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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

On-line version ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.1 Juiz de fora June 2015

 

ARTIGOS

 

O ganho, a perda e os paradoxos no enfoque transgeracional

 

Gain, loss and paradoxes in the transgenerational approach

 

 

Maria Emília Sousa Almeida1

Universidade de Taubaté, Taubaté, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo versa sobre as vivências de ganho e de perda, bem como sobre os paradoxos no enfoque transgeracional. Discutem-se suas relações com o sistema representacional, a família e a clínica psicanalítica, com base no método clínico psicanalítico. Estas vivências mentais tendem a alterar o funcionamento do sistema das representações e dificultar a mudança psíquica das representações e afetos do paciente. Com isso, seu desejo não pode ser atualizado quando adulto. O trabalho analítico pode favorecer a realização do desejo do paciente em seus fundamentos mais essenciais. A autora propõe algumas hipóteses de trabalho sobre o tema com base na clínica e em concepções de alguns autores como Kaës (2001), Eiguer (1997), Racamier (1991), entre outros.

Palavras-chave: Ganho, Perda, Paradoxo.


ABSTRACT

This article deals with gain and loss experiences, as well as with paradoxes in the transgenerational approach. Their relations with the representational system, family and psychoanalytic clinic are discussed, based on the psychoanalytic clinic method. These mental experiences tend to modify the functioning of the representational system and make the patient's psychic change related to representations and affects difficult. Then, the patients wish can not be satisfied in his/her adult life. The analytic work can help the patient's wish as to the fulfillment of his/her essential foundations. The author proposes some work hypothesis about the theme based on her clinical observations and on conceptions from some psychoanalysts such as Kaës (2001), Eiguer (1997), Racamier (1991, among others.

Keywords: Gain, Loss, Paradox.


 

 

Neste artigo, a autora propõe algumas hipóteses de trabalho sobre as vivências mentais de ganho, de perda e dos paradoxos lógicos acerca deles, com base na clínica e em concepções de alguns psicanalistas da vertente transgeracional. Dentre eles, encontram-se Kaës (2001), Eiguer (1997) e Racamier (1991). A abordagem transgeracional enfoca a transmissão da vida psíquica ao longo das gerações, incluindo a transmissão do sofrimento psíquico na família. O método clínico psicanalítico sustenta a articulação entre as concepções teóricas da autora e algumas vinhetas clínicas, apresentadas no decorrer do trabalho.

Na transmissão do sofrimento psíquico na família, destacam-se as vivências de ganho e de perda no sujeito. A perda parece imperar sobre o ganho enquanto vivência humana mais marcante e mais representada psiquicamente. A perda se revela numa gama de expressões linguísticas coloquiais no cotidiano, bem como mediante as representações do espaço e as representações dos paradoxos lógicos no sistema representacional do sujeito, na clínica.

Dentre as expressões corriqueiras de perda, encontram-se: "a casa caiu" e "fiquei sem chão" frente a uma traição que dá ensejo a um relacionamento sério; "caí de quatro" - deslocamento para baixo no espaço, como um animal - ante o abandono e menosprezo pelo objeto de amor. Há, inclusive, ganhos implícitos em "subir na vida" significando enriquecer e em "subir aos céus" ao ser alçado à condição de santo, enquanto há perdas em "descer na vida" enquanto queda moral ou financeira. E ainda, "cair na vida" designa uma queda moral, ao prostituir-se. "Puxar o tapete" atesta a perda do assentamento emocional-espacial experimentado pelo sujeito quando alguém lhe tira de uma posição conhecida e trai sua confiança.

A expressão "meu mundo caiu" é usada por um homem bilionário frente à iminente e catastrófica perda de um filho muito amado, num acidente. Desmoronam autorrepresentações como a de ser bilionário, ser poderoso, ser melhor que um irmão-rival e ser detentor de um vasto império construído por ele, pois sua sustentação identitária é bastante abalada. Quando constata que seu filho está vivo, toma medidas cautelares contra forças maiores do que sua capacidade de representá-las. Faz inúmeros funcionários empreenderem uma varredura extensa e intensa em busca dos corpos dos amigos do filho, dizendo que o faz como forma de agradecimento por sua vida.

A relação entre paixão, perda e queda aparece no discurso das pessoas, em geral. A paixão parece se presentificar como desmoronamento, talvez associado à perda do centro do sujeito e ao desvio do investimento de libido do ego para o objeto (FREUD,1917). Quanto a isso, algumas expressões inglesas para apaixonar-se são: "fall in love" e "lose one's heart to"; enquanto lose significa perder, fall significando queda conota desmoronamento do eu e descensão espacial. A paixão pode apavorar alguns sujeitos, diante da imaginária perda dos contornos de seu eu ou da abolição de seus limites identitários.

Ainda no terreno das paixões, "meu mundo caiu" é citada por uma garota traída pelo namorado idealizado, junto com outras expressões referentes a deslocamento no espaço: "caí no chão duro", "fiquei acuada na parede" e "essa dor não cabe em mim". Odeia-se, não encontra forças para trabalhar, quer sair de sua própria loja e de sua própria cidade. Não sabe para onde ir: fica "sem lugar no mundo". Há uma desestruturação generalizada de sua capacidade representativa, pois sua dor amorosa arrasta-se para outros aspectos de sua vida psíquica. A vivência de 'queda' é observada, então, na perda iminente das grandes tragédias pessoais, na perda das paixões não correspondidas, nas perdas das traições aos sentimentos sublimes do sujeito quanto ao outro, na perda de uma posição simbólico-cultural de excelência pessoal.

As representações espaciais aparecem no âmbito da clínica, a saber: "...se eu não tiver um lugar ao lado da minha mãe, não tenho nenhum lugar no mundo" e "eu não pertenço a este mundo, esse mundo não é para mim". Igualmente no horizonte clínico, certas expressões coloquiais se fazem presentes e denotam queda. Em síntese, a representação espacial de 'queda' revela distúrbios no espaço do sujeito, junto ao outro. Na clínica, apresentam-se, ainda, representações dos paradoxos lógicos.

No que se refere aos paradoxos, cabe retomar as ideias de um psicanalista que tem trabalhado com eles, ressaltando a sua importância na psique.

Racamier (1991) define o paradoxo como uma formação psíquica singular ligando indissociavelmente duas proposições inconciliáveis, mas não necessariamente oponíveis. Consiste em submeter um indivíduo a duas injunções inconciliáveis, de tal modo que lhe é impossível obedecer a uma, sem desobedecer à outra. O paradoxo é uma agressão ao eu, suscitando na vítima um ódio intenso, que procede de suas autodefesas.

 

O ganho, a perda e os paradoxos no sistema representacional

Ganho e perda são vivenciados pelo sujeito a partir do sistema representacional.2 Trata-se de um aparato psíquico virtualmente capaz de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Ele é constituído por diferentes camadas ou estratos psíquicos. Em seus estratos inconscientes são produzidas as representações, que têm relação com os conteúdos psíquicos introjetados pela criança, com base na relação com seus pais. Estes disseminam material psíquico de seus genitores. A função desse sistema de representar as vivências do sujeito não se desenvolve de per si. Depende dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se submete ao seu desejo. Além disso, os traumas alteram seu potencial de representar as vivências mentais. As representações de ganho, de perda e do espaço, bem como as representações dos paradoxos lógicos fazem parte dele.

A perda associa-se, outrossim, aos traumas envolvendo catástrofes naturais e relacionais. Atingindo um nível psíquico primevo do sujeito, o trauma gerado pela ameaça à vida pode ser induzido pela fome prolongada, pelos assaltos brutais, pelas guerras, bem como por catástrofes naturais - furacões, terremotos, entre outros -e, ademais, por "catástrofes" biológicas - câncer, Aids, epidemias. Em sua fundação intersubjetiva, o sujeito pode ser avassalado também por traumas relacionais-familiares, que ameaçam sua vida psíquica. Tem-se aí: uma gravidez ilegítima que envergonha a família, a desconfiança do homem quanto a ser o pai de uma criança e seu uso pela mãe para chamá-lo à responsabilidade, contravenções da lei vindas a público, ruína financeira e suas sequelas psíquicas, entre outras. Igualmente, as perdas sofridas pelos pais em sua infância e aquelas impostas por seu casamento podem ser traduzidas em dívidas a serem cobradas do filho. Nesse âmbito, as catástrofes que se abatem sobre o sujeito se devem à violência perpetrada por pessoas significativas e às forças psíquicas violentas do sujeito, ao responder a elas.

A violência do trauma é discutida em Psicanálise, seja transgeracional ou não. Kaës (2001) propõe que há uma relação entre a necessidade de transmitir experiências traumáticas e a violência da herança. Para Botella e Botella (2002), no trauma, a violência dos afetos desorganiza o psiquismo. Levy (2003) afirma que em situações traumáticas ocorrem vivências que, por sua violência, por sua intrusividade e pelo desamparo que geram, tornam-se intraduzíveis e produzem perturbações no sujeito.

Operam sobre o sujeito, ainda, os segredos, os ideais, as criptas, as identificações, entre outros. Abraham e Torok (1995) descrevem a cripta ou o enquistamento no inconsciente do sujeito de parte das formações inconscientes de outros, que o perseguem como um fantasma. Deriva do mandato ancestral sobre a descendência. Para Eiguer (1997), a patologia transgeracional liga-se aos avatares da tragédia dos lutos muito difíceis, quando os filhos vivem como seus os traumas de seus pais ou avós. Na identificação atributiva, o pai atribui ao filho uma vivência interior, um traço pessoal, uma representação de seus objetos internos, que ele não pode elaborar em si mesmo. Esta identificação entra em ação nos processos alienantes transgeracionais.

Na transmissão do sofrimento psíquico, catástrofes e perdas traumáticas repercutem sobre o sistema representacional. Diminuem seu potencial representativo de elaborar o sofrimento psíquico. Há modalidades de perdas: de crédito junto ao objeto; de regalias caras ao desejo; da estabilidade emocional; sócio-econômicas; imaginárias e reais de objetos amados, etc. Elas passam ao registro de vivências psíquicas sob a forma de representações de perda, investidas ou sobre investidas por ódio. A diferença entre essas catexias de ódio se deve à repetição das perdas na psique do sujeito, na de seus pais e na dos antepassados em sua família. Em outras palavras, se a vivência da perda é muito repetida -no plano individual ou supra individual- aumenta a vulnerabilidade do sistema a ela e novas perdas promovem dor exponencialmente maior.

No sistema das representações, a repetição da vivência de perda faz com que as representações de ganhos sejam desinvestidas de amor, as representações de perda sejam investidas ou sobre investidas de ódio, formando-se o paradoxo do ganho-perda e sua versão de apogeu e declínio. Sob sua égide, a suscetibilidade do sujeito às perdas aumenta, bem como seu sofrimento com elas. Assim sendo, o paradoxo bloqueia a possibilidade do sistema quanto a integrar representações de seus ganhos. A transmissão imemorial da perda numa família aumenta seu prejuízo sobre a potência representativa do sistema. Desse modo, a perda de um carro - numa colisão - é filtrada pelo adulto com base na representação dessa vivência, em seus pais e em outras gerações de seu nicho de origem. A partir disso, a dor da perda do carro pode ser maior ou menor.

Imbricados às vivências de ganho e de perda, os paradoxos lógicos são parte integrante do sistema das representações.

Na clínica transgeracional, a autora propõe que, no sujeito, o paradoxo designa uma conjugação entre representações que comportam contradição lógica, investimento de ódio nessas representações e cisão do eu. Dentre essas representações que se conjugam de forma contraditória, encontram-se: ser ganhador e ser perdedor, ser incluído e ser excluído, estar cheio e estar vazio. Nesse caso, mesmo após fazer conquistas e obter sucesso em alguns empreendimentos, certo sujeito não consegue se representar como ganhador, incluído e 'cheio' de conteúdos psíquicos bons. A despeito de suas conquistas e de seu sucesso, podem preponderar ser perdedor, ser excluído, estar vazio, associadas a grande sofrimento mental. Estas representações são investidas por ódio, em seu sistema representacional.

No sofrimento mental do sujeito, um paradoxo lógico típico é o paradoxo do ganho e da perda. As representações de ganho e de ser ganhador se transformam nas deperda e de ser perdedor, sendo estas vividas como absolutas numa fração incomensurável do tempo psíquico do sujeito. Este vive sob a ilusão de pequenez e pobreza, não podendo usufruir dos ganhos relativos a bens efetivamente conquistados por ele. Por vezes, vive bastante abaixo do padrão de vida de que poderia desfrutar.

Numa jovem senhora, a herança da casa da amada avó materna remete ao lar amoroso de sua infância, ao seu reconhecimento como filha por sua mãe e o alívio de não ter mais que pagar aluguel. Frente a esses ganhos, ela não demonstra uma emoção consonante com os significados dessa doação materna inédita. Paradoxalmente, ela a vivencia com tristeza e mergulha em fantasias de morte. O paradoxo de sua reação emocional pareceu decorrer de seu intenso ódio à figura materna, que a preteriu em relação ao seu irmão, no plano psíquico e material, durante toda sua vida. Assim, não lhe é possível desfrutar de suas conquistas e, com isso, seus ganhos tornam-se perdas.

Uma senhora vive uma ilusão de pequenez e de pobreza, em virtude das inúmeras perdas psíquicas e materiais pelas quais passou na segunda guerra. Noutro país, trabalhou árdua e desesperadamente, amealhou um patrimônio considerável, mas não pode usufruir de suas conquistas com prazer e leveza. Sua interdição ao prazer associa-se à proibição do desfrute de bens materiais, do dinheiro, do sexo, da largueza de vida e da grandeza de espírito em vida, a despeito da inexorabilidade da morte. Sucumbe à representação de perda catastrófica e implacável de objetos caros ao seu desejo. Vive sob a catástrofe psíquica de perda eterna de bens preciosos. Seus ganhos se vertem em perdas.

Outra variação do paradoxo de ganho e de perda é o do apogeu e do declínio. Ele pode ser fruto da ruptura abrupta de uma longa vivência de apogeu financeiro e afetivo - no sentido do sujeito desfrutar uma posição privilegiada na vida durante certo período. Esse paradoxo associa-se a uma ilusão de grandeza e riqueza no sujeito, em meio ao gozo de alto padrão de vida. Este pode ser sustentado por outra pessoa finita no tempo - sem ele perceber que não se sustenta psíquica e financeiramente. Essa ilusão de grandeza e de riqueza o leva a gastar além do que ganha, sem ter bases reais para arcar com os imprevistos da vida. Submete-o a forte instabilidade afetiva e financeira.

Certo profissional liberal desfrutou, outrora, de uma posição profissional e financeira privilegiada numa pequena cidade. Porém, gastava além do que ganhava. Nunca comprou uma casa própria. Reveses na divisão da herança com o irmão, atrasos e desmarcações de atendimentos a pacientes contribuíram para perdas em sua agenda e em seus rendimentos. Porém, compra produtos em prestações que se prolongam e suas dívidas se acumulam. Vive entre aquisições tecnológicas de última geração e a falta de dinheiro para a luz, entre o aluguel de um imóvel caro e a falta de dinheiro para o gás.

De modo geral, a trama transgeracional associa-se às representações alienantes do eu e contrárias ao desejo do sujeito. Elas são sobre investidas de ódio no estrato consciente do sistema das representações: ser desamparado, ser abandonado, ser rejeitado, ser devedor, ser não amado, entre outras. Em contrapartida, estão reprimidas nos estratos inconscientes do sistema as representações imprescindíveis para efetivar seu desejo, em seus fundamentos mais essenciais. Dentre elas, há: ser inteligente, ser competente, ser autossustentado, ser amado, ser determinado, por exemplo. Elas são investidas de amor, sendo de difícil acesso ao estrato consciente do sistema.

O ganho, a perda e os paradoxos na família

Muitas vezes, a dor da perda no sujeito é creditada às experiências com o outro, em geral, e com os pais, em específico. A psicanálise desmistifica reiteradamente o processo de perda, a começar pela atribuição de sua origem aos pais. Redimensionados como "pais internos" ou "figuras parentais", estas construções mentais do sujeito são passíveis de distorções inerentes à percepção humana. Em outras palavras, se, de um lado, a vivências de ganho, perda e paradoxos podem ser transmitidas de uma geração à seguinte, por outro, estão sujeitas aos processos inconscientes do sujeito, que as herda.

A construção da identidade do sujeito se alicerça na sua identificação com aspectos neuróticos, psicóticos e perversos da família, dentre os quais se incluem as vivências de ganho e de perda. Esta carga de representações e afetos ancestrais, transmitidos pelos pais, se soma à introjeção e à projeção do sujeito, que distorcem esse material psíquico apreendido por ele. Para ser incluído em sua família deve apreender esse legado, que ultrapassa suas possibilidades de escapar ileso a ele. No mais, sua identidade deriva de um conflito entre seus impulsos, suas características e seu desejo em face da invasão de representações sobre ele/filho, distorcidas pelos pais e projetadas nele. Ser guloso e ser balofo podem ser atribuídos depreciativamente à criança, quando ela expressa seu desejo por prazeres orais, inerentes à espécie e à família. Seus estados confusionais surgem à medida que o sujeito busca atender seu desejo, mas absorve essas representações alienantes de seu eu e contrárias a seu desejo. Tais estados confusionais podem provocar, ainda, a projeção, numa pessoa idealizada, de representações imprescindíveis para efetivar seu desejo, quando adulto. Assim, a criança representada pelos pais como gulosa e balofa pode projetar numa amiga idealizada ser bela, ser magra e ser elegante, quando adulta. Na verdade, projeta, nesse objeto idealizado-persecutório, seu desejo em seus alicerces mais essenciais.

Quanto a isso, Rosenfeld (1968) afirma que os estados confusionais são comuns no desenvolvimento normal e em condições patológicas. Quando predominam os impulsos de destruição, não se diferenciam os impulsos de amor dos de ódio nem os objetos bons dos maus, sendo percebidos como misturados ou confusos. Tais estados infantis de confusão se relacionam com os estados confusionais do adulto.

No sujeito, ganho e perda estão imiscuídos no conflito entre tipos de impulsos e entre os investimentos nas fases de desenvolvimento, nas quais ele está diferencialmente fixado. Esse diferencial de fixação se deve ao fato de que seus pais favorecem mais, por exemplo, a expressão de impulsos orais do que a de impulsos anais e genitais da criança. Em consequência, em certo casal impera, da parte do marido, o desejo de gratificação oral quanto às refeições, que necessariamente devem ser servidas pela esposa. Tais impulsos orais do marido mantêm-se irredutíveis apesar dos ataques oral-agressivos da esposa, que o serve em meio à briga constante. Ademais, ela se recusa a ter relações sexuais com ele, pois as assimila a ataques anais. Visto que as exigências orais dele são as únicas que a esposa concede atender, resta ao marido esparsos prazeres orais entremeados por ataques anal-agressivos da esposa. Submete-se a isso embasado em seu modelo mental de relação, com embates entre as fases do desenvolvimento oral- anal e genital e entre os impulsos a eles correspondentes.

A questão de perda e ganho está presente nas relações de dominação-submissão ligadas à fase anal (Freud, 1917). Surge numa briga entre uma filha adolescente e sua mãe. Esta quer viajar com a filha e não aceita sua requisição, cada vez mais insistente e enraivecida, de ficar em casa durante o final de semana. Termina a luta quando a mãe, com raiva, decide não viajar e a filha não pode ficar sozinha em casa. Se cada uma pode abrigar a ideia de ganho sob a forma de triunfo maníaco sobre a outra, desse modelo mental de dominação-submissão, resta perda para ambas, pois nenhuma pôde fazer o que exatamente desejava e a relação deteriorou-se mais uma vez.

As estruturas obsessivas, esquizoides e paranoides visam obter controle sobre certos impulsos, representações e afetos no sistema das representações. Tendo como vetor obter ganhos na defesa contra esses elementos, isolam representações e afetos desorganizadores de sua identidade, da corrente da consciência. Todavia, sua impossibilidade de recorrer a eles, em outros momentos de suas vidas, demarca a perda nestes processos defensivos. A energia mental retirada dos impulsos e das representações é usada para manter as contra catexias das defesas, impedindo que impulsos, representações e afetos sejam mobilizados para efetivar seu desejo.

O sujeito se constitui como um ser relacional com fundação na alteridade. Assim, os traumas na intersubjetividade podem ser vivenciados sob um absoluto de dor. Perpassado por esta, ele podes e debater contra as ligações afetivas com o objeto. Tentando-se desligar desse vínculo, seu desejo pode clamar e fugir de sua ligação com o objeto. Esse paradoxo aparece, em certo sujeito, sob as representações de seu desejo de ser invulnerável ao amor ao lado de seu desejo de ser amado pelo pai. Logo, tal como o eu pode ser perpassado por paradoxos, seu investimento no objeto também pode sê-lo. Deste modo, um sintoma pode envolver representações de ligação/ser amado pelo pai e de desligamento do objeto/ser invulnerável ao amor, investidas ora de amor ora de ódio. Dada a impregnação do desejo dos objetos primários e ancestrais no desejo do sujeito, seu desejo pode ser alçado à condição de alheio a ele. Com isso, ele pode odiar seu próprio desejo e atribuir suas melhores características ao objeto externo idealizado. Assim, uma garota que se representa como esquisita, pária e repulsiva pode idealizar um homem projetando nele ser amigável, sociável, enturmado e super atraente.

No tocante à perda de aspectos da identidade projetados no objeto idealizado, a relação do sujeito com ele ora estabiliza ora desorganiza o sistema. Para se livrar de representações desagradáveis para si, projeta-as, mas sua projeção causa perdas na força de realização de seu desejo. Numa família, ser ambicioso pode ser bastante execrado em prol do filho ser simples e ser humilde; na verdade, o desejo de seus pais é que ele deveria ser pobre e ser simplório como eles. Assim sendo, o sujeito pode atribuir a o objeto idealizado: ser magnífico, ser grandioso, ser poderoso. Quando certas representações do sujeito são execradas por ele a partir de sua família, elas deixam de ser parte consciente do sistema e ele não pode se valer de suas habilidades de maneira satisfatória. Impera nele a impossibilidade do uso criativo de seus recursos psíquicos, seus dons e talentos para efetivar seu desejo no mundo. Envolve o paradoxo do descentramento do eu em direção ao objeto idealizado, num conflito entre a sustentação do desejo em si ou na pessoa a quem idealiza.

As autorrepresentações proscritas do estrato consciente do sistema são creditadas a esse objeto idealizado. Este se apresenta como um sucedâneo mental das perdas narcísica e objetal do sujeito com seus pais, como uma escolha objetal com alto teor narcísico. A idealização de um objeto oculta um paradigma de relação em que os investimentos amorosos em si e em outros objetos são mínimos, em geral. Para reativar seus recursos psíquicos, o sujeito precisa elaborar seu ódio às figuras parentais e a si mesmo. Dessa forma, a capacidade construtiva (oposta à destrutividade) e a produção criativa do sujeito, em sua vida adulta, dependem do vínculo amoroso eu-outro. Para tanto, devem ser reorganizadas no sistema das representações.

Nesse veio da intersubjetividade, dois processos são fundamentais: a identificação e a contraidentificação.

Kaës (1998) diz que a identificação é o processo maior da transmissão psíquica. Retomando-se Eiguer (1997), a patologia transgeracional pode ser transmitida pela identificação atributiva, que atua nos processos alienantes transgeracionais.

Ao lado da identificação, a autora aventa a hipótese deque a contraidentificação do sujeito - com seus pais e ancestrais - ocorre na clínica transgeracional. A contraidentificação constitui um processo de formação do sujeito, que se contrapõe às características odiadas de seus pais em sua infância, aos quais atribui seu sofrimento. Contudo, elas favorecem a satisfação de seu desejo em sua vida adulta.

Certa garota se contraidentifica com a determinação, o empreendedorismo e o sucesso de seu sádico e odiado pai. A esses traços, ela atribui seu abandono, seu desamparo e sua humilhação. Ao sobre investir de ódio as representações de ser abandonada e ser desamparada, outras como ser empreendedora, ser determinada e ser bem-sucedida como seu pai não podem ser investidas de amor. Essas representações e esse afeto predispõem-na a atualizar seu desejo no presente, como a clínica transgeracional sugere.

O ganho, a perda e os paradoxos na clínica

Os paradoxos ligados ao ganho e à perda podem ser pensados segundo uma vertente clínica. Ganho e perda constituem um processo inerente ao trânsito entre as representações e à mudança psíquica, sendo indissociáveis da empreitada analítica. No mais das vezes, parte-se de uma configuração patológica do desejo, no início da análise. Uma configuração do desejos e constitui com base em representações e afetos asseguradores da identidade do sujeito, formada mediante suas identificações com seus pais. Funciona como um casulo narcísico, cuja fixidez precisa ser contínua e gradativamente dissolvida. A mudança psíquica conjuga desidentificações do sujeito com relação às representações e afetos antigos, bem como novas identificações. Com isso, ele pode adquirir novas configurações do desejo, cada vez mais coerentes consigo mesmo. Sua mudança psíquica mobiliza representações alternativas às anteriores, até se chegar às configurações do desejo mais verdadeiras -do ponto de vista do sujeito.

No início da análise, a configuração patológica do desejo de certo paciente compreendia: ser abandonado, ser desamparado e ser rejeitado pelo pai, ser devedor para com o avô. Estava submetido a um sofrimento infinito, que duraria para sempre. Elas são sobre investidas de ódio. Ademais, desejava ser invulnerável ao amor e tinha horror ao seu desejo de ser amado pelo pai. Com a análise, a próxima configuração incluiu: ser solitário, ser isolado, ser imune ao amor, submetido a um sofrimento prolongado e quase inescapável em uma relação duradoura. Estavam associadas a medo e tristeza. Nova configuração abarcou: ser blindado, que serviria para evitar ser sugado e ser esvaziado pelo objeto de amor. O sofrimento prolongado nas relações se associou a final ruim. Na configuração subsequente, referiu-se à sua miséria e à miséria da condição humana. Associou sua miséria à realidade: indiferente às suas fantasias e aos seus desejos. No entanto, referiu que sua realidade era melhor que a de muitas pessoas e construída por ele. Ser bem sucedido remeteu a encontrar um amor e não se colar a uma relação ruim. Sentiu medo, tédio e tristeza. Por fim, a configuração coerente com seu desejo, em seus fundamentos essenciais abrange: ser escolhido, que elaborou ser rejeitado e ser permeável ao aspecto sublime das relações, que superou ser invulnerável e ser imune ao amor. Deseja amar e ser amado, envolver e ser envolvido, acolher e ser acolhido: representações investidas por amor. Entre a configuração patológica de seu desejo e aquela solidária a ele, representações e afetos alternativos aos anteriores foram mobilizados pela análise.

Em meio a isso, dois tipos de paradoxos se apresentaram à análise: seu paradoxo axial com uma figura primária/pai e seu paradoxo secundário com uma figura ancestral/avô paterno. Seu paradoxo axial se baseia em sua identificação e sua contraidentificação com seu pai. Sustenta-se no conflito entre amor e ódio a si e ao objeto. O paradoxo axial e o paradoxo secundário confirmam um ao outro e paralisam o paciente sob seu domínio. Entre eles há pontos de articulação: seu amor aos objetos resvala para sofrimento com eles, de modo que seu ódio aumenta e seu conflito entre amor e ódio a si e ao objeto se fixa no sistema. Esses dois paradoxos desorganizam o funcionamento do sistema das representações, dificultando a atualização de seu desejo.

O paradoxo central do paciente parte de seu desejo de ser amado pelo pai e formula-se como: ser abandonado e ser desamparado pelo pai- ter ódio a ele - ter horror às demais relações - ser invulnerável ao amor. Deriva do desejo amoroso de seu genitor por outra mulher após a separação de seus pais, abandono do filho e ódio/horror do filho ao amor, bem como conjuga prazer paterno e sofrimento filial. Seu paradoxo secundário é: para ser amado pelo avô paterno, ele teve que reprimir seu ódio.

Na análise, a expectativa quanto aos ganhos de uma nova configuração do desejo carrega não somente os medos referentes ao novo, alvo de projeção de vivências anteriores, mas também envolve a resistência quanto à perda dos ganhos secundários da configuração antiga. O paciente oscila entre o júbilo ao superar antigas configurações e o sofrimento pela perda do conforto defensivo, proporcionado por elas. Este complexo trânsito pelas representações demanda manter a estabilidade identitária do sujeito. Nisto reside um ponto delicado do processo de ganhos e perdas inerentes ao devir representacional da mudança psíquica. Parte das representações e afetos - gradativamente menos antagônicos ao seu desejo - precisam ser mantidos no sistema, até que o sujeito possa aceitar novas configurações de seu desejo. Porquanto, uma análise oferece ao sujeito novos caminhos pulsionais e objetos alternativos a aquele perdido, assim como novas configurações do desejo ante às antigas. Freud (1917/2006) aponta que ninguém abandona de bom grado uma posição libidinal nem mesmo quando um objeto substitutivo se apresenta.

A clínica do sofrimento transgeracional ilustra o impacto da perda sobre o sistema das representações, ao longo das gerações da família. Nela, a perda tende a ser perpetuada inexoravelmente.

Certa paciente relutava em compartilhar seus escritos com outras pessoas, de seu ambiente profissional.3 Temia suscitar a inveja e perder o amor dessas pessoas não relevantes para ela. Publicara-os em livros pouco divulgados, lidos por algumas poucas pessoas distantes. Ela se contraidentificava com seu pai autoritário, severo e cruel, que alardeava suas glórias e seus feitos perdidos. Ele desejara ser diplomata e viajar ao redor do mundo, desejos ceifados em meio à segunda guerra. Fora escolhido pelo comandante do exército num concurso de poesia e o ganhara. Desejara ainda ser artista de rádio, desejo interditado pelo pai, que o dirige ao casamento. Antes de se casar, teria sido escolhido por uma moça bastante rica, mas optara por não se submeter ao pai dela e conquistar seu próprio patrimônio. Casa-se. Odeia a esposa e a filha/paciente em questão. Culpa-as por suas perdas. Na elaboração de sua neurose, a paciente consegue compartilhar suas poesias com várias pessoas próximas. Enquanto seu pai viveu imerso em várias perdas, ela, finalmente, estabelece uma estratégia consciente e deliberada de obter ganhos com seu dom. Em meio a isso, decide usar uma xícara muito desejada, que temia usar, quebrar e perder; decide usar roupas boas, sem temer gastá-las e perdê-las. Ao aceitar o risco da perda dos objetos, pode ganhar em prazer.

Na neurose, a perda constitui uma vivência geralmente enfocada como "ficar suspenso na falta do objeto bom" e inclui a confusão mental que faz de toda perda, uma vivência prevalentemente má. No sujeito, a perda fica exacerbada quando o sistema retém representações projetadas nele por seus pais, mas aviltantes com relação ao seu desejo. Em sua análise, o ganho/sucesso esteia-se em perdas operacionais de representações incoerentes com seu desejo. A perda de representações que impedem a realização do desejo tende a ser interpretada como nova perda. O paciente a confunde com a perda do objeto bom, visto que aquelas representações aviltantes quanto a realização do desejo, até então, eram estruturantes de sua identidade. Esse processo de reorganização de representações e afetos se reestrutura, afinal, quando a perda de uma representação incongruente com seu desejo dá lugar à reintegração de representações coerentes com ele, mas anteriormente expurgadas do estrato consciente do sistema. O sujeito pode, paulatinamente, integrar suas potencialidades e características, que permitem realizar seu desejo.

Impasses na dissolução da neurose são marcados pelo paradoxo e pelo absurdo. Absurdo é o raciocínio que destoa da lógica da razão, mas que convoca o sujeito a um círculo fechado de pensamento, que se mantém apesar de seu exame pela razão. Absurdo designa o raciocínio do tipo: "se eu não tiver um lugar ao lado de minha mãe, não tenho nenhum lugar no mundo" e "meu sofrimento vai durar para sempre". O paradoxo atesta uma pendência quase insolúvel entre representações coerentes com seu desejo e outras incongruentes com ele, sob a influência do desejo parental e ancestral. Assim, o sujeito debate-se entre pares de representações opostas: sucesso e fracasso, fartura e penúria, ganho e perda. Fracasso, penúria e perda tendem a prevalecer sobre os primeiros membros dos pares referidos. O paradoxo tinge-se ainda da mescla confusional entre o que é mais ou menos consoante com o desejo do sujeito, o que é essencialmente seu e o que é do outro. Quando a razão se vê tomada pelo paradoxo e pelo absurdo, ela não pode fazer frente a eles. Embora o pensamento paradoxal seja uma tentativa de organizar o jogo de forças entre processos primários e secundários, tende a bloquear o fluxo de novas representações. O fluxo tende a favorecer o aparecimento de representações e afetos cada vez mais solidários ao seu desejo. Dentre os demais elementos dos paradoxos há: a divisão dos afetos em amor e ódio, a ambivalência afetiva frente ao objeto, o conflito nas operações mentais.

Ao pensar os paradoxos da neurose, é necessário enfocar o ódio. A identidade de um sujeito pode ter se formado em torno de um modelo relacional fundado no ódio. Se este tende a levar ao desligamento entre os seres, paradoxalmente, produz fixação a uma configuração patológica do desejo.4 Nesta conjuntura, o ódio funda a relação paradoxal entre as representações, que enredam o pensamento numa circularidade quase inescapável. Assim, o paciente encontra-se paralisado por um paradoxo, que o deixa sem saída e sua resolução passa pela elaboração do ódio e pelo paradoxo clínico de que, por vezes, deve-se 'perder' representações antagônicas ao desejo para ganhar em sua realização. Para tanto, cabe lidar com o intenso investimento de ódio nas representações de si e das figuras parentais, que as fixava no estrato consciente do sistema. Cumpre reorganizar operações defensivas que mantém a neurose ao investirem de ódio representações dos pais internos, investindo também representações do sujeito. São elas: ser abandonado pelo pai abandonador, ser rejeitado pelo pai rejeitador sobre investidas de ódio, ser desamparado pela mãe desamparadora, entre outras.

Um paradoxo que deixa o paciente 'sem saída' envolve as representações de ser vitorioso e ser derrotado frente às figuras parentais. Ser vitorioso no sentido de resolver sua neurose - é confrontada por ser derrotado e ser perdedor da própria força, ao desistir do ódio às figuras parentais. Nessa medida, a resolução da neurose é alçada à condição de derrota frente a elas. Paradoxalmente, o sujeito fica fixado numa cultura de ódio em que novas representações de si são investidas por ele e sua mudança psíquica não segue seu curso.

Outras vertentes dos paradoxos no sistema têm consequências na clínica. Os paradoxos de três pacientes são estabelecidos a partir das representações contraditórias -consciente ou inconscientemente- atribuídas a elas por seus pais, podendo ser comparados entre si. Seus diferentes aspectos produzem, nelas, maior ou menor sofrimento psíquico, maior ou menor confusão mental, bem como maior ou menor dificuldade para serem dissolvidos e elaborados em análise.

A primeira paciente depara-se com a fala paterna: "você não precisa dirigir, deixa que eu levo". Porém, quando ela quer sair, ele diz: "você é folgada, quer as coisas no mole". Tais falas constituem os polos de seu paradoxo. Sua primeira parte contém uma oferta de amor e comodidade e a segunda inclui uma crítica feita a ela por seu genitor. O primeiro conjunto de condições oferecidas por ele dá lugar ao segundo, contrapondo-se ao desejo dela. A fala materna reitera a paterna: "dirigir prá que, prá ir onde, seu pai não leva você prá onde você quer?". Todavia, suas autorrepresentações de ser folgada, ser incompetente e ser despreparada têm um teor leve. Seu paradoxo atinge a clareza de seu pensamento e a integração entre ideias, emoções e ação. Produzem leve desorganização do sistema representacional, pois nele predomina o amor. Demarcam-se nela duas questões: para que desejar e que rumo dar ao seu desejo.

Na segunda paciente, se sua mãe sentia fome e ela não sentia, ela era alimentada; se sua mãe estava com frio e ela com calor, ela era agasalhada. Seus paradoxos são mais desorganizadores do sistema representacional que na primeira. Atingem percepções básicas - fome e temperatura -, misturam-se às emoções caóticas - ódio e pavor - e ameaçam sua sobrevivência física e psíquica. Paradoxalmente, fica cheia do vazio de desejo: não leva em consideração seu desejo quando ama o outro. Não obstante, prevalece o amor da mãe quanto a ela, ainda que seu desejo submeta o desejo da filha. As representações de ser super frágil, ser briguenta, ser encrenqueira e ser culpa da tem um teor representacional mais forte em termos de destrutividade do que na primeira paciente. Ao analisar as frases maternas, ela aponta: "não viva, porque eu não vivo", "não tenha prazer, porque eu não tenho". Porém, diz: "preciso transbordar minha criança". Esta representação se contrapõe a ser a criança doente, sufocada e controlada e, ainda, a ser a adulta, que se lesa ao cuidar do outro. No labor analítico, amar-se, ser amada, ser cuidada, cuidar-se, cuidar do outro sem ser lesada e buscar o melhor para si tornam seu desejo vigoroso.

Na terceira paciente, seu pai é um self-made-man, que usou seu poder e seu dinheiro para humilhá-la. Chamava-a de "chupim", "débil mental", "doente mental" e dizia que filhos "trocados por merda" ainda saíam caro. Em sua adolescência, ele se designa como representante absoluto do amor, pois "...outros homens vão sentir por você só desejo e ninguém vai te amar mais que eu". Assim, ele enuncia um desmentido radical e paradoxal de seu ódio a ela. Com isso, ele nega de forma onipotente as percepções obscuras da filha sobre isso. Ele demarca uma cisão entre amor e desejo sexual, fazendo de si e dos homens, elementos perigosos para ela. O desejo da paciente constitui-se como perigoso, deletério e quase inexistente. Sua vingança seria torrar o dinheiro de seu pai e derrotá-lo na vida. As representações de seu pai incluem: ser sádico, autoritário, poderoso, vitorioso e rico, que merece ser extorquido. Elas se contrapõem as suas auto-representações: ser abandonada, ser rejeitada, ser odiada pelo pai, ser fracassada, para sempre e sem lugar no mundo sobre investidas de ódio. Além disso, ela investe de ódio ser pobre, "ser chupim", "ser débil mental", "ser doente mental", "ser pior que merda". Ser um nada impera em oposição a ser poderosa; ser débil mental e ser psicótica contrapõem-se a ser inteligente e ser neurótica. Identifica-se com ideias associadas a seu pai - ser cruel consigo mesma - e se contraidentifica com outras - ser determinada e ser vigorosa como ele. Ser fracassada - ao usufruir de algumas regalias e não se esforçar para realizar seu desejo - é aparentada a "ser chupim". Ser bem sucedida entra em conflito com a representação de perdão a seus pais, distorcida pelas de ficar rendida/ser derrotada por eles. Ao final, ao rever as identificações e contraidentificações com seus pais, ela investe de amor: ser amada, ser cuidada, ser importante, ser excelente, ser determinada, ser persistente, buscar o melhor para si e colocar-se em primeiro lugar. Ao elaborar os nós representacionais do desejo e criar novas referências identitárias, seu desejo pode se tornar forte e potente.

Passa-se ao exame do teor ideativo do paradoxo, de seu conteúdo afetivo e dos setores do sistema das representações que ele atinge. O teor ideativo do paradoxo remete aos pares de representações que o compõem - com maior ou menor grau de coerência entre si. Quanto ao grau de coerência ou de incoerência entre as representações, tem-se: ser folgada ao ser protegida pelo pai; ser lesada em seu desejo, ao ser cuidada por sua mãe; "ser débil mental" segundo seu pai e ser inteligente na escola. Do primeiro ao terceiro par, o grau de coerência entre as ideias e a clareza mental das pacientes vão progressivamente diminuindo. O conteúdo afetivo do paradoxo remete à primazia do amor ou do ódio ao filho, por parte dos pais. Desse modo, ser folgada ao ser protegida tem maior proporção de amor que de ódio, enquanto "ser débil mental", mas ser inteligente expressa maior teor de ódio. Os setores do sistema representacional que atinge são: percepção, emoção, pensamento, ação, sobrevivência e existência do sujeito. Um paradoxo que atinge a percepção do sujeito - ter calor, mas ser agasalhada, visto que sua mãe sente frio - é menos enlouquecedor do que aquele que atinge sua existência - estar vivo e sentir-se morto para ambos os progenitores; existir, mas ser inexistente para seu pai. Portanto, para a confusão mental do sujeito contribuem esses elementos dos paradoxos, produzindo diferentes níveis de padecimento do eu.

De modo geral, o cerne do paradoxo reside numa proposição inconsciente do emissor/objeto parental para o receptor/herdeiro do paradoxo: 'ofereço-te um bem que reputo valioso, mas para obtê-lo deves conceder-me algo que te é precioso: teu desejo. Tal como eu, não podes exercê-lo'. O bem referido na frase pode remeter ao amor, à aprovação, à aceitação, ao dinheiro parentais. Todavia, o emissor que impede seu herdeiro de constituir seu próprio desejo, igualmente, não é senhor de seu próprio desejo. O emissor também teve que se submeter ao desejo de outrem.

Igualmente, as intervenções analíticas podem ser revestidas por paradoxos. Certas demandas do analisando podem ser seguidas por uma fala do analista, que lhe parece sustentar possibilidades de atendê-las. No entanto, o valor veritativo da fala do analista reside no nível da possibilidade e do discurso tão-somente, prestando-se a romper defesas do analisando. Com relação à transferência erótica, ressalta-se a paradoxal atuação do analista. Esta se presta, talvez, mais do que a transferência hostil, a fatorar um paradoxo da análise. Interpretando o desejo erótico do paciente por ele, o analista pode ser ouvido como alguém que concorda com tal desejo. No entanto, trata-se de uma espécie de traição à demanda erótica do paciente, para ajudá-lo a se reconhecer em sua forma de se relacionar com o outro. Quando se trata de um analisando que é analista, que conhece a regra de abstinência e os procedimentos psicanalíticos, a confusão mental tende a aumentar. Neste caso, o paradoxo lógico pode ser somado às determinações superegóicas do analisando e aumentar seu sofrimento mental. Conquanto promotor de sofrimento, tal recurso técnico, por vezes, é imprescindível para sua mudança psíquica. Além disso, ofertas de acolhida frente ao desamparo e à dor do paciente, mesmo com base na comoção do analista frente a eles, alicerçam-se tão somente no nível verbal. A regra da abstinência faz-se valer.

Os paradoxos do trabalho analítico revelam aspectos paradoxais da representabilidade psíquica. No pathos transgeracional do sujeito, as representações de si e de sua relação com o objeto estão bastante limitadas. O processo de mudança psíquica dirige-se à ampliação dessa faixa restrita de representações e a uma consequente melhora na relação do sujeito consigo mesmo, com o outro e o mundo. Os paradoxos contribuem para essa limitação, prendendo o sujeito a um sofrimento ancestral. Na reorganização mental dos paradoxos necessária à mudança psíquica, exacerbam-se os obstáculos de elaborá-los em seu efeito paralisador da representabilidade do sistema. No entanto, só então a corrente do pensamento pode prosseguir em seu fluxo 'normal', sendo este um dos desafios do analista.

 

Considerações finais

Vivências de perda fazem parte da vida psíquica e se instalam no sistema das representações. A severidade do sofrimento psíquico produzido por ela associa-se a vários fatores: seu caráter individual ou ancestral, nesse caso, herdado pelo sujeito; o quantum de ódio associado a sua repetição na vida do sujeito ou na de sua família; o tipo de objeto perdido; a carga de amor ou ódio ligado a ele, entre outros. Cotejada com o impacto da perda, a vivência de ganho parece ser mais dificilmente representada no sistema das representações. Quando o é, aparece sob a forma de pares de representações opostas, nos quais a perda está subjacente e impera sobre o ganho. Ao formarem paradoxos de sentido inconsciente, enredam a razão e o pensamento do sujeito, que fica submetido a ele.

Vivências muito doloridas de perda não elaboradas pelo sujeito favorecem sua parceria com o outro também submetido a perdas, resultando na sua disseminação para a nova geração. Configura-se, desse modo, a transmissão da perda ancestral, que terá grande impacto sobre seu herdeiro. A partir dessa herança, ele tende a antepor a perda à experiência e, tampouco, pode experimentar qualquer ganho. Muitas vezes, elaborar uma perda pessoal remete a ressignificar uma perda vivida por seus objetos parentais e ancestrais. A saída para sua perda pessoal evoca a superação da perda parental ou ancestral, rompendo a contraidentificação com essa figura. O trabalho de análise é fundamental nesse sentido.

Com ele, as perdas inexoráveis do sujeito nos vínculos passados podem dialogar com as possibilidades de ganhos em vínculos inéditos. Vários objetos de satisfação apresentam-se ao seu desejo, em detrimento da anterior exclusividade onipotente de alguns poucos. À medida que ele investe-se de amor, seus objetos revelam-se em sua real dimensão: capazes de satisfação temporária e provisória de seu desejo. Disso derivam criatividade no uso de seus recursos psíquicos e força construtiva para realizar seu desejo.

A clínica sugere algumas formas salutares de elaborar as perdas. A princípio, cabe tomar consciência delas em profundidade, diferenciando seu crivo individual do supraindividual associado às perdas da família. Ademais, elencar e dimensionar certa perda diante de outras mais relevantes para o sujeito, permite-lhe estabelecer sua real dimensão, sem racionalizar sua dor. A perda e o ganho podem ter relação com certo objeto de prazer imediato, externo em relação ao sujeito. Dessa maneira, a elaboração de sua perda pode ser obtida, ao se conquistar outro objeto externo de maior valor para o sujeito. Seu ganho revela-se mais amplo em relação ao ganho, que adviria da obtenção do primeiro. Assim, a perda do horário de uma prova de ballet -que permitiria um ganho local - pode ser superada ao se ganhar um concurso nacional - que propicia um ganho global, de maior valor e mais prazeroso para o sujeito. Ademais, ao invés de esvair-se em ódio e desejar uma vingança contra o outro que lhe impôs uma perda, o sujeito pode buscar uma saída criativa e pessoal para ela. Esta saída pode ser renovadora de seu eu e consoante seu desejo mais fundamental.

As contradições no discurso parental dirigido ao filho parecem ampliar a tendência do sistema ao conflito entre forças psíquicas opostas: entre impulsos e afetos dissonantes. No caso dos paradoxos, estão em jogo díades de representações opostas investidas de tal montante de ódio, que se exacerbam as falhas na representabilidade do sistema em elaborá-las. Trazidas ao seu estrato consciente e examinadas em seus aspectos inconscientes, as representações dos paradoxos podem ser integradas ao sistema das representações. Nessa medida, sucesso e fracasso, fartura e penúria, ganho e perda não mais dominam o sistema, ganhos e perdas se relativizam e o sujeito se torna mais inteiro e integrado. Dessa forma, o desejo do sujeito pode se apresentar ao mundo das relações sem os entraves anteriores e o adulto pode ser quem ele é, em face dos limites da realidade.

Uma narrativa oriental parece cabível neste contexto. Frente às grandes glórias das conquistas e aos grandes reveses das derrotas, nas guerras, um sábio diz ao rei: 'Isso passa...'

 

Referências

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Recebido em: 10/06/2014
Aceito em: 24/07/2015

 

 

1 Contato: lunaiff@hotmail.com
2 Na obra de Herrmann (2001), o sistema representacional aparece como um termo relacionado a outras concepções do autor. Sua conceituação não é explicitada por ele, ao longo de sua obra. Para a demanda teórica desse trabalho sobre a transmissão da vida psíquica na família, desenvolve-se uma ótica específica sobre esse termo.
3 Trata-se da terceira paciente citada nos paradoxos como filha de um self-made-man.
4 Freud (1940/2006) diz que o objetivo do instinto destrutivo é desfazer conexões e destruir as coisas.

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