visam romper com o modelo "hospitalocêntrico". O processo de descentralização da saúde, proporcionado pelo SUS, configura-se, atualmente, como um norteador da reforma do Estado no Brasil (Andrade, Pontes e Martins Junior, 2000).

A política de saúde mental no Brasil evoluiu de um modelo "hospitalocêntrico" para um modelo de assistência comunitária em direção a um acompanhamento psicossocial (Pacheco, 2005). A ideia de uma rede de atenção à saúde mental, acompanhada da reabilitação psicossocial, é um dos pilares da nova política de saúde mental brasileira. Desse modo, reuniremos os principais atos legais que orientam esse processo.

A Portaria da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), nº 189, de 19 de novembro de 1991(Ministério da Saúde, 2004b) alterava o financiamento das ações e serviços de saúde mental ao ver a necessidade de melhorar a qualidade da atenção às pessoas acometidas de algum sofrimento psíquico. Aprova, então, os Grupos e Procedimentos da Tabela do SIH-SUS, na área de Saúde Mental.

Em 1992, com a Portaria SNAS nº 224, de 29 de janeiro (Ministério da Saúde, 2004b), temos a regulamentação do funcionamento de todos os serviços de saúde mental no Brasil. Além da incorporação de novos procedimentos à tabela do Sistema Único de Saúde (SUS), esta portaria se tornou imprescindível para regulamentar o funcionamento dos hospitais psiquiátricos. Esta portaria teve a particularidade de ter sido aprovada pelo conjunto dos coordenadores de saúde mental dos estados, para que pudesse ser cumprida em todas as regiões do País. No mesmo ano, a Portaria SAS (Secretaria de Atenção a Saúde) nº 407, de 30 de junho (Ministério da Saúde, 2004b) cria o código de procedimento para hospitais psiquiátricos que ainda não cumpriram integralmente as regulamentações da Portaria SNAS nº 224, definindo exigências mínimas para habilitação nesse procedimento.

Destacamos, nesse momento, a Resolução nº 93, de 2 de dezembro de 1993 (Ministério da Saúde, 2004b), que considerando o relatório final da II Conferência Nacional de Saúde Mental realizada em dezembro de 1992, aprova a constituição, no âmbito do Conselho Nacional de Saúde, da Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica.

Em 1994, a Portaria SAS nº 145, de 25 de agosto (Ministério da Saúde, 2004b) cria um subsistema de supervisão, de controle e de avaliação da assistência psiquiátrica em saúde mental, através da constituição de Grupos de Avaliação da Assistência Psiquiátrica (GAP), sendo que a Portaria SAS nº 147 (Ministério da Saúde, 2004b) complementa tais atribuições apresentando como objetivo a exigência da exposição do projeto terapêutico da instituição psiquiátrica. Essa portaria foi responsável pela qualificação do atendimento psiquiátrico realizado pelo SUS, no período de 1994 a 1996. (Ministério da Saúde, 2004b).

Considerando a política nacional de medicamentos, a Portaria GM nº 1.077, de 24 de agosto de 1999(Ministério da Saúde, 2004b) aprova a implantação do Programa para a Aquisição dos Medicamentos Essenciais para a Área de Saúde Mental. Ou seja, somente no ano de 1999 que surgiu uma legislação responsável por regulamentar a assistência farmacêutica na atenção psiquiátrica. A Lei nº 9.867 de 10 de novembro de 1999 (Ministério da Saúde, 2004b) viabilizou a inserção psicossocial das pessoas em desvantagens no mercado econômico (incluindo aí os pacientes psiquiátricos) por meio da criação de Cooperativas Sociais. É a lei precursora que visa a reabilitação psicossocial e a integração social da pessoa acometida de algum sofrimento psíquico. Com a Resolução nº 298, de 2 de dezembro 1999(Ministério da Saúde, 2004b) temos a constituição da Comissão de Saúde Mental, com objetivo de assessorar o plenário do Conselho Nacional de Saúde na formulação de políticas na área de saúde mental.

É importante destacar a criação da Portaria GM nº 106, de 11 de fevereiro de 2000 (Ministério da Saúde, 2004b) que regulamenta o funcionamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), visando a reestruturação do modelo de assistência ao sujeito em sofrimento psíquico. Os Serviços Residenciais Terapêuticos são moradias destinadas a cuidar dos pacientes egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e vínculos familiares, viabilizando sua inserção social. A Portaria GM nº 799, de 19 de julho de 2000 (Ministério da Saúde, 2004b) ao considerar os avanços obtidos nos anos anteriores em direção à reversão do modelo psiquiátrico "hospitalocêntrico" e asilar na atenção à saúde mental, determina a avaliação, supervisão e regulamentação dos serviços em saúde mental do Sistema Único de Saúde.

Finalmente, em 6 de abril de 2001, temos a promulgação da Lei nº 10.216 (Ministério da Saúde, 2004b), que dispõe sobre a proteção e os direitos dos sujeitos em sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Tal lei é um marco na história da reforma psiquiátrica brasileira, representando o rompimento de uma política de modelo privativo de saúde. Temos com a Portaria GM nº 251, de 31 de janeiro de 2002 (Ministério da Saúde, 2004b) a redução progressiva dos leitos psiquiátricos, ao estabelecer a reclassificação dos hospitais e a porta de entrada para as internações psiquiátricas de acordo com o porte do hospital e a qualidade do atendimento prestado. Acompanhando o processo de desinstitucionalização, a Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002 (Ministério da Saúde, 2004b) cria mecanismos de financiamento próprio para a rede dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ampliando, assim, a abrangência dos serviços substitutivos.

A criação de uma política que atendesse a problemática do álcool e outras drogas foi contemplada com a Portaria GM nº 816, de 30 de abril de 2002 (Ministério da Saúde, 2004b), que institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Essa política visava a articulação das ações desenvolvidas pelas três esferas de governo destinadas a promover a atenção aos usuários com o uso prejudicial de álcool ou outras drogas na rede de atenção psicossocial. A Portaria SAS nº 305, de 3 de maio de 2002 (Ministério da Saúde, 2004b), também foi responsável por aprovar as normas de funcionamento e cadastramento dos CAPS para atendimento de pacientes com transtornos causados pelo uso prejudicial de álcool e outras drogas.

Dois anos após a promulgação da Lei nº 10.216 e atendendo especificamente seu artigo 5º: "os pacientes há longo tempo hospitalizados, ou para os quais se caracterize situação de grave dependência institucional, sejam objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida" (Ministério da Saúde, 2004b, p. 18) temos a criação da terceira lei federal no campo da saúde mental: a Lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003 (Ministério da Saúde, 2004b). Essa lei se refere à criação do Programa de Volta Para Casa, responsável por instituir o auxílioreabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social de pessoas acometidas de algum sofrimento psíquico com história de longa internação psiquiátrica.

Ao ver a necessidade de estender as iniciativas da Reforma Psiquiátrica à população infanto-juvenil, foram criadas duas portarias para propor mudanças nessa direção: a Portaria GM nº 1.946, de 10 de outubro de 2003 (Ministério da Saúde, 2004b), que cria o Grupo de Trabalho destinado a elaborar proposta de constituição do Fórum Nacional de Saúde Mental de Crianças e Adolescentes como espaço de articulação intersetorial e a Portaria GM nº 1.947 (Ministério da Saúde, 2004b) do mesmo ano, responsável por aprovar o Plano Estratégico para a Expansão dos Centros de Atenção Psicossocial para a Infância e Adolescência (CAPSi). Com a Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), temos a aproximação, dos princípios da política de saúde mental com a questão das drogas, principalmente em relação às ações de atenção. Essa lei também prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários de drogas, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. Ainda visando a problemática do álcool e outras drogas, temos com o Decreto nº 6.117, de 22 de maio de 2007 a aprovação da Política Nacional sobre o Álcool. Este Decreto expõe os princípios fundamentais para a redução dos problemas sociais e de saúde relacionados ao consumo de álcool.

Observarmos também, a partir do ano de 2010, o foco dado ao problema do crack no planejamento das políticas públicas, com propostas de uma série de portarias e decretos que têm em comum o objetivo de desenvolver ações de atenção aos usuários dessa droga: O Decreto nº 7.179 de 20, de maio de 2010 institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, cujo principal objetivo é desenvolver ações de prevenção, de tratamento e de reinserção social do usuário de crack e também de combate ao tráfico. E em setembro do mesmo ano, por meio da Portaria nº 2.841, temos a criação do Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas 24 horas, o CAPSad-IIIJá as Portarias nº 121 e nº 131, de 25 de Janeiro de 2012, são responsáveis por instituir a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e fornecer o incentivo financeiro destinado aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal para apoio ao custeio de Serviços de Atenção em Regime Residencial, incluídas aí as Comunidades Terapêuticas, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, respectivamente.

 

Implantação de políticas públicas em saúde mental na cidade de São João del Rei

Após o levantamento em nível federal das principais políticas públicas de saúde mental, partimos para a principal problemática deste trabalho: como se dá a implantação de tais políticasno município de São João del Rei? Desse modo, juntamente com nosso trabalho de verificação da implantação das políticas de saúde mental no município de São João del Rei, analisamos também o processo de construção dessa rede de atenção na cidade, suas potencialidades e limitações. Quais as ações de integração dos serviços de saúde mental e o Programa Saúde da Família? Teria o CAPS a função de norteador dos programas de saúde mental? No âmbito físico, estaria o CAPS inserido em um local que propicia a inserção e a intervenção do usuário na cidade?

Vale ressaltar que as políticas de saúde mental não são ações diretas do governo federal, ficando a cargo de cada município a implantação dos serviços de acordo com sua realidade administrativa. Essa descentralização e a concomitante autonomia dada a cada município refletem na gestão bem como na qualidade dos serviços. Daí a discrepância que encontramos quando analisamos a rede de atenção à saúde mental de diversos municípios.

Mas, o que é a rede de atenção à saúde mental? Na tarefa da reabilitação psicossocial, contamos com uma série de recursos (afetivos, sanitários, sociais, econômicos, culturais, religiosos e lazer) que integram a comunidade que o sujeito está inserido. É com essa noção de comunidade que a rede de atenção à saúde mental se justifica, tornando possível o olhar integral à saúde daquele que sofre psiquicamente. (Ministério da Saúde, 2004a). Os Centros de Atenção Psicossocial ocupam lugar estratégico na rede de atenção, sendo o ponto de articulação com outros setores afins, como por exemplo, os Centros Comunitários, as Estratégia Saúde da Família (SNAS), os Hospitais Gerais, as Residências Terapêuticas entre outros serviços. Em sua assistência direta e o trabalho conjunto com outros serviços, fazem do CAPS o responsável pelo direcionamento local das políticas e programas de saúde mental.

Ao lado da noção de rede de atenção, temos outro conceito fundamental para entender o papel estratégico do CAPS na reabilitação psicossocial: a noção de território. Entendemos que a noção de território está além de uma determinada área de abrangência, compreendendo também os laços sociais que os sujeitos tecem no espaço social e cultural. O 2º parágrafo do artigo 1º da Portaria nº 336/GM (Ministério da Saúde, 2004b), responsável por regulamentar os CAPS, estabelece que esses serviços devem funcionar segundo a lógica do território. No entanto, como apontam Böing e Crepaldi (2010), os CAPS raramente operam de acordo com a noção de território:

Vale destacar, ainda, que os documentos que discorrem sobre os CAPS trazem a diretriz da territorialidade, ou seja, instituem-nos como serviço ambulatorial de atenção diária de base comunitária que funcione segundo a lógica do território, condição essa raramente presente nesses serviços, que, na sua maioria, na sua tipologia, são únicos, e, portanto, referência para todo o Município a que pertencem. Essa situação traz muitos prejuízos para a concretização da rede de atenção (única), pois inviabiliza muitas ações de responsabilidade dos CAPS e dificulta a comunicação dos mesmos com a atenção básica (p.643).

Primeiramente, nos preocupamos em analisar como as políticas voltadas para o Programa Saúde da Família seriam integradas de maneira eficaz à rede de atenção em saúde mental do município. No município de São João del Rei, existe um CAPSI desde 2004, responsável por atender 14 municípios da região. De acordo com a Portaria que regulamenta esse serviço, o CAPS I tem a capacidade operacional para atendimento em municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes. Entretanto, só em São João del Rei há 84.404 habitantes. O Ministério da Saúde (2004a) afirma que para realizar ações de apoio à rede básica, e se tratando de um território constituído por uma grande população de abrangência, é necessário acrescentar ao corpo funcional dos ESF uma ou mais equipes de saúde mental.

A partir de uma entrevista realizada com a médica integrante da equipe de uma das Unidades Básicas de Saúde do município, localizada no bairro Tejuco, pudemos explorar a questão do acompanhamento das ações de saúde mental na atenção básica e debater que essa articulação ainda não é uma ação concreta em São João del Rei. Dentre os 600 atendimentos mensais realizados pela ESF do bairro Tejuco, a maioria, segundo a entrevistada, referem-se às queixas de depressão e ansiedade. Ainda segundo a equipe, para melhor atender essas demandas, principalmente em relação aos usuários do CAPS, foi realizado um treinamento com a equipe, no qual teve a exposição das principais doenças e como identificá-las na comunidade.

Foi possível verificarmos a importância da inserção dos usuários do CAPS na comunidade por meio da ESF. Para a equipe, esse movimento de inclusão das ações de saúde mental na atenção básica do município, apesar de recente, vem possibilitando a criação de um vínculo das equipes da ESF com os usuários da saúde mental e suas famílias. Uma das políticas componentes da rede de atenção substitutiva em saúde mental cuja implantação foi verificada no município de São João del Rei é a criação dos Centros de Convivência e Cultura, aprovados a partir da Portaria nº 396, de 07 de julho de 2005.

Os Centros de Convivência e Cultura são espaços onde são oferecidos às pessoas acometidas de algum sofrimento psíquico oportunidades de sociabilidade, produção e intervenção na cidade por meio de oficinas que estimulam a criação e a expressão artística, apresentam-se como objetivo o fortalecimento e produção de laços sociais. No município de São João del Rei, o Centro de Convivência e Cultura Arte Feliz existe há aproximadamente dois anos. Porém, o fato de que não há mecanismos de financiamento federal e/ou estadual para manutenção dos Centros de Convivência e Cultura foi uma deficiência encontrada na implantação dessa política. Esses Centros são sustentados por recursos próprios e devem realizar parcerias com órgãos públicos e/ou privados para captação de recursos financeiros ou equipamentos.

Os serviços prestados pelo CAPS "Del Rei" atualmente são insuficientes se levarmos em conta o número de atendimentos prestados. Para suprir tal lacuna, vemos a urgência do pedido de credenciamento para CAPS II. Outro desafio que o CAPS de São João del Rei vem enfrentando é a grande demanda de usuários que apresentam abuso de álcool e drogas. Hoje tais usuários representam cerca de 60% dos atendimentos realizados no CAPS, de acordo com a coordenadora deste serviço, também entrevistada pelo blog. Em virtude disso, o Departamento de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do município vem tentando ao longo de cinco meses a implantação de um CAPSad. Porém, problemas internos na gestão desses serviços, como a dificuldade para escolher um local onde ficará o CAPSad, vêm impedindo a inauguração do mesmo. A implantação desse novo modelo de CAPS irá facilitar o tratamento dos usuários de drogas bem como aliviar e permitir o aprimoramento do atendimento do CAPS já existente.

 

Considerações finais

À luz dos principais atos legislativos que orientam a política nacional de saúde mental, apresentamos a implantação dessa política no município de São João del Rei, levando em consideração o processo de construção da rede de atenção à saúde mental no município. Serviços substitutos como o CAPS e dispositivos componentes da reabilitação psicossocial como os Centros de Convivência e Cultura estão presentes na cidade. Entretanto, as problematizações encontradas referem-se principalmente à relação tensa entre os gestores e os trabalhadores da saúde na implementação desses serviços. Algumas situações enfrentadas pelos profissionais desses serviços, como por exemplo, a redução temporária dos serviços do CAPS por falta de recursos técnicos e materiais, demonstram uma insatisfação crônica com a gestão por parte desses profissionais.

Em relação à rede de atenção à saúde mental do município, alguns pontos de articulação dessa rede merecem destaque, como por exemplo, a atuação do Centro de Convivência e Cultura. Observamos que esse serviço oferece aos usuários um espaço de sociabilidade e intervenção na cidade, tarefa importante no processo de reabilitação psicossocial. Em contrapartida, a articulação contínua dos serviços de saúde mental (especialmente os CAPS) com a atenção básica ainda não é uma realidade efetiva no município. Apesar de ter ocorrido algumas "rodas de conversa" entre a equipe do CAPS e os profissionais das ESF, não encontramos uma articulação regular (como por exemplo, o apoio matricial) entre esses dois serviços.

Como não poderia deixar de ser, a mudança de paradigma da assistência à saúde brasileira acarretou em transformações no campo das políticas públicas em saúde mental, cujos desafios podemos enxergar no município de São João del Rei. Na verdade, esse movimento de descentralização das políticas públicas abrange a saúde pública em geral a partir da criação do SUS com suas diretrizes de universalidade, equidade e integralidade. O principal desafio, segundo nosso entendimento, reflete-se na tensão entre a criação das políticas públicas federais e sua implementação nos municípios. Esta tensão pode ser vista como um produto da flexibilidade do processo de descentralização da saúde e um sinal da diversidade das realidades municipais.

 

Referências

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Recebido em: 03/09/13
Aceito em: 02/06/14

 

 

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